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O serviço das mulheres e o trabalho das mulheres estão profundamente enterrados no coração
da estrutura social e econômica capitalista. (David Staples, No Place Like Home, 2006)
É claro que o capitalismo levou à super-exploração das mulheres. Isso não ofereceria muito
consolo se significasse apenas aumento da miséria e da opressão, mas felizmente também
provocou resistência. E o capitalismo tornou-se consciente de que, se ignorar ou suprimir
completamente essa resistência, ela poderá se tornar mais e mais radical, acabando por se
transformar em um movimento de autoconfiança e talvez até no núcleo de uma nova ordem
social. (Robert Biel, O Novo Imperialismo, 2000)
O agente libertador emergente no Terceiro Mundo é a força não remunerada das mulheres que
ainda não estão desconectadas da economia da vida pelo seu trabalho. Elas servem vida, não
produção de mercadorias. Elas são o alicerce oculto da economia mundial e o equivalente
salarial de seu trabalho vitalício é estimado em &16 trilhões.” (John McMurtry, The Cancer State
of Capitalism, 1999)
O pilão quebrou de tanto socar, amanhã eu vou para casa. Até amanhã, até amanhã… De tanto
socar, amanhã eu vou para casa. (Canção das Mulheres Hausa, da Nigéria)
INTRODUÇÃO
Este ensaio é uma leitura política da reestruturação da [re]produção de força de trabalho na
economia global, mas é também uma crítica feminista de Marx que, de diferentes maneiras,
vem se desenvolvendo desde a década de 1970, articulada pela primeira vez por ativistas na
Campanha por Salários por Trabalho Doméstico, especialmente Selma James, Mariarosa Dalla
Costa, Leopoldina Fortunati, entre outras, e mais tarde pelas feministas da escola de Bielefeld,
Maria Mies, Cláudia Von Werlhof, Veronica Benholdt-Thomsen. (1)
No centro desta crítica está o argumento de que a análise de Marx do capitalismo foi dificultada
por seu foco quase exclusivo na produção de mercadorias e sua cegueira para a importância do
trabalho reprodutivo não remunerado das mulheres e a divisão sexual do trabalho na
acumulação capitalista. (2) Ignorar este trabalho limitou a compreensão de Marx dos
mecanismos que perpetuam a exploração do trabalho e o levou a assumir que o
desenvolvimento capitalista é tanto inevitável quanto progressivo, na suposição de que a
escassez é um obstáculo à autodeterminação humana, mas a expansão capital das forças de
produção, através da industrialização em grande escala, levariam à sua transcendência. Marx
aparentemente tinha refletido sobre esse assunto nos últimos anos de sua vida. Quanto a nós,
um século e meio depois da publicação do Capital, devemos desafiar essa visão por pelo menos
três razões.
Quer a escassez seja ou não um obstáculo à libertação humana, a escassez hoje é produto da
produção capitalista. Segundo, enquanto a produção capitalista aumenta a cooperação na
organização do trabalho, acumula diferenças e divisões dentro do proletariado através de sua
organização da reprodução social. Terceiro, da Revolução Mexicana à Revolução Chinesa, as
lutas mais antisistêmicas do último século não foram travadas pelos trabalhadores industriais,
os sujeitos revolucionários de Marx, mas por campesino/as. Hoje também são travadas por
agricultores de subsistência, ocupantes urbanos, migrantes não-documentados, bem como
trabalhadores de alta tecnologia na Europa e na América do Norte. Mais importante, são
combatidas por mulheres que, apesar de tudo, estão reproduzindo suas famílias,
independentemente do valor que o mercado coloca em suas vidas, valorizando sua existência,
reproduzindo-as por si mesmas, mesmo quando os capitalistas declaram sua inutilidade como
força de trabalho.
Quais são as perspectivas, então, de que a teoria marxista pode servir como um guia para a
“revolução” em nosso tempo? A seguir, faço esta pergunta, analisando a reestruturação da
reprodução na economia global. Minha afirmação é que, se a teoria marxista deve falar aos
movimentos anticapitalistas do século XXI, deve repensar a questão da “reprodução” em uma
perspectiva planetária.
Refletir sobre as atividades que reproduzem nossa vida afasta, de fato, a ilusão de que a
automação da produção pode criar as condições materiais para uma sociedade não exploradora,
mostrando que o obstáculo à “revolução” não é a falta de know-how tecnológico, mas as divisões
que o desenvolvimento capitalista reproduz na classe trabalhadora. De fato, o perigo hoje é que,
além de devorar a terra, o capitalismo desencadeia mais guerras do tipo que os EUA lançaram
no Afeganistão e no Iraque, desencadeadas pela necessidade corporativa de obter acesso à
riqueza mineral e de hidrocarbonetos e pela competição proletária por riqueza que não pode
ser generalizada. (Federici 2008)
Mas enquanto explorava meticulosamente a dinâmica da produção e valorização de fios, ele era
sucinto ao abordar o trabalho reprodutivo, reduzindo-o ao consumo dos trabalhadores das
mercadorias que seus salários podem comprar e do trabalho que a produção dessas mercadorias
exige. Em outras palavras, como no esquema neoliberal, também no relato de Marx, tudo que é
necessário para [re]produzir força de trabalho é a produção de mercadorias e o mercado.
Nenhum outro trabalho intervém para preparar os bens que os trabalhadores consomem ou
para restaurar fisicamente e emocionalmente sua capacidade de trabalho. Nenhuma diferença
é feita entre a produção de mercadorias e a produção da força de trabalho. (Marx 1990, Vol. 1,
ibid.) (3) Uma linha de montagem produz ambos. Assim, o valor da força de trabalho é medido
no valor das mercadorias (comida, vestuário, habitação) que devem ser fornecidas ao
trabalhador, ao “homem, para que ele possa renovar seu processo de vida”, isto é, eles são
medidos no tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção (Marx 1990, Vol. 1:
276-7). (4)
Mesmo quando ele discute a reprodução dos trabalhadores em uma base geracional, Marx é
extremamente esparso. Ele nos diz que os salários devem ser suficientemente altos para garantir
“as substituições dos trabalhadores”, seus filhos, de modo que a força de trabalho possa
perpetuar sua presença no mercado. (Marx, ibid.: 275). Mas, mais uma vez, os únicos agentes
relevantes que ele reconhece nesse processo são os trabalhadores masculinos, auto-
reprodutores, seus salários e seus meios de subsistência. A produção de trabalhadores é por
meio de mercadorias. Nada é dito sobre mulheres, trabalho doméstico, sexualidade e
procriação. Nos poucos casos em que ele se refere à reprodução biológica, ele a trata como um
fenômeno natural, argumentando que é através das mudanças na organização da produção que
uma população excedente é periodicamente criada para satisfazer as necessidades mutáveis do
mercado de trabalho. (5)
Em outra parte, apresentei várias hipóteses para explicar por que Marx tão persistentemente
ignorou o trabalho reprodutivo das mulheres, por que (por exemplo) ele não questionou quais
transformações as matérias-primas envolvidas na reprodução da força de trabalho devem sofrer
para que seu valor fosse transferido para seus produtos (como ele fez no caso de outras
mercadorias). Sugeri que as condições da classe trabalhadora na Inglaterra – o ponto de
referência de Marx e Engel – moldaram sua descrição. (Federici 2004)
Marx descreveu a condição do proletariado industrial de seu tempo como ele a viu, e o trabalho
doméstico das mulheres dificilmente fazia parte dela. O trabalho doméstico, como um ramo
específico da produção capitalista, estava abaixo do horizonte histórico e político de Marx, pelo
menos na classe trabalhadora industrial. Embora desde a primeira fase do desenvolvimento
capitalista, e especialmente no período mercantilista, o trabalho reprodutivo fosse formalmente
subsumido à acumulação capitalista, foi apenas no final do século XIX que o trabalho doméstico
emergiu como o motor chave para a reprodução da força de trabalho industrial, organizada pelo
capital para o capital, de acordo com as exigências da produção fabril.
Até os anos 1870, consistentemente com uma política tendendo à “extensão ilimitada do dia de
trabalho” (ibid. 346) e a compressão máxima do custo da produção de trabalho, o trabalho
reprodutivo foi reduzido a um mínimo, resultando na situação poderosamente descrito no
Capital Vol. 1, no capítulo sobre o Dia de Trabalho, e em Condições da Classe Trabalhadora na
Inglaterra (1845) de Engels, isto é, a situação de uma classe trabalhadora quase incapaz de se
reproduzir, calculando uma expectativa de vida de 20 anos de idade, morrendo em sua
juventude de excesso de trabalho. (6)
Podemos também presumir que as dificuldades colocadas pela classificação de um trabalho não
sujeito à avaliação monetária motivaram Marx a permanecer em silêncio sobre este assunto,
especialmente ao enfrentar a incômoda tarefa de ilustrar o caráter específico das relações
capitalistas. Mas há uma outra razão, mais indicativa dos limites do marxismo como teoria
política, que devemos levar em conta, se quisermos explicar por que não apenas Marx, mas
gerações de marxistas, criados em épocas nas quais o trabalho doméstico e a domesticidade
eram triunfantes, continuaram cegos para este trabalho.
Sugiro que Marx ignorou o trabalho reprodutivo das mulheres porque ele permaneceu ligado a
um conceito tecnológico de revolução, onde a liberdade vem através da máquina, onde o
aumento na produtividade do trabalho – entendido como aumento da produção no tempo – é
considerado a base material para o comunismo, e onde a organização capitalista do trabalho é
vista como o modelo mais elevado de racionalidade histórica, sustentado por todas as outras
formas de produção, incluindo a reprodução da força de trabalho. Em outras palavras, Marx não
reconheceu a importância do trabalho reprodutivo porque aceitou os critérios capitalistas para
o que constitui o trabalho e acreditava que o trabalho industrial assalariado era o cenário em
que o destino da humanidade seria moldado.
Uma consequência deste ponto cego nos tempos modernos tem sido que os teóricos marxistas
foram incapazes de compreender a importância histórica da revolta das mulheres após a
Segunda Guerra Mundial contra o trabalho reprodutivo, como expresso no Movimento de
Libertação das Mulheres, e ignoraram sua redefinição prática do que constitui trabalho, quem é
a classe trabalhadora e a natureza da luta de classes. Somente quando as mulheres deixaram as
organizações da esquerda em massa, os marxistas reconheceram o MLM. Até hoje, muitos
marxistas estão ponderando sobre a relação entre classe e gênero; ver a popularidade da última
categoria como uma indulgência cultural, uma concessão ao pós-modernismo, e ou ignorar a
questão do trabalho reprodutivo, como é o caso mesmo com um ecomarxista como Peter
Burkett (200 ...) (9) ou apoiar da boca para fora, assimilando-a – novamente – à produção de
mercadorias, como na concepção de Negri de "trabalho afetivo", que nos leva a uma concepção
pré-feminista de reprodução. De fato, os teóricos marxistas são geralmente ainda mais
indiferentes à questão da reprodução do que o próprio Marx, que poderia dedicar páginas às
condições das crianças de fábrica, ao passo que seria um desafio hoje buscar referências a
crianças em um texto marxista.
Volto mais à frente aos limites do marxismo contemporâneo para perceber sua incapacidade de
compreender o significado da virada neoliberal e do processo de globalização. Por enquanto,
basta dizer que já nos anos 60, sob o impacto da luta anticolonial e da luta contra o apartheid
nos Estados Unidos, a abordagem de Marx do capitalismo e das relações de classe foi submetida
a uma crítica radical dos escritores políticos do Terceiro Mundo (por exemplo, Samir Amin e
Gunder Frank), que desafiaram seu eurocentrismo, sua tolerância à expansão colonial e seu
privilégio do proletariado industrial assalariado como objeto primário de exploração e sujeito
revolucionário. No entanto, foi a revolta das mulheres contra o trabalho doméstico na Europa e
nos EUA e, mais tarde, o surgimento de movimentos feministas em todo o planeta, nas décadas
de 1980 e 1990, que desencadearam o repensar mais radical do marxismo.
As feministas não só estabeleceram que a reprodução da força de trabalho envolve uma gama
de atividades muito mais ampla do que o consumo de mercadorias, como também que a comida
deve ser cozida, a roupa lavada, os corpos serem acariciados e o sexo feito. Seu reconhecimento
da importância da reprodução e do trabalho doméstico das mulheres para a acumulação de
capital levou a um repensar das categorias de Marx e a uma nova compreensão da história e dos
fundamentos do desenvolvimento capitalista e da luta de classes.
A partir do início dos anos 1970, formou-se uma teoria feminista que radicalizou a mudança
teórica que as críticas do Terceiro Mundista de Marx inauguraram, confirmando que o
capitalismo não é identificável com o trabalho pago contratado, que, em essência, é um trabalho
não-gratuito, e revelando a conexão umbilical entre a desvalorização do trabalho reprodutivo e
a desvalorização da posição social das mulheres.
Essa mudança de paradigma também teve consequências políticas. A mais imediata foi a recusa
dos slogans da esquerda marxista, tais como as ideias da “greve geral” ou “recusa do trabalho”,
ambas as quais nunca incluíam as trabalhadoras domésticas. Com o passar do tempo, cresceu a
percepção de que o marxismo, filtrado pelo leninismo e pela social-democracia, expressou os
interesses de um setor limitado do proletariado mundial, o trabalhador macho, branco, adulto,
em grande parte auferindo seu poder do fato de trabalharem nos principais setores da produção
industrial de capital, nos mais altos níveis de desenvolvimento tecnológico.
Dalla Costa apontou, por exemplo, que desde o final da Segunda Guerra Mundial, as mulheres
na Europa estavam envolvidas em um ataque silencioso contra a procriação, como evidenciado
pelo colapso da taxa de natalidade e pela promoção da imigração pelos governos. (10) Fortunati
em Brutto Ciao (1976) examinou as motivações por trás do êxodo das mulheres das áreas rurais
após a Segunda Guerra Mundial, sua reorientação do salário familiar para a reprodução das
novas gerações e a conexão entre a busca pós-guerra das mulheres pela independência, pelo
aumento do investimento em seus filhos e pela crescente combatividade das novas gerações de
trabalhadores.
Em meados da década de 1970, essas lutas não eram mais “invisíveis”, mas tornaram-se um
repúdio aberto à divisão sexual do trabalho, com todos os seus corolários: dependência
econômica dos homens, subordinação social, confinamento a uma forma de trabalho não
remunerada e naturalizada, sexualidade controlada pelo Estado e procriação. Ao contrário de
um equívoco generalizado, a crise não se limitou às mulheres brancas de classe média. Pelo
contrário, o primeiro movimento de libertação das mulheres nos EUA foi sem dúvida um
movimento de mulheres negras. Foi o Movimento das Mães pelo Bem-Estar que, inspirado pelo
Movimento dos Direitos Civis, liderou a primeira campanha pelos salários financiados pelo
Estado para as mulheres que lutaram no país (sob o pretexto de Ajuda às Crianças Dependentes)
afirmando o valor econômico das mulheres, trabalho reprodutivo e declarando “bem-estar” um
direito da mulher.
As mulheres estavam em movimento também em toda a África, Ásia, América Latina, como
demonstrou a primeira Conferência Global das Nações Unidas sobre as Mulheres realizada na
Cidade do México em 1975. A conferência e as que se seguiram provaram que as lutas das
mulheres pela reprodução estavam redirecionando as economias pós-coloniais para um maior
investimento na força de trabalho doméstica e foram o fator mais importante no fracasso dos
planos de desenvolvimento do Banco Mundial para a comercialização da agricultura. Na África,
as mulheres sempre recusaram ser recrutadas para trabalhar nas plantações privativas dos seus
maridos, defendendo, em vez disso, a agricultura orientada para a subsistência, transformando
a vila de um local para a reprodução de mão-de-obra barata (Meillassoux) em um local de
resistência à exploração. Na década de 1980, essa resistência foi reconhecida como o principal
fator na crise dos projetos de desenvolvimento agrícola do Banco Mundial, levando a uma
enxurrada de artigos sobre “a contribuição das mulheres para o desenvolvimento”.
Dados os eventos que descrevi, não surpreende que a reestruturação que ocorreu com a
globalização da economia mundial tenha levado a uma grande reorganização da reprodução,
bem como uma campanha contra as mulheres em nome do “controle populacional”. A seguir,
examino os principais aspectos dessa reestruturação tentando avaliar as tendências
predominantes, suas consequências sociais e seu impacto nas relações de classe.
Antes, porém, quero esclarecer por que continuo a usar o conceito de força de trabalho que
algumas feministas criticaram, apontando que as mulheres produzem indivíduos vivos –
crianças, parentes, amigos – e não força de trabalho. A crítica é bem aceita. A força de trabalho
é uma abstração. Como Marx nos diz, ecoando Sismondi, ela “não é nada a menos que seja
vendida” e utilizada (1990: 277). Eu mantenho esse conceito por várias razões. Primeiro, para
destacar o fato de que, na sociedade capitalista, o trabalho reprodutivo não é a reprodução livre
de nós mesmas ou dos outros, de acordo com nossos desejos e os deles. Na medida em que,
direta ou indiretamente, é trocado por um salário, o trabalho de reprodução está, em todos os
pontos, sujeito às condições impostas pela organização capitalista e pelas relações de produção.
Em outras palavras, o trabalho doméstico não é uma atividade livre. É “a produção e a
reprodução dos meios de produção mais indispensáveis para o capitalismo: o trabalhador”
(ibid.) Como tal, está sujeita a todas as restrições que derivam do fato de que seu produto deve
satisfazer as exigências do mercado de trabalho.
Por último, falo de trabalho “reprodutivo” e não de “afetivo” porque, mesmo em suas
conotações espinosistas, este termo descreve uma parte limitada do trabalho que a reprodução
dos seres humanos requer e apaga o potencial subversivo do conceito feminista de trabalho
reprodutivo que, desvelando as contradições inerentes a este trabalho, reconhece a
possibilidade de alianças, formas de cooperação entre produtores e reproduzidos – mães e
filhos, professores e alunos, enfermeiros e pacientes.
Tendo em mente esse caráter específico do trabalho reprodutivo, perguntemos: como a
globalização econômica reestruturou a reprodução da força de trabalho? E quais foram os
efeitos dessa reestruturação nos trabalhadores e especialmente nas mulheres, tradicionalmente
os principais temas do trabalho reprodutivo? Por fim, o que aprendemos com essa
reestruturação sobre o desenvolvimento capitalista e o lugar da teoria marxista nas lutas
anticapitalistas de nosso tempo?
Certamente, esse ataque à reprodução dos trabalhadores não passou sem ser desafiado. O uso
generalizado do dinheiro em crédito nos EUA deve ser visto como uma resposta ao declínio dos
salários e à recusa à austeridade imposta pelo declínio dos salários. Em todo o mundo, cresceu
um movimento de movimentos que tem desafiado todos os aspectos da globalização. Isso
explica em parte a necessidade contínua de GUERRA e CRISE como pilares de acumulação.
Olhando para a economia global do ponto de vista da reprodução social, devemos também
concluir que, apesar da Internet, a comunicação e a cooperação social não se expandiram. A
globalização não apenas minou as principais condições materiais para a “produção de bens
comuns”, que é a posse comum de terras e recursos naturais. Longe de achatar a ordem mundial
em uma rede de circuitos igualmente interdependentes – como economistas liberais, jornalistas
como Thomas Friedman, bem como autonomistas marxistas como Negri sustentam – ela a
reconstruiu como uma estrutura piramidal, aumentando a desigualdade e a polarização e
aprofundando as hierarquias que caracterizaram historicamente a divisão sexual e internacional
do trabalho, que a luta anticolonial e os movimentos de libertação das mulheres haviam minado.
O centro estratégico da acumulação primitiva tem sido o antigo mundo colonial, historicamente
o ponto mais baixo do sistema capitalista, o lugar da escravidão e das plantações. É aqui que
temos testemunhado os processos mais radicais de expropriação e pauperização, o
desinvestimento mais radical do Estado e a desvalorização do trabalho. Este processo foi bem
documentado. A partir dos anos 80, como consequência do Ajuste Estrutural (SAP), o
desemprego na maioria dos países do Terceiro Mundial subiu tanto que a USAID conseguiu
recrutar trabalhadores sem oferecer mais que comida pelo trabalho. Os salários caíram tanto
que as mulheres da maquila foram relatadas a comprar leite por copo, ovos ou tomates, um de
cada vez. Populações inteiras foram desmonetizadas, enquanto simultaneamente suas terras
foram levadas para projetos governamentais e dadas a investidores estrangeiros.
Se considerarmos ainda que, através da crise da dívida e do AE, os países do Terceiro Mundo
foram forçados a desviar a produção de alimentos do mercado doméstico para o de exportação,
transformar terras aráveis de produção de alimentos comestíveis em extração mineral e
biocombustível, florestas, tornam-se áreas de despejo para todos os tipos de resíduos, bem
como motivos de predação para caçadores de genes farmacêuticos, então, devemos concluir
que, nos planos do capital internacional, existem agora regiões do mundo marcadas por “quase
zero reprodução”. Podemos ver que o PODER DE MORTE é tão importante quanto o BIOPODER
na formação das relações capitalistas, como um meio de desacumular trabalhadores
indesejados, resistências contundentes, cortar o custo da produção de mão-de-obra.
Esta prática é altamente incomum historicamente. As mulheres são aquelas que ficam, não por
falta de iniciativa ou restrições tradicionais, mas porque assumem a responsabilidade pela
reprodução de suas famílias. São elas que garantem que as crianças tenham comida, muitas
vezes sem ter para elas próprias, e os idosos ou doentes são cuidados. Assim, quando centenas
de milhares partem, para enfrentar anos de humilhação e alienação, e vivem com a angústia de
não poder dar às pessoas que amam o cuidado que dão aos outros em todo o mundo, sabemos
que algo bastante dramático está acontecendo na organização da reprodução mundial.
O capitalismo promove uma crise permanente de reprodução. Se não tem disso mais aparente,
é porque as “catástrofes humanas” que causou foram historicamente externalizadas, confinadas
às colônias, assim invisibilizadas ou racionalizadas como efeitos de atraso cultural, apego a
tradições equivocadas, tribalismo. Essa “externalização” continua até hoje, assim como o seu
encobrimento ideológico. A desintegração econômica e social que muitos países do Terceiro
Mundo estão experimentando devido aos efeitos da liberalização econômica é racionalizada
através da reformulação de uma ideologia colonial que acusa as vítimas, contando com o
crescente distanciamento dos mundos, e a ansiedade sobre outros, criados pela aparente
diminuição de recursos.
Por fim, a globalização revelou de forma tão inequívoca o custo da tecnologização da produção
que se tornou inconcebível falar, como Marx faz nos Grundrisse, da “influência civilizadora do
capital” em referência à sua “apropriação universal da natureza” e “sua produção de um estágio
da sociedade... [onde] a natureza se torna simplesmente um objeto para a humanidade,
puramente uma questão de utilidade, [onde] deixa de ser reconhecida como um poder em si
mesma; e o reconhecimento teórico de suas leis independentes aparece apenas como um
estratagema projetado para subjugá-la às exigências humanas, seja como um objeto de consumo
ou um meio de produção.” (Grundrisse, citado por McLellan: 363-4)
Assim como as siderúrgicas, os computadores também – seus materiais, sua fabricação e sua
operação – têm um grande efeito poluidor sobre o meio ambiente. As velhas como as novas
máquinas já estão destruindo a terra, tanto que, como a recente conferência na Polônia
demonstra, “capacidade de sobrevivência” tornou-se uma demanda política. Neste caso
também, tanto é ouvido diariamente sobre o assunto, que nos arriscamos a repetir o óbvio. Mas
a falta de vontade/incapacidade dos formuladores de políticas para mudar o rumo do capital,
em face do acúmulo de evidências do aquecimento global e outras catástrofes na produção,
demonstra não apenas que "o capitalismo é insustentável" (Dalla Costa), mas qualquer sonho
de êxodo tecnológico é absurdo.
Mas mesmo nos países mais desenvolvidos tecnologicamente, o trabalho doméstico não foi
reduzido, ao contrário, ele foi comercializado, redistribuído, principalmente nos ombros das
mulheres imigrantes do sul e dos antigos países socialistas. No entanto, as mulheres ainda
realizam a maior parte. Isso porque, ao contrário da produção de mercadorias, a reprodução dos
seres humanos é em grande parte irredutível à mecanização, sendo a satisfação de necessidades
complexas, em que elementos físicos e afetivos se combinam inextricavelmente, exigindo um
alto grau de interação humana e processo intensivo.
Isso é mais evidente na reprodução de crianças e idosos que, mesmo em seu componente mais
físico, envolve proporcionar uma sensação de segurança, antecipando medos e desejos.
Nenhuma dessas atividades é puramente “material” ou “imaterial”, nem podem ser divididas
de maneiras que possibilitem que elas sejam mecanizadas ou substituídas pelo mundo virtual
da comunicação online.
É por isso que, em vez de ser tecnologizado, o trabalho doméstico foi redistribuído nos ombros
de diferentes sujeitos, através de sua comercialização e globalização. Como está bem
documentado, devido à maior participação das mulheres na força de trabalho assalariada,
especialmente no Norte, grandes quotas de trabalho doméstico foram retiradas de casa e
reorganizadas comercialmente, levando ao boom virtual da indústria de serviços, que agora
constitui o setor econômico dominante do ponto de vista do emprego assalariado. Isso significa
que mais refeições são consumidas fora de casa, mais roupas são lavadas em lavanderias ou por
lavagem a seco, mais alimentos são comprados já preparados para o consumo.... Houve também
uma redução das atividades reprodutivas como resultado da recusa das mulheres pela disciplina
envolvida no casamento e na criação de filhos.
Nos EUA, o número de nascimentos caiu de 118 por 1000 mulheres em 1960 para 66,7 em 2006,
resultando em um aumento na idade mediana da população de 30 em 1980 para 36,4 em 2006.
A queda no crescimento demográfico tem sido especialmente alta na Europa Ocidental e
Oriental, onde em alguns países (por exemplo, Itália e Grécia) a greve das mulheres contra a
procriação continua, resultando em um regime demográfico de crescimento zero que está
gerando muita preocupação entre os formuladores de políticas e promovendo a imigração.
Houve também um declínio no número de casamentos e casais nos EUA de 56% de todas as
famílias em 1990 para 51% em 2006, e um aumento simultâneo no número de pessoas vivendo
sozinhas [nos EUA, um aumento de 7,5 milhões – de 23 milhões para 30,5 milhões –
representando um aumento de 30%].
Este tem sido um desenvolvimento extremamente importante de muitos pontos de vista, mas
ainda não suficientemente compreendido pelas feministas em suas implicações políticas: as
novas relações de poder que produziu entre as mulheres, as novas formas de luta sobre o
trabalho doméstico que viram trabalhadoras domésticas e profissionais do sexo como
protagonistas nos últimos anos, os limites da mercantilização da reprodução que isso expôs.
Enquanto os governos celebram a “globalização do cuidado”, que lhes permite reduzir o
investimento na reprodução, fica claro que essa “solução” tem um tremendo custo social, às
custas das comunidades de origem das mulheres imigrantes.
Três fatores prolongaram o dia de trabalho das mulheres e retornaram ao trabalho em casa.
Nos EUA também, devido a cortes no orçamento, grande parte do trabalho que os hospitais e
outras agências públicas tradicionalmente fizeram foi privatizado e transferido para o lar,
aproveitando o trabalho não-remunerado das mulheres. Atualmente, por exemplo, os pacientes
são dispensados quase imediatamente após a cirurgia e a casa deve absorver uma variedade de
tarefas médicas pós-operatórias e outras terapêuticas (por exemplo, para os doentes crônicos)
que no passado teriam sido feitas por médicos e enfermeiras profissionais. Também a assistência
pública aos idosos (limpeza, cuidados pessoais) foi cortada. Visitas domiciliares foram muito
encurtadas, os serviços prestados diminuíram.
O segundo fator que centralizou o trabalho reprodutivo em casa foi a expansão das “tarefas de
casa", em parte devido à desconcentração da produção industrial e, em parte, à disseminação
do trabalho informal. Como David Staples, escreve em seu “No Place Like Home” (2006), longe
de ser uma forma anacrônica de trabalho, as tarefas de casa demostraram ser uma estratégia
capitalista de longo prazo, que hoje ocupa milhões de mulheres e crianças em todo o mundo
nas cidades, aldeias, subúrbios.
Staples aponta corretamente que o trabalho é “inexoravelmente” atraído para o lar pela força
do trabalho doméstico não-remunerado, no sentido de que, organizando o trabalho em casa, os
empregadores podem torná-lo invisível, minar o esforço dos trabalhadores de sindicalizar e
conduzir reduzir os salários a um mínimo. Muitas mulheres escolhem este trabalho na tentativa
de conciliar renda com o cuidado de suas famílias, mas o resultado é a escravização a um
trabalho que ganha salários “muito abaixo da média que o trabalho pagaria se realizado em um
ambiente formal e reproduz uma divisão sexual do trabalho que fixa as mulheres mais
profundamente nas tarefas domésticas.” (Staples 1-5)
Este aumento da violência contra as mulheres é difícil de quantificar e seu significado é melhor
apreciado quando considerado em termos qualitativos, do ponto de vista das novas formas que
a violência tomou. Em vários países, sob o impacto do Ajuste Estrutural, a família se separou.
Muitas vezes isso ocorre por mútuo consentimento – quando um ou ambos os parceiros migram,
ou ambos se separam em busca de alguma forma de renda. Mas, muitas vezes, é um evento
mais traumático, pois, em face da pauperização, os maridos abandonam suas esposas e seus
filhos. Em partes da África e da Índia, também houve ataques a mulheres mais velhas, que foram
expulsas de suas casas e até assassinadas após serem acusadas de feitiçaria ou posse pelo diabo.
Este fenômeno provavelmente reflete uma recusa em apoiar os membros das famílias que são
vistos como não mais produtivos, em face da diminuição de recursos.
Várias conclusões devem ser tiradas desta análise. Primeiro, lutar pelo trabalho assalariado ou
lutar para “juntar-se à classe trabalhadora no local de trabalho”, como algumas feministas
marxistas gostavam de dizer, não pode ser um caminho para a libertação. O emprego assalariado
pode ser uma necessidade, mas não pode ser uma estratégia política. Enquanto o trabalho
reprodutivo for desvalorizado, enquanto for considerado um assunto privado e de
responsabilidade das mulheres, as mulheres sempre enfrentarão o capital e o Estado com menos
poder do que os homens e em condições de extrema vulnerabilidade social e econômica.
Também é importante reconhecer que existem limites muito sérios para a extensão em que o
trabalho reprodutivo pode ser reduzido ou reorganizado em uma base de mercado. Como, por
exemplo, podemos reduzir ou comercializar o cuidado de crianças, idosos, doentes, exceto a um
grande custo para aqueles que são cuidados? O grau em que a mercantilização da produção de
alimentos contribuiu para a deterioração de nossa saúde (por exemplo, o aumento da obesidade
mesmo entre as crianças) é instrutivo nesse contexto. Quanto à comercialização do trabalho
reprodutivo através de sua redistribuição sobre os ombros de outras mulheres, essa “solução”
só amplia a crise do trabalho doméstico, agora deslocada para as famílias dos prestadores de
cuidados pagos, e cria novas relações de poder entre as mulheres.
O que é necessário é a reabertura de uma luta coletiva pela reprodução com o objetivo de
recuperar o controle sobre as condições materiais da produção de seres humanos e criar novas
formas de cooperação em torno desse trabalho que estão fora da lógica do capital e do mercado.
Isto não é uma utopia, mas um processo que já está em andamento em muitas partes do mundo,
e que certamente se expandirá em face do colapso do sistema financeiro mundial. Os governos
tentarão usar a crise para impor regimes rígidos de austeridade em nós por muitos anos.
Por meio de aquisições de terras, agricultura urbana, agricultura apoiada pela comunidade,
agachamento, criação de várias formas de escambo, ajuda mútua, formas alternativas de saúde
– para citar alguns dos terrenos nos quais a reorganização da reprodução é mais avançada – está
começando a emergir uma nova economia que pode transformar o trabalho reprodutivo de uma
atividade sufocante e discriminadora no mais libertador e criativo campo de experimentação
nas relações humanas.
Como afirmei, essa luta não é uma utopia. As consequências da globalização da economia
mundial certamente teriam sido muito mais nefastas, exceto pelos esforços que milhões de
mulheres fizeram para assegurar que suas famílias fossem apoiadas, independentemente de
seu valor no mercado capitalista. Através de suas atividades de subsistência, bem como de várias
formas de ação direta (desde ocupar terras públicas até a agricultura urbana), as mulheres
ajudaram suas comunidades a evitar a desapropriação total, a estender os orçamentos e a
acrescentar comida às panelas na cozinha. Em meio a guerras, crises econômicas,
desvalorizações, à medida que o mundo à sua volta desmoronava, elas plantaram milho em
terrenos abandonados, prepararam comida para vender no lado das ruas, criaram cozinhas
comunitárias – olla comunes, como no caso do Chile e do Peru, permanecendo assim no caminho
de uma mercantilização total da vida e iniciando um processo de reapropriação e recoletivização
da reprodução que é indispensável se quisermos recuperar o controle sobre nossas vidas.
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