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Presentismo, neoliberalismo e os fins da

história
Rodrigo Turin

Est ist Zeit, das es Zeit wird. Est ist Zeit.


(É tempo que seja tempo. É tempo)
Paul Celan.

I
O diabo mora nos detalhes.1 Nesse sentido, gostaria
de iniciar esse texto com um detalhe do Plano Nacional de Pós-
Graduação. Logo na introdução, se afirma que o Brasil “entrou no
século XXI”, esse tempo naturalizado, e que nesse tempo o Brasil
deve se adequar a uma série de mudanças globais que produzem
reflexos e “impactos em diferentes setores da sociedade, inclusive
no sistema educacional, aí incluído o ensino superior”.2
Na sequência dessa afirmação, como ilustração, o
texto cita o agronegócio, esse setor vinculado ao que temos de
mais arcaico no Brasil: elites oligarcas, monocultura, latifúndio,
desmatamento, extermínio de povos indígenas, uso abusivo de
agrotóxicos. E o mais representativo disso tudo são os conceitos
ali ilustrados para pensar a entrada do sistema educacional, aí
incluído o ensino superior, no século XXI:
um exemplo dessas mudanças é o ocorrido no setor
agrário. Impulsionada pelas novas tecnologias, pela
presença de recursos humanos já então bem qualificados
1 Agradeço à Laura Erber e a seus alunos pela possibilidade de discutir uma
versão prévia desse texto, assim como à Nathália Sanglard pela leitura atenta e pelas
sugestões.
2 Cf. COORDENAÇÃO de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) 2011-2020. Brasília, 2010.

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no Brasil e no exterior, e por gestões competitivas das


empresas e dos negócios, a agricultura brasileira atingiu
índices de produtividade extraordinários.3
O “humano” é entendido, ali, como “recurso”,
portanto “meio”, objeto de “gerenciamento” a fim de aumentar a
“concorrência”, atingindo assim a tão almejada “produtividade”.
Basta trocar a palavra “agrário” por “Universidade” ou “educação”
que vemos se revelar algo profundo a respeito da linguagem a
partir das qual diferentes experiências hoje são elaboradas. Uma
linguagem que tem efeitos estruturais no modo como pensamos e
vivemos, nas formas como nos temporalizamos.

II
Desde o final do século XX, diante das aceleradas
transformações econômicas, sociais e tecnológicas, diferentes
diagnósticos têm sido elaborados com o objetivo de identificar
o que qualificaria a experiência contemporânea do tempo. Uma
das categorias ou, melhor dizendo, dupla de categorias que mais
tem sido acionada e encontrado recepção na historiografia são
as de “regimes de historicidade” e de “presentismo”. Elaboradas
em conjunto por François Hartog, desde o final da década de
1980, essas categorias ambicionam ao mesmo tempo ofertar
um instrumento heurístico de investigação da historicidade das
experiências temporais e uma chave de leitura acerca das formas
de viver o tempo que vem marcando as sociedades ocidentais nas
últimas décadas.4 Nas análises de Hartog, que passam por objetos
3 Cf. COORDENAÇÃO de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). Plano Nacional de Pós-Graduação... Op. cit.
4 Cf. DELACOROIX, Christian; DOSSE, François; GARCIA, Patrick (org.).
Historicités. Paris, La Découverte, 2009; NICOLAZZI, Fernando. A História entre
tempo: François Hartog e a conjuntura historiográfica contemporânea. História:
Questões & Debates, Curitiba, n. 53, jul./dez. 2010; TURIN, Rodrigo. As (des)
classificações do tempo: linguagens teóricas, historiografia e normatividade. Topoi,
n. 33, Rio de Janeiro, 2016.

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e períodos distintos, foi se desenhando um perfil amplo do que


distinguiria o tempo atual, marcado pela preponderância de uma
forma de presente que, como um centro de gravidade, passou a
sugar e a se alimentar das demais instâncias temporais: passado e
futuro. A velocidade do capital financeiro, as demandas memoriais,
os passados traumáticos, as políticas de patrimonialização, a
precarização e a flexibilização do trabalho, o impacto das novas
tecnologias, todos esses focos permitem a Hartog identificar
esse novo domínio de um presente devorador, onipresente. Daí
a expansão da categoria, absorvendo e associando tanto o tempo
acelerado como o tempo lento que circulam socialmente:
de um lado, um tempo de fluxos, da aceleração e uma
mobilidade valorizada e valorizante; de outro, aquilo que
Robert Castel chamou de précariat, isto é, a permanência
do transitório, um presente em plena desaceleração, sem
passado – senão de um modo complicado (mais ainda
para os imigrantes, os exilados, os deslocados), e sem
futuro real tampouco (o tempo do projeto está aberto
para eles). O presentismo pode, assim, ser um horizonte
aberto ou fechado: aberto para cada vez mais aceleração e
mobilidade, fechado para uma sobrevivência diária e um
presente estagnante.5
Mas seria essa nova forma de experiência temporal, com
essa abrangência e diversidade, um novo regime de historicidade,
em sua plenitude, ou antes a manifestação de um momento de
crise, portanto algo essencialmente plural, transitório e caótico?
“Regime do qual se poderiam hoje determinar formulações locais,
setoriais, até mesmo disciplinares, mas talvez não ainda uma
expressão geral ou unificada?” Essa é a pergunta que Hartog lança
ao leitor, de modo prudente, evitando as tentações proféticas
e deixando aberta a agenda de pesquisas.6 De todo modo, a
amplitude da categoria não deixa de ser, ao mesmo tempo,

5 HARTOG, François. Regimes de historicidade. Presentismo e experiências


do tempo. Belo Horizonte, Autêntica, 2013, p. 15 et. seq.
6 Ibidem, p. 249.

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sua força e sua fraqueza. Se, por um lado, permite colocar a


interrogação e indicar os traços fortes de uma mudança profunda
na experiência temporal, por outro lado pode servir de rótulo fácil
de classificação às mais distintas manifestações. Em que medida o
tempo acelerado promovido pelo encontro do capital financeiro
e das novas tecnologias pode ser incluído em um mesmo espaço
conceitual que o tempo dos traumas e dos passados irrevogáveis?
O “passado que não passa” das experiências traumáticas, afinal,
parece muito distinto do passado volátil do neoliberalismo. Daí
a necessidade de avançar no uso da categoria, testando suas
potencialidades e limites, refinando seus resultados, medindo sua
eficácia heurística.
Um trabalho que veio contribuir nesse sentido é o livro
recente que Jerôme Baschet dedicou a pensar a forma de experiência
do tempo a partir do movimento zapatista, em Chiapas.7 Buscando
responder à pergunta de Hartog acerca da plenitude ou não
do presentismo como um novo regime de historicidade, assim
como se propondo a pensar formas alternativas e emergentes de
experiência do tempo, Baschet sugere trabalhar com a distinção
entre “regime de temporalidade” e “regime de historicidade”. Para
o autor, enquanto o segundo se refere à “escala longa do tempo da
história, à maneira como uma sociedade se pensa em sua relação
com seu passado, seu presente e seu futuro”, a noção de “regime
de temporalidade” indicaria as escalas curtas do tempo da vida
cotidiana.8 Para que se possa falar de um regime de historicidade,
desse modo, seria necessário haver uma certa sedimentação de
conceitos, formas narrativas e símbolos que estruturassem um
modo de representar o tempo, configurando sínteses possíveis
e reconhecíveis entre passado, presente e futuro. Já o regime
de temporalidade indicaria as esferas da vida prática, em sua

7 Cf. BASCHET, Jérôme. Défaire la tyrannie du présent. Temporalités


émergentes et futurs inédits, Paris: La Découverte, 2018. (Versão Kindle)
8 Ibidem, posição 2381.

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pluralidade, mas que não alcançam o poder de estruturar uma


certa consciência histórica.
Com essa distinção, Baschet sugere que o presentismo
seria antes um regime de temporalidade do que um novo regime
de historicidade, já que ele ainda não teria encontrado (ou mesmo
seria capaz de encontrar) a sedimentação necessária. Sem deixar de
tratar de fenômenos como a crise climática, ele parece vincular esse
regime de temporalidade presentista de modo mais específico ao
fator econômico na sociedade atual, que estaria reestruturando as
demais esferas sociais, tais como configuradas desde a modernidade
clássica. “A economia é o vetor de uma temporalidade imediata”.9
A partir desse foco, ele busca ainda dar uma precisão maior
ao modo de temporalização que a economia traz para a vida
cotidiana: a máquina econômica não funciona senão como modo
de antecipação, anexando-se a um futuro já engajado no presente.
Assim, o que caracteriza o presente do presentismo seria sua
brevidade, seu sequestro por um futuro imediato, seu caráter de
“urgência”, sua incapacidade de retenção. Disso resultaria uma
relação de “quase fusão entre presente e futuro imediato: o futuro
imediato se apresenta como um quase presente, enquanto que o
presente é sugado pelo futuro imediato”.10 Dialogando com o
trabalho do sociólogo alemão Hartmut Rosa, Baschet estabelece
que esse presente do presentismo se relaciona com o efeito da
aceleração social enquanto contração do presente, ou como
“densificação quantitativa do tempo”, representada pela fórmula
Q/T. Ou seja, na sociedade contemporânea há um crescimento
estrutural de atividades a realizar e informações a absorver dentro
dos mesmos intervalos de tempo.
Nessa leitura, a crise contemporânea se daria, acima de
tudo, pela pressão que esse regime de temporalidade econômica

9 Cf. BASCHET, Jérôme. Défaire la tyrannie du présent... Op. cit., p. 2790.


10 Ibidem, p. 1630.

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(intensificada pela financeirização da economia) produz na


herança do regime de historicidade moderno. Para Baschet, “a
primeira modernidade tinha mantido um regime de historicidade
parcialmente independente do regime de temporalidade própria
à produção capitalista”, permitindo a existência de valores e
conceitos que não se reduziam à dimensão da produção do
capital.11 É apenas na medida em que o tempo das finanças
começa a se expandir para outras esferas, vampirizando suas
autonomias, que se produziria um esvaziamento dos conceitos e
das narrativas estruturantes do regime moderno de historicidade.
O tempo apressado da economia, esse tempo da urgência, não
podendo se erigir como regime de historicidade substituto,
apresenta-se antes como um tempo de crise, formado por um
presente volátil, que se vaporiza diante da acelerada expectativa
do futuro imediato.
Será que poderíamos, nesse sentido, falar de uma
nova sincronização temporal sem a formação de um regime de
historicidade? Helge Jordheim e Einer Wigen, em artigo recente,
parecem apontar para esse diagnóstico ao identificar no conceito
de “crise” o grande operador de uma nova forma de sincronização
global. Para os autores, o conceito de “crise”, onipresente em
discursos acerca dos mais variados temas, vem substituir o conceito
de “progresso” como instrumento principal de historicização nas
sociedades ocidentais. Assim como “progresso” serviu como um
conceito capaz de dar inteligibilidade a diferentes experiências na
modernidade clássica, “crise”, ainda que também oriundo daquela
modernidade, assumiria nos tempos atuais um lugar de destaque,
introduzindo novas dimensões semânticas à temporalidade.
Se, por um lado, “crise” ainda pertence à lógica do progresso,
indicando momentos pelos quais a história segue adiante, “por
mudanças graduais ou saltos repentinos”, por outro lado ela não
deixa atualmente de introduzir também “uma lógica distinta na
11 Cf. BASCHET, Jérôme. Défaire la tyrannie du présent... Op. cit., p. 2871.

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estrutura histórica da modernidade, apontando não para o futuro,


mas para o presente, para o agora”.12
Vemos, assim, como esse tempo da crise se assemelha
ao tempo da urgência, tematizado por Baschet. Em ambos, o
tempo contemporâneo configura-se como um presente instável,
pressionado por um futuro próximo e acelerado. Do mesmo
modo, essa temporalidade da crise e da urgência vem produzindo
uma sincronização cada vez maior entre diferentes esferas sociais,
sem que, no entanto, possa elevar-se a uma nova posição de
regime de historicidade, plenamente constituído. Por isso, pode-
se dizer, talvez, nessa visão, que viveríamos uma ressincronização
temporal sem um regime de historicidade. Ou uma sincronização
negativa, por assim dizer. Daí, como afirmam Jordheim e Wigen,
esse tempo da crise ser igualmente uma crise do tempo.

III
Dialogando com essas reflexões de Hartog, Baschet,
Jordheim e Wigen, talvez seja pertinente recolocar a questão:
será que esse tempo contemporâneo financeirizado não se
apresentaria já como um regime de historicidade - se não
pleno, ao menos muito próximo da plenitude? Será que essa
temporalidade acelerada, urgente, já não possui um arcabouço
linguístico, um suporte discursivo e uma série de dispositivos
que possibilitam a ela constituir-se como forma de consciência
temporal própria? Não seria esse tempo da urgência, como
sugeriu Christophe Bouton, um “fato social total”, na medida
em que ele constrange os indivíduos e se manifesta em diferentes
instituições?13 Será que essa temporalidade já não é articulada e

12 JORDHEIM, Helge; WIGE, Einer. Conceptual Synchronisation: from Progress


o Crisis. Millenium: Journal of International Studies, p. 11, 2018.
13 BOUTON, Christophe. Le temps de l’urgence. Lormont: Le Bord de l’eau,
2013, p. 16 et. seq.

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A História (in)diciplinada

hegemônica o suficiente para definir formas de subjetividade,


orientar ações, estruturar instituições, redesenhando o próprio
tecido social?
Longe de ambicionar dar uma resposta acabada a esses
problemas, gostaria aqui apenas de sugerir essa chave de leitura
como uma perspectiva hipotética, uma ficção verbal, um tipo
ideal potencial para interrogar o presente. Nessa proposta de
exercício, tentarei desenhar brevemente quais seriam as principais
características desse regime de historicidade potencial, para então
pensar as suas manifestações e implicações para a universidade e
as humanidades.
Seguindo a trilha dos autores analisados, e tentando
escapar às descrições demasiadamente amplas e etéreas da
temporalidade, proponho pensar o fenômeno da aceleração
contemporânea como um processo de ressincronização de
diferentes esferas sociais a partir da esfera econômica – mais
especificamente, a partir da nova dimensão financeira da economia,
tal como veio a se constituir a partir da segunda metade do século
XX, intensificando-se nas últimas décadas.14 Esse processo de
ressincronização se constituiria tanto pela emergência, difusão e
incorporação de uma nova rede semântica, como pela formulação
e aplicação de determinados dispositivos que reestruturam por
dentro as esferas nas quais são aplicados.15 Associo esse conjunto
de rede semântica e dispositivos ao que diferentes autores, a partir
de Foucault, vêm denominando de “racionalidade neoliberal”.16

14 Cf. ESPOSITO, Elena. The future of futures. The time of money in financial
society. Northampton, Edward Elgar, 2011.
15 FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits, vol. III. Paris: Gallimard, 1994;
AGAMBEN, Giogio. O que é um dispositivo?, In.: AGAMBEN, Giogio. O que é
o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. Separo, aqui, rede
semântica de dispositivos apenas para fins analíticos.
16 Cf. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Ensaio
sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016; BROWN, Wendy. Undoing
the demos: neoliberalism’s stealth Revolution. New York, Zone Books, 2015.

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Sem deixar de levar em consideração as suas relações com um


processo de crise e de renovação de acumulação do capital, acredito
que a descrição dessa racionalidade de prática governamental, de
seus conceitos e de seus dispositivos, pode contribuir para uma
melhor compreensão das dimensões temporais que reestruturam
a sociedade contemporânea, encontrando aí as bases para uma
visualização mais precisa do que, hipoteticamente, chamarei aqui
de regime de historicidade neoliberal.
Diferentemente do liberalismo clássico, que se
construía a partir da noção de “troca”, o neoliberalismo tem
seu âmago discursivo na noção de “concorrência”. Se para os
autores do liberalismo clássico a dimensão da troca se ancorava
em pressupostos antropológicos, vinculados a uma natureza
humana – e de onde se erigiam suas filosofias da história de
caráter teleológico -, na razão neoliberal a lógica concorrencial
não estabelece nenhum vínculo prévio com a natureza, sendo
puramente artificial, devendo, portanto, ser produzida. Como diz
Foucault: “a concorrência como lógica econômica essencial só
aparece e só produzirá os seus efeitos sob algumas condições que
terão de ser cuidadosa e artificialmente organizadas”.17 Ela implica,
assim, a constituição de uma série de conceitos e de dispositivos
que induzam o comportamento dos indivíduos, ou, nos termos de
Foucault, uma “conduta das condutas”.
Outro aspecto fundamental da racionalidade neoliberal
é o fato de estender a razão de mercado a todas as instâncias da
sociedade, reconfigurando as instituições e os indivíduos como
atores de mercado. Como destacou Wendy Brown, essa extensão
da racionalidade neoliberal tem profundas implicações políticas,
epistemológicas e ontológicas, produzindo a figura hegemônica
do homo oeconomicus.18 Ela representa o esvaziamento das esferas
17 FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa, Edições 70, 2010,
p. 158.
18 Cf. BROWN, Wendy. Undoing the demos... Op. cit.

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A História (in)diciplinada

de autonomia a partir das quais a política, a ciência e outros


modos de ação regrados por ethos particulares podiam existir. Essa
“economização” da sociedade produz, por exemplo, a substituição
do léxico político por um léxico econômico. Exemplo disso é a ideia
de “governança” como forma última de legitimação e organização
do Estado. Em lugar de um Estado cuja legitimidade dependia das
noções de soberania e de representatividade, coloca-se agora o
Estado cujo único vetor de existência concentra-se na noção de
“eficácia”. O que implica, ao final, uma forte despolitização do
Estado e da esfera pública:
a ideia mesma de governança emerge de uma alegação
pós-ideológica – ‘o fim da história’ – pragmática e focada
em soluções, uma “política” que coloca diálogo, inclusão e
consenso no lugar de poder, conflito e oposição.19
Por meio de mecanismos específicos, promove-se toda
uma nova tecnologia de governo, tendo como modelo a gestão
da empresa. “Gestão por metas, avaliação de desempenhos e
autocontrole dos resultados são os métodos empregados por
essa gestão dos indivíduos”, como afirmam Dardot e Laval.20
Orientada por novos conceitos, a governança, a cultura auditiva e
outros dispositivos da racionalidade neoliberal induzem também a
incorporação de novas formas de temporalidade.
Se na modernidade clássica a elaboração e a incorporação
de uma rede semântica orientou um processo de sincronização social,
situando os diferentes segmentos sociais em um mesmo tempo, ainda
que guardando espaços de autonomia, hoje, na modernidade tardia,
com a acelerada hegemonia da racionalidade neoliberal, assistimos a
um novo movimento de sincronização, no qual esferas tão distintas
como as da educação, da saúde, da política, da segurança pública

19 BROWN, Wendy. Cidadania sacrificial: neoliberalismo, capital humano e


políticas de austeridade. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018, p. 19.
20 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo... Op. cit.,
p. 226.

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e da economia são reconfiguradas em função de novos conceitos,


como “flexibilização”, “inovação”, “eficiência”, “competitividade”
e “excelência”. O documento citado no início deste texto, em que
o horizonte de expectativa da pós-graduação se cruza com o do
agronegócio, em uma mesma linguagem, insere-se agora em um
contexto mais preciso, justificando sua representatividade.
Esses novos conceitos são marcados por novas
características semânticas, distintas daquelas que configuraram
a modernidade clássica. Tomando a análise clássica de Koselleck
como um parâmetro para comparação, podemos visualizar
o deslocamento estrutural dos quatro vetores semânticos da
modernidade destacados pelo historiador alemão: temporalização,
democratização, ideologização e politização.21 Com os novos
conceitos que movem a racionalidade neoliberal, percebe-se, por
sua vez, a quebra da ideia de continuidade e de processo em uma
série de presentes (destemporalização); o privilégio das distinções e
individualizações em detrimento dos amplos conceitos unificadores
da modernidade (diferenciação); por fim, uma forma de adesão
despolitizada, calcada na suposta neutralidade técnica presente
em conceitos como “eficiência”, “excelência” e “transparência”,
que pairam acima das antigas posições ideológicas e políticas de
“esquerda” ou de “direita” (desideologização e desmobilização).22

Tabela Y
Modernidade tardia
Modernidade clássica
(racionalidade neoliberal)
Temporalização Destemporalização
Democratização Diferenciação
Ideologização Tecnificação
Politização Desmobilização

21 Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos


tempos históricos. Rio de Janeiro: PUC/Contraponto, 2006.
22 Cf. TURIN, Rodrigo. As (des)classificações do tempo... Op. cit.

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A História (in)diciplinada

A partir desse quadro sintético que qualificaria a


sedimentação hegemônica de uma nova forma de historicidade,
especificada na sua relação com a expansão da racionalidade
neoliberal, convém apontar agora de que modo ela se expressa,
em sua concretude, na esfera acadêmica. Ao visualizar, ainda que
brevemente, o modo como essa nova linguagem redesenha as
instituições acadêmicas, seu modo de produção, os sujeitos que
ali se constituem, assim como suas formas de temporalização,
talvez possam se tornar mais concretos os efeitos e a força desse
processo.

IV
O modelo humbolditano de universidade, associando
a autonomia da pesquisa e do ensino como condição para a
formação do indivíduo, parece cada vez mais entrar em colapso
diante de três fatores maiores que vêm afetando essas instituições:
a massificação, a mercantilização e a internacionalização.23
Revelando-se uma tendência global, essa crise também se manifesta
em sua particularidade no acelerado processo de expansão da
universidade brasileira, tanto no que diz respeito à extensão das
graduações ocorridas desde o início dos anos 2000, como na
chamada profissionalização da pós-graduação. De todo modo,
independentemente desse contexto nacional, as universidades
brasileiras não deixam de compartilhar certas características
gerais que vêm afetando as instituições de ensino na modernidade
tardia. A transformação do ensino em um produto de “excelência”
a ser vendido, a financeirização das instituições educacionais,
as novas demandas de um mercado de trabalho em constante
transformação, as novas modalidades de mensuração do trabalho
intelectual e pedagógico, a precarização dos contratos são algumas

23 Cf. BARCAN, Ruth. Academic Life and Labour in the New University.
Burlington: Ashgate, 2013.

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dessas características comuns a um novo horizonte global das


universidades. Como afirmaram os organizadores de um volume
sobre a educação nos tempos atuais:
Em vários aspectos, espera-se agora das instituições
educacionais que assumam as qualidades e as
características do ‘capitalismo rápido’ e isso envolve
não apenas mudanças nas práticas e nos métodos
organizacionais, mas também a adoção de novas relações
sociais, valores e princípios éticos.24
Um dos dispositivos a partir dos quais esses valores e
princípios éticos se instauram e são incorporados no ambiente
acadêmico, reconfigurando-o a partir de dentro, é o da denominada
“accountability”, ou “cultura auditiva”. Como destacou Chris
Shore:
O termo é de origem recente e foi cunhado por sociólogos
e antropólogos para descrever não tanto um tipo de
sociedade, lugar ou povo, mas uma condição: aquela
conformada pelo uso de técnicas modernas e princípios
da auditoria financeira, só que em contextos distantes
daqueles do mundo da contabilidade financeira. Em
outras palavras, refere-se aos contextos nos quais técnicas
e valores de contabilidade (accountacy) tornaram-se
um princípio central de organização na governança e
gerenciamento da conduta humana – e das novas formas
de relação, hábitos e práticas que ela está criando.25
O uso do termo “accountability” normalmente carrega
um duplo sentido: o de transparência e o de responsabilização.
Seria apenas através da aferição por padrões numéricos que
indivíduos e instituições poderiam ser plenamente responsáveis
por suas ações, regrando-se de acordo com a “boa conduta” ou
as “boas práticas”. A noção de “transparência” que se pressupõe,
nessa chave, implica que a probidade e a eficiência dependem
24 BALL, Stephen J.; GOODSON, Ivor F.; MAGUIRE, Meg. Education,
globalisation, and new times. New York: Routledge, 2007, p. 11.
25 Cf. SHORE, Chris. Audit culture and Illiberal governance: Universities and
the politics of ac-countability. Anthropological theory, n. 8, 2008.

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A História (in)diciplinada

de tornar explícitas e visíveis o maior número de informações


possíveis. O resultado disso, como ressaltaram autores como
Graeber e Muller, é a demanda por cada vez mais documentação,
cada vez mais declarações e cada vez mais estabelecimento de
metas e rankings.26 Ao final, boa parte do tempo que deveria ser
direcionado às atividades fins, como a pesquisa e o ensino, são
ocupadas com o preenchimento de relatórios e de formulários.
Do mesmo modo, em contradição com a justificativa de tornar
mais “eficiente” a gestão dos recursos, incham-se os quadros com
os inspetores e burocratas necessários à aferição de cada vez mais
documentos.27
Qualificando-se, portanto, como uma forma de
organização de padrões numéricos de avaliação, pautada em
conceitos centrais como “eficiência”, “transparência” e “excelência”,
a cultura auditiva implica a imposição de uma lógica geral e
abstrata não convergente com as especificidades e os sentidos de
funcionamento das diferentes atividades mensuradas, gerando tanto
uma deformação dessas próprias atividades, como o apagamento
daquelas não previstas ou não passíveis de tal mensuração. A sua
adoção, portanto, não diz respeito apenas a um processo neutro
de mensuração e avaliação, produzindo uma suposta transparência
e eficiência, mas implica a incorporação de toda uma forma de
visibilidade e de racionalidade para a organização institucional (e
seu aparato burocrático), para as atividades nelas praticadas, para
as relações entre seus agentes e, por fim, para a própria formação
das subjetividades. Uma vez introduzida em um novo contexto, a
lógica auditiva coloniza esse novo ambiente com vistas a torná-lo
“auditável”, e seus efeitos são irreversíveis a curto prazo.
26 Cf. MULLER, Jerry Z. The tyranny of metrics. New Jersey: Princeton, 2018;
GRAEBER, David. The utopia of rules. On technology, stupidity and the secrets joys
of bu-reaucracy. Brooklyn, Melville House, 2012.
27 Cf. LORENZ, Chris. If You’re So Smart, Why Are You under Surveillance?
Universities, Neoliberalism, and New Public Management. Critical Inquiry, n. 38,
2012.

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No que diz respeito à produção acadêmica, ela não tem


como não se tornar prioritariamente numérica. Mesmo os esforços
para adequar tecnicamente essas lógicas a fim de averiguar a
qualidade acabam por ter pouco efeito. Afinal, o que qualifica
a qualidade a ser aferida numericamente já vem conformado
por aqueles conceitos, não seguindo necessariamente os valores
que seriam internos e autônomos às práticas. Nesse sentido, o
produtivismo não tem como deixar de ser uma das suas marcas mais
fortes. Ao produzir um princípio eminentemente concorrencial
que guia a relação entre os indivíduos e as instituições, a quantidade
numérica sempre continuará sendo nessa lógica a meta, o critério
último de distinção. A individualização e a responsabilização,
movidas pela dinâmica concorrencial numericamente medida,
geram uma espiral de aceleração de performance, normalmente
desvinculada das características que deveriam compor o ethos
particular da atividade. Um exemplo claro disso são os estudos
que mostram os efeitos da implementação dessa lógica em
hospitais, onde cirurgiões evitam realizar cirurgias de risco,
sabendo que elas podem resultar em uma queda de performance
em seus relatórios finais, acarretando danos a suas carreiras.28 No
que diz respeito ao trabalho acadêmico, a performance pouco se
vincula à natureza da produção (pesquisa e docência), dirigindo-
se antes aos modos de visibilidade que elas assumem no quadro
de metas da avaliação auditiva. Mais do que um bom pesquisador
ou professor, hoje o ethos dominante que se cobra do acadêmico é
o de ser um bom gestor dos números de produção que qualificam
sua performance em uma rede de relações concorrenciais. O tipo
ideal do pesquisador, seu modo de temporalização, deixa de ser,
por exemplo, a produção de uma obra que impacte o campo,
desestabilizando e renovando sua linguagem. Em vez da qualidade
e do impacto de média ou longa duração, científico ou social,
privilegia-se nesse novo modelo a contabilidade da produção

28 Cf. MULLER, Jerry Z. The tyranny of metrics... Op. cit., p. 12.

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A História (in)diciplinada

relativa a um passado recente, como modo de projetar a sua


continuidade rítmica em um futuro igualmente curto.
Outro aspecto fundamental da implementação desse
modo de metrificação das práticas é a transformação da pesquisa
e da docência em trabalhos produtivos, dentro do novo contexto
do capitalismo financeiro. De acordo com a definição clássica de
Marx, o trabalho produtivo é aquele que produz mais-valia, e não
apenas aquele que se esgota em sua atividade fim. Nesse sentido,
um professor é um trabalhador produtivo se não se
limita a trabalhar com a cabeça das crianças, mas exige
de si mesmo até o esgotamento, a fim de enriquecer o
patrão. Que este último tenha investido seu capital numa
fábrica de ensino, em vez de uma fábrica de salsichas, é
algo que não altera em nada a relação. Assim, o conceito
de trabalhador produtivo não implica de modo nenhum
apenas uma relação entre atividade e efeito útil, entre
trabalhador e produto do trabalho, mas também uma
relação de produção especificamente social, surgida
historicamente e que cola no trabalhador o rótulo de
meio direto de valorização do capital. Ser trabalhador
produtivo não é, portanto, uma sorte, mas um azar.29
O que é importante notar, em relação a essa descrição de
Marx do trabalho produtivo, é que, hoje, não é apenas por meio
de uma relação direta entre trabalhador e patrão, nos moldes da
empresa privada, que se transforma o trabalho não-produtivo do
ensino e da pesquisa em trabalho produtivo. A implementação
da cultura auditiva, associada à lógica do capital financeiro,
possibilita hoje que a tradução e a mensuração da pesquisa e da
docência em padrões numéricos alimentem uma série de formas
de capitalização, mesmo em setores públicos. Nesse cenário, as
aulas e os artigos de pesquisa não são mais marcados pelo fim de
sua utilidade, mas servem apenas como meio de valorização de um
produto, qualificado por sua excelência e eficiência, numericamente
atestadas. Esses números, expressos em relatórios vinculados a
29 MARX, Karl. O Capital: livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 578.

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Arthur Lima de Avila, Fernando Nicolazzi e Rodrigo Turin (org.)

agências e corporações supra-estatais, como a OECD ou a Thonson


Reuters, produzem uma sincronização global das instituições de
ensino, regidas por critérios universalizados de avaliação. Por meio
desses relatórios e rankings, corporações internacionais regulam
seus investimentos e especulações em diferentes países, incidindo
também diretamente nas políticas estatais direcionadas à educação.
Essa acelerada financeirização da educação, inclusive
no Brasil, com seu vocabulário e dispositivos, não afeta apenas
a estrutura organizacional e de produção das instituições, mas
também seus agentes.30 Além do ethos da performance, cobrado
pelos números, talvez o que mais se destaque hoje seja uma
reatualização do ethos sacrificial. Longe de ser algo novo, desde
a conformação da ciência moderna o princípio do sacrifício
esteve presente como virtude na produção de conhecimento.
Sacrificar-se pela ciência, pelo saber, significava de algum
modo produzir um bem maior ao futuro, independentemente
de como esse fosse figurado. Forma secularizada da imagem do
mártir, essa disposição implicava uma crença que sustentava
o sacrifício de si. O que parece caracterizar o ethos sacrificial
sob uma historicidade acelerada neoliberal é, por sua vez, um
sacrifício sem crença ou promessa. Sem crença, pois não se
vincula mais aos valores próprios das atividades, como o “gosto
do arquivo” ou o “prazer da aula”; sem promessa, pois não há
propriamente uma expectativa de futuro para além das metas a
serem alcançadas, de curto prazo. A precarização das condições
de trabalho é, pois, a outra face da intensificação dos números
de produtividade. Trabalhar no tempo livre, ocupar diferentes
cargos e funções, financiar materiais de pesquisa, conviver com
contratos de curto prazo, sem segurança – como no caso dos
30 Cf. SEKI, Allan Kenji, Financeirização do capital na educação superior:
articulações entre a apropriação de parcelas do fundo público e a desregulamentação
da educação nacional. In.: Colóquio Internacional Marx e o Marxismo 2017, 2017,
Niterói (RJ). Anais do Colóquio Internacional Marx e o Marxismo. Niterói, v. 1.
p. 1-13. 2017.

261
A História (in)diciplinada

jovens pesquisadores brasileiros, hoje -, são apenas alguns dos


custos que se cobra, silenciosamente, do “bom pesquisador”.
Como afirmou Rosalind Gill, tendo por referência a universidade
inglesa, onde esse processo foi mais precoce:
é talvez o mesmo ethos «sacrificial» que silencia o preço
dos custos pessoais do trabalho inseguro e precário dentro
das universidades. Ter que percorrer longas distâncias, ou
viver separado de parceiros e amigos, está entre eles, à
medida que nos tornamos uma força de trabalho cada vez
mais móvel e fragmentada. Outro custo para alguns é não
poder ter filhos. Isso impacta desproporcionalmente as
acadêmicas do sexo feminino que, ao que tudo indica, são
significativamente menos propensas a ter filhos do que
suas contrapartes masculinas na academia, e as mulheres
em outros tipos de emprego.31
A dimensão sacrificial, antes de ser um ato de reforço de
valores sociais - portanto uma forma de temporalização que vincula
e renova as instâncias do passado, presente e futuro -, revela-se
aqui como um modo de vida essencialmente precário, marcado
pela contingência.32 Nessas condições, a própria possibilidade de
temporalizar-se na forma do “projeto” se esvai, sendo substituída
por uma temporalidade “flexível”, mais reativa do que ativa, onde o
indivíduo é obrigado a readequar-se a cada nova contingência.33 No
lugar do futuro de média ou de longa duração, é o futuro imediato
que sequestra o presente, como destacou Baschet.
É possível pensar, nesse sentido, em que medida os prazos
e as metas ocupam, no mundo acadêmico, um lugar homólogo ao da
dívida. Como bem analisou Maurizio Lazzarato, a dívida tornou-se
um dos mecanismos mais eficientes de temporalização no modelo
31 GILL, Rosalind. Breaking the silence: The hidden injuries of neo-liberal
academia. In.: RYAN-FLOOD, Roisin; GILL, Rosalind (ed.). Secrecy and Silence in
the Research Process: Feminist Reflections. London: Routledge, 2010, p. 234.
32 Cf. LOREY, Isabell. State of Insecurity: Government of the Precarious. New
York: Verso, 2015; LAZZARATO, Maurizio. O governo das desigualdades. Crítica
da insegurança neoliberal. São Carlos: UFSCAR, 2011.
33 Cf. ELLIOT, Anthony; URRY, John. Mobile lives. London: Routledge, 2010.

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Arthur Lima de Avila, Fernando Nicolazzi e Rodrigo Turin (org.)

neoliberal, atingindo tanto os indivíduos quanto os Estados. A


expansão da dívida, em seus diferentes formatos, como técnica de
disciplinarização, implica a redefinição do campo de possíveis para
o presente.
O poder da dívida se representa como se exercendo
não pela repressão, nem pela ideologia: o devedor é
´livre´, mas suas ações, seus comportamentos devem se
desenvolver dentro de padrões definidos pela dívida que
ele contratou.34
A dívida obriga, limitando as possibilidades de o presente
transformar-se em outra coisa. O seu tempo não é o tempo da
transformação, mas do congelamento, da “austeridade”, reduzindo
o futuro ao que o já é. É uma dívida sem contra-dádiva, por assim
dizer.35
A cultura auditiva, gerando uma intensificação da
performance, acelerada pela temporalidade dos prazos e das metas, não
deixa de produzir, por fim, profundos efeitos epistêmicos. Ao mudar
a forma de organização da instituição e a relação entre seus agentes,
ela transforma igualmente a natureza da produção do conhecimento.
Primeiro, por gerar uma individualização concorrencial, seja em nível
pessoal ou institucional. O trabalho coletivo, a co-autoria, formas
mais solidárias de produção de conhecimento, principalmente nas
humanidades, são desencorajadas na medida em que é a performance
individualizada que estrutura a carreira dos pesquisadores.36
Do mesmo modo, para visualizar o efeito que esses
conceitos e dispositivos exercem na conformação de uma nova
ontologia social, basta pensar na relação que se estabelece entre os

34 LAZZARATO, Maurizio. La fabrique de l´homme endetté. Essai


sur la condition neolibérale. Paris, Éitions Amterdam, 2011. p. 28.
35 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dávida. In.: MAUSS, Marcel. Sociologia e
antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2015.
36 Cf. LUKA, Mary E. et alii. Scholarship as Cultural Production in the Neoliberal
University: Working Within and Against ‘Deliverables’. Studies in social justice, v.
9, n. 2, 2015.

263
A História (in)diciplinada

programas de pós-graduação, que deixam de ser espaços coletivos


e solidários, organizados em função de interesses de pesquisa,
para se transformar em unidades individualizadas e concorrentes,
gerenciadas como empresas, cada qual lutando para conseguir as
notas que lhe possibilitem maiores financiamentos de pesquisa. Essa
individualização concorrencial esvazia o reconhecimento de uma
condição comum, impossibilitando convergências solidárias entre
os programas – inclusive alguma forma de mobilização política
contra essa condição. Ela implica, assim, na incorporação daquelas
características semânticas anteriormente elencadas: a diferenciação,
a despolitização e a desmobilização. Algo parecido com o que ocorre,
aliás, de modo mais geral, no mundo do trabalho contemporâneo,
com o esvaziamento dos sindicatos e a valorização da lógica do
“empreendedor de si”.
Por fim, dentro ainda dessa lógica, é importante refletir
o quanto esse processo afeta não apenas a dimensão social da
produção do conhecimento, mas também a sua forma e o seu
conteúdo. A incorporação de uma racionalidade de índices faz
com que todas as etapas da pesquisa sejam por ela direcionadas:
da construção do problema à elaboração da temporalidade das
hipóteses. Como salientaram Muller e de Rijcke, a partir de
estudos de caso envolvendo as ciências naturais:
nossos informantes parecem estar muito conscientes
das temporalidades do financiamento do projeto e dos
critérios de avaliação que o acompanham. O início, meio
e fim dos projetos são claramente marcados por meio de
procedimentos de revisão e critérios de saída explícitos.37
Com isso, a tendência é que os pesquisadores evitem se arriscar em
temas ou formas heterodoxos, antecipando a normatividade dos
critérios de avaliação das agências de fomento. Do mesmo modo,
há pouco ou quase nenhum incentivo para que os pesquisadores
37 MULLER, Ruth; RIJCKW, Sarah de. Exploring the epistemic impacts of
academic performance indicators in the life sciences. Research Evaluation, v. 26, n.
3, p. 165, 2017.

264
Arthur Lima de Avila, Fernando Nicolazzi e Rodrigo Turin (org.)

possam diversificar suas formas de atuação, como escrever para


públicos maiores, não acadêmicos, ou se engajar em projetos de
extensão. A forma de avaliação, afinal, não apenas retrata algo já
existente, mas ela produz o que avalia.
A “operação historiográfica”, por mais que às vezes seja
tratada como uma descrição universal do trabalho do historiador,
é uma categoria que implica pensar sua própria historicidade,
suas condições históricas de possibilidade.38 Caberia pensar, nessa
chave, o que seria uma “operação historiográfica neoliberal”,
marcada por prazos cada vez mais curtos, avaliações numéricas,
performance etc. que determinam, de um modo ou de outro, a forma
de conhecimento que é produzida. Em que medida a construção
do problema, a seleção do objeto, as hipóteses, as metodologias, o
próprio tempo da pesquisa e da escrita, tal como conformados em
projetos para agências, não são profundamente reconfigurados
por essas novas condições. Elas afetam a história que escrevemos
mais do que nos damos conta, do mesmo modo como afetam a
forma como somos lidos – ou, mais comumente, não lidos. As
condições neoliberais da universidade contemporânea, enfim,
afetam profundamente o que entendemos por conhecimento e,
por consequência, a sua finalidade.

V
Diante da emergência e da força dessa nova rede
semântica e desses dispositivos, capazes de reestruturar
instituições, relações sociais, subjetividades e a própria natureza
da produção do conhecimento, cabe recolocar, mais uma vez,
a questão anterior: viveríamos uma ressincronização temporal
sem regime de historicidade, ou essa forma de temporalidade
já possuiria a dimensão suficiente para assumir o lugar de um
38 Cf. CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1982.

265
A História (in)diciplinada

regime de historicidade, com todas suas implicações? Uma


resposta acabada a essa questão não tem como deixar de soar
como profecia. No entanto, não deixa de ser pertinente interrogar
sobre o caráter sistêmico que a racionalidade neoliberal assume
hoje globalmente. Como sugerem Dardot e Laval, não se trata
mais do sistema de um partido único, mas sim de uma razão
política única, dentro da qual os partidos de esquerda e direita
são cada vez mais forçados a se adequar graças aos dispositivos
disciplinares do mercado financeiro.39 Uma razão política única
que, como se buscou mostrar nesse texto, assenta-se em uma nova
rede semântica e em uma nova forma de figurar a historicidade.
O que esse texto buscou sugerir, acima de tudo, é que
talvez seja importante ao mesmo tempo especificar e nomear
um movimento que está alterando profundamente nossa forma
de temporalização. Dar também a ele, enfim, um regime de
visibilidade, identificando seus mecanismos e sua linguagem. Sua
força está justamente na naturalidade com que os conceitos e suas
condutas são incorporados pelos indivíduos e pelas instituições,
como se não houvesse escolhas. Na sua “eficaz” invisibilidade,
vamos incorporando a destemporalização, a desmobilização,
a despolitização e a desideologização tecnificada que trazem
consigo. Afinal, vivemos no tempo da linguagem que nos habita.
No caso, um tempo volátil, acelerado, urgente, marcado por um
presente precário, sequestrado por futuros imediatos. Um tempo,
enfim, que talvez seja incapaz de manter laços sociais e afetivos.
Como já havia alertado há setenta anos Karl Polanyi, a
ficção de um mercado autônomo, autorregulado, foi a origem da
catástrofe vivenciada com a emergência de regimes totalitários e
uma guerra mundial. A transformação da terra, do trabalho e da
moeda em puras mercadorias, livres de qualquer regulamentação,
causou uma série de reações sociais, levando às crises das décadas
39 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo... Op. cit.,
p. 11.

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Arthur Lima de Avila, Fernando Nicolazzi e Rodrigo Turin (org.)

de 1930 e 1940.40 Algo parecido parece estar acontecendo agora,


com o desmantelamento do modelo do Estado de bem-estar social,
a acelerada desregulamentação das leis de proteção trabalhista e,
em conjunto, a ascensão de novas formas de reações fascistas,
movidas pelo esvaziamento da política e pelo investimento
contra toda e qualquer minoria. Se não há sociedade que possa
se constituir como mero apêndice do mercado, como afirmava
Polanyi, muito menos é possível que a sociedade, com todas as
suas instâncias, se transforme ela mesma em um mercado –
como é o nosso caso hoje, com o neoliberalismo, onde todos se
transformam em concorrentes e, assim, em potenciais inimigos.
Nesse sentido, tocaríamos no limite desse regime de historicidade
potencial: ele tende a produzir sua própria destruição.
Pensar a natureza da produção acadêmica e escolar
implicaria, diante desse cenário, pensar os conceitos que as
orientam. Do modo como funciona hoje, a incorporação desses
conceitos e dispositivos tem gerado uma grave deformação e
esvaziamento dos princípios que fundaram as práticas avaliadas,
ou seja, as pesquisas científicas e a docência. O tempo da pesquisa
e do ensino não é e não deve ser o tempo dos números gerados
pelos processos de avaliação da cultura auditiva.
Com isso, talvez seja o momento também de uma virada
no modo como pensamos a relação entre política e tempo. Se, na
modernidade clássica, vivemos uma temporalização da política, na
qual o presente era visto como uma transição singular em direção
a um futuro igualmente singular, hoje parece fundamental, ao
contrário, politizar o tempo, entendendo que o tempo nada
mais é que a forma interna de nossas experiências. O tempo da
educação, o tempo da pesquisa, o tempo da política requerem
suportes institucionais próprios, que garantam a sua existência.
O processo violento que assistimos de ressinconcronização desses
40 Cf. POLANYI, Karl. La grande transformation. Aux origines politiques et
économiques de notre temps. Paris, Gallimard, 2009.

267
A História (in)diciplinada

diferentes tempos sob o novo tempo hegemômico, hipercelerado


e privatizado do neoliberalismo, representa não apenas o
esvaziamento de outras possibilidades de experiência, como
também o apagamento inédito de uma imaginação de futuro,
condenando-nos a uma sucessão acelerada e desconectada de
“agoras”.
Post-scriptum
Em nome do tempo da “austeridade” neoliberal, com
seu presente precarizado, tivemos recentemente mais uma
instituição sacrificada, posta em chamas, no maior desastre da
história da ciência brasileira. Antes de ser um mero acidente,
esse evento releva uma característica estrutural do lugar frágil
das instituições de ensino e de pesquisa sob as novas formas de
temporalização da sociedade contemporânea. Há um caráter
quase ritualístico no sacrifício constante de nossas instituições, da
cultura e dos indivíduos em nome do imperativo da austeridade
neoliberal. Em um sacrifício, contudo, normalmente o objetivo
é que o sacrificante ou o sacrificado tornem-se outro, saiam
transformados, deixem de ser o que eram, estabelecendo ou
reforçando uma partilha entre o sagrado e o profano e reabrindo
o futuro enquanto expectativa. A quem e ao que nos sacrificamos
hoje? Para que nosso passado e nosso futuro são sistematicamente
dizimados das formas mais brutais? É uma série de sacrifícios
sem promessa, sem transformação, sem futuro. As chamas do
Museu Nacional se estendem ao nosso passado e ao nosso futuro,
reduzindo a cinzas aquilo que deveria sustentar a criação de
sentidos como sociedade. Vamos nos transformando em corpos
disponíveis e precarizados, nossas instituições em escombros
descartáveis. Sem uma politização do tempo, sem a ancoragem
institucional necessária para que experiências distintas como a
educação, a saúde, a ciência e mesmo o afeto possam existir, com
suas diferentes temporalidades, continuaremos a ser conformados

268
Arthur Lima de Avila, Fernando Nicolazzi e Rodrigo Turin (org.)

por essa linguagem hegemônica neoliberal, por seus dispositivos


e conceitos.
É tempo que seja tempo... é tempo.

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