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Há uma semana estou sendo atacada por uma insônia ansiosa. Nada de novo pra
quem vive o Brasil desses últimos anos, mas o conteúdo dessa angústia não tem
nada a ver com a pandemia, e sim com o caos instaurado nesse momento com a
mudança dos materiais didáticos para o “Novo Ensino Médio”. Quem
acompanhou a Reforma do Ensino Médio e a publicação da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) para esse nível de ensino em 2017 já sabia que
haveria impactos nos Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Ainda
assim, a confusão está tão grande que, ao invés de apenas encaminhar o material
para análise e escolha dos professores, as editoras estão promovendo reuniões
remotas com os docentes e gestores das redes públicas de ensino para tentar
explicar o que está acontecendo. Tive a oportunidade de participar de um desses
encontros e, mesmo tendo lido o material informativo e acessado os primeiros
livros liberados, precisei ler e reler o edital em si para entender essas mudanças.
Embora não tenha sequer uma linha de apresentação de suas bases pedagógicas
(tampouco lista de referências bibliográficas), a BNCC é pincelada com vários
termos celebrados no campo da educação, como se a simples grafia das palavras
tivesse algum efeito mágico: “ensino contextualizado”, “interdisciplinaridade”,
“autonomia”, “protagonismo”. A realidade, porém, é que nossas políticas
educacionais têm retomado o que houve de pior na pedagogia tecnicista do
século XX: produção curricular externa à escola, padronização dos métodos de
ensino e avaliação; desconsideração dos aspectos intersubjetivos no processo de
ensino e aprendizagem; uso de avaliações externas como pressão para a
adequação das escolas; transformação do ensino em treinamento para as
avaliações externas; preocupação excessiva com o preenchimento de papelada
burocrática e, sobretudo, adesão irrestrita à ideologia da eficiência como
panaceia para todos os problemas da educação. Enquanto escrevo essa lista de
características, estou pensando em propostas testadas no Brasil com a reforma
do ensino médio de 1971 (sim, a do regime militar). Mas como isso pode estar
ganhando espaço justamente quando o que mais se ouve falar é em
modernização do ensino médio? Vejamos.
A ironia começa aqui, com dois livros que, segundo o edital, podem ser escritos
por qualquer graduado, não importando a área de formação. Ao mesmo tempo
em que se fala que a escola tem disciplinas demais, criam-se disciplinas novas
como Projeto de Vida e Empreendedorismo. No novo PNLD, as únicas
disciplinas com livros específicos são língua portuguesa, matemática, inglês e
projeto de vida. Em verdade, Projeto de vida não é apresentado como disciplina
no documento (nem como coisa alguma), mas na prática é o que tem ocorrido
nas escolas para dar conta da insistência da BNCC nesse termo. Em linhas
gerais, Projeto de Vida deve trabalhar o autoconhecimento, a reflexão sobre
relações sociais e o planejamento de futuro (com foco na dimensão profissional).
Em partes, trata-se de questões cabíveis a um profissional da psicologia e, em
partes, de temáticas do ensino de sociologia e filosofia. Entretanto, o caminho
escolhido é um material didático a ser entregue nas mãos de um professor de
qualquer área para complementação de carga horária.
Até 2021, cada disciplina tem um livro didático em volume único para todo o
ensino médio. A partir do próximo ano, porém, haverá apenas um livro didático
para cada área do conhecimento, composto por 6 volumes de até 160 páginas[5].
O resultado disso ainda não está disponível para análise, mas esses livros estarão
na escola a partir de 2022. A reflexão sobre essa mudança, que também exige
uma análise em separado, passa pela desvalorização das disciplinas e da
formação específica dos professores. A produção de livros didáticos por área de
conhecimento incentiva justamente essa adoção do professor generalista como
regra. E se antes o docente formado em outra área acabava tendo que ensinar
conceitos, temas e teorias das disciplina que assumisse, ainda que limitando-se a
seguir o livro didático, agora a tendência é a redução do ensino de toda a área de
conhecimento à sua disciplina de formação, dado que o livro “liberto das
fronteiras disciplinares” possibilitará isso. A longo prazo, o rumo traçado por
essa diretriz (e isso já se reflete na Base Nacional Comum para a Formação
Continuada de Professores da Educação Básica) é tornar inócua a licenciatura
em áreas específicas. Afinal de contas, se o currículo é por área de
conhecimento, para que professores com formação específica em disciplinas
diferentes? Eis aí uma bela forma de economizar recursos e reduzir a qualidade
dos profissionais que atuarão nas escolas.
Ainda será preciso analisar a fundo esse conjunto de materiais didáticos, que foi
apenas parcialmente lançado, mas duas coisas já estão claras. A primeira é que
as consequências da Reforma do ensino médio e da BNCC agora passarão a ser
sentidas na prática – e não serão suaves. A segunda é que os alertas que há pelo
menos vinte anos são lançados pelo professor Luiz Carlos de Freitas estavam
corretos de cabo a rabo. A reforma empresarial da educação agora está
avançando a passos largos. E isso é muito maior e mais durável que o próprio
governo Bolsonaro.
[5] Para efeitos de comparação, cabe destacar que, no edital PNLD 2018, livros
de inglês poderiam ter até 240 páginas e livros de sociologia, filosofia e arte
poderiam ter até 400.
1.
Lenilda Macêdo
- março/2021
- agosto/2021
Excelente esclarecimentos.
Análise perfeita das mudanças drásticas.
Um impacto para o ensino e na prática pedagógica docente.
2.
- dezembro/2021
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