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Narrativas orais e memória coletiva:

uma proposta para pensar a formação de conceitos1

Flavia Graciela de Alcântara2


flaviaalcantara@live.estacio.br

Resumo: A proposta deste ensaio é pensar as narrativas orais como elementos de


manutenção de uma memória coletiva como estratégia de desenvolvimento do
pensamento humano e da formação de conceitos pela via da mediação social.

Palavras-chave: Oralidade; Memória; Linguagem.

Palavras ao vento,
correm o risco de se perderem,
e assim cumpre-se a fatalidade,
a sina, a saga!

(Palavras ao vento!
Edvaldo Rosa)

“Palavras vão ao vento”... vão? Ao longo da existência humana, relatos


diversos foram responsáveis pela construção da história, representações do passado
foram – e continuam a ser – edificadas por meio de narrativas orais e escritas
organizadas em uma “trama compreensível3” capaz de criar e armazenar memórias,
lembranças, culturas e tradições.

1
Ensaio baseado na pesquisa atualmente desenvolvida no doutorado em Educação intitulada
“DESCOBRINDO MINAS DE “CAUSOS”: Narrativas orais e culturas do escrito nas décadas de 1930 a
1960, em Belo Horizonte”, a qual se propõe a investigar fatores que influenciaram a disseminação,
manutenção e tradição de narrativas orais, como prática educativa, em uma sociedade de cultura
marcadamente escrita; assim como as estratégias – discursivas, sociais e culturais – que tem mantido
vivas, práticas de oralidade em um contexto de progressiva disseminação de culturas do escrito. A
“formação de conceitos” a que se refere este texto refere-se aos estudos de Lev Semënovich Vygotsky
(1979), sobre os fatores biológicos e sociais implicados no desenvolvimento psicológico dos seres
humanos, nos quais se destaca a discussão sobre as relações entre pensamento e linguagem na perspectiva
da mediação cultural historicamente situada.

2
Professora do curso de Pedagogia da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte, membro do Núcleo
Docente Estruturante da mesma instituição e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação:
Conhecimento e Inclusão Social da FAE/UFMG, linha de pesquisa História da Educação.
3
Termo empregado por Veyne (1971, p. 67), em “Como se escreve a história”.
Cada indivíduo percebe a realidade na qual está inserido de maneira bastante
particular, de forma a atribuir sentidos e significados a situações cotidianas por meio de
um universo de crenças, elaborado a partir de suas vivências, valores e papéis culturais
inerentes ao grupo social a que pertence. De acordo com Vygotsky (1979), fatores
sociais e biológicos estão implicados nesse processo de formação de conceitos
humanos. Tal capacidade de “ler” o entorno permite o desenvolvimento de
representações responsáveis pela decodificação e interpretação das situações cotidianas
que vivemos.

As narrativas orais se configuram em importante forma de socialização


humana. Em um estudo sobre as maneiras de pensar na França do século XVII, para
citar um exemplo, Robert Darnton (1986) analisa ocorrências que permitem entender
como pessoas comuns percebiam o mundo, como o organizavam em suas mentes e
como o expressavam em seu comportamento. Das fontes utilizadas por Darnton
destacam-se registros de histórias que circulavam oralmente nesse período histórico “em
torno às lareiras, nas cabanas dos camponeses, durante as longas noites de inverno (...)”
(p. 21). Em uma versão primitiva do conto A Bela Adormecida, por exemplo, a jovem é
violentada durante o sono por um príncipe – por sua vez casado como uma princesa,
como haveria de ser! – e com ela tem vários filhos, sem que acorde. O encantamento
que a mantém dormindo, apenas é quebrado durante a amamentação, ao ser mordida
pela prole. O drama continua num segundo foco narrativo, que apresenta as tentativas
da sogra do príncipe, uma ogra, de devorar seus netos bastardos (p.28).

Contar histórias é uma tradição cultural milenar, cuja transmissão envolve


contadores e ouvintes os quais, têm contribuído ao longo de séculos com a manutenção
de uma tradição oral4. A linguagem humana, seja oral ou escrita, é integrante de campos

4
A tradição oral é tratada por Zumthor (1987/1993) em distinção à transmissão oral, estando a primeira
relacionada à duração, aponta ainda para o caráter abstrato do termo oralidade e daquilo que se denomina
literatura oral, preferindo falar em literaturas da voz. À transmissão oral, ele prefere chamar vocalidade e
dá-lhe o significado de materialidade da voz, do som proferido pelas cordas vocais do ser humano sob as
formas de fala, canto, murmúrio, gemido. Para o autor, “vocalidade é a historicidade de uma voz: seu
uso” (p. 21). Assim sendo, a tradição oral pode ser entendida como uma forma de cultura, um sistema de
comunicação complexo que compreende elementos outros além da voz em si e, portanto, a presença da
vocalidade em dado momento não leva necessariamente à constituição da tradição oral, pois, apesar de
próximos, os fenômenos da transmissão oral e da cultura oral se diferenciam, o primeiro trata de uma
linguagem, o segundo, de toda uma cultura e como tal envolve mecanismos de memória, acionando
dispositivos que dizem respeito à duração temporal desta cultura.
discursivos5 que trazem consigo todo um processo de construção de sentidos.
Adentrando o terreno da discursividade6, percebe-se que nenhuma manifestação
discursiva é neutra; existe uma intenção que atua na produção do discurso. Além disso,
é importante considerar que os sentidos e representações daquilo que se fala, e do que se
ouve, são histórica e socialmente construídos.

Vygotsky considera que produtos culturais como a linguagem e outros sistemas


simbólicos são os mediadores dessas representações da realidade. Para tanto, aponta a
mediação cultural como fator elementar no processo de constituição de significados por
parte dos indivíduos, propiciando a construção de percursos individuais feitos de
cruzamentos de histórias que vivemos ou que ouvimos contar.

É importante destacar que grande parte das pesquisas que tomaram como
objeto de estudo narrativas orais e culturas do escrito7 versam, preponderantemente,
sobre grupos sociais cuja exploração da linguagem oral é empregada como objeto de
manifestações culturais específicas de suas organizações sócio-culturais. A esse respeito
pode-se citar trabalhos como os de Martins (1997), o qual aborda a tradição ágrafa
africana na produção literária afro-descendente nas Américas e sua linguagem e
expressão oral; sob perspectiva semelhante, Neves (2009) trata da construção de
representações indígenas a partir de narrativas orais Tupi; seguindo nessa direção,
Geraldi (2000) apresenta diferentes relações entre oralidade e escrita a partir de
narrativas de ribeirinhos do rio Madeira (utilizando o mito amazônico Cobra Norato) e
do uso específico da escrita do povo indígena Jarawara. Apontam-se também propostas
de investigação, baseadas em fontes memorialísticas, como o estudo de Bossi (1987)
sobre a cidade de São Paulo vista pela ótica de lembranças e relatos de velhos

5
Maingueneau (1984/2005, p. 35) define campo discursivo como “um conjunto de formações discursivas
que se encontram em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo
discursivo”. Para o autor, é no interior dos campos discursivos que os discursos se constituem, e cada um
desses campos define seu regime de autoria, cujas regras variam de acordo às condições sócio-histórico-
ideológicas de produção dos discursos. Nesse sentido, Foucault (1996, p. 9) ressalta que o discurso não é
livre, pois sofre um processo de interdição social que o limita, ao considerar que nem todos têm o direito
de dizer tudo, onde e quando desejarem. Para o autor, “(...) em toda sociedade a produção do discurso é
ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos
que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua
pesada e temível materialidade”.
6
Sobre o conceito de discursividade, ver MAINGUENEAU, POSSENTI (2005/1984); BAKHTIN (2003)
e MAINGUENEAU (2001).
7
Sobre o conceito de culturas do escrito, ver GALVÃO; BATISTA (2006), GALVÃO (2010a),
GALVÃO (2010b) e MELO (2008).
moradores e de Piscitelli (2003), que trabalha construções de gênero a partir de
tradições orais e histórias de vida.

Há ainda recorrências de pesquisas voltadas ao estudo de práticas de oralidade


como instrumento didático ou conteúdo a ser trabalhado na escola. Dentre elas,
destacamos os trabalhos de Marcuschi (1997, 2001 e 2007), cujas abordagens gerais
incidem sobre o código linguístico – da língua falada e da língua escrita – como prática
discursiva, que engloba os processos de produção e uso social da língua e que são
passíveis de serem ensinados na escola. O autor analisa contextos de produção, usos e
formas de transmissão da oralidade e da escrita no cotidiano, apontando para a
necessidade de um ensino escolar capaz de promover uma compreensão de língua que
comporte suas variantes sócio-cognitiva e histórica. Sobre o trabalho com a linguagem
oral na escola, Marcuschi afirma:

O trabalho com a oralidade pode, ainda, ressaltar a contribuição da fala


na formação cultural e na preservação de tradições não escritas que
persistem mesmo em culturas em que a escrita já entrou de forma
decisiva (...). Dedicar-se ao estudo da fala é também uma oportunidade
singular para esclarecer aspectos relativos ao preconceito e à
discriminação linguística, bem como suas formas de disseminação.
(MARCUSCHI, 2001, p. 83).

Dessa maneira, segundo Marcuschi, a oralidade é a prática social com intenção


comunicativa, realizada pela fala, essa, tida como uma modalidade de uso da língua,
considerando-se há outras formas de usar a língua, como através da escrita, por
exemplo. O autor reforça a ideia de que a oralidade é um componente imprescindível da
linguagem humana e que a gênese da escrita funciona como elemento somativo às
práticas de comunicação, negando a preponderância de uma sobre a outra. Em suas
palavras:

A oralidade jamais desaparecerá e sempre será, ao lado da escrita o


grande meio de expressão e de atividade comunicativa. A oralidade
enquanto prática social é inerente ao ser humano e não será substituída
por nenhuma outra tecnologia. Ela será sempre a porta de nossa
iniciação à racionalidade e fator de identidade social, regional, grupal de
indivíduos. (MARCUSCHI, 2005, p. 36).
Embora se tratem de temáticas comuns – oralidade e cultura escrita como
manifestações linguísticas – a proposta deste ensaio é pensar as narrativas orais como
elementos de manutenção de uma memória coletiva como estratégia de
desenvolvimento do pensamento humano e da formação de conceitos pela via da
mediação social.

Ao propor uma interseção entre os estudos sobre a dimensão social do


desenvolvimento humano e a constituição de memórias coletivas, por meio de
narrativas orais, ressalta-se o papel da cultura, historicamente forjada, como mediadora
fundamental do processo de formação do conhecimento humano. Outro aspecto basilar
a ser considerado nesse processo é a linguagem enquanto sistema simbólico básico dos
seres humanos, responsável pela comunicação entre indivíduos e pela generalização do
pensamento (Vygotsky, 1979). É por meio da linguagem que se torna possível nomear e
classificar em categorias e classes, objetos que têm atributos em comum. De acordo
com Oliveira,

Se por um lado a ideia de mediação remete a processos de


representação mental, por outro lado refere-se ao fato de que os
sistemas simbólicos que se interpõem entre sujeito e objeto de
conhecimento têm origem social. Isto é, é a cultura que fornece ao
indivíduo os sistemas simbólicos de representação da realidade e, por
meio deles, o universo de significações que permite construir uma
ordenação, uma interpretação, dos dados do mundo real. (OLIVEIRA,
1993, p. 27).

É assim, através da mediação, que uma palavra ou frase assumem significado


social. Esta concepção vai ao encontro da afirmação de Vygotsky (1979) de que a
linguagem falada e escrita assume significado somente pelo uso social. É exatamente
nesse ponto que se ancora esta proposta de pensar a memória coletiva (Wersch, 2010),
como ferramenta para compreender a evolução cognitiva do ser humano, fundamentada
em formas de “armazenamento simbólico externo”, baseadas na mediação.

Ao tratar de memória coletiva, Wersch (2007) salienta a fluidez do termo


“memória”, que pode ser entendido de muitas maneiras diferentes. Segundo o autor,

It is not obvious how to catalogue all the interpretations of memory that


now clutter the conceptual landscape, especially since these
interpretations often exist in the form of implicit assumptions rather
than explicit formulation. Differences there are, however, and they have
a profound effect on how memory is discussed and how participants in
this discussion understand – and misunderstand – one another. (Wersch,
2007, p. 30).

Nesse sentido, a fim de situar teoricamente o termo, Wersch se utiliza dos


estudos de Halbwachs sobre o papel dos grupos sociais na organização e nos estímulos
de rememoração, para tratar da memória coletivamente constituída. A proposta de
Halbwachs é trabalhar a memória coletiva a partir da noção de mediação semiótica,
considerando o compartilhamento de um conjunto básico de recursos semióticos por
membros de uma mesma “comunidade mnemônica”.

Conforme o autor, pensar a memória coletiva por meio da mediação semiótica


permite entender a representação do passado como compartilhamento de recordações
pelos membros de um grupo, sem que nenhum compromisso seja assumido com uma
“mente coletiva” do tipo concebido numa “versão forte de memória coletiva”
(WERSCH, 2010, p. 123). Para pensar em tais constituições coletivas da memória
humana, Wersch se apoia nas ideias de Vygotsky e Bakhtin de que os seres humanos
são animais que utilizam signos e desenvolvem formas de ação especiais, como falar e
pensar, envolvendo uma “combinação não redutível de um agente ativo e uma
ferramenta cultural” (p. 123). Isso significa que a evolução cognitiva não depende
somente do individuo, mas também do meio social no qual está inserido.

Sob a perspectiva bakhtiniana, Wersch destacada o texto como importante


instrumento de mediação semiótica empregado na conservação da memória coletiva.
Essa noção de texto é desenvolvida por Bakhtin a partir de “dois polos”. Segundo o
autor,

Cada texto pressupõe um sistema de signos geralmente compreendido


(isto é, convencional dentro de um determinado coletivo), uma
linguagem compreendida de modo geral (...). E então por trás de cada
texto, há um sistema de linguagem. Tudo no texto que é repetido ou
reproduzido, tudo que é repetível ou reproduzível, tudo que pode ser
dado fora de um determinado texto (o dado) está em conformidade com
esse sistema de linguagem. No entanto, ao mesmo tempo, cada texto
(como uma enunciação) é individual, único e não repetível, e aqui
reside sua inteira significação (seu plano, o propósito, para o qual ele
foi criado)... Com respeito a esse aspecto, tudo que é repetível ou
reproduzível prova ser material, um meio para um fim. O segundo
aspecto (polo) é inerente ao próprio texto, mas é revelado somente
numa situação particular e numa cadeia de textos (na comunicação oral
de uma determinada área). (BAKHTIN, apud WERSCH, p. 124-125).

Essa maneira de pensar a memória coletiva por meio da mediação semiótica,


sob a perspectiva bakhtiniana de texto, é propícia a esta discussão por considerar, em
especial, a noção de enunciação em uma dimensão dialógica da atividade discursiva,
vista como forma própria e significativa de linguagem humana.

Essa concepção de linguagem toma a língua como um processo de enunciação


sócio-histórica, cuja produção de sentidos se dá em situações de interlocução,
procurando estabelecer relações entre o discurso e as condições sociais e históricas de
produção. Tal concepção de linguagem ancora-se em efeitos de sentido que não são
únicos, universais, atemporais e convencionais, mas que são expressos entre
interlocutores inseridos nas instituições sociais que atuam sobre eles. Segundo essa
concepção, a construção dos sentidos se dá via interação; os sentidos não são dados a
priori, são construídos durante o ato discursivo.

Causos, contos populares, lendas urbanas, enfim, narrativas orais


diversificadas, ainda hoje povoam a memória coletiva. Além disso, ainda que número
considerável de estudos sobre narrativas orais tenha sido desenvolvido nos últimos
anos, destaca-se a incipiência de abordagens voltadas ao estudo de estratégias de sua
circulação, concomitantes a culturas do escrito, que tenham em vista não apenas o
enunciado, mas também a enunciação como elemento de mediação semiótica envolvida
na manutenção de uma memória coletiva.

Ao tratar da linguagem humana como sistema simbólico fundamental na


mediação entre sujeito e objeto de conhecimento, Vygotsky (1979) oferece subsídios
para se pensar nessa mediação semiótica e cultural como processo educativo que
permite a transmissão de conhecimentos favorecendo uma construção cultural do
desenvolvimento cognitivo humano.

Discutir narrativas orais e sua possibilidade de atuação como mediadoras


semióticas de uma memória coletiva permite ainda repensar o papel da educação sob
uma perspectiva informal8. Segundo Libâneo (1996), a instituição escolar pode ser
entendida como mediadora entre o individual e o social, exercendo uma articulação
entre a transmissão de conteúdos e a assimilação por parte dos alunos, contudo, não é a
única instância promotora de educação. Para o autor (p. 39), a educação pode ser
considerada como “atividade mediadora no seio da prática social”, o que implica no
acesso ao saber institucionalizado e àquele cotidianamente construído, estabelecendo
uma articulação entre ambos.

Pensar a educação como processo amplo de aquisição de conhecimentos, que


extrapola os limites da escola, favorece a compreensão de uma dimensão educativa que
seria responsável, em certa medida, pela construção de tradições e pela manutenção da
cultura em dado período e local. Como seres sociais, somos também seres
“educacionais”; ensina-se e aprende-se conceitos, valores e significados de vida a cada
instante de interação social, em períodos históricos diversificados, por meio da instrução
e da observação de outras pessoas, da leitura de um livro, do acompanhamento de um
teledrama qualquer, ou mesmo da escuta de um noticiário, etc.

Michael Tomasello (2003), ao discutir as origens culturais do conhecimento


humano, destaca a transmissão cultural cumulativa e a transmissão social de saberes
como elemento determinante de uma evolução cognitiva diferenciada da espécie
humana em relação a outros primatas de mesmo parentesco. Segundo o autor, em
termos gerais, “a transmissão cultural é um processo evolucionário razoavelmente
comum que permite que cada organismo poupe muito tempo e esforço, para não falar de
riscos, na exploração do conhecimento e das habilidades já existentes dos co-
específicos”. (TOMASELLO, 2003, p. 4-5).

Assim, a constituição humana como espécie dependeria, em grande medida, da


transmissão de habilidades por aprendizagem, por imitação e por emulação, o que,
segundo Tomasello (p. 5), “sugere a possibilidade de subtipos significativos de
processos de transmissão cultural”, além disso, o ser humano seria a única espécie capaz
de acumular tradições e artefatos culturais ao longo do tempo.

8
De acordo com Libâneo (2000) os processos de educação podem ser pensados a partir de duas
modalidades: a educação não-intencional, chamada de informal ou paralela, e a educação intencional, que
compreende a educação formal e não-formal. O autor utiliza o termo “educação informal” para indicar
uma modalidade de educação que resulta do “clima” onde os indivíduos vivem, o que inclui aspectos
gerais de sua vida grupal e individual, ou seja, relações educativas adquiridas independentemente da
consciência de suas finalidades, pois não existem metas ou objetivos preestabelecidos conscientemente.
O mesmo já afirmava Vygotsky ao apresentar como um de seus pressupostos
básicos a ideia de que é na relação social com o outro, que o ser humano constitui-se
como tal. Os seres humanos possuem um inegável substrato biológico, mas é sua
constituição sócio-cultural a principal responsável por sua diferenciação em relação às
demais espécies animais. Sob essa ótica, afirma Tomasello:

Nós somos, como Wittgenstein (1953) e Vigotski (1978) entenderam


com tanta clareza, peixes na água da cultura. (...). Os seres humanos
vivem num mundo de linguagem, matemática, dinheiro, governo,
educação, ciência e religião – instituições culturais compostas de
convenções culturais. (...). Esses tipos de instituições sociais e
convenções são criados e mantidos por certos modos de interagir e
pensar entre grupos de seres humanos. (...) todas as instituições
culturais humanas estão assentadas sobre a capacidade sociocognitiva
biologicamente herdada por todos os homens de criar e utilizar
convenções e símbolos sociais. (TOMASELLO, 2003, p. 301-302).

Além disso, toda a atividade humana envolve o uso da linguagem. Esta, por
sua vez, é um produto cultural, um sistema simbólico que funciona como mediador de
nossas representações da realidade. Por meio dela o pensamento humano é
exteriorizado, e sua percepção e ação podem ser organizadas em conceitos e categorias.

É também a linguagem que oferece condições de organização e transmissão de


elementos culturais diversos, como as narrativas – destacando-se aqui as orais – que
podem ser utilizadas como importantes veículos semióticos de construção de uma
memória coletiva.

As narrativas orais, conforme já mencionado, fazem parte da própria natureza


humana9, são ferramentas culturais que podem produzir uma memória coletiva. Como
afirma Wertsch, “the narrative texts produced by a collective, we know what people will
think, believe, and say” (2007, p. 117). Estes textos, por serem dialogicamente
pensados, possuem um caráter social capaz de expressar uma consciência coletiva em
dado período e local, constituindo-se como atributos culturais que permitem, como
sugerido por Tomasello (2003), a produção de “processos de evolução cultural, ou seja,

9
Uso o termo “natureza” foi propositalmente empregado em evocação à dicotomia “natural/biológico”
versus “social/cultural”, buscando destacar o sentido completar dessas esferas, essenciais na constituição
humana como espécie dotada de substrato material, pensamento e cognição.
processos por meio dos quais uma tradição cultural acumula modificações ao longo do
tempo” (p. 50 e 51).

Essas narrativas apresentam-se, então, como um caminho na troca de


experiências e consequente “construção da realidade”; atuando no redimensionamento
de memórias coletivas. Na guisa de Vygotsky (1979), Wertsch (2007 e 2010), Bakhtin
(1993 e 2003) e Tomasello (2003), percebe-se nessa forma específica de manifestação
da linguagem humana a influência do espaço sociocultural e histórico na produção de
sentidos e significados que os indivíduos absorvem e desejam transmitir, de forma a
criar, prever, rememorar e interpretar eventos.

Aqui é concebida uma visão integrativa das narrativas orais na medida em que
o narrador, nas histórias que conta, recorre a um acervo de experiências de vida, tanto as
suas quanto as relatadas por outros. Ao narrar, ele as transforma em produto cultural,
tornando-as experiências também daqueles que estão ouvindo. Assim ocorre a
transmissão de conceitos, representações e conhecimentos. Do mesmo modo, memórias
coletivas são tecidas, o que afirma o papel constitutivo do discurso – e, por decorrência,
da linguagem – em uma concepção sociocultural de formação de conceitos e de
produção de conhecimentos.
Escrita e oralidade, expressas pela linguagem, perpassam os âmbitos
individuais e coletivos na constituição da memória através das narrativas, alcançando a
transmissão e manutenção de conhecimentos. Esta constatação aponta para o fato de que
as narrativas – orais ou escritas –, por serem compartilhadas, contribuem para se pensar
a linguagem como sistema simbólico diretamente implicado no desenvolvimento
cognitivo humano, e logo, na formação de conceitos.

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