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história
Rodrigo Turin
I
O diabo mora nos detalhes.1 Nesse sentido, gostaria
de iniciar esse texto com um detalhe do Plano Nacional de Pós-
Graduação. Logo na introdução, se afirma que o Brasil “entrou no
século XXI”, esse tempo naturalizado, e que nesse tempo o Brasil
deve se adequar a uma série de mudanças globais que produzem
reflexos e “impactos em diferentes setores da sociedade, inclusive
no sistema educacional, aí incluído o ensino superior”.2
Na sequência dessa afirmação, como ilustração, o
texto cita o agronegócio, esse setor vinculado ao que temos de
mais arcaico no Brasil: elites oligarcas, monocultura, latifúndio,
desmatamento, extermínio de povos indígenas, uso abusivo de
agrotóxicos. E o mais representativo disso tudo são os conceitos
ali ilustrados para pensar a entrada do sistema educacional, aí
incluído o ensino superior, no século XXI:
um exemplo dessas mudanças é o ocorrido no setor
agrário. Impulsionada pelas novas tecnologias, pela
presença de recursos humanos já então bem qualificados
1 Agradeço à Laura Erber e a seus alunos pela possibilidade de discutir uma
versão prévia desse texto, assim como à Nathália Sanglard pela leitura atenta e pelas
sugestões.
2 Cf. COORDENAÇÃO de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) 2011-2020. Brasília, 2010.
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II
Desde o final do século XX, diante das aceleradas
transformações econômicas, sociais e tecnológicas, diferentes
diagnósticos têm sido elaborados com o objetivo de identificar
o que qualificaria a experiência contemporânea do tempo. Uma
das categorias ou, melhor dizendo, dupla de categorias que mais
tem sido acionada e encontrado recepção na historiografia são
as de “regimes de historicidade” e de “presentismo”. Elaboradas
em conjunto por François Hartog, desde o final da década de
1980, essas categorias ambicionam ao mesmo tempo ofertar
um instrumento heurístico de investigação da historicidade das
experiências temporais e uma chave de leitura acerca das formas
de viver o tempo que vem marcando as sociedades ocidentais nas
últimas décadas.4 Nas análises de Hartog, que passam por objetos
3 Cf. COORDENAÇÃO de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). Plano Nacional de Pós-Graduação... Op. cit.
4 Cf. DELACOROIX, Christian; DOSSE, François; GARCIA, Patrick (org.).
Historicités. Paris, La Découverte, 2009; NICOLAZZI, Fernando. A História entre
tempo: François Hartog e a conjuntura historiográfica contemporânea. História:
Questões & Debates, Curitiba, n. 53, jul./dez. 2010; TURIN, Rodrigo. As (des)
classificações do tempo: linguagens teóricas, historiografia e normatividade. Topoi,
n. 33, Rio de Janeiro, 2016.
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III
Dialogando com essas reflexões de Hartog, Baschet,
Jordheim e Wigen, talvez seja pertinente recolocar a questão:
será que esse tempo contemporâneo financeirizado não se
apresentaria já como um regime de historicidade - se não
pleno, ao menos muito próximo da plenitude? Será que essa
temporalidade acelerada, urgente, já não possui um arcabouço
linguístico, um suporte discursivo e uma série de dispositivos
que possibilitam a ela constituir-se como forma de consciência
temporal própria? Não seria esse tempo da urgência, como
sugeriu Christophe Bouton, um “fato social total”, na medida
em que ele constrange os indivíduos e se manifesta em diferentes
instituições?13 Será que essa temporalidade já não é articulada e
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14 Cf. ESPOSITO, Elena. The future of futures. The time of money in financial
society. Northampton, Edward Elgar, 2011.
15 FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits, vol. III. Paris: Gallimard, 1994;
AGAMBEN, Giogio. O que é um dispositivo?, In.: AGAMBEN, Giogio. O que é
o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. Separo, aqui, rede
semântica de dispositivos apenas para fins analíticos.
16 Cf. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Ensaio
sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016; BROWN, Wendy. Undoing
the demos: neoliberalism’s stealth Revolution. New York, Zone Books, 2015.
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Tabela Y
Modernidade tardia
Modernidade clássica
(racionalidade neoliberal)
Temporalização Destemporalização
Democratização Diferenciação
Ideologização Tecnificação
Politização Desmobilização
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IV
O modelo humbolditano de universidade, associando
a autonomia da pesquisa e do ensino como condição para a
formação do indivíduo, parece cada vez mais entrar em colapso
diante de três fatores maiores que vêm afetando essas instituições:
a massificação, a mercantilização e a internacionalização.23
Revelando-se uma tendência global, essa crise também se manifesta
em sua particularidade no acelerado processo de expansão da
universidade brasileira, tanto no que diz respeito à extensão das
graduações ocorridas desde o início dos anos 2000, como na
chamada profissionalização da pós-graduação. De todo modo,
independentemente desse contexto nacional, as universidades
brasileiras não deixam de compartilhar certas características
gerais que vêm afetando as instituições de ensino na modernidade
tardia. A transformação do ensino em um produto de “excelência”
a ser vendido, a financeirização das instituições educacionais,
as novas demandas de um mercado de trabalho em constante
transformação, as novas modalidades de mensuração do trabalho
intelectual e pedagógico, a precarização dos contratos são algumas
23 Cf. BARCAN, Ruth. Academic Life and Labour in the New University.
Burlington: Ashgate, 2013.
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V
Diante da emergência e da força dessa nova rede
semântica e desses dispositivos, capazes de reestruturar
instituições, relações sociais, subjetividades e a própria natureza
da produção do conhecimento, cabe recolocar, mais uma vez,
a questão anterior: viveríamos uma ressincronização temporal
sem regime de historicidade, ou essa forma de temporalidade
já possuiria a dimensão suficiente para assumir o lugar de um
38 Cf. CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1982.
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Bibliografia:
AGAMBEN, Giogio. O que é um dispositivo? In.: AGAMBEN, Giogio. O
que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó, Argos, 2009.
BALL, Stephen J.; GOODSON, Ivor F.; MAGUIRE, Meg. Education,
globalisation, and new times. New York: Routledge, 2007.
BARCAN, Ruth. Academic Life and Labour in the New University.
Burlington: Ashgate, 2013.
BASCHET, Jérôme. Défaire la tyrannie du présent. Temporalités émergentes
et futurs inédits. Paris: La Découverte, 2018. (Versão Kindle)
BOUTON, Christophe. Le temps de l’urgence. Lormont: Le Bord de l’eau,
2013.
COORDENAÇÃO de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) 2011-2020. Brasília,
2010.
BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth Revolution.
New York, Zone Books, 2015.
BROWN, Wendy. Cidadania sacrificial: neoliberalismo, capital humano e
políticas de austeridade. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2018.
CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1982.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Ensaio
sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Chriatian. Ce cauchemar qui n’en finit pas.
Comment le néoliberalisme défait la démocratie. Paris, La Découverte, 2016.
DELACOROIX, Christian; DOSSE, François; GARCIA, Patrick (org.).
Historicités. Paris, La Découverte, 2009.
ELLIOT, Anthony; URRY, John. Mobile lives. London: Routledge, 2010.
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