Você está na página 1de 1

FONTE: BANDEIRA, Manuel; CÂNDIDO, Antonio (Introd.). Estrela da vida inteira. 25. ed.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.


MANUEL BANDEIRA

EU VI UMA ROSA CARTAS DE MEU AVÔ


Lira dos cinquent’anos, 1940 A cinza das horas, 1917
A tarde cai, por demais
Erma, úmida e silente...
Eu vi uma rosa A chuva, em gotas glaciais,
– Uma rosa branca – Chora monotonamente.
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
No jardim, na rua. As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.
Sozinha no mundo.
Enternecido sorrio
Em torno, no entanto, Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos,
Ao sol de meio-dia, Quando o fogo era já frio.
Toda a natureza
Em toda formas e cores Cartas de antes do noivado...
E sons esplendia. Cartas de amor que começa,
Inquieto, maravilhado,
E sem saber o que peça.
Tudo isso era excesso.
Temendo a cada momento
A graça essencial, Ofendê-la, desgostá-la,
Mistério inefável Quer ler em seu pensamento
– Sobrenatural – E balbucia, não fala...
Da vida e do mundo, A mão pálida tremia
Estava ali na rosa Contando o seu grande bem.
Sozinha no galho. Mas, como o dele, batia
Dela o coração também.
Sozinha no tempo.
A paixão, medrosa dantes,
Cresceu, dominou-o todo.
Tão pura e modesta, E as confissões hesitantes
Tão perto do chão, Mudaram logo de modo.
Tão longe da glória
Da mística altura. Depois o espinho do ciúme...
A dor... a visão da morte...
Dir-se-ia que ouvisse Mas, calmado o vento, o lume
Do arcanjo invisível Brilhou, mais puro e mais forte.
As palavras santas
De outra Anunciação E eu bendigo, envergonhado,
Esse amor, avô do meu...
Do meu, — fruto sem cuidado
Que ainda verde apodreceu.

O meu semblante está enxuto.


Mas a alma, em gotas mansas,
Chora abismada no luto
Das minhas desesperanças...

E a noite vem, por demais


Erma, úmida e silente...
A chuva em pingos glaciais,
Cai melancolicamente.

E enquanto anoitece, vou


Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.

Você também pode gostar