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Palavras ao vento,
correm o risco de se perderem,
e assim cumpre-se a fatalidade,
a sina, a saga!
(Palavras ao vento!
Edvaldo Rosa)
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Ensaio baseado na pesquisa atualmente desenvolvida no doutorado em Educação intitulada
“DESCOBRINDO MINAS DE “CAUSOS”: Narrativas orais e culturas do escrito nas décadas de 1930 a
1960, em Belo Horizonte”, a qual se propõe a investigar fatores que influenciaram a disseminação,
manutenção e tradição de narrativas orais, como prática educativa, em uma sociedade de cultura
marcadamente escrita; assim como as estratégias – discursivas, sociais e culturais – que tem mantido
vivas, práticas de oralidade em um contexto de progressiva disseminação de culturas do escrito. A
“formação de conceitos” a que se refere este texto refere-se aos estudos de Lev Semënovich Vygotsky
(1979), sobre os fatores biológicos e sociais implicados no desenvolvimento psicológico dos seres
humanos, nos quais se destaca a discussão sobre as relações entre pensamento e linguagem na perspectiva
da mediação cultural historicamente situada.
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Professora do curso de Pedagogia da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte, membro do Núcleo
Docente Estruturante da mesma instituição e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação:
Conhecimento e Inclusão Social da FAE/UFMG, linha de pesquisa História da Educação.
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Termo empregado por Veyne (1971, p. 67), em “Como se escreve a história”.
Cada indivíduo percebe a realidade na qual está inserido de maneira bastante
particular, de forma a atribuir sentidos e significados a situações cotidianas por meio de
um universo de crenças, elaborado a partir de suas vivências, valores e papéis culturais
inerentes ao grupo social a que pertence. De acordo com Vygotsky (1979), fatores
sociais e biológicos estão implicados nesse processo de formação de conceitos
humanos. Tal capacidade de “ler” o entorno permite o desenvolvimento de
representações responsáveis pela decodificação e interpretação das situações cotidianas
que vivemos.
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A tradição oral é tratada por Zumthor (1987/1993) em distinção à transmissão oral, estando a primeira
relacionada à duração, aponta ainda para o caráter abstrato do termo oralidade e daquilo que se denomina
literatura oral, preferindo falar em literaturas da voz. À transmissão oral, ele prefere chamar vocalidade e
dá-lhe o significado de materialidade da voz, do som proferido pelas cordas vocais do ser humano sob as
formas de fala, canto, murmúrio, gemido. Para o autor, “vocalidade é a historicidade de uma voz: seu
uso” (p. 21). Assim sendo, a tradição oral pode ser entendida como uma forma de cultura, um sistema de
comunicação complexo que compreende elementos outros além da voz em si e, portanto, a presença da
vocalidade em dado momento não leva necessariamente à constituição da tradição oral, pois, apesar de
próximos, os fenômenos da transmissão oral e da cultura oral se diferenciam, o primeiro trata de uma
linguagem, o segundo, de toda uma cultura e como tal envolve mecanismos de memória, acionando
dispositivos que dizem respeito à duração temporal desta cultura.
discursivos5 que trazem consigo todo um processo de construção de sentidos.
Adentrando o terreno da discursividade6, percebe-se que nenhuma manifestação
discursiva é neutra; existe uma intenção que atua na produção do discurso. Além disso,
é importante considerar que os sentidos e representações daquilo que se fala, e do que se
ouve, são histórica e socialmente construídos.
É importante destacar que grande parte das pesquisas que tomaram como
objeto de estudo narrativas orais e culturas do escrito7 versam, preponderantemente,
sobre grupos sociais cuja exploração da linguagem oral é empregada como objeto de
manifestações culturais específicas de suas organizações sócio-culturais. A esse respeito
pode-se citar trabalhos como os de Martins (1997), o qual aborda a tradição ágrafa
africana na produção literária afro-descendente nas Américas e sua linguagem e
expressão oral; sob perspectiva semelhante, Neves (2009) trata da construção de
representações indígenas a partir de narrativas orais Tupi; seguindo nessa direção,
Geraldi (2000) apresenta diferentes relações entre oralidade e escrita a partir de
narrativas de ribeirinhos do rio Madeira (utilizando o mito amazônico Cobra Norato) e
do uso específico da escrita do povo indígena Jarawara. Apontam-se também propostas
de investigação, baseadas em fontes memorialísticas, como o estudo de Bossi (1987)
sobre a cidade de São Paulo vista pela ótica de lembranças e relatos de velhos
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Maingueneau (1984/2005, p. 35) define campo discursivo como “um conjunto de formações discursivas
que se encontram em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo
discursivo”. Para o autor, é no interior dos campos discursivos que os discursos se constituem, e cada um
desses campos define seu regime de autoria, cujas regras variam de acordo às condições sócio-histórico-
ideológicas de produção dos discursos. Nesse sentido, Foucault (1996, p. 9) ressalta que o discurso não é
livre, pois sofre um processo de interdição social que o limita, ao considerar que nem todos têm o direito
de dizer tudo, onde e quando desejarem. Para o autor, “(...) em toda sociedade a produção do discurso é
ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos
que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua
pesada e temível materialidade”.
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Sobre o conceito de discursividade, ver MAINGUENEAU, POSSENTI (2005/1984); BAKHTIN (2003)
e MAINGUENEAU (2001).
7
Sobre o conceito de culturas do escrito, ver GALVÃO; BATISTA (2006), GALVÃO (2010a),
GALVÃO (2010b) e MELO (2008).
moradores e de Piscitelli (2003), que trabalha construções de gênero a partir de
tradições orais e histórias de vida.
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De acordo com Libâneo (2000) os processos de educação podem ser pensados a partir de duas
modalidades: a educação não-intencional, chamada de informal ou paralela, e a educação intencional, que
compreende a educação formal e não-formal. O autor utiliza o termo “educação informal” para indicar
uma modalidade de educação que resulta do “clima” onde os indivíduos vivem, o que inclui aspectos
gerais de sua vida grupal e individual, ou seja, relações educativas adquiridas independentemente da
consciência de suas finalidades, pois não existem metas ou objetivos preestabelecidos conscientemente.
O mesmo já afirmava Vygotsky ao apresentar como um de seus pressupostos
básicos a ideia de que é na relação social com o outro, que o ser humano constitui-se
como tal. Os seres humanos possuem um inegável substrato biológico, mas é sua
constituição sócio-cultural a principal responsável por sua diferenciação em relação às
demais espécies animais. Sob essa ótica, afirma Tomasello:
Além disso, toda a atividade humana envolve o uso da linguagem. Esta, por
sua vez, é um produto cultural, um sistema simbólico que funciona como mediador de
nossas representações da realidade. Por meio dela o pensamento humano é
exteriorizado, e sua percepção e ação podem ser organizadas em conceitos e categorias.
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Uso o termo “natureza” foi propositalmente empregado em evocação à dicotomia “natural/biológico”
versus “social/cultural”, buscando destacar o sentido completar dessas esferas, essenciais na constituição
humana como espécie dotada de substrato material, pensamento e cognição.
processos por meio dos quais uma tradição cultural acumula modificações ao longo do
tempo” (p. 50 e 51).
Aqui é concebida uma visão integrativa das narrativas orais na medida em que
o narrador, nas histórias que conta, recorre a um acervo de experiências de vida, tanto as
suas quanto as relatadas por outros. Ao narrar, ele as transforma em produto cultural,
tornando-as experiências também daqueles que estão ouvindo. Assim ocorre a
transmissão de conceitos, representações e conhecimentos. Do mesmo modo, memórias
coletivas são tecidas, o que afirma o papel constitutivo do discurso – e, por decorrência,
da linguagem – em uma concepção sociocultural de formação de conceitos e de
produção de conhecimentos.
Escrita e oralidade, expressas pela linguagem, perpassam os âmbitos
individuais e coletivos na constituição da memória através das narrativas, alcançando a
transmissão e manutenção de conhecimentos. Esta constatação aponta para o fato de que
as narrativas – orais ou escritas –, por serem compartilhadas, contribuem para se pensar
a linguagem como sistema simbólico diretamente implicado no desenvolvimento
cognitivo humano, e logo, na formação de conceitos.
Referências bibliográficas
MARCUSCHI, Luis Antônio. Da fala para a escrita. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2005.