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O mito da Matin

Perera de Taperaçu Cam


e o conceito de dád
Aproximando-se de
conceito antropológ
nta O mito da Matinta
mpo Perera de Taperaçu Campo
e o conceito de dádiva:
diva: Aproximando-se de um
conceito antropológico
e um
gico
F E R N A N D O A LV E S D A S I LVA J Ú N IOR
Universidade Federal do Pará, Bragança/PA, Brasil
Silva Júnior, F. A. da

O MITO DA MATINTA PERERA DE TAPERAÇU CAMPO E O


CONCEITO DE DÁDIVA: APROXIMANDO-SE DE UM CONCEI-
TO ANTROPOLÓGICO
Resumo
O plano deste artigo tem por objetivo aproximar as narrativas orais so-
bre a Matinta Perera da comunidade bragantina de Taperaçu Campo ao
conceito de dádiva de Marcel Mauss (2003), considerando a pesquisa
desenvolvida nessa localidade no decorrer dos anos de 2012 e 2013.
Para tanto, utilizaremos os conceitos de Mauss de que há nas relações
sociais a tripla obrigação: a de dar, de receber e de retribuir, além disso,
aproximaremos essa observação à oferta que se faz a Matinta que, via
de regra, são o tabaco, o café ou o peixe. O procedimento metodológico
está pautado nas pesquisas de campo para o registro das narrativas que
perpassaram pela gravação com alguns moradores e, consequentemente,
a transcrição dos textos orais que, por fim, foram comparados à teoria
da dádiva de Mauss. Preliminarmente, concluiu-se que a abnegação dos
moradores locais em oferecer a essa divindade amazônica, de um lado,
sugere uma ação altruísta e, por outro, corresponde a uma ação egoísta,
já que eles dão (tabaco, café etc), pensando em receber (acalanto, não
agouro etc.). A importância deste trabalho para os estudos antropoló-
gicos está na aproximação da crendice popular, calcada na expressão da
literatura popular, e da sociologia-antropologia, como outra forma de
abordar e cotejar as narrativas orais bragantinas.
Palavras-chave: Dádiva, Matinta Perera, narrativas orais, Taperaçu
Campo.

THE MYTH OF MATINTA PERERA OF TAPERAÇU CAMPO


AND THE CONCEPT OF GIFT: APPROACHING OF AN AN-
THROPOLOGICAL CONCEPT
Abstract
The work plan of this article aims to approximate the oral narratives
about Matinta Perera of Bragança community Taperaçu Campo to the
concept of gift by Marcel Mauss (2003), considering the research de-
veloped in this community over the years 2012 and 2013. To do so,
we use the concepts of that Mauss’s social relations triple duty: that of
giving, receiving and giving back, will approach this observation that
the offer is made to matinta that, as a rule, is tobacco, coffee or fish.
The methodological approach is based in the research field to record
the narratives that permeated the recording with some locals and hence
transcription of oral texts, which were finally compared to the theory
of giving Mauss. Preliminarily, it was concluded that the denial of the
locals in this Amazon offer divinity on the one hand, suggests an altruis-

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tic action, and the other corresponds to a selfish action, since they give
(tobacco, coffee etc.) considering receive (lullaby, not foreboding, etc.).
The importance of this anthropological study studies is to approach
the popular belief, grounded in this expression of popular literature, to
sociology-anthropology as another way to approach and collate bragan-
tinas oral narratives.
Keywords: Gift, Matinta Perera, oral narratives, Taperaçu Campo.

LE MYTHE DE LA MATINTA PERERA DE TAPERAÇU CAMPO


ET LA NOTION DE DON: L’APPROCHE D’UN CONCEPT AN-
THROPOLOGIQUE
Résumé
Le plan de cet article vise à rapprocher les récits oraux sur Matinta Pe-
rera de la communauté de Taperaçu Campo à la notion de don Marcel
Mauss (2003), compte tenu de la recherche développée dans cette com-
munauté au cours des années 2012 et 2013. Tant à, nous utilisons les
concepts de relations sociales triple devoir que Mauss: donner, recevoir
et rendre, abordera cette observation à offrir qui fait matinta que, en
règle générale, est le tabac, le café ou poissons. L’approche méthodologi-
que est basée dans le domaine de la recherche pour enregistrer les récits
qui imprégnait l’enregistrement avec des gens du coin et donc la trans-
cription de textes oraux, qui ont finalement été comparées à la théorie
de donner Mauss. Préliminaire, il a été conclu que le refus des habitants
de cette divinité Amazon offre d’une part, suggère une action altruiste,
et l’autre correspond à une action égoïste, car ils donnent (tabac, café
etc.) Considérant recevoir (berceuse, aucun présage, etc.). L’importance
de cette étude pour la recherche anthropologique est plus proche à la
croyance populaire, la terre dans cette expression de la littérature popu-
laire, la sociologie, l’anthropologie comme une autre façon d’aborder et
de rassembler bragantinas récits oraux.
Mots-clés: Don, Matinta Perera, récits oraux, Taperaçu Campo.

Endereço do autor para correspondência: Rua Zacarias Correa, n° 1162,


bairro Padre Luiz Freire, Bragança/PA, CEP 68600-000. E-mail: macu-
ninfeta@gmail.com

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PRIMEIROS PASSOS DA PESQUISA o espaço de pesquisa, como esperá-


DE CAMPO vamos, o recorte espacial recaiu so-
bre a comunidade de Taperaçu Cam-
Este trabalho corresponde a uma parte
po, em virtude de uma pessoa, dona
da dissertação apresentada ao Progra-
Edilene. Não tinha intimidade com a
ma de Pós-Graduação em Linguagens
comunidade até conversar com essa
e Saberes na Amazônia (PPGLS) da
senhora acerca do meu trabalho e ela
Universidade Federal do Pará (UFPA),
me convidar para gravar com seu pai,
cujo objetivo consistiu em analisar as
Raimundo Silva de Aviz. A partir de
narrativas orais acerca do mito da Ma-
então, gravei com nove moradores de
tinta Perera na comunidade de Tape-
Taperaçu Campo (Maria Silva Aviz,
raçu Campo, localizada nos campos
Raimundo Silva de Aviz, Agostinho
bragantinos (PA), mediante gravação
da Silva Sousa, Aldenor Cirilo, Ene-
de textos orais.
dina de Sousa, João Coelho de Sou-
Para o registro das narrativas, utilizei sa, Orivaldo Pereira da Silva, Egídio
um gravador digital com microfone, Ferreira da Silva, Arlindo Araújo e
contudo, houve casos em que dispen- Manoel de Jesus), todos indicados e
sei o uso do aparelho e as conversas fo- convidados por dona Edilene, uns na
ram somente anotadas em uma agen- casa de minha guia e outros em suas
da, momento em que a informalidade próprias residências.
do encontro dispensava seu uso.
Quanto à técnica de pesquisa, convém
Minha primeira experiência com as mencionar que a orientação metodo-
narrativas orais míticas bragantinas foi lógica das primeiras visitas em 2011,
com o desenvolvimento do projeto de quando iniciei minha pesquisa de cam-
conclusão do curso de Especialização po na comunidade de São Domingos
em Linguagens e Culturas na Amazô- com dona Josefa Sousa, consistia em
nia1, ofertado pela UFPA no decorrer fazer um primeiro contato para explicar
do ano de 2011, no qual pude entrevis- a intenção da pesquisa e agendar a gra-
tar e analisar as narrativas orais míticas vação para um momento mais cômodo
de dona Josefa Silva, moradora da co- para a entrevistada. Contudo, quando
munidade de São Domingos, Bragança eu mencionava o objeto da pesquisa
(PA). Essa pesquisa deu início ao pro- (as narrativas acerca de Matinta Pe-
jeto acerca da narrativa sobre a Matinta rera, de labisonho etc), os narradores
Perera por uma simples questão: quase logo iniciavam suas falas me contando
todos os narradores pesquisados desde subitamente o que eles conheciam, re-
o ano de 2011 citaram histórias acerca sultando em perda de alguns detalhes
dessa bruxa amazônica2. para meu trabalho. Quando chegava
Quando iniciei a pesquisa para o para a segunda visita, com gravador e
PPGLS, o objetivo era analisar as máquina fotográfica, aquelas histórias
narrativas orais da Matinta Perera e a espontaneidade do momento an-
nos arredores de Bragança, porém, a terior se esmaeciam em uma narrativa
impossibilidade do projeto restringiu que não repetia a anterior. Eis o aspec-

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to singular de cada entrevista (Alberti davelmente, o gravador das bocas de


2005:105). nossos anfitriões.
Diante desse impasse metodológico, As entrevistas não tiveram um rotei-
alterei meu modo de abordagem e co- ro pré-definido, com perguntas que
mecei a adequar a forma de fazer pes- requeriam respostas objetivamente
quisa de campo de acordo com cada explicativas. Elas seguiram a dinâmica
encontro, deixei o gravador ligado des- de uma conversa, no entanto, o dire-
de a chegada até a partida e, no meio da cionamento era muito bem delimitado:
conversa, explicava o objetivo do tra- as histórias da Matinta Perera.
balho. Essa proposta não foi totalmen- Não esperava que essas histórias tives-
te segura, já que também gerou perda sem ocorrido somente em Taperaçu
de informação, por exemplo, na entre- Campo, ansiava por encontrar as nar-
vista com seu Aldenor Cirilo, que me rativas que fizessem parte do acervo
foi apresentado por dona Edilene na que circulava oralmente pela comuni-
noite do dia 30 de dezembro de 2012, dade. Em algumas visitas, logo que es-
quando ela acabou de explicar o moti- gotavam as narrativas da Matinta Pere-
vo da minha visita, o senhor iniciou a ra, surgiam outros casos de aparições e
sua narrativa e, por pouco, não perco encontros inesperados. Assim identifi-
as informações que buscava. quei as narrativas míticas que transitam
Na primeira visita com dona Josefa livremente na comunidade: a narrativa
Sousa, não consegui gravar uma infor- do bode, a do Gritador, a do fogo do
mação que ela não me explicou nova- campo, a da Mãe d’Água, a da Curupi-
mente, o caso de pessoas que contam ra, a do Ataíde, a do Labisonho e a da
histórias de dia criarem rabo, interdi- Matinta Perera.
ção esta também relatada por Cascudo À medida que eu registrava as histórias
(1978). No final das conversas, expli- da Matinta Perera e o conhecimento
cava que aquilo que fora gravado seria acerca dessa personagem, em sua gran-
utilizado somente com a permissão do de maioria feminina, se aprofundava,
narrador e que a finalidade seria a pro- tentei garantir a impessoalidade nas
dução dos trabalhos acadêmicos. entrevistas, não fornecendo detalhes
O incômodo no momento das entre- da personagem (pedido de tabaco, de
vistas foi a luz vermelha do gravador café, a possibilidade de prendê-la etc),
digital indicando o rec, que suprimi sempre esperava os narradores finali-
com uma fita adesiva preta justamente zarem suas histórias para, então, per-
por conta da intimidação que, a meu guntar os detalhes não ditos. Como o
ver, causava nos entrevistados. A dis- objetivo era garantir a descontração
tância que eu mantinha com os narra- durante as conversas, eu também con-
dores foi a mais natural possível, uma tava minhas histórias, percebi que isso
vez que o uso de um microfone digital os motivava a narrar outras. Pensava
garantiu uma gravação audível3 sem a sempre em conhecer o máximo de nar-
necessidade de aproximar, desagra- rativas possíveis de cada anfitrião.

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Na segunda visita à casa de seu Rai- Caeté-Taperaçu. A comunidade é lar-


mundo de Aviz, no final da tarde do gamente conhecida como Acarpará,
dia 16 de setembro de 2012, interes- nome que de acordo com seu Egídio
sado na história da mulher que se Ferreira da Silva (Taperaçu Campo, 20
transforma em onça, pois ouvira dona de julho de 2013) surgiu por conta da
Josefa Sousa e dona Maria de Aviz iniciativa de uma associação que foi
contá-la, perguntei a seu Raimundo se criada em meados da década de 60 para
conhecia tal história, ele me disse que fortalecer a agricultura local, especial-
não. Resolvi reproduzir o caso contado mente com o cultivo do feijão caupi, a
por dona Josefa. Após escutar a minha chamada Associação de Crédito Rural
versão, ele se lembrou de outra similar do Pará (ACARPARÁ).
e me narrou. Aprendi essa “técnica” A denominação Taperaçu Campo
com Agnelo Melo Neto4, antes de ele abrange atualmente as seguintes comu-
me levar pelos caminhos capilares do nidades: Patalino, São Mateus, Acarpa-
Montenegro à procura dos narradores. rá, Porto dos Milagres e Porto da Man-
Dizia ele que era preciso dois ou mais
gueira. Essa divisão, como explicou seu
contadores para que as histórias fos-
Egídio, decorreu da atuação da Pastoral
sem lembradas.
da Saúde quando precisou demarcar os
grupos de trabalho e as áreas que seus
agentes ocupariam. Alguns moradores,
A COMUNIDADE TAPERAÇU
como o presidente da associação co-
CAMPO
munitária seu Arlindo Araújo, insistem
Taperaçu Campo compõe um grupo em denominar todo esse espaço como
de comunidades que formam parte da Taperaçu Campo, da forma como é
região dos campos bragantinos perten- escrito nos documentos oficiais (conta
centes a Reserva Extrativista Marinha de energia, por exemplo).

Figura 1 – Mapa da comunidade Taperaçu Campo. Projeto gráfico de Fernando Alves


(2013).

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O mito da Matinta Perera

A comunidade possui duas escolas reconhecimento, é necessário identifi-


(uma municipal de ensino fundamen- car o nome da divindade em seu canto,
tal e outra estadual de ensino médio), aquilo que os moradores dizem que é a
uma igreja católica (a do Sagrado Co- “dobração” do seu assobio, caso con-
ração de Jesus), um posto de saúde, trário, o apito noturno pode indicar a
três campos de futebol (na entrada da presença de outras entidades6 (a Curu-
comunidade do Patalino, em frente à pira ou a Mãe d’Água) que emitem o
igreja e ao posto de saúde e outro na mesmo assobio, com a diferença de
comunidade do Porto dos Milagres) e não dobrarem o canto.
dez olarias. Além das olarias que em-
Neste trabalho, citarei de forma sin-
pregam boa parte da comunidade, ou-
tética as narrativas de seis moradores
tras fontes de renda são o pescado e a
de Taperaçu Campo (Raimundo Silva
agricultura.
e Agostinho da Silva Sousa, João Coe-
O número substancial de olarias5 é re- lho de Sousa, Orivaldo Pereira da Silva,
sultado do grande número de matéria- Egídio Ferreira da Silva, Arlindo Araú-
-prima (argila) encontrada nas regiões jo) que relatam o momento da oferta a
dos campos bragantinos. As olarias Matinta: tabaco, café e peixe que, mais
extraem a argila de suas propriedades adiante, articularei ao conceito maus-
e quando esgotam os recursos de seus siano de dádiva.
limites pagam para retirarem o material
das propriedades dos demais morado- Na ordem de realização das entrevis-
res: dragam os campos com tratores tas, a versão de seu Raimundo Silva de
e deixam somente locais esburacados. Aviz com seu Agostinho da Silva Sousa
Dona Edilene explicou que alguns mo- é a primeira a nos ensinar a maneira de
radores aproveitam essas covas produ- capturar a Matinta Perera, ao convidá-
zidas pela dragagem como “tanques -la a buscar um cigarro ou a beber um
naturais” para armazenamento da água pouco de café:
das chuvas, no verão, esses reservató- “A matintaperera, uma vez eu... a
rios são utilizados para amolecer man- matintaperera é assim, ela passar
dioca antes do preparo do subproduto: pela sua casa, aí assobiar, aí você
a farinha. prender ela:
– Vem buscar um, um cigarro de
manhã, vem busca uma, vem beber
ESBOÇANDO UM MITO: A MATIN- um café.
TA PERERA Ela fica, ela fica presa, ela só, ela só
se acomoda quando ela... quando
A Matinta Perera é, via de regra, uma ela vai lá. Aí você dá aquela maniva,
senhora idosa em condições de se me- ela... Uma vez eu, eu fui... Ela pede
tamorfosear em uma espécie de pássa- o, a pessoa vem pedir o cigarro,
ro de hábitos noturnos e transitar pela buscar, né? O tabaco? Eh, eh. Aí,
comunidade. O que marca a presença tinha o cara que joga baralho aco-
da Matinta é seu trinado: fiiite, fiiite, lá. Aí, quando foi umas duas horas
fiiite, Matiiinta Perera. Para a certeza do chegou lá. Com um pouco mais

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chegou duas velhas, pano na cabe- a faca e [barulho de metal baten-


ça. Elas tinham passado lá de noite, do em uma superfície de madeira],
ele disse, ele gritou de lá onde eles (Enfinca.) Enfinca na mesa. Aí dá o
estavam jogando baralho, disse: outro, você finca, dá o derradeiro,
– Vem buscar, vem buscar uma finca. Aí:
boia de peixe amanhã. – Olha! De manhã vem tomar o
Foram simbora, assobiando, foram café comigo.
simbora. Quando foi essas horas, Se tiver o café:
elas vieram.] [Raimundo: Foram – Pode vir tomar o café comigo, ci-
bater lá?] [Augustinho: Vieram ba- garro. Vou ficar lhe esperando.
ter lá. Chegou lá, ele disse:
Quando é cedinho ela chega na
– Olha! Lá vem as mulher, vieram sua porta. Aí você já conhece
buscar o peixe. quem é. Mas porque é gente tam-
Aí também foi pra lá, elas chega- bém. (Também é gente. Ela tam-
ram, ele foi pra lá dá a canga de bém não bate no pessoal, assim
peixe pra elas” (Raimundo Silva de não?). Não, não, não, não, não
Aviz, Agostinho da Silva Sousa, Ta- bate não. A matintaperera não.
peraçu Campo, 16 de setembro de Lá, ela acompanha, porque todo
2012). bicho acompanha pra meter o
Já para seu João Coelho de Sousa, uma medo pra pessoa, pra ver se cor-
maneira infalível para conhecer a iden- re, né? Todo bicho acompanh”.
tidade da Matinta Perera é oferecendo- (João Coelho de Sousa, Taperaçu
Campo, 12 de janeiro de 2013).
-lhe algo, o que tiver: café, tabaco, etc
que uma pessoa aparecerá no dia se- Para seu Orivaldo Pereira da Silva, o
guinte cobrando o que fora prometido: assobio que a matintaperera emite é
A matintaperera, a gente, ela dá o sempre um pedido. Na sua história,
assobio dela, né? Aí se afinca uma protagonizada por seu avô, a matinta
faca encima da mesa ou, aí oferece sempre seguia o senhor quando este
o cigarro pra ela, pra ela tomar o partia para a maré pescar mero e todo
café da manhã com você. Ganhar o assobio que a “pai d’égua” emitia era
o cigarro. Aí quando é de manhã um reclame do pescado que ele estava
ela chega, aí você sabe quem é, uma para conseguir:
pessoa.
(E a história do tabaco...) Agora
(Mas ninguém fala nada, não?) do tabaco... (...que dão pra matinta,
Não, não, fala nada não. (Não pre- né?) ...o tabaco, o tabaco é a curu-
cisa?) Fala nada não. Aí dá o café, pira, a a matintaperera (A matinta,
só pra conhecer, só pra conhecer né?) É. Porque uma vez, eu tenho
a pessoa. Porque a matintaperera é
o meu avô, ele pescava e foi, tava
gente, não é bicho.
pescando, e tinha uma senhora que
(...) morava numa ilha (daqui, da praia?)
Mas você não sabe da matraca pra Eh, eh. Ela virava. Quando foi um
pegar ela, né? E quem sabe, aí ela dia ele foi pra maré, passou a pai
dá o primeiro assobio você, pega d’égua assobiou.

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O mito da Matinta Perera

– De manhã tu vem buscar um pe- Quando ele chegava no perera aí


daço de mero. eles negociavam:
(Mero? Ele ofereceu mero?) É. Por- – Vem buscar um pedaço de tabaco
que ele pescava, pescava de mero. amanhã.
– Vem buscar um pedaço de mero É. Então ali, bem aqui assim tinha
de manhã. uma velha, né? Mais aqui assim,
Quando foi de manhã cedinho que uma velha antiga. E eles diziam que
ele chegou da maré, ele olhou lá no era ela, né? Aí uma vez, eu tinha
um irmão que morava bem ali, o
meio do campo, tinha o campo, né?
Romoaldo, e tinha a esposa dele, a
Ele olhou, lá vem, ele disse:
Maria. E ela era cumadre da Maria,
– Olha mulher! A mulher vem bus- da minha cunhada, tá? (Uh, uh) Aí a
car o pedaço de mero. Maria, nessa noite, ouviu o assobio
(Já sabia) Já sabia. Chegou e disse: e aí, ofereceu um pedaço de tabaco
– Ah seu Dico. Vim buscar um pe- que quando foi de manhã a velha
daço de mero que o senhor prome- apareceu lá, apareceu. Aí ela não
teu pra mim. disse nada, deu o tabaco, não disse
nada. Aí já contou pra outro, né?
– Aaah! Era tu que tava assobiando,
Então ela benzia, a velha benzia,
nera?
(Mentira?) Eh, eh. (Ela era benze-
(E era conhecida?) Conhecida a ve- deira?) Eh, eh, ela era benzedeira.
lha lá. Ele agarrou tirou um pedaço Aí quando foi no outro, uns quatro
de mero e deu pra ela. (Mas tem dias aí contaram pra ela. Ela veio,
que dar, né?) Tem que dar. (Orival- ela veio. Chegou lá aí ela disse:
do Pereira da Silva, Taperaçu Cam- – Ah, comadre a, a minha filha tá
po, 12 de abril de 2013). com dor de cabeça, tá com febre,
Na história de seu Egídio Ferreira da dê uma benzida nela aí.
Silva, encontramos o momento exato Ela disse: [Emitindo voz de velho]:
em que a pessoa deve oferecer algo à – É comadre, matintaperera não
matinta: “na dobração do assobio”. benze. (Egídio Ferreira da Silva,
Na sua narrativa, a Matinta era uma Taperaçu Campo, 20 de julho de
senhora que morava próximo à moça 2013).
que promete o café, com o intuito de Por fim, temos a versão de seu Arlin-
conhecer a identidade da velha. Ao di- do Araújo que confirma as anteriores
vulgar para seus vizinhos a descoberta, quanto ao fato do oferecimento sina-
irrita a velha Matinta que também é a lizar uma visita na manhã seguinte. A
curandeira da comunidade. Matinta Perera emite seu trinado, o
Olha, eles dizem, os mais antigos morador oferece o café ou o tabaco e
diziam que quando, aí ofereciam, na manhã sucede o “encontro” com
né? Quando ela, ela, ela assobiava, uma pessoa que virá requisitar o pro-
quando eles esperavam na dobra- metido.
ção do assobio. Eles diziam: “(E a matinta, ela mexe com o pes-
– Fiiite, matiinta...pe. soal também?) A matinta, a matinta

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não, a matinta, ela só faz o coisa de Aqui, refletimos acerca da hierarquia


ficar assobiando ali. Que tem uma colocada por Caillé (1998) na supe-
que avoa, isso é história que eles rioridade das divindades em frete ao
contam, eu nunca vi. (E ninguém sujeito comum. As formas de rela-
oferece pra ela? O pessoal diz cionamento a partir do regalo que é
que...) É, eles ofereciam, é tem gen-
entregue à Matinta Perera pode, em
te que conta aí que ofereciam cigar-
ro, tabaco ofereciam alguma coisa, certa medida, contribuir para a com-
quando era de manhã cedinho, diz preensão de que a leitura da dádiva
que chegava uma pessoa lá na por- colocaria esse jogo hierárquico em
ta. (Pedindo, certinho?) Certinho” seu sentido inverso, uma vez que o
(Arlindo Araújo, Taperaçu Campo, morador que se sente coagido em
31 de agosto de 2013). oferecer, a partir do momento que
São cinco conversas que se ligam por dá, retoma para si a posição hierar-
um fio comum, o oferecimento. São quicamente superior àquele que rece-
duas configurações da Matinta Perera: beu, criando a relação de débito.
a ornitomórfica, quando a entidade se A base dessa relação de troca está
apresenta no tempo noturno, emitindo no taonga: “tudo o que é propriedade
seu assobio que pode ser interpretado propriamente dita, tudo o que pode
como um pedido; e a antropomórfi- ser trocado” (Mauss 2003:196), ele
ca, momento em que a pessoa que se é fortemente ligado à pessoa que o
transforma em ave surge para requerer possui, é o hau, “espírito das coisas”
o prometido da véspera. (Mauss 2003:197). A coisa dada, obri-
gatoriamente recebida, deve circular,
a coisa recebida que vira coisa dada
BREVE OBSERVAÇÃO ACERCA DA a propósito do hau (espírito) que ela
DÁDIVA possui.
Para Mauss (2003:193), o potlatch, Não pode inexistir retribuição, caso
nome chinook utilizado de Vancouver aconteça de uma coisa recebida não
ao Alaska, significa “nutrir” ou “con- ter um substituto que a mantenha
sumir”. Mais propriamente “rivalizar circulando “poderia advir um mal”
com presentes”, as regras implícitas quiçá a morte (Mauss 2003:198).
nesse jogo são aquelas que “obriga[m] Nesse sentido, “você me dá um, eu
a retribuir o presente recebido”. Dois dou a um terceiro, este me retribui
elementos basilares são encontrados um outro, porque ele é movido pelo
em Samoa (Polinésia): “o da honra, do hau de minha dádiva; e sou obriga-
prestígio, do mana que a riqueza con- do a dar-lhe essa coisa, porque devo
fere, e o da obrigação absoluta de re- devolver-lhe o que em realidade é o
tribuir as dádivas sob pena de perder produto do hau de seu taonga” (Mauss
esse mana, essa autoridade, esse talismã 2003:198). Neste caso, a coisa dada
e essa fonte de riqueza que é a própria conserva em si algo que é do doador.
autoridade” (Mauss 2003:195, grifo do A dádiva é a metonímia das relações
autor). sociais, toma-se uma parte (café, ta-

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O mito da Matinta Perera

baco e peixe) pelo todo (a pessoa PENSANDO A DÁDIVA NO MITO


moral que recusa de si). DA MATINTA PERERA
Mauss (2003) afirma que essa coisa Nota-se que o oferecimento postula
dada está entranhada por uma alma uma relação que abarca o envolvimen-
(hau), senão a do próprio doador, to de um ente superior com um sujeito
ela assume a alma do primeiro dono, local que dá, de um lado, enquanto o
ela é alma também e, sobretudo, ne- donatário, por outro, torna-se um se-
cessita retornar para seu lar de ori- melhante quando transforma-se em
gem. Se não for constantemente re- gente para se revelar como um conhe-
passada, o detentor corre o risco de cido no momento do “fechamento” do
receber um grande mal sobre si. A contrato assumido entre eles.
Matinta que recebe a alma daquele
que ofertou, recebe o outro na me- Observa-se nesse momento das narra-
dida em que a coisa dada (café, ta- tivas que o conceito de sacrifício7 se re-
baco ou peixe) não é simples coisa, veste daquele espírito definido pela dá-
mas símbolo de uma relação com o diva maussiana na medida em que esse
outro; recusar a oferta é recusar a objeto da troca (café, tabaco e peixe)
pessoa moral que a oferta, não se ganha ares de obrigação, o que é expli-
recusa simplesmente a coisa dada, cado por Mauss (2003:198) ao afirmar
o que se recusa é o própria pessoa “que a coisa recebida não é inerte. Mes-
que se entrega naquele ato de doar mo abandonada pelo doador, ela ainda
algo de si que é si mesmo. conserva algo dele”, considerando-se
que “o vínculo de direito, vínculo pelas
Assim, Mauss (2003:201-202) pro-
coisas, é um vínculo de almas, pois a
põe três instâncias da dádiva: a obri-
própria coisa tem uma alma, é alma, [...]
gação de dar, a obrigação de receber
pois, aceitar alguma coisa de alguém é
e a obrigação de retribuir. Isso por-
aceitar algo de sua essência espiritual,
que “a prestação total não implica
de sua alma” (Mauss 2003:200). Daí a
somente a obrigação de retribuir os
obrigação de receber ser fundamental
presentes recebidos, mas supõe duas
para o conceito de dádiva maussiano,
outras igualmente importantes: obri-
não aceitar é recusar aquele que oferta,
gação de dar, de um lado, obrigação
porque nega a comunhão com o vizi-
de receber de outro”. Negar uma
dessas três instâncias “equivale a de- nho e afrouxa os laços sociais na co-
clarar guerra, é recusar a aliança e a munidade que os unem.
comunhão”. É nesse sentido que a Assim, as três vertentes da teoria de
dádiva assume o conceito de crédito, Mauss acerca da dádiva circunscrevem-
na medida em que o objeto dado re- -se na tripla obrigação de dar, de rece-
torna com valores outros agregados a ber e de retribuir. Se a coisa dada con-
ele. Para que os bens circulem dentro serva a essência daquele que ofertou se
da comunidade, há a necessidade do distanciando da coisificação do indiví-
indivíduo ser, em certo grau, perdu- duo (a alienabilidade) e tendendo para
lário. a humanização do objeto (a inalienabi-

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 6 (2): 484-502, 2014 495


Silva Júnior, F. A. da

lidade), tal qual no sacrifício, o indiví- Em todo caso, não observamos a


duo não abnega por ser simplesmente Matinta ausentar-se do compromis-
perdulário, mas porque espera receber so de receber aquilo que foi dado e
algo em troca, um altruísmo prenhe de tão pouco o sujeito local negar a ela
egoísmo. Isso se evidencia a partir do o objeto prometido. Em Taperaçu
momento em que a “prestação total Campo, ela comparece a todos os en-
não implica somente a obrigação de contros para tomar para si aquilo que
retribuir os presentes recebidos, mas lhe foi dado, para deixar evidente que
supõe duas outras igualmente impor- o oferecedor, por seu turno, não se
tantes: obrigação de dar, de um lado, abstém de dar por pura “bondade”,
obrigação de receber, de outro” (Mauss seu altruísmo reveste-se de egoísmo
2003:201). Para Lanna (2000:175), em quando o café, o tabaco ou o peixe
um aspecto mais amplo, o conceito de doado sinalizam uma vontade de co-
dádiva de Mauss se espraia para além nhecimento.
das relações econômicas, alcançando
Quando na narrativa de seu Egídio
as ações de sociabilidade e cortesia en-
Ferreira da Silva, a jovem senhora ofe-
tre as pessoas: a proposta geral do En-
saio é a liga social. rece tabaco à Matinta e descobre que
sua vizinha transformava-se em ave vi-
Nessa perspectiva pensada por Mauss sagenta, a dádiva repassada, em certa
(2003:201-202), a ação de reservar-se a medida, leva algo da doadora, a Ma-
não dar, que é proporcional a negar-se tinta leva um pouco do seu oferecedor
a receber, “equivale a declarar guerra; e, quando a jovem revela o segredo da
é recusar a aliança e a comunhão”, o divindade, aquela dádiva retorna como
que justifica a intenção da Matinta em algo negativo, pois a velha Matinta se
acompanhar um sujeito em Taperaçu nega, posteriormente, a benzer o filho
Campo, quando nada é oferecido, resta
da vizinha que estava adoentado.
a agressão física entre eles, pois, para
se desvencilhar dos insistentes trina- São contratos que se estabelecem em
dos da entidade, o sujeito aventura-se Taperaçu Campo entre homens e di-
a capturá-la, lembrando-se da Ma- vindades que buscam, sobretudo,
tinta que foi “pega” com o tição de amenidades. Não há troca apenas de
fogo da siribeira e ficou se batendo alimentos por acalantos e ordem8, mas
nas árvores até o “piedoso” sujeito há busca por laços sociais conforme
libertá-la retirando o pedaço de si- essas permutas são realizadas entre os
ribeira do local que tinha enterrado. moradores da comunidade: o vizinho
Isto mostra como ofensivo negar-lhe que fornece café é o mesmo que rece-
a amizade por conta do outro não berá o peixe ou aquele que participava
ser merecedor de tal proximidade, do beneficiamento do tabaco, na época
aprofundando o distanciamento en- em que este era fortemente cultivado
tre eles, tornando-se indiferente por na comunidade, a relação entre os vizi-
manter a impessoalidade, negando- nhos se expressa, também, por meio da
-lhe essa relação de parentesco. troca, da saudação.

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O mito da Matinta Perera

Seu Augustino presta serviços para a Em virtude de uma visita à casa de seu
família de seu Raimundo ordenhando Agostinho da Silva Sousa, em 24 de
as vacas e preparando o subproduto da janeiro de 2014, questionei acerca do
mandioca, a farinha, na casa de forno funcionamento dos trabalhos comuni-
do amigo com a mandioca cultivada tários em Taperaçu Campo, especial-
pela família de seu Raimundo e colhida mente aquele voltado para o embarre-
com a ajuda de seu Agostinho da Silva amento das casas de taipa. De acordo
Sousa, os trabalhos, assim, envolvem com ele, a construção desse tipo de
as duas famílias. As atividades deste moradia era9, via de regra, responsabi-
não são vistas como puro altruísmo, lidade do proprietário levantá-la com
ele o faz porque granjeia para seu lado madeira geralmente extraída de mata
parte do leite que tira, tal qual da fari- próxima e coberta com palhas ou com
nha que prepara, assim como dará para telhas de fibrocimento onduladas10.
seu amigo Raimundo parte do pescado Já no momento do embarreamento,
que trará da maré. outros homens da comunidade eram
As relações sociais invadem a ma- convidados a ajudarem o proprietário,
neira de lidar com as aparições de momento da comunhão e do testar
Taperaçu Campo, a Matinta é uma a força dos laços que os rodeiam. O
pessoa da comunidade com a qual embarreamento, que durava de um a
cotidianamente se irá relacionar, se- dois dias, era regado à bebida alcóolica,
não na mesma residência, como é o geralmente destilada, fornecida pelo
caso do filho curandeiro que rivali- proprietário enquanto o almoço ficava
za com a mãe também curandeira, a cargo da esposa do anfitrião, este úl-
quando ela se transforma em Matinta timo detalhe foi salientado pela esposa
Perera e em égua, o mesmo caso do de seu Agostinho, dona Maria, que nos
filho que surpreende a mãe Matinta acompanhava na conversa.
transformada em passarinho (sururi- O retorno de seu Agostinho aos cole-
na) e descobre que se tratava da ge- gas do mutirão do embarreamento era
nitora somente quando esta chega a dado na ocasião em que outro mem-
sua casa toda dolorida por conta das bro da comunidade o requisitasse para
bordoadas que tomou do filho ao serviço semelhante, se julgássemos que
tentar fugir das pancadas dentro de a retribuição de seu Agostinho alcan-
casa, provavelmente encontrará um çaria todos àqueles que embarrearam
vizinho se transformando em Matin- sua casa, chegaríamos à conclusão de
ta ou labisonho em uma das olarias que todo esforço empenhado em retri-
ou embaixo de alguma árvore nas buir a ajuda dos vizinhos equiparou ou
noturnas e solitárias ruas da comuni- ultrapassou o necessário para ter em-
dade. A dádiva, em certa medida, ex- barreado sozinho sua residência sem
plica essas relações de ida e volta das a ajuda dos demais moradores, não
ações que se pratica na comunidade, obstante, um aspecto da vida comuni-
mas também justifica a manutenção tária de Taperaçu Campo esmaeceria o
das amizades em Taperaçu Campo. vínculo e a sociabilidade entre os indi-

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Silva Júnior, F. A. da

víduos, a aproximação e certo nível de aliança, tanto as alianças matrimoniais


altruísmo, ou seja, romperiam o nó que como as políticas, religiosas, econômi-
aperta as famílias. cas, jurídicas e diplomáticas” (Lanna
Certo que não são todos os membros (2000:175).
convidados, apenas aqueles que, de Esse aspecto amplo do conceito de dá-
certa forma, aceitará o convite, porque diva se espraia para além das relações
quando se aceita, o dar-se pode ser o econômicas, alcançando os aspectos de
retribuir. Claro que ao convocado é re- sociabilidade e cortesia entre os mora-
servado o direito de não comparecer, dores, “mostra ainda como, universal-
nestes termos a recusa não justificada, mente, dar e retribuir, são obrigações,
pode acarretar interpretações de que mas organizadas de modo particular
ele não necessitará do amigo em ativi- em cada caso” (Lanna (2000:175). Os
dades futuras. casos particulares, os locais ou mo-
mentos da doação interferem no retor-
Esta exposição de seu Agostinho nos
no da dádiva; no seio da comunidade,
ajuda a compreender a postura da Ma-
o prestígio pode ser lido com base no
tintaem requerer a “merenda”, como
círculo de amizade que se pretende
diz se Manoel de Jesus, por meio do construir entre os moradores, a jovem
assobio. Não oferecer é acreditar que que deu tabaco à Matinta se liga à ve-
não precisará da Matinta, digo, do(a) lha que se metamorfoseia por conta
vizinho(a) que se mostrará na manhã do interesse no tratamento xamânico
seguinte requerendo o prometido e, da filha que adoecera; o movimento se
implicitamente, colocando-se a dis- dá na outra via com a Matinta de seu
posição do sacrificador-sacrificante, Orivaldo Pereira da Silva que se inte-
porque no fundo, como nos explicam ressava pela amizade de seu Dico por
Godbout (1992) e Caillé (2002), rece- conta do mero que ele pescava. Nesses
ber é se colocar como um doador em termos, vale a colocação de Godbout
potencial, por isso, dar é, em certa me- (1992:11, 14) sobre o campo de atua-
dida, receber. ção da dádiva que sobressai “o implíci-
Nas observações feitas por Lanna to e o não dito”, de sorte que a dádiva
(2000:175), se há algo que une as co- serve, sobremodo, “para estabelecer li-
locações de Mauss no Ensaio sobre a gações”, ligações em certa medida pré-
dádiva, essa é “a noção de ‘aliança’”. -estabelecidas ou escolhidas de forma
Aquilo que se procura é um repouso que o retorno seja certo.
com o ente que acompanha a pessoa Pensando a dádiva como um para-
para verificar as motivações que a faz digma que se encontra no entremeio
correr: seria por conta do medo? Pos- do individualismo e do holismo me-
sivelmente. Mas tudo nos leva a crer todológico, Caillé (1998:10) parte do
que o morador oferece com a intenção princípio de que, no primeiro, todos
de fortalecer essa liga social no dar e os cálculos nas relações sociais se di-
no receber, pois “o argumento central recionam para o interesse individual
do Ensaio é de que a dádiva produz a no cálculo egoísta de sempre ponderar

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O mito da Matinta Perera

as relações para nunca ter perdas, en- dos, como bem nota o holismo (Caillé
quanto que, no pólo antagônico, todas 1998:12).
as atenções se concentram no “costu- Não caberia essa mesma definição para
me, valores ou regras” que regem de- o sacrifício cunhado por Mauss e Hu-
terminado grupo social, para o qual as bert antes do Ensaio sobre a dádiva? Cail-
ações nunca surpreendem porque são lé (1998:12) diria que sim, conforme se
ditadas por regras que não serão rom- trata de “um modelo de ação social to-
pidas, nesse caso “ninguém trairá” e, talmente diferente o que ele nos apre-
com isso, a responsabilidade de parida- sentava na reflexão acerca do sacrifício
de ser completamente seguida. ou da dádiva”. Contudo, o ato de dar
No paradigma da dádiva, institui-se e de receber ganha expressão somente
uma “aposta na aliança e na confian- quando fixados “numa certa atmosfe-
ça”, aproximando essa leitura para ra de espontaneidade. É preciso dar e
nosso objeto, apesar das regras serem retribuir. Sim, mas quando, quanto, e
transparentes (a oferta ter de ser paga com que gestos, quais entonações?”.
e o retorno egoísta ser esperado) o Estes são questionamentos que locali-
que se dá é um voto de confiança, a zam as situações e a prática de oferecer
certeza é sempre presumida, cria-se mediante os elementos que determi-
a máxima: “‘confiar totalmente ou nam o posicionamento dos actantes
desconfiar totalmente’, eis a solução” nesse jogo que são as relações de alian-
proposta por Mauss no Ensaio sobre a ça dentro de uma comunidade, a rela-
dádiva e definido por Caillé (1998:11) ção de convizinhaça é a máxima entre
como o terceiro paradigma. Acer- os moradores, por isso, o objeto dado
ca disso, este autor retoma o termo ser colocado a serviço dos laços, o do-
gift de Mauss para exemplificar que natário reforça as relações apertando
na dádiva há a mesma proposta do o nó ao aceitar a oferta; nas anotações
pharmakos: o remédio e o veneno são realizadas por Godbout (1992:15), o
dádivas obrigatórias àqueles que dão dom deve ser pensado como uma re-
(morador local) e àqueles que rece- lação contínua e bilateral, como uma
bem (por exemplo, a Matinta Perera), relação, sobretudo, entre sujeitos.
pois quem “quer o dom, acrescenta Mesmo que para Mauss (2003:187) os
Godbout (1992:15), quer o veneno”: presentes sejam, a rigor, voluntários,
o donatário que aceita a dádiva, acei- eles se expressam “na verdade obri-
ta as regras de retribuição. gatoriamente dados e retribuídos”. O
A dádiva é, segundo ele [Mauss], indis- que Mauss (2003:188) diz claramente
sociavelmente “livre e obrigada” de um é que “nesse gesto que acompanha a
lado, e interessada e desinteressada do transação, há somente ficção, formalis-
outro. Obrigada, pois não se dá qual- mo e mentira social, e quando há, no
quer coisa a qualquer pessoa, num mo- fundo, obrigação e interesse econômi-
mento qualquer ou de qualquer modo, co”. Essas trocas não são apenas coi-
sendo os momentos e as formas da sas materiais, as trocas, como foi dito,
dádiva, de fato, socialmente instituí- são de amabilidades, enquanto que as

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Silva Júnior, F. A. da

riquezas, compreendidas como os bens Se a solidão é contrária à sociedade,


materiais em si que fisicamente estão aceitar os termos do encontro com a
presentes na oferta, acrescenta Caillé divindade é reificar que a relação com
& Graeber (2002:24), transitam nessas os vizinhos é essencial para a manu-
relações não como fator primeiro, mas tenção da liga social na comunidade,
na marginália. sendo assim, o café, o tabaco e o peixe
alimentam as matintas, na mesma pro-
porção em que alimentam as relações
CONSIDERAÇÕES FINAIS sociais, apertando o nó que enlaça to-
dos em Taperaçu Campo.
Observamos que a dádiva no ofereci-
mento à Matinta Perera se configura
como uma aliança, no sentido largo NOTAS
do conceito de Mauss, uma alian-
ça que, sobretudo, une “os ritos, os
1
Trabalho orientado pelo Dr. José Gui-
casamentos, a sucessão de bens, os lherme dos Santos Fernandes.
vínculos de direito e de interesse, po- 2
Utilizamos o termo bruxa por conta das
sições militares e sacerdotais, tudo é leituras do trabalho de Josebel Akel Fares
complementar e supõe a colaboração (1997, 2007) e, posteriormente, Silva Jú-
nior (2014). Não pretendemos inferir um
das duas metades da tribo”, assim “as
pensamento colonizador a partir dessa
duas frátrias se mostram respeito” expressão, apenas estamos considerando
(Mauss 2003:191). os estudos anteriores acerca deste mito
A partir da dádiva, pensamos o outro que também se vale da outra expressão
em sua inteireza, porque as diferenças “a mulher do pássaro da noite” (Villacor-
são permitidas e respeitadas, também ta 2000).
porque cada lado do “contrato” so- 3
Reconheço os momentos em que fomos
brevive em função do outro ou, pelo recebidos no quintal com barulhos adja-
menos, fortalece um vínculo de depen- centes, em pátios com televisores ligados
dência mútua por meio da troca, inter- ou próximos ao trânsito de carros e motos
e, ainda, com pessoas conversando em cô-
cambiam-se entre si e com os mitos.
modos onde eu era recebido, que dificulta-
O que não se quer é a anulação do con- ram pequenas partes das transcrições.
substancial, buscam-se o elemento de 4
Amigo morador da comunidade do Rio
contato para, a partir dele, manterem- Ubim que me apresentou alguns conheci-
-se distantes. Não haveria encontro dos e familiares que poderiam contribuir
com a Matinta caso ela não se apresen- para a minha pesquisa.
tasse como diferente: quem negaria a 5
As olarias em Taperaçu Campo são geren-
companhia da Matinta Perera nos ca- ciadas por famílias, as de pequeno porte, e
minhos sombrios das madrugadas de por empresas, duas de grande porte.
Taperaçu Campo ou na insegurança 6
Utilizamos os termos divindade e entida-
das marés quando a retribuição dessa de neste trabalho apenas para caracterizar
companhia fosse apenas o café ou o os seres que estão além do plano humano,
peixe na manhã seguinte? ou seja, os sobrenaturais, como o caso da

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O mito da Matinta Perera

matintaperera, da curupira, da mãe d’água Maria Silva Aviz. Aposentada. Entrevista


etc. concedida a Fernando Alves da Silva Jú-
7
A compreensão de sacrifício (Mauss & nior. Taperaçu Campo, Bragança-PA, 19
Hubert 2005:15) “sugere imediatamente mai. 2012. Gravação digital 1h44” estéreo.
a ideia de consagração” isso porque “em Raimundo Silva de Aviz. Aposentado. 65
todo sacrifício um objeto passa do domí- anos; SOUSA, Agostinho da Silva. Apo-
nio comum ao domínio religioso – ele é sentado. 69 anos. Entrevista concedida a
consagrado”. Essa primeira observação Fernando Alves da SILVA JÚNIIOR. Ta-
de Mauss e Hubert é muito cara para a peraçu Campo, Bragança-PA, 16 set. 2012.
nossa pesquisa, pois a consagração se re- Gravação digital 25”24’ estéreo.
vela justamente na oferta que uma pessoa Aldenor Cirilo. Aposentado. Entrevista
de Taperaçu Campo realiza em nome da concedida a Fernando Alves da Silva Jú-
divindade amazônica. Caillé (2002:180) nior. Taperaçu Campo, Bragança-PA, 30
em sua “antropologia do dom” explica dez. 2012. Gravação digital 17” estéreo.
em nota que tanto etimologicamente
quanto literalmente “o termo sacrifício Egídio Ferreira da Silva. Lavrador e presi-
implica a idéia de um bem sensível ofe- dente de associação comunitária. 62 anos.
recido ou destruído em honra de um ser Entrevista concedida a Fernando Alves da
superior” (grifo do autor) que além “de Silva Júnior. Taperaçu Campo, Bragança-
atestar a sua soberania” serve de igual -PA, 20 jul. 2013. Gravação digital 55”25’
modo “para obter dele proteção, perdão estéreo.
ou graça”. É dentro destes limites con- Orivaldo Pereira da Silva. Aposentado. 55
ceituais que aproximamos o oferecimen- anos. Entrevista concedida a Fernando Al-
to à Matinta perera de Taperaçu Campo ves da Silva Júnior. Taperaçu Campo, Bra-
ao conceito antropológico de sacrifício. gança-PA, 12 abr. 2013. Gravação digital
8
Considerando-se aqui o barulho emitido 2h24”29’ estéreo.
pela Matinta Perera na forma ornitomór- Enedina de Sousa. Aposentada. 72 anos.
fica. Entrevista concedida a Fernando Alves da
9
Hoje em dia encontramos muitas casas de Silva Júnior. Taperaçu Campo, Bragança-
alvenaria na comunidade por conta da Re- -PA, 12 jan. 2013. Gravação digital 7” es-
sex e da olaria comunitária. téreo.
Popularmente conhecida como telha de
10 João Coelho de Sousa. Aposentado. 73
Brasilit. anos. Entrevista concedida a Fernando
Alves da Silva Júnior. Taperaçu Campo,
Bragança-PA, 12 jan. 2013. Gravação digi-
ENTREVISTAS tal 1h19” estéreo.

Arlindo Araújo. Aposentado. 64 anos. En-


trevista concedida a Fernando Alves da Sil- REFERÊNCIAS
va Júnior. Taperaçu Campo, Bragança-PA,
2013. Gravação digital 56”38’ estéreo. Alberti, V. 2005. Manual de história oral. Rio
Maria Silva Aviz. Aposentada. Entrevista de Janeiro: FGV.
concedida a Fernando Alves da Silva Jú- Caillé, A. 1998. Nem holismo nem indivi-
nior. Taperaçu Campo, Bragança-PA, 16 dualismo metodológicos: Marcel Mauss
set. 2012. Gravação digital 48”57’ estéreo. e o paradigma da dádiva. Rev. bras. Ci. Soc.

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