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FOCCA – FACULDADE DE OLINDA

CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS PORTUGUÊS/INGLÊS

JHOY PEREIRA DE SOUZA

HARMONIA DOS CONTRÁRIOS:


O Grotesco e o Sublime no Fausto de Goethe

OLINDA/PE
2021
JHOY PEREIRA DE SOUZA

HARMONIA DOS CONTRÁRIOS:


O Grotesco e o Sublime no Fausto de Goethe

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC),


na modalidade monografia, apresentado
ao Curso de Letras Português/Inglês da
FOCCA – Faculdade de Olinda, como
requisito para obtenção do grau de
Licenciado em Letras, sob orientação do
Prof. Dr. Luiz Felipe de Queiroga Aguiar
Leite.

OLINDA/PE
2021
JHOY PEREIRA DE SOUZA

HARMONIA DOS CONTRÁRIOS:


O Grotesco e o Sublime no Fausto de Goethe

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC),


na modalidade monografia, apresentado
ao Curso de Letras Português/Inglês da
FOCCA – Faculdade de Olinda, como
requisito para obtenção do grau de
Licenciado em Letras Português/Inglês.

Data de aprovação: ____ de junho de 2021.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Felipe de Queiroga Aguiar Leite
Orientador

_____________________________________________________
Prof. Me. Neilton Limeira Florentino de Lima
Arguidor l

_____________________________________________________
Prof. Esp. Ronaldo Cordeiro dos Santos
Arguidor ll
À minha família!
AGRADECIMENTOS

Apesar do objetivo mostrar-se sempre mais imponente que o percurso trilhado,


ele não garante o êxito. É necessário um esforço contínuo para a cada passo estar
mais distante de onde partiu e mais próximo de onde quer chegar.
O caminho é árduo, e no meio dele sempre há motivos apetitivos para não mais
prosseguir, ou seja, dar meia-volta e abandonar a possibilidade de alcançar o
propósito.
No entanto, assim como chances de desistir surgem, as chances de continuar
também. E a essas chances de continuar eu agradeço!
Agradeço aos meus pais que sempre se preocuparam comigo durante todo o
início dessa jornada.
Agradeço aos professores responsáveis por oferecer-me as ferramentas
necessárias para desenvolver o melhor de mim. Sobretudo, agradeço ao meu
orientador, professor Felipe Aguiar, por todo o empenho, responsabilidade e
profissionalismo para com minha pessoa.
Agradeço aos meus verdadeiros amigos que partilharam dos seus
conhecimentos, presença e amizade.
Agradeço, finalmente, a Deus! Pois, é devido a Sua Misericórdia que prossigo
o percurso em busca do aprimoramento da minha vocação.
Não és bom, nem és mau: és triste e humano...

Olavo Bilac
RESUMO

Escrito entre os anos de 1770 e 1832, Fausto é composto de referências históricas que
dificultam a sua classificação. Há características do Iluminismo, do movimento pré-romântico
Sturm und Drang, do Classicismo de Weimar e, principalmente, do Romantismo, que podem
ser notadas na obra. Este trabalho de cunho bibliográfico tem por finalidade relacionar e
identificar as manifestações estéticas do Grotesco e do Sublime na primeira parte do drama
fáustico goetheano; além disso, analisar propriamente a obra; averiguar como cada autor
específico define tais estéticas e seus efeitos; contextualizar o período romântico, sua
importância e influência em Goethe para a concepção do Fausto; e, por fim, demonstrar como,
tanto o Grotesco quanto o Sublime são partes constituintes do espírito inquieto do ser que
anseia elevar-se além da sua própria condição humana.

Palavras-chave: Fausto; Romantismo; Grotesco; Sublime.


ABSTRACT

Written between 1770 and 1832, Faust is made up of historical references that make it difficult
to classify. There are characteristics of the Enlightenment, the pre-romantic Sturm und Drang
movement, the Classicism of Weimar and, especially, of Romanticism, which can be noticed
in the work. This bibliographical work is intended to relate and identify the aesthetic
manifestations of the Grotesque and the Sublime in the first part of the Goethean Faustian
drama; in addition, properly analyze the work; find out how each specific author defines such
aesthetics and their effects; contextualize the romantic period, its importance and influence on
Goethe for the conception of Faust; and, finally, to demonstrate how both the Grotesque and
the Sublime are constituent parts of the restless spirit of the being that yearns to rise beyond
its own human condition.

Keywords: Faust; Romanticism; Grotesque; Sublime.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10

1 O ROMANTISMO E O ROMÂNTICO ................................................................. 13

1.1 STURM UND DRANG ..................................................................................... 13

1.2 TRANSFORMAR A VIDA EM UMA OBRA DE ARTE ..................................... 14

2 DO SUBLIME E DO GROTESCO ...................................................................... 19

2.1 EDMUND BURKE ........................................................................................... 19

2.2 FRIEDRICH SCHILLER................................................................................... 23

2.3 WOLFGANG KAYSER .................................................................................... 25

2.4 VICTOR HUGO ............................................................................................... 28

3 DA NOITE AO CÁRCERE .................................................................................. 35

3.1 A ANGÚSTIA SOBRE O SABER DA CONDIÇÃO HUMANA .......................... 35

3.2 O PACTO E A MISSÃO DE MEFISTÓFELES ................................................. 41

3.3 MARGARIDA SURGE, FAUSTO FOGE.......................................................... 45

3.4 A TRAGÉDIA DE MARGARIDA: A SALVAÇÃO DE FAUSTO ........................ 65

4 A HARMONIA DOS CONTRÁRIOS ................................................................... 72

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 84

REFERÊNCIAS......................................................................................................... 89
10

INTRODUÇÃO

Desde há muito tempo o ser humano tenta encontrar formas de esquivar-se do


sufocamento, da agonia e, principalmente, do tédio de viver na realidade. Satisfazer
seus desejos, mas não sabendo como, torna-se um conflito interno sem resolução
aparente na própria realidade. Esta inquietação é, na verdade, “a mais insuportável
ao homem do que um repouso total, sem paixões, sem negócios, sem distrações, sem
atividade”, pois ele “sente então seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua
impotência, seu vazio” (PASCAL, 1973, p. 74).
Pertencer a instâncias ambivalentes, porém complementares, constitui a
essência do ser humano, assim como andar pelo vale da sombra da morte e não
temer mal algum; pulsar a vida e a morte; estar cheio de se sentir vazio; são
sensações e inclinações como estas que a priori não fazem sentido por serem
contraditórias, entretanto, revelam mais do homem nele mesmo tanto quanto a alegria,
a tristeza, a dúvida, a esperança, etc.
A obra optada neste trabalho para demonstrar essa dubiedade humana é
Faust, eine Tragödie [Fausto, uma tragédia], de Johann Wolfgang von Goethe1, na
qual narra o conflito de um sábio, astrólogo e alquimista chamado de Dr. Johann
Fausto que aflige-se entre a vontade de se elevar espiritualmente e a atração pelos
prazeres e bens terreno, levando-o dessa maneira a fazer um pacto com o diabo2, ou
seja, ele vende sua alma em troca de conhecer o desconhecido – indo além das
condições da racionalidade humana –, como também se satisfazer carnalmente.
O poema dramático, longo, rimado e complexo de cunho filosófico é o principal
trabalho de Goethe, e, na intenção do próprio, um “drama da humanidade” 3; um

1 Considerado por muitos como um dos principais escritores alemães e um dos mais importantes nomes
da literatura universal e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX.
Goethe nasceu Frankfurt no dia 28 de agosto de 1749 e faleceu em Weimar em 22 de março de 1832.
De sua vasta produção fazem parte: romances, peças de teatro, poemas, escritos autobiográficos,
reflexões teóricas nas áreas de arte, literatura e ciências naturais.
2 Não são muitas as fontes que se referem a Johann Georg Faust e as de que se têm conhecimento

apresentam muitas informações incompletas ou conflitantes, além de poderem ser apócrifas.


Knittlingen Helmstadt e Roda (atualmente Stadtroda) são indicados como os possíveis locais de
nascimento de Doutor Fausto. Também não há consenso quanto ao ano de nascimento de Johann
Faust. Há fontes que indicam que este teria ocorrido em 1466, em 1478 e, finalmente, entre 1480 e
1481, informação contida na maioria dos textos sobre a personagem histórica.
3 Pois um dos princípios classicistas que norteiam o trabalho de Goethe a partir de então é justamente

o de elevar a sua personagem à condição de representante do gênero humano, conferindo-lhe a


condição universal (MAZZARI, 2007 apud GOETHE, 2007, p. 16).
11

símbolo da humanidade que falha quando age, mas que deve agir para conquistar a
salvação.
A tragédia do homem moderno que busca sua redenção perante o divino
voltando-se para a contemplação, mas que precisa aceitar a sua própria natureza, o
seu próprio eu para conseguir, corrobora a pulsão do período romântico na Alemanha
por trazer à tona a reflexão e interpretação de dois elementos estéticos tidos como
opostos, mas complementares: o Sublime e o Grotesco.
Embora os conceitos da estética do Sublime e do Grotesco já fossem
conhecidos na Antiguidade, foi no Romantismo em que encontrou solo fértil para o
seu desenvolvimento e profundidade por meio dos artistas alemães.
Sobre o Sublime, no século I, Longino4 o aborda referindo-se a uma “linguagem
sublime”, espécie de características do discurso da linguagem que não pode ser
contaminado por “vícios que impurificam o sublime”, como “as transposições, as
hipérboles e os plurais em lugar do singular” (LONGINO, 2014, p. 76). Já o Grotesco
deriva de estilos de ornamentação encontradas “em fins do século XV, no decurso de
escavações feitas primeira em Roma”, até então “desconhecida pintura ornamental
antiga” (KAYSER, 2003, p. 18); mais tarde volta-se para a prática literária, por meio
dos românticos como “[...] a tentativa de dominar e conjurar o elemento demoníaco do
mundo” (KAYSER, 2003, p. 161).
No Romantismo, todavia, estas duas formas de relacionar-se com a arte se dão
de maneira particular. O Sublime, a partir do Romantismo, é considerado nas forças
poderosas da natureza como uma combinação do assombro, do horror e do deleite;
além disso, o impacto das forças naturais provoca uma abertura para a elevação
sensível e racional ante o grandioso. Por sua vez, o Grotesco preenche cada canto
da fantasia do artista, desvela a própria natureza sombria do homem e a coloca nas
infinitas representações do sombrio, monstruoso e demoníaco.
Tendo em vista o conceito trabalhado e usado no Romantismo, o presente
trabalho trata de averiguar na primeira parte da obra Faust, eine Tragödie, a maneira
como Goethe concebe essas duas formas de estética e onde estas se manifestam na

4O primeiro registro que se conhece sobre este termo é um tratado, intitulado Do sublime, atribuído
erroneamente a Longino. Não se sabe quem é realmente o autor deste tratado. Foi falsamente atribuído
a Longino (213–273 d.C.), filósofo grego, discípulo de Amónio Sacas, que estudou na escola
Neoplatónica de Alexandria, mas até o nome deste autor é de difícil identificação porque poderia tratar-
se de Cassius Longinus, Dionysius Longinus ou até mesmo Dionysius de Halicarnassus. Sabe-se agora
que o tratado remonta ao século I d.C. O erro na atribuição do tratado a Longino fez com que se optasse
por identificar o autor como Longino ou Anônimo.
12

própria obra, em sua trama, como encontro dos contrários, ou como chamamos: uma
harmonização dos contrários, quase sempre cheia de tensões.
Para isto, como base para conceituar a estética do Sublime, será utilizado o
pensamento de Edmund Burke e Johann Christoph Friedrich von Schiller. Aquele por
entender que, para se chegar a uma reflexão mais exata do Sublime, é necessário
averiguar as paixões e emoções no homem que são os motores para o surgimento
deste sentimento. Este por concordar com Burke e estabelecer uma forma de utilidade
moral do Sublime, levando em conta a liberdade da razão do homem ao se relacionar
com as forças da natureza.
Para o conceito da estética do Grotesco, será utilizado o estudo analítico de
Wolfgang Kayser e do pensamento do poeta Victor-Marie Hugo. Ambos, tanto Kayser
quanto Hugo, apontam que o Grotesco se relaciona com a parte sombria do homem,
com os seus vícios e suas paixões por possuir como essência estética a deformidade
revelada, geralmente, por meio da escritura do corpo e imagens maléficas.
O trabalho de cunho bibliográfico está organizado em quatro capítulos. No
primeiro capítulo intitulado O Romantismo e o Romântico, contextualizar-se-á o
período histórico, como as influências e ideias do pré-Romantismo e dos primeiros
românticos ajudaram a amadurecer os conceitos teóricos daquilo que mais tarde seria
considerado por Sublime e Grotesco. No segundo capítulo, Do Sublime e do Grotesco,
já contextualizadas historicamente, as duas estéticas serão concretizadas
teoricamente a fim de, doravante, servir como referência para a identificação dos
momentos sublimes e grotescos dentro da obra posteriormente. Prosseguirá no
terceiro capítulo, Da Noite ao Cárcere, uma análise literária mais aprofundada no
enredo do poema. E, no quarto capítulo, A Harmonia dos Contrários, serão postas as
duas estéticas integradas e identificadas no Fausto, com objetivo de responder como,
especificamente, no decorrer da trama surge e manifesta-se a sensação tanto do
Sublime quanto do Grotesco?
É essa, portanto, a investigação pensada para este trabalho, entretanto,
diferentemente de Fausto não tentei a magia para “[...] ver se o espiritual império pode
entreabrir-me algum mistério”, pois neste propósito “[...] o estudo fiz, com máxima
insistência [...] para que apreenda o que a este mundo liga em seu âmago profundo”
(GOETHE, 2016, p. 63).
13

1 O ROMANTISMO E O ROMÂNTICO

1.1 STURM UND DRANG

O Movimento alemão Sturm und Drang5 [Tempestade e Ímpeto], conhecido


também como o período do gênio, situado entre 1760 a 1780, marca o mal-estar da
geração pré-romântica de jovens autores alemães contra o Iluminismo, que no final
do século XVIII atinge seu apogeu com a publicação daquilo na qual seria a principal
obra do filósofo Immanuel Kant, Kritik der reinen Vernunft [Crítica da Razão Pura].
Segundo Kant (2001), se todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso
não prova que todo ele derive da experiência, portanto, para o conhecer legítimo é
necessário a separação racional entre o Conhecimento Puro e o Empírico.

Pois bem poderia o nosso próprio conhecimento por experiência ser um


composto do que recebemos através das impressões sensíveis e daquilo que
a nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em ação por
impressões sensíveis) produz por si mesma, acréscimo esse que não
distinguimos dessa matéria-prima, enquanto a nossa atenção não despertar
por um longo exercício que nos torne aptos a separá-los (KANT, 2001, p. 41).

Portanto, para Kant e adeptos do Iluminismo alemão, as pessoas deveriam se


libertar da selbstverschuldeten Unmündigkeit [imaturidade auto infligida] e não ter
medo de usar a própria razão. Dessa forma, com base em uma visão epistemológica,
as decisões corretas devem ser feitas com compreensão e razão, e não com base em
inclinações pessoais.
Influenciado pelo pensamento kantiano – que causou um impacto significativo
entre os pensadores e escritores por seu racionalismo –, a Literatura se cientificou:
formas rígidas, linguagem rebuscada e objetiva. A Linguagem popular e cotidiana,
incluindo as pessoas comuns, foram excluídas. Na Poesia, observava-se uma métrica
regular, na Epopeia e no Drama havia uma unidade de lugar, tempo e enredo, a
linguagem era elevada. Tudo feito racionalmente devido à interpretação iluminista que
colocava o leitor como responsável de trazer o conhecimento para a obra.
Conscientes da regulamentação da Arte, os Sturmer assumiram a tarefa de
criar um contra movimento, substituindo o ratio (latim para cálculo, razão) por emotio

5
É o título de uma peça dramática do pré-romântico Friedrich Maximilian von Klinger (1752 – 1831)
(CARPEAUX, 2013, p. 54).
14

(latim para movimento de sentimento, emoção). Ou seja, a arte deveria ser arte
novamente, dar liberdade ao artista e deixar espaço para o desenvolvimento do seu
Eu criativo.
A revolta dos jovens autores alemães é “[...] a revolta do sentimento contra a
razão e do sentimentalismo contra o racionalismo” (CARPEAUX, 2013, p. 54).
Entretanto, as agitações ocorridas neste período não eram somente contra o
Iluminismo – este apenas criou as condições –, mas, sobretudo, contra as imposições
racionais e sociais provocadas pelo absolutismo do Ancien Régime na Alemanha:

[...] contra a estreitezas da vida dos intelectuais [...] contra a arbitrariedade e


o bárbaro das cortes, que gastaram milhões para teatros de ópera, palácios
no estilo de Versalhes e para as concubinas dispendiosas dos príncipes,
extorquindo o dinheiro dos súditos e chegando a vender soldados à Inglaterra
para a guerra na América; contra as draconianas leis penais (o processo e a
execução da moça seduzida que matou o filho recém-nascido é tema
preferido dos dramaturgos da época); contra o moralismo rígido das
convenções pequeno-burguesas; contra a intolerância dos ortodoxos
pastores luteranos; contra a crueldade da disciplina militar; contra as barreiras
invencíveis entre a aristocracia e as outras classes da sociedade
(CARPEAUX, 2013, p. 54-55).

Logo, visto que antes a casa do vigário protestante nas aldeias e pequenas
cidades fora o centro de tranquilas e inofensivas atividades literárias, e, sendo os
vigários que criaram na Alemanha o racionalismo, a poesia anacreôntica, a literatura
do Rococó, agora, são os filhos desses vigários revoltados contra a obrigatoriedade
da carreira “estudante-preceptor de aristocrata-vigário”, que criam o pré-romantismo
do Sturm und Drang (CARPEAUX, 2013).

[...] o racionalismo foi tão longe que, como sempre acontece em tais casos, o
sentimento humano que foi bloqueado por tal racionalismo procurou alguma
saída em outras direções. Quando os deuses do Olimpo se tornam muito
dóceis, muito racionais e muitos normais, as pessoas naturalmente começam
a se inclinar para as divindades mais sombrias, mais subterrâneas. Foi isso
o que aconteceu no século III a.C., na Grécia, e começou a acontecer no
século XVIII (BERLIN, 2015, p. 81).

1.2 TRANSFORMAR A VIDA EM UMA OBRA DE ARTE

O comportamento da sociedade na época do Sturm und Drang mudou


significativamente. A forma racional e empírica de pensar a razão não deveria mais
dominar, mas as emoções, a sensualidade, a espontaneidade de cada indivíduo, isto
é, o uso de todo o ser humano com todos os seus sentimentos, paixões e impulsos
15

estavam em demanda. Mostrar os próprios sentimentos abertamente não era mais


impróprio. Através desta nova concepção, o indivíduo passou para o centro, foi
considerado uma obra de arte da natureza, pois, como explica Victor Hugo (2014, p.
40), a época moderna exigia uma outra forma de arte que permitisse ao artista ser
livre em suas manifestações, abandonando as antigas formas normativas clássicas
de épocas passadas, ou seja, conciliar as experiências emocionais com a arte criativa
para tornar a realidade produto artístico. Daí surge o termo Originalgenies [gênios
originais]. conciliando as experiências emocionais com a arte criativa para tornar a
realidade produto artístico. Daí surgiram os Originalgenies [gênios originais].
O Originalgenie [gênio original] foi considerado o arquétipo do ser humano
criativo. Segue seu coração e seus sentimentos com o objetivo de
autodesenvolvimento livre. Sua arte expressa diretamente suas vivências e
sentimentos. Um gênio não se submete às autoridades ou às regras existentes. Por
isso, William Shakespeare foi o modelo reverenciado daquela época. Os heróis de
suas grandes tragédias foram admirados pelos Sturmer. O gênio tem a perfeição da
natureza e, portanto, do divino. E visto que o divino se revela na natureza, torna-se
visível através do homem. A glória de Deus se reflete em um gênio ou em sua obra
artística.
Depois de pôr o barco no mar, os autoconfiantes jovens ainda pré-românticos
“[...] queriam marcar um novo começo”, mas dando continuidade também aquilo que
a geração do Sturm und Drang havia iniciado com as revoltas e o com o originalgenie.
Então, efetivamente, precisavam navegar, e fora o que fez Johann Gottfried Herder
em 1769,

[...] empreende uma viagem por mar à França, de modo súbito e como em
fuga, cansado das condições de vida limitadas em Riga, onde o jovem pastor
tinha de brigar contra os ortodoxos e estava envolvido em aborrecidas
contendas literárias. A caminho da França, tem ideias que inspirariam não
apenas ele mesmo (SAFRANSKI, 2010, p. 15-16).

A viagem resultou em experiências significativas para Herder, significou “[...]


trocar de elemento vital: o firme contra o fluido, o certo pelo duvidoso; significou ganhar
distância e amplidão” (SAFRANSKI, 2010, p. 15). Enquanto esteve no mar, Herder,
dentro de sua cabine, sozinho, não vislumbrou a imensidão aquática e anexos, por
outro lado, navegou em projetos literários em que teve oportunidade de “[...] ‘destruir’
16

seus conhecimentos literários, para descobrir e “criar aquilo no que penso e acredito”
(SAFRANSKI, 2010, p. 22), postura incorporada pelo movimento do Sturm und Drang
e característica do irrompimento alemão:

[..] nos meios limitados a bordo e na solidão do alto mar, o pregador, tomado
pela vontade de ir mais longe, cria um novo mundo; ele não encontra índios,
não derruba nenhum reino asteca ou inca, não acumula nenhum tesouro em
ouro nem escravos, não leva a cabo nenhum novo cálculo sobre a extensão
do mundo; seu novo mundo é um mundo que num piscar de olhos assumirá
novamente a forma de livros (SAFRANSKI, 2010, p. 22).

As ideias tidas no mar fizeram parte de toda a sua vida. O Journal meiner Reise
in Jahr 1769 [Diário de minha viagem no ano de 1769] apresenta a postura do espírito
primordial do romântico nos projetos literários pensado pelo escritor e filosofo alemão.

Que obra sobre a raça humana! sobre o espírito humano! a cultura da terra!
todos os espaços! Tempos! Povos! Forças! Misturas! Figuras! Religião
asiática! E cronologia e polícia e filosofia... Tudo do grego! Tudo do romano!
Religião nórdica, direito, costumes, guerra, honra! O tempo dos papas,
monges, conhecimento!... Política japonesa, chinesa! Estudo natural de um
novo mundo! Hábitos americanos, etc. [...] História universal da constituição
mundial! (HERDER, 1984 apud SAFRANSKI, 2010, p. 22).

Após feita a viagem, em 1771, Herder se hospedou em um hotel de Estrasburgo


para tratar de dores em suas glândulas lacrimais, e foi lá onde aconteceu o encontro
mais influente da vida do jovem Goethe. O promissor mancebo ficara bastante tentado
pelo redemoinho de pensamentos do seu considerado, então, mentor. Com efeito,
“[...] ele via em Herder um aventureiro do espírito, que voltara do alto-mar e trouxera
o fresco vento das viagens que estimula a fantasia” (SAFRANSKI, 2010, p. 23).
Goethe interpretará e assumirá as principais ideias advindas de seu mentor – a
filosofia anti-racionalista; a linguagem de Movimento; o criativo eufórico ao qual nos
abrimos euforicamente, mas também o sinistro, que nos ameaça; a natureza como a
verdadeira realização do homem – em suas obras, em especial, no Fausto.
Em 1789 explode a Revolução Francesa, originada, a princípio, em uma grave
crise financeira e social do Ancien Régime, no que resultou em um clima social tenso
e uma crescente desconfiança do povo em relação à Monarquia absoluta, dos
privilégios da nobreza e do clero. A revolução provoca intensas transformações
políticas e sociais e abala a França com a queda da Monarquia e o advento da
República. Herder toma partido pela Revolução Francesa e transforma o seu “[...]
17

princípio criador que ele via em ação nas culturas populares” em “[...] democracia tão
simpática” (SAFRANSKI, 2010, p. 30). Era o momento de os românticos entrarem em
cena.

A Revolução Francesa teve uma irradiação tão potente porque se esperou


dela não apenas a extinção de um sistema de governo injusto como do
governo em geral. A mudança das instituições políticas, assim se esperava,
traria à luz finalmente o homem livre (SAFRANSKI, 2010, p. 35).

Entusiasmados pela Revolução na França, os três principais artistas e teóricos


românticos (do primeiro Romantismo), Friedrich Schlegel, August Schlegel e Novalis,
traduzem as novas ideais emergidas da atmosfera revolucionária em um novo aspecto
livre – sem obrigação de estilo, forma e conteúdo dos antigos clássicos –, com base
nas aspirações mais profundas do indivíduo. Para concretizar este aspecto livre, os
primeiros românticos encontram nas ideias desenvolvidas pelo filósofo pós-kantiano
e o primeiro dos grandes idealistas alemães, Johann Gottlieb Fichte, em seu livro
publicado em 1794, Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre [Fundamentos da
Doutrina da Ciência Completa], o que precisam para a nova concepção do mundo, do
ser e da obra de arte (sendo esta última, na verdade, a preterida por eles), pois,

Fichte, partindo do pensamento kantiano, será o filósofo que se dedicará à


mais adversa das missões: resolver essa oposição radical entre a natureza e
a espiritualidade, entre o mundo sensível e o mundo das ideias, se quisermos
pensar nos termos platônicos que influenciaram o pensamento de Kant.
Fichte é o filósofo que buscará superar as dicotomias kantianas e criar um
princípio que unifique todos esses dualismos (SCHEEL, 2010, p. 18).

Adotada a filosofia do Eu elaborada por Fichte, os irmãos Schlegel e Novalis


desenvolveram as suas visões estéticas deslocando o centro de interesse da arte dos
limites da natureza para as fronteiras da individualidade. Ao fazer isso, os românticos
mudam a perspectiva de uma natureza objetiva, imutável, que se reflete na própria
criação estética, para uma abertura ao infinito, ao ilimitado, ao Absoluto (SCHEEL,
2010). Dessa forma, esforçam-se para transformar a vida em uma obra de arte por:

[...] partir de pressupostos filosóficos que afirmam a individualidade, o pensar


a si mesmo fichteano que conduz à compreensão da obra de arte com uma
realidade que não pode ser tomada pela segundo modelos ou padrões
determinados a priori, porque a própria obra é uma realidade individual, única,
unitária, que se desliga da totalidade do mundo e que procura, a partir de sua
própria singularidade, alcançar uma totalidade em devir, que ainda não existe,
18

que só pode se configurar, historicamente, em progresso, em uma evolução


incessante (SCHEEL, 2010, p. 21).
19

2 DO SUBLIME E DO GROTESCO

2.1 EDMUND BURKE

A estética do Sublime é tema antigo dentro da História do pensamento, ela era


interpretada mais como um conceito literário, objeto de retórica, uma espécie de
kathársis que a obra literária causaria ao leitor, em outras palavras, referia-se ao mais
alto estilo de escrita, assim também ao efeito que esse estilo elevado tinha sobre o
destinatário. Não tinha o propósito de purificar, mas de transcender através da
Literatura o espírito do leitor virtuoso, aquele cujos vícios – grandeza, arrogância,
imaturidade, etc. – suprime para experenciar o Sublime.
Entretanto, a obra literária também não pode cair em vícios, ela deve ser capaz
de captar com precisão os elementos naturais para provocar a admiração por parte
daqueles que leem.

É preciso saber [...] no curso ordinário da vida, nada é grande quando haja
grandeza em desprezá-lo; por exemplo, riqueza, honrarias, fama, realeza,
tudo mais que apresenta uma exterioridade teatral, ao sensato não pareciam
bens superiores, porquanto o mesmo desprezá-los é um bem não medíocre
(pelo menos, mais admiração do que os possuidores deles desperta quem,
podendo possuí-los, por grandeza de alma os menoscaba); mais ou menos
assim se deve examinar se os passos elevados em verso e prosa não têm
uma aparência de grandeza semelhante, a que se tenha juntado grande soma
de elementos forjados ao acaso, removidos os quais, aliás, eles revelam
ocos, havendo mais nobreza em os desprezar do que em admirá-los.
(LONGINO, 2014, p. 76).

Logo, segundo Longino (2014), é preciso educar a alma a fim de torná-la capaz
de reconhecer a emoção genuína, pois o Sublime é o eco da grandeza da alma.

Por isso, mesmo sem uma palavra, suscita admiração de per si um mero
pensamento, graças à sua grandeza mesma [...] com efeito, pessoas de
pensamentos e ocupações mesquinhas e servis a vida toda é impossível que
produzam algo admirável, merecedor de imortalidade; grandeza,
naturalmente, existe nas palavras daqueles cujos pensamentos são graves.
Assim é que as frases sublimes ocorrem às pessoas de sentimentos elevados
[...] (LONGINO, 2014, p. 78).

Leitor ávido dos autores da poética clássica, provavelmente também de


Longino, o filósofo, teórico político e orador irlandês, Edmund Burke, irá além em
relação ao Sublime, passando da Retórica para a Estética. A princípio, não definirá o
Sublime, mas fará uma investigação antes acerca do homem para compreender quais
20

são os princípios potencializadores – nossas sensações, o páthos – capazes de


estimular o Sublime. Isto é, ele não parte de escritos literários com base nos quais o
efeito estilístico do Sublime é examinado, mas constrói sua teoria apenas sobre um
efeito Estético. Quer dizer, Burke não analisa somente a descrição de condições dos
elementos exteriores que despertam esse sentimento, mas estabelece uma
investigação objetiva e atenta às paixões humanas, aos elementos interiores.
O filósofo irlandês traça o caminho de sua investigação, pontuando “[...] a
primeira e mais simples emoção que descobrimos na mente humana” (BURKE, 2016,
p. 45), a curiosidade, que é uma inclinação qualquer por algo novo, pela novidade.

As crianças correm incessantemente de um canto para o outro em busca de


algo novo; tudo que veem em frente delas, elas pegam com grande
entusiasmo e com muita pouca escolha; a atenção delas envolve-se em todas
as coisas, porque tudo, naquele estágio da vida, é recomentado pelo encanto
da novidade. Mas, tendo em vista que essas coisas que nos envolvem
apenas por sua novidade não têm o poder de nos capturar por muito tempo,
a curiosidade é a mais superficial de todas as afeições [...] (BURKE, 2016, p.
45).

Se faz necessária a explicação para que não confundamos as nossas paixões


pelos objetos que se apresentam inéditos aos nossos olhos, visto que a [...]
curiosidade, por sua natureza, é um princípio bastante ativo” (BURKE, 2016, p. 45).
Por ser ativo, ela diminui a percepção da natureza por esta apresentar objetos comuns
nas ocorrências da vida: pessoas, automóveis, pássaros, céu, etc.; tudo se torna
familiar e vulgar, resultando numa incapacidade da mente de se afetar. Portanto, para
que os objetos possam excitar as paixões das pessoas é necessário que eles sejam,
em certo grau, novos e, além disso, capazes de causarem dor ou prazer a partir de
outras causas (BURKE, 2016).
A dor e o prazer são elementos constituintes das paixões humanas. Dentre as
duas sensações, a dor vincula-se mais com o sentimento do Sublime, pois quando a
dor esvai-se provoca uma pulsão mais forte no espírito do homem que o prazer.
Porém, a dor e o prazer não são interdependentes, isto é, não são simples relações,
que só podem existir ao serem contrastadas.
Por exemplo, hipoteticamente, você está no sofá, sossegado em frente à
televisão, então, decide capturar o controle remoto para iniciar uma sequência
ininterrupta de passagens de canais e, repentinamente, se visse entretido em um
concerto filarmônico; ou, sem nenhuma vontade de comer, experimentasse um
21

pedaço de bolo; ou sentisse o aroma sutil de um perfume carregado pelo vento; é


notório afirmar que em todos os sentidos – audição, paladar, olfato e visão – você
encontraria algum prazer. Todavia, caso você analise o estado da sua mente antes
de tais recompensas, você dificilmente perceberá que sentia qualquer tipo de dor.
Da mesma forma hipotética, você está sentado na frente da sua casa,
tranquilamente, e é acertado com um tapa violento nas costas; ou tivesse de tomar
um remédio amargoso; ou fosse atingido por um som agudo e irritante; você notaria,
também, que não houve remoção alguma de prazer; e, em todos os sentidos afetados,
sente uma dor bastante distinguível.
Então, para sentir o prazer não é necessário a cessação ou diminuição de dor.
Tal qual, para sentir a dor não é necessária a cessação ou diminuição do prazer. E
Burke explica o porquê disto:

A mente humana está, muitas vezes – e acredito, na maior parte do tempo –


em um estado que eu chamo de indiferença, sem dor nem prazer. Quando
sou levado desse estado a um estado de prazer real, não parece necessário
que eu passe por um estado intermediário de dor [...] O mesmo pode ser dito
sobre a dor com igual razão [...] não há nada que eu possa distinguir em
minha mente com mais clareza do que esses três estados: indiferença, prazer
e dor (BURKE, 2016, p. 46-47).

Além dos estados – indiferença, dor e prazer – que são apresentados pelos
sentidos, a mente humana ainda possui uma espécie de faculdade criativa própria: a
saber, por um lado, põe em ordem as aparências dos objetos como são recebidas
pelos sentidos para reproduzi-las à vontade e, por outro lado, combina essas
aparências com ideias sabidas em uma ordem diferente. Essa faculdade é chamada
de imaginação e comporta tudo o que é astúcia, fantasia e invenção. Não obstante,
deve-se salientar que a imaginação não é capaz de produzir algo completamente
novo; ela só pode mudar a ordem das ideias que recebeu dos sentidos.
Após estabelecidas as suas observações, Burke, portanto, procede com a
análise do objeto e caracteriza o Sublime por seus traços sensualísticos. Segundo o
filósofo, o Sublime encontra-se no exagerado, na escuridão, no vazio, na
uniformidade, no infinito. Isso inclui a grandeza, o robusto, o poderoso, o terrível. A
saber,

O que quer que de alguma forma seja capaz de excitar as ideias de dor e de
perigo, ou seja, tudo o que for terrível de alguma forma, ou que compreenda
objetos terríveis, ou opere de forma análoga ao horror é fonte do sublime; ou
22

seja, é capaz de produzir a emoção mais forte que a mente é capaz de sentir
[...] porque acredito que as ideias de dor são muito mais poderosas do que
as que são introduzidas pelo prazer. Sem qualquer dúvida, os tormentos que
podemos sofrer são muito maiores em seus efeitos sobre o corpo e a mente
do que quaisquer prazeres que o mais sensualista possa sugerir, ou do que
a imaginação mais viva e o corpo mais requintadamente sensível possam
desfrutar (BURKE, 2016, p. 52)

Ademais, o Sublime baseia-se no instinto de autopreservação, as paixões


associadas a esses instintos relacionam-se, sobretudo, para a dor ou o perigo. O que
ameaça as pessoas de morte e questiona sua autopreservação as faz abalar.
Exemplo, as ideias de dor, doença e morte ocupam a mente com emoções fortes de
terror. Já as de vida e saúde, mesmo que provoquem uma sensação de prazer, não
causam qualquer impressão pelo seu simples gozo. Por isso, as paixões relacionadas
à preservação do indivíduo compreendem principalmente a dor e o perigo, sendo as
paixões mais poderosas de todas (BURKE, 2016).
Isto quer dizer que, qualquer coisa que seja relacionada a objetos terríveis ou
atos semelhantes ao horror, é uma fonte do Sublime, pois o estado dos objetos
sublimes – escuridão, vazio, infinito, já mencionados – evoca um estremecimento, que
é acompanhado por aquilo do qual Burke denomina de horror deleitoso. Essa
atenuação surge pela mistura com o prazer, o que apenas é possível quando o horror
não nos afeta diretamente, por exemplo, quando coisas terríveis são meramente
imitadas.

Nas angústias imitadas, a única diferença é o prazer resultante dos efeitos da


imitação; elas nunca são tão perfeitas, mas podemos perceber que é uma
imitação e sabendo disso, ficamos um pouco mais satisfeitos. E, de fato, em
alguns casos retiramos tanto, ou mais, prazer dessa fonte que da coisa em
si. Mas, então, imagino que estaríamos muito enganados se atribuíssemos
qualquer parte considerável de nossa satisfação com a tragédia a uma
consideração de que a tragédia é um engano e de que suas representações
não são realidades. Quanto mais próxima ela está da realidade e quanto mais
ela nos afasta da ideia de ficção, mais perfeito é o seu poder (BURKE, 2016,
p. 58).

Em suma, investigado os princípios dos elementos exteriores e interiores


capazes de incitar o Sublime, Edmund Burke define o Assombro como o efeito estético
mais relevante do Sublime – como origem de seu poder –, que está presente em
muitas obras – literatura, arquitetura, pintura, música – do período romântico por
representar às paixões humanas, como medo, pequeneza e impotência, ante à
natureza.
23

A paixão causada pelo grandioso e sublime na natureza, quando estas


causas operam em suas formas mais poderosas, é o Assombro; e o
Assombro é aquele estado da alma em que todos os seus movimentos estão
suspensos e com algum grau de horror. Neste caso, a mente está tão
inteiramente preenchida por seu objeto, que ela não consegue entreter
qualquer outro nem, por consequência, raciocinar sobre o objeto que a ocupa.
Daí surge o grande poder do sublime, que longe de ser produzido por nossos
raciocínios, ocorre antes deles e passa por nós com uma força irresistível. O
assombro, como eu disse, é o efeito do sublime em seu mais alto grau; seus
efeitos menores são a admiração, a reverência e o respeito (BURKE, 2016,
p. 65).

2.2 FRIEDRICH SCHILLER

A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful
[Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo], de
Edmund Burke, teve uma influência perene na estética nos séculos XVIII e XIX, e,
portanto, assumiu uma posição importante. Numerosos filósofos e escritores lidaram
com o Sublime e até adotaram algumas das observações de Burke. Dentre os
escritores alemães destaca-se Friedrich Schiller; mas não se pode adentrar a teoria
de Schiller acerca do Sublime sem antes abordar o pensamento daquele, cujos anos
de vida dedicou-se a entender, Immanuel Kant.
O filósofo alemão abordou a teoria do Sublime de Burke em sua obra Kritik der
Urteilskraft [Crítica da Faculdade do Juízo], publicada em 1790. Seguindo Burke, Kant
concorda que objetos, predominantemente, da Natureza podem transmitir a sensação
do Sublime e, para demonstrar, utiliza como exemplo:

Rochedos audazes, sobressaindo-se por assim dizer ameaçadores, nuvens


carregadas acumulando-se no céu, avançando com relâmpagos e
estampidos, vulcões em sua inteira força destruidora, furacões com a
devastação deixada para trás, o ilimitado oceano revolto, uma alta queda-
d’água de um rio poderoso, etc. [...] (KANT, 1993, p. 109).

No entanto, ao contrário de Burke, Kant abandona a estética sensualista do


Sublime e, passa a entendê-la segundo um conceito racional-subjetivo que se
apresenta enquanto ideia que transcende a imaginação humana. Como efeito, o
Sublime não aparece mais somente como uma propriedade de um objeto, mas
também se desenvolve auxiliado por um juízo reflexivo no sujeito ao olhar para objetos
sublimes. Quer dizer, a verdadeira sublimidade deve ser buscada só na mente da
pessoa que julga, e não no objeto natural, cujo julgamento impulsiona esse estado de
espírito.
24

O homem supera a impotência física em relação à natureza, voltando-se para


suas habilidades inteligíveis e reconhecendo “a sublimidade de seu destino” (KANT,
1993).

Portanto, a sublimidade não está contida em nenhuma coisa da natureza,


mas só em nosso ânimo, na medida em que podemos ser conscientes de ser
superiores à natureza em nós e através disso, também à natureza fora de
nós (na medida em que ela inclui sobre nós). Tudo que suscita esse
sentimento em nós, a que pertence o poder da natureza que desafia nossas
forças, chama-se então (conquanto impropriamente) de sublime [...] (KANT,
1993, p. 112).

Por outro lado, Kant introduz uma distinção dentro do sublime e diferencia entre
o sublime-matemático e o sublime-dinâmico. O matemático-sublime, segundo o
pensador alemão, seria uma grandeza (quantum) que se encontra para além da nossa
percepção, enquanto o dinâmico-sublime é um poder que suscita o medo. A partir de
ambos os termos que Schiller propõe outra terminologia em seu ensaio Über das
Erhabene [Sobre o Sublime], publicado em 1793, que ancorou na natureza do homem
dois impulsos fundamentais: o teórico-sublime, que remete à pulsão imaginária, e o
sublime-prático, que está relacionado ao instinto de autopreservação.

Em primeiro lugar, possuímos um impulso de alterar nosso estado, de


exprimir nossa existência, de ser atuantes, e tudo isso equivale a adquirir
representações; desse modo, pode-se chamá-lo impulso de representação,
impulso de conhecimento. Em segundo lugar, possuímos um impulso de
conservar nosso estado, de levar adiante nossa existência, o qual se
denomina impulso de autoconservação. O impulso de representação remete
a conhecimento, o de autoconservação a sentimentos, portanto, a
percepções internas da existência. Através dessas duas espécies de
impulsos, permanecemos assim em dependência da natureza de duas
formas. A primeira podemos sentir quando a natureza deixa faltarem as
condições nas quais atingimos conhecimentos; a segunda, quando a
natureza contradiz as condições nas quais é possível para nós levar adiante
nossa existência (SCHILLER, 2011, p. 22-23).

Referindo-se a Burke, Schiller interpreta o Sublime como uma combinação


contraditória de sentimentos.

O sentimento do sublime é um sentimento misto. Ele consiste numa junção


de um estado de dor, que se exprime no seu grau máximo como um horror,
com um estado de alegria, que pode se intensificar até o encantamento e
que, embora não seja propriamente um prazer, é preferido por almas
refinadas a todo o prazer (SCHILLER, 2011, p. 60).
25

O arrepio desencadeado pela experiência subjetiva iminente ao observar a


natureza Sublime, altera-se em uma sensação de ser atraído pelo objeto quando há
possibilidade de afastar-se de si mesmo ou manter distância e, assim, criar uma
dimensão pessoal. Então, Schiller define:

O objeto do sublime é de dois tipos. Ou nós o relacionamos com nossa


faculdade de apreensão e sucumbimos na tentativa de formar uma imagem
ou um conceito dele; ou então o relacionamos com a nossa faculdade vital,
considerando-o como um poder contra o qual o nosso se reduz a nada.
Contudo, embora tanto num caso quanto no outro o objeto nos dê o
sentimento penoso de nossos limites, não fugimos dele, mas somos, pelo
contrário, atraídos com uma violência irresistível. Seria isso possível se os
limites da nossa fantasia fossem ao mesmo tempo os limites da nossa
faculdade de apreensão? (SCHILLER, 2011, p. 60).

2.3 WOLFGANG KAYSER

A categoria estética do Sublime, como fora abordada, traz consigo a mistura do


admirável e do assombroso, da dor e do prazer; mediante captação do mundo pelas
sensações e pelo juízo moral. Contudo, há outra categoria estética que, a princípio,
parece ser o oposto do Sublime – mas que se revela harmônica com esta –, o
Grotesco.
O estudioso da literatura, o alemão Wolfgang Kayser, escreve em 1957 a obra
intitulada Das Groteske: seine Gestaltung in Malerei und Dichtung [O Grotesco:
configuração na pintura e na literatura], onde analisa a gênese do Grotesco.

La grottesca e grottesco, como derivações de grotta (gruta), foram palavras


cunhadas para designar determinada espécie de ornamentação, encontrada
em fins do século XV, no decurso de escavações feitas primeiro em Roma e
depois em outras regiões da Itália (KAYSER, 2003, p. 17-18)

Ou seja, tratava como Grotesco um tipo especial de ornamentação – formas


híbridas de humanos, animais e vegetais – com raízes na pintura romana que foram
redescobertos e popularizados desde o final do século XV.
Neste mesmo século, o termo saiu das artes plásticas e adentrou a literatura
através do filósofo francês Michel de Montaigne, que faz uso ao termo Grotesco para
denotar um gênero literário em sua obra Essais [Ensaios], publicada em
1580. Montaigne considera sua própria obra “[...] que são aqui também... senão
grotescos e corpos monstruosos, compostos de diversos membros, sem figura certa,
26

não tendo ordem, nem proporção [...]” (MONTAIGNE apud KAYSER, 2003, p. 24).
Graças ao filósofo francês, então, o Grotesco adquiriu um sentido mais amplo na
literatura que nas artes plásticas.
No século XVII, perdida a exclusividade conceitual, o Grotesco passa a ser
vinculado à sátira e à comédia trágica por consequência do estilo do desenhista e
gravador francês Jacques Callot, que viaja a Florença para aperfeiçoar seus traços.
Callot é tão influenciado pela cultura italiana de usar máscaras que termina por ser
considerado um dos mais importantes ilustradores da Commedia dell’arte.

O elemento “quimérico”, por seu lado, foi ainda intensificado pelo fato de os
atores usarem máscaras que iam acima do nariz. O objetivo a que serviam
transparece nos desenhos do genial ilustrador que a commedia dell’arte
conseguiu encontrar: Jacques Callot. As estampas do ciclo dos Balli di
Sfessania constituem reelaboração fiel dos esboços feitos por Callot durante
os espetáculos, não representando, pois, as distorções, acréscimos do
desenhista. As máscaras, como é fácil compreender, servem de meio para
aplicar aos corpos humanos algo de animalesco: surgem assim narizes
enormes, embicados, aos quais corresponde um queixo pontiagudo,
enquanto a cabeça desponta mais atrás ainda, alongada, e na maioria das
vezes os traços ornitóides se complementam em excrescências com formas
morcegais e agitados remígios de galo. Os desenhos de Callot também dão
a perceber o estilo calcado no movimento: por exemplo, aqui a completa
paralisação que, ali, no instante seguinte, pode transformar-se numa
excentricidade do movimento que chega até a ponta dos dedos (KAYSER,
2003, p. 43).

Apesar de conhecido, na Alemanha a palavra Grotesco ainda era vista como


substantivo para designar certo tipo de ornamental, pois o vocábulo era considerado
estrangeirismo para os alemães, mas não para os franceses.

No alemão do século XVIII, o adjetivo grotesk não aparece com muita


frequência e, quando o empregam, é naquela acepção chã e vaga, que
caracterizava o seu uso em francês. Ainda em 1771, lemos num dicionário
alemão-francês, ou seja, no Dictionnaire universel de la langue fraçaise, de
Schmidlin, a seguinte explicação: “Figuradamente, grotesque (ou grotesk)
significa o mesmo que singular, desnatural, aventuroso, esquisito, engraçado,
ridículo, caricatural, e coisas semelhantes”. Como se vê, o vocábulo deve
cobrir um vasto campo; o seu cerne significativo próprio parece muito diluído
(KAYSER, 2003, p. 27).

Entretanto, é justamente no século XVIII, encontrando eco no teatro do Sturm


und Drang [Tempestade e Ímpeto] que o conceito estético é firmado. O precursor foi
o historiador Justus Möser com a obra Harlekin oder die Verteidigung des Grotesk-
Komischen [Arlequim ou a defesa do grotesco cômico], publicada em 1761, inspirado
na Commedia dell’arte. Porém, é no ensaio de Friedrich Schlegel, Gespräch über die
27

Poesie [Conversação sobre a Poesia], “[...] que é a mais importante exposição de


ideias estéticas do romantismo inicial, o conceito de grotesco [...] vai avançando para
o centro” (KAYSER, 2003, p. 53). Pois, segundo Kayser (2003), Schlegel acredita que
é na lugubridade do grotesco que se revela o mistério mais profundo do ser. No
entanto, o estudioso alemão nota que nesses pensamentos de Schlegel falta “[...] o
caráter insondável, abismal, o interveniente horror em face das ordens em
fragmentação” (KAYSER, 2003, p. 56); visto que o romântico alemão vislumbrou outro
conceito para a estética, como uma “bela confusão”, sendo totalmente diverso das
características sinistras do Grotesco. Para Kayser, esta conceituação simbolizava que
“[...] a crença no poder redentor da fantasia iluminava a noturna escuridão do grotesco,
convertendo-a no labor de um dia ensolarado” (KAYSER, 2003, p. 56).
Em 1798, nos [Fragmentos], Friedrich Schlegel retoma o Grotesco com um
pensamento diferente e elabora outro conceito. Kayser (2003) afirma que o conceito
de Grotesco, com esta outra elaboração, situa-se em um nível acima, pois Schlegel
quer transcrever, com o cômico e o trágico, um novo termo:

O que significa “grotesco” neste contexto? Grotesco – assim rezam os


Fragmentos 75, 305, 389 – é o contraste pronunciado entre forma e matéria
(assunto), a mistura centrífuga do heterogêneo, a força explosiva do
paradoxal, que são ridículos e horripilantes ao mesmo tempo. Como na
estética do século XVIII, os conceitos de caricatura, mas também os do
trágico e do cômico, penetram agora nos enunciados: “A caricatura é uma
vinculação passiva do ingênuo e do grotesco. O poeta pode empregá-la tanto
trágica quanto comicamente” (KAYSER, 2003, p. 56-57).

O novo termo advindo da junção entre o cômico e o trágico – no qual resulta na


arte dramática – é a tragicomédia, que “[...] Schlegel já não o concebia como mescla
de partes autônomas, mas como algo próprio, fechado em si mesmo.”. E que desde
então,

Na criação dramática a partir do Sturm und Drang e no pensamento desde o


Romantismo, a tragicomédia e o grotesco associam-se intimamente. A
história do grotesco, no terreno dramatúrgico, apresenta-se, em larga medida,
como a história da tragicomédia (KAYSER, 2003, p. 57).

Assim sendo, o riso do humor não mais se mostra puro, livre, nas
representações dramatúrgicas (e nem na vida); porque surge o riso em que há ainda
dor, cujo maior humorista seria o diabo.
28

Por isso, Kayser (2003) considera a estética do Grotesco pensada e discutida


na arte romântica a mais importante e representativa desde o século XV, onde o riso
apresenta-se como manifestação do medo, da incapacidade e da angústia do ser
humano frente ao sobrenatural verdadeiro do mundo (tornado estranho), ou como
“fenômeno puro” que “se distingue da caricatura chistosa ou sátira tendenciosa”.
Portanto, assim define-se o Grotesco para o estudioso alemão:

[...] o grotesco é o mundo alheado (tornado estranho). Para pertencer a ele,


é preciso que aquilo que nos era conhecido e familiar se revele, de repente,
estranho e sinistro. O repentino e a surpresa são partes essenciais do
grotesco [...] Apesar de todo o desconcerto e de todo o horror inspirados pelos
poderes obscuros, que estão à espreita por trás de nosso mundo e nos
podem torná-lo estranho, a plasmação verdadeiramente artística atua ao
mesmo tempo como uma libertação secreta. O obscuro foi encarado, o
sinistro descoberto e o inconcebível levado a falar. Daí somos conduzidos a
uma última interpretação: a configuração do grotesco é a tentativa de dominar
e conjurar o elemento demoníaco do mundo (KAYSER, 2003, p. 159-161).

2.4 VICTOR HUGO

Em 1827, Victor Hugo publica o prefácio do seu drama Cromwell. Prefácio este
que se converteu em um manifesto da jovem geração romântica, devido ao seu
ímpeto anticlássico. No Préface de Cromwell [Prefácio de Cromwell], Hugo, após uma
breve introdução, desenvolve como, segundo sua ideia básica, comparar o
desenvolvimento da literatura com o desenvolvimento histórico da humanidade.

Partamos de um fato: a mesma natureza de civilização, ou, para empregar


expressão mais precisa, ainda que mais extensa, a mesma sociedade não
ocupou sempre a terra. O gênero humano no seu conjunto, cresceu,
desenvolveu-se, amadureceu como qualquer de nós [...] Antes da época que
a sociedade moderna chamou de antiga, existe outra era, que os Antigos
chamavam fabulosa, e que seria mais exato chamar primitiva. Eis, pois, três
grandes ordens das coisas sucessivas na civilização, desde a origem até
nossos dias. Ora, como a poesia se sobrepõe sempre à sociedade, vamos
tentar desvendar, segundo a forma desta, qual deve ter sido o caráter da
outra, nestas três grandes idades do mundo: nos tempos primitivos, nos
tempos antigos, nos tempos modernos (HUGO, 2014, p. 16)

Isto é, o gênero humano se desenvolveu ainda mais através dos tempos, assim
como sua expressão poética, pois esta é sempre o reflexo da sociedade, a
representação de cada indivíduo em relação ao seu meio. Então, Hugo divide a
história em três épocas, cada uma das quais atribuindo uma forma poética.
29

Nos primórdios da História humana, segundo Hugo (2014), os humanos viviam


em harmonia com a natureza; não estavam restringidos a nenhuma estrutura social,
tampouco havia leis ordenadas por nenhum sistema. Na vida em comunidade, com a
família ou a tribo, não existia preocupação com a propriedade, não havia guerras para
resolver disputas de poder.
Porém, turvado pela Criação, os humanos começam a expressar sua
inspiração, sua experiência pela natureza em palavras e, assim, a poesia desperta,
na Ode, o milagre da natureza. E a Bíblia é a evidência mais antiga dessa origem
literária. O lírico (a Ode corresponde ao lírico de Hugo), como a inocência do recém-
nascido, é a forma poética atribuída aos tempos primitivos.

Nos tempos primitivos, quando o homem desperta num mundo que acaba de
nascer, a poesia desperta com ele. Em presença das maravilhas que o
ofuscam e o embriagam, sua primeira palavra não é senão um hino [...] A
terra está ainda mais ou menos deserta. Há famílias, e não povos; pais, e não
reis. Cada raça existe à vontade; não há propriedade, não há lei, não há
melindres, não há guerras. Tudo pertence a cada um e a todos. A sociedade
é uma comunidade. Nada incomoda o homem. Ele passa esta vida pastoril e
nômade pela qual começam todas as civilizações, e que é tão propícia às
contemplações solitárias, às caprichosas fantasias [...] Seu pensamento,
como sua vida, assemelha-se à nuvem que troca de forma e de caminho,
segundo o vento que o impele. Eis o primeiro homem, eis o primeiro poeta. É
jovem, é lírico. A prece é toda a sua religião: a ode é toda sua poesia (HUGO,
2014, p. 17).

Contudo, a coexistência humana evolui. A família se transforma em uma tribo,


e a tribo em uma nação. O homem se acomoda, o que faz surgir povoamentos,
palácios, templos e reinos. A religião também muda com a evolução humana e, os
ritos passam a conduzir a oração. Logo, irrompem as primeiras estruturas de poder:
são colocados limites à liberdade irrestrita das pessoas; rivais se matam e, com as
primeiras guerras, iniciam-se as migrações dos povos.
A poesia novamente reflete os grandes eventos. Com Homero começa o tempo
das sagas heroicas, em que os ocorridos importantes, os povos e os reinos são
contados e "cantados". Hugo (2014) denomina essa forma de poesia sob palavra
épico, caracterizada pela simplicidade, visto que os eventos foram relatados sem
enfeites. A poesia se mistura com a religião, portanto, as cerimônias de oração
transformam-se em peças de teatro, com os padres performando.
O culto a Deus e a História amalgamam-se na forma de expressão da Epopeia.
Para Hugo (2014), a epopeia, ou seja, a representação narrativa cristalina de um
30

acontecimento, é a forma poética da Antiguidade, que começa nas narrações de


Homero.

Homero, com efeito, domina a sociedade antiga. Nesta sociedade, tudo é


simples, tudo é épico. A poesia é religião, a religião é lei. À virgindade da
primeira idade sucedeu a castidade da segunda [...] A família tem uma pátria;
aí tudo a prende [...] repetimos, a expressão de uma semelhante civilização
não pode ser senão a epopéia. A epopéia tomará várias formas, mas jamais
perderá seu caráter [...], mas é sobretudo na tragédia antiga que a epopéia
sobressai por toda a parte [...] Suas personagens são ainda heróis,
semideuses, deuses; suas molas, sonhos, oráculos, fatalidades; seus
quadros, enumerações, funerais, combate. O que cantavam os rapsodos,
declamam-nos os atores [...] (HUGO, 2014, p. 18-19).

“No entanto a idade da epopéia”, escreve Victor Hugo (2014, p. 21), “chega ao
fim”, pois, continua ele, “assim como a sociedade que ela representa, esta poesia se
gasta girando sobre si mesmo”. Eis, portanto, uma “nova era” para “o mundo e para a
poesia”.
Apresentado por Hugo (2014) como uma grande transformação, o Cristianismo
raia em meio aos esfacelamentos da poesia e da civilização antiga, já que “Roma
decalca a Grécia, Virgílio copia Homero”, de modo que esse declínio se reflete
também no íntimo das pessoas.

Uma religião espiritualista, que supera o paganismo material e exterior,


desliza no coração da sociedade antiga, mata-a, e neste cadáver de uma
civilização decrépita deposita o germe da civilização moderna (HUGO, 2014,
p. 21).

O Cristianismo torna-se importante desde o seu surgimento por revelar ao


homem que ele consiste em dois seres: um perecível e um imortal. Logo, uma lacuna
se rasga entre corpo e alma, entre o homem e Deus.

[...] ele tem duas vidas que deve viver, uma passageira, a outra imortal; uma
de terra, a outra do céu [...] ele é duplo como o seu destino, que há nele um
animal e uma inteligência, uma alma e um corpo; em uma palavra, que ele é
o ponto de intersecção, o anel comum das duas cadeias de seres que
abraçam a criação, da série dos seres materiais e da série dos seres
incorpóreos, a primeira, partido da pedra para chegar ao homem, a segunda,
partindo do homem para acabar em Deus (HUGO, 2014, p. 22).

De acordo com Hugo (2014), essa nova concepção de mundo já era vista em
partes por alguns sábios na Antiguidade, “mas é do Evangelho que data sua plena,
luminosa e ampla revelação” (p. 22). Embora tenha tornado tudo visível e apresentado
31

abertamente, a cosmovisão cristã deixa espaço para a fantasia e os mistérios de


Deus. Devido sua forma dualística, o homem experimenta uma dicotomia interna, ele
se divide entre o bem e o mal, e como consequência, faz-se novo um sentimento: a
melancolia.

Na sociedade antiga, o indivíduo era colocado tão baixo, que, para que fosse
atingido, cumpria que a adversidade descesse até a sua família. Portanto não
conhecia quase o infortúnio, fora das dores domésticas. Era quase inaudito
que as infelicidades gerais do Estado lhe perturbassem a vida. Mas no
instante em que veio estabelecer-se a sociedade cristã, o antigo continente
estava agitado [...] fazia-se tanto ruído na terra, que era impossível que
alguma coisa deste tumulto não chegasse até o coração dos povos. Foi mais
que um eco, foi um contragolpe. O homem, concentrando-se em si mesmo
em presença destas profundas vicissitudes, começou a sentir dó da
humanidade, a meditar sobre as amargas irrisões da vida. Deste sentimento
[...] o cristianismo fez a melancolia” (HUGO, 2014, p. 25).

Como a poesia acompanha o desenvolvimento da sociedade, lentamente, um


novo gênero está aparecendo sobre esta dupla base: o drama, que é a convergência
tanto da tragédia e quanto da comédia. Uma vez que o homem agora admite o feio ao
lado do belo e não quer dissimular nada na poesia. Ora, a verdade é que, na realidade,
esse tipo de contraste contido na poesia surge somente quando se discute o bem e o
mal.

O cristianismo conduz a poesia à verdade [...] com um olhar mais elevado e


mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente belo, que o feio
existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso
do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz [...] a poesia [...] porá a
fazer como a natureza, a misturar nas suas criações, sem entretanto
confundi-las, a sombra com a luz, o grotesco com o sublime, em outros
termos, o corpo com a alma, o animal com o espírito, pois o ponto de partida
da religião é sempre o ponto de partida da poesia (HUGO, 2014, p. 26).

O escritor francês, a partir de então, teorizará sobre

[...] um princípio estranho para a Antiguidade, um novo tipo introduzido na


poesia”, e, continua ele, “como uma condição a mais modifica todo o ser, eis
uma nova forma que se desenvolve na arte. Este tipo, é o grotesco. Esta
forma, é a comédia (HUGO, 2014, p. 27).

Por isso, o drama, para Hugo (2014), se trata da convergência tanto da tragédia
quanto da comédia. Além disso, é também “o traço característico, a diferença
fundamental” entre a arte moderna da arte antiga, ou, da literatura romântica da
literatura clássica.
32

Realizada, pois, a separação entre a nova poesia - como chama Victor Hugo -
da poesia clássica, o escrito romântico considera a comédia como reprodução do
Grotesco na poesia. Hugo (2014), acredita na liberdade proporcionada pelo Grotesco,
tendo em vista que sua função na arte causa uma ruptura dos modus operandi artístico
dos antigos; pelo fato do Grotesco volta-se para a musa da natureza onde dela
deságua abundantes oportunidades de inspirações; “[...] tentemos fazer ver que é da
fecunda união do tipo grotesco com o tipo sublime que nasce o gênio moderno, tão
complexo, tão variado nas suas formas, tão inesgotável nas suas criações [...] (HUGO,
2014, p. 28).
No entanto, Hugo (2014) não nega que a comédia já existia na literatura antiga,
ou que a epopeia também trazia à tona o feio. Existia, porém, só se completou no
drama, no Romantismo, e fez-se próprio do seu tempo.

Não que fosse verdade dizer que a comédia e o grotesco eram absolutamente
desconhecidos entre os antigos. A coisa aliás seria impossível. Nada vem
sem raiz; a segunda época está sempre em germe na primeira. Desde a
Ilíada, Tersites e Vulcano, oferecem a comédia, um aos homens, o outro aos
deuses [...] Os tritões, os sátiros, os ciclopes, são grotescos, as sereias, as
fúrias, as parcas, as harpias, são grotescas; Polifemo é um grotesco terrível;
Sileno é um grotesco bufo” (HUGO, 2014, p. 28-29).

A combinação do cômico e do trágico – que faz Mefistófeles rastejar ao redor


de Fausto, por exemplo –, dá ao drama seu caráter específico, atrás do qual o épico
fica muito atrás. Apesar disso, o drama provido do lírico e do épico está intimamente
relacionado a eles e pode abranger ambos. “O drama pinta a vida” (HUGO, 2014); o
drama agarra toda a realidade e a reflete novamente.
O Grotesco, segundo Hugo (2014) não apenas se apresenta como o feio,
estranho, disforme, ou seja, por sua forma, mas também por suas características além
da forma como, grandeza, natureza e comicidade.

O grotesco antigo é tímido, e procura sempre esconder-se. Sente-se que não


está no seu terreno, porque não está na sua natureza. Dissimula-se o mais
que pode. Os sátiros, os tritões, as sereias são apenas disformes. As parcas,
as harpias são antes horrendas por seus atributos que por seus traços, isto
é, doces, benfazejas. Há um véu de grandeza ou divindade sobre outros
grotescos. Polifemo é gigante; Midas é rei, Sileno é deus (HUGO, 2014, p.
29).

Para o artista romântico, o Grotesco se mostra amplo para que ele se debruce
nas artes com toda a sua genialidade, usando seus atributos para desnudar o normal,
33

o comum, o corriqueiro. Mesmo que antes, na Antiguidade, o Grotesco fosse visto


com desdém, com timidez, é no período romântico que ele busca “transforma os
gigantes em anões; dos ciclopes faz os gnomos.” (HUGO, 2014, p. 32). Porém, o
Romantismo não o criou. O Romantismo entendeu a sua importância e o pôs em
evidência, dado que o Grotesco faz parte da natureza, origina-se dela; “[...] como
objetivo junto do sublime, como meio de contraste, o grotesco é, segundo nossa
opinião, a mais rica fonte que a natureza pode abrir à arte.” (HUGO, 1988, p. 33).
Como contraste, o Grotesco impacta na arte, não por ser somente o oposto,
mas por ser um oposto não excludente, por ser potencializador do Sublime para que
este atinja a excelência de forma mais acentuado e surpreendente. Logo, Victor Hugo
conceitua o Grotesco junto de sua parte polarizada, o Sublime.

Com efeito, na poesia nova, enquanto o sublime representará a alma tal qual
ela é purificada pela moral cristã, ele representara o papel da besta humana.
O primeiro tipo livre de toda mescla impura, terá como apanágio todos os
encantos, todas as graças, todas as belezas; é preciso que possa criar um
dia Julieta, Desdémona, Ofélia. O segundo tomará todos os ridículos, todas
as enfermidades, todas as feiuras. Nesta partilha da humanidade e da
criação, é a ele que caberão as paixões, os vícios, os crimes; é ele que será
luxurioso, rastejante, guloso, avaro, pérfido, enredador, hipócrita; é ele que
será alternadamente Iago, tartufo, Basílio; Polônio, Harpagão, Bartolo;
Falstaff, Scapino, Fígaro. O belo tem somente um tipo; o feio tem mil (HUGO,
2014, p. 35-36).

No Romantismo o Grotesco encontrou terreno fértil em todas as artes –


literatura, arquitetura, pintura, música –, por muitos motivos, mas, principalmente, pela
capacidade de revelar o que é mais obscuro, vil e animal no homem; por trazer à tona
a natureza dupla do ser: a benigna e ilibada, de um lado; e a viciosa e pecadora, do
outro. “A antiguidade não teria feito a Bela e a Fera.” (HUGO, 2014, p. 39).
Na arte, os gênios românticos escancaram a condição humana para o público,
descobrindo toda a selvageria, o alvoroço, a perspicácia, e os horrores recôndito no
calabouço da alma do ser. Por estar nas profundezas sombrias, a única forma do
homem alcançar a natureza elevada, magnífica, superior é reconhecendo-se. É por
meio da sua dupla natureza, entre as polaridades, que o ser humano pode, enfim,
transformar-se em obra de arte. Isto é, como afirma Hugo (2014), é necessário abraçar
o Grotesco para alçar-se ao Sublime. Entretanto, o escritor adverte que é preciso um
equilíbrio, porque é passageiro essa sensação elevada. “Um homem, um poeta-rei,
poeta soberano, como Dante o diz de Homero, vai tudo fixar. Os dois gênios rivais
unem sua dupla chama, e desta chama brota Shakespeare” (HUGO, 2014, p. 40).
34

Porque os homens de gênio, por grandes que sejam, tem sempre sua fera
que parodia sua inteligência. (...) “do sublime ao ridículo há apenas um
passo”, dizia Napoleão, quando se convenceu de que era homem; este
relâmpago de uma alma de fogo que se entreabre, ilumina ao mesmo tempo
a arte e a história, este grito de angústia é o resumo do drama da vida (HUGO,
2014, p. 49).

Victor Hugo foi um escritor romântico francês de suma importância para o


desenvolvimento da estética do Grotesco. É perceptível em sua análise o teor
considerável do pensamento romântico alemão – irmãos Schlegel, Novalis, Goethe,
Schiller –, como a ligação com o Cristianismo, mas não no sentido de salvação por
redenção de um ser divino, e sim no sentido de encontrar a poesia completa sem
intermédio de poetas ou poemas, ou seja, propriamente na natureza, isto é, na musa,
na verdade e na aspiração, a qual, “é também uma verdade e uma natureza” (HUGO,
2014, p. 65). Pois, no duplo, o ser revela sua figura má, horrível, grotesca em
contrapartida ao seu eu real, espiritual e sublime. Pois, “[...] o real resulta de dois tipos,
o sublime e o grotesco [...] que se cruzam na vida e na criação [...] Porque a verdadeira
poesia está na harmonia dos contrários [...] tudo o que está na natureza está na arte”
(HUGO, 2014, p. 46-47).
35

3 DA NOITE AO CÁRCERE

3.1 A INQUIETAÇÃO SOBRE O SABER DA CONDIÇÃO HUMANA

A cena Noite (GOETHE, 2016, p. 63) apresenta o protagonista, Henrique


Fausto, inquieto “num quarto gótico, com abóbadas altas e estreitas”, onde o doutor
encontra-se em uma crise de conhecimento, e procura, desesperadamente, pelo
sentido da existência do gênero humano; superar os limites da ciência; dominar as
forças da Natureza. Traços e características puramente românticos, pois o que
provoca o desespero, a perspectiva limitada da personagem e dos românticos
alemães – a partir da segunda metade do século XVIII até finais do século XIX – é a
modernização da técnica6, devido às Revoluções Científica e Industrial em curso na
Europa desde o século XVI, fruto da instalação do modelo de capitalismo burguês, no
qual resultou em rápidas transformações urbanas e das práticas sociais. Porquanto,
a imaginação romântica sofreu uma profunda ameaça com mudanças tão rápidas e
impactantes, por isso temeu o futuro, apavorou-se com a técnica, visto que ela poderia
ser a destruição do mundo através do atravessamento dos limites humanos.
O erudito alemão inicia o seu monólogo com uma exclamação que carrega em
seu âmago o profundo dissabor da angústia, não somente de um ser específico, mas
também do gênero humano e de uma época: “Ai!” (p. 63). Ou seja, Fausto transmite
a pesada amargura no seu espírito condenado ao limite da condição humana, e isso o
faz entristecer bastante ao ponto de ficar desiludido, cabisbaixo por sua ineficaz
capacidade intelectual.
Como estudioso, teve êxito em todas as áreas medievais de conhecimento,
incluindo filosofia, medicina, jurisprudência e teologia. Além de obter títulos de
mestrado e doutorado. O que comprova que a sede de conhecimento mostra-se ser

6 A palavra grega téchne é normalmente traduzida como técnica, mas também pode ser traduzida como
cultura. Esta surge no contexto romano a partir do termo latino colere, que significa cultivar à terra, ou
seja, a atividade própria do agricultor. A modernização da técnica seria, partindo do sentido do termo
cultura de um contexto muito concreto e material para outro – que é, ainda que análogo, muito mais
abstrato –, o impedimento da ligação da criatura (microcosmo), para os românticos, com a Natureza
(macrocosmo), e o que ela provoca: sensações e impressões vastas, logo com o solo da Arte. Pois,
para o agricultor assim como para o artista romântico é importante conhecer as relações dos elementos
da Natureza que desempenham uma função primordial que tornam o solo propício para produzir por
meio da experiência da sensação, da contemplação, o que é próprio da natureza anímica do gênio
romântico. (INSTITUTO HUGO DE SÃO VÍTOR. 27 mar. 2021. Instagram: @institutohugodesaovitor.
Disponível em https://www.instagram.com/p/CM7QpV-Jgi-/. Acesso em: 28 mar. 2021).
36

uma ambição insaciável para o velho Fausto. O verso “Pra cá e lá, aqui ou acolá, sem
diretriz" (ibid. p. 63) confirma que conhecer é um processo deveras complexo e,
apesar dessa diversidade, pode ainda ser insatisfatório, o que se prova ser neste
momento com mais efervescência na vida do doutor.
No decorrer do seu monólogo, Fausto chega à conclusão de que “não sabemos
nada” (ibid. p. 63), o que faz soar um tanto quanto inquietante, considerando que,
apesar da quantidade de energia e disposição aplicada em cada estudo realizado,
além da trajetória acadêmica construída durante anos, existe, em última análise, um
resultado niilista do qual Fausto interpreta ser o fim: a ignorância. A ignorância outrora
entendida, segundo o filósofo grego Sócrates, como parti pris, ou seja, o primeiro
passo para a busca da Verdade, passa a ser compreendida por Fausto como fim
humano, término, transformando o paradoxo socrático “Só sei que nada sei” em “Só
sei o que sei”.
Com essa conclusão, por meio da mente e do espírito inquieto, o doutor traz à
tona sua prepotência em uma comparação: “Sei ter mais tino que esses maçadores /
Mestres, frades, escribas e doutores” (ibid. p. 63). De fato, Fausto pertence à elite
intelectual – portanto, a uma minoria –, porém, não sabe o que fazer com aquilo que
sabe, apesar disso. Por outro lado, ele se sente um pouco menos desesperado por
não ser perturbado com dúvidas nem temer o Inferno, tampouco respeita Satanás,
coisa das quais assustam essas tais classes desrespeitadas por ele.
Ademais, não temer o Inferno, muito menos o próprio Satanás é sinal do
descredito pela Igreja Católica, no século XVI, como instituição em combater as forças
malignas, os agentes do caos, os demônios tentadores do homem cristão;
consequência da cisão entre a Igreja e o Estado, o que fez a figura do Diabo livre da
utilização punitiva e ameaçadora da Igreja contra os pecadores. Sem a Igreja a todo
o tempo por meio de sermões semanais; literatura; teatro; missões eclesiásticas a
povos longínquos; usufruir do antagonista de Deus; decai o medo e a influência do
Maligno, assim como dos seus demônios na medida em que há a ascendência da
Ciência no século XVIII.7

7 Nesse momento de desestabilização da ortodoxia, a presença do Diabo era dialeticamente necessária


para justificar o árduo e ininterrupto esforço missionário, ao mesmo tempo em que a existência de um
Satã todo-poderoso servia de substrato ideológico a toda sorte de medidas repressivas e de violências,
tornadas em luta contra o Diabo, seus agentes e seus ardis (NOGUEIRA, 2002, p. 100).
37

Contudo, a desolação do pobre sábio aguça-se por fatores externos e,


sobretudo, pelas coisas materiais, visto que não apenas lhe faltam amigos, como
também bens e dinheiro. Ou seja, revela-se que o versado Fausto está espiritual e
materialmente angustiado, logo é compreensível a conclusão que fizera antes, visto
que em sua vida material não tem quem nem o quê para apaziguar suas dores. Essa
situação extrema junto aos pensamentos dedutivos inconvenientes atinge picos tão
elevados que o protagonista declara: “Um cão assim não viveria!” (ibid. p. 63). E esta
alusão ao suicídio representa o puro desespero de Fausto, que buscará na magia
satisfazer seu desassossego: "Por isso entrego-me à magia" (ibid. p. 63).
A magia é a representação do domínio da Natureza alcançável por meio de
ritos, em outras palavras, é a segurança contra qualquer dúvida mundana, pois a
magia é o sobrenatural e quem detêm a capacidade de fazer uso dela, é capaz do
extraordinário. Antes da institucionalização do Cristianismo no Ocidente, povos
germânicos – assim como outros povos de regiões diferentes – cultuavam entidades
ligadas à terra, à Natureza, não para que essas entidades cumprissem desejos
egoístas, mas protegessem o plantar e o colher dos espíritos malignos que
perturbavam a terra – não eram, ainda, oriundos do Diabo.
No verso “Para que apreenda o que a este mundo / Liga em seu âmago
profundo” (ibid. p. 63), nota-se o que um velho sábio quer alcançar com isso – a
certeza. Entretanto, não é suficiente breves considerações, já que Fausto não quer
remexer mais em frases e quer encontrar certeza – como já foi mencionado – na
magia. A certeza de saber tudo a respeito sobre o gênero humano, o mundo e o
fantástico. Experiência ao qual os românticos intentam através da arte do gênio, pois
na verdadeira arte manifestada onde está contido, entre luzes e sombras, o absoluto
da alma humana, aquele que une o belo e o burlesco, o elevado e o risível, que não é
explicada pela razão, mas sim, sentida pela emoção.
A partir de então, há uma mudança perceptível em seu monólogo, corroborado
por sua exclamação “Ah!” (p. 65): Fausto almeja a Natureza. O doutor vislumbra a
possibilidade, com ajuda da magia, de adquirir conhecimento por meio de
experiências práticas, em contato com a Natureza; desfazendo-se da maneira teórica
do qual se dedicara há anos, para assim “Flutuar com gênios sobre fontes” (ibid. p.
65). Ou seja, a Natureza serviria de égide para seus sentimentos inquietos, pois ela é
"Livre de todo ato falho" (ibid. p. 65).
38

Em contraste com a Natureza almejada pelo letrado alemão está o seu quarto
de estudos, no qual é abominado como “Maldito, abafador covil” (ibid. p. 65). Nele há
o que é comum para um estudioso, muitos materiais científicos, como livros; há
também bastante poeira, resíduos imundos de lata e de vidros etc. Seu quarto é,
portanto, não só o espelho de sua própria vida espiritual e intelectual, onde estão os
seus fracassos científicos, seu desgosto, sua esterilidade, sua inutilidade, como
também a forma de simbolizar a impotência do Racionalismo como resposta e
condução da vida em qualquer escala, pois o páthos não é objeto de domínio da razão.
Por isto, a aflição de Fausto provoca uma sensação de coração comprimido e a
"flama" (ibid. p. 65) o impede de sentir o que anseia para a sua vida, reforçado pelos
versos: "Em vez da viva natureza / Em que criou Deus os mortais / De crânios cerca-
te a impureza / De ossadas os homens e animais" (ibid. p. 65).
Ao encontrar o livro do adivinho Nostradamus, o doutor Fausto, imediatamente,
como se naquele momento fosse o seu último suspiro de vida, evoca um espírito da
terra, ao passo do qual está convencido de que é divino por ter realizado tal ato: “Sou
eu um deus? Vejo tal luz!” (p. 67) – a arrogância fáustica, isto é, a arrogância humana
de superestimar a própria força. Porém, o espírito da terra encerra o devaneio fáustico
de superioridade com: “És um, com o gênio que em ti sondas / Mas não comigo!” (p.
73). O espírito da terra, como já dito, não é sujeito aos desejos egoístas. Fausto neste
episódio representa todo o gênero humano pelo fato de ser tomado por suas paixões
e, somente por alguns segundos, sentir dominar algo além de suas capacidades, ter
o olho maior que a barriga.
Após isso, batem à porta. Era seu aprendiz Wagner com quem tem uma
conversa sobre as suas limitações e pesares, e esta conversa se mostra importante,
pois é onde Fausto relata sentir dentro dele a existência inquietante de duas almas,
uma terrena e outra espiritual, que estão em conflito todo o tempo.

FAUSTO

Vivem-me duas almas, ah! no seio,


Querem trilhar em tudo opostas sendas,
Uma se agarra, com sensual enleio
E órgãos de ferro, ao mundo e à matéria;
A outra, soltando à força o térreo freio,
De nobres manes busca a plaga etérea.
Ah, se no espaço existem numes,
Que tecem entre céus e terra o seu regime,
Descei dos fluidos de ouro, dos etéreos cumes,
E a nova, intensa vida conduzi-me! (p. 113).
39

Essa dualidade da qual Fausto diz sentir está presente na História do


pensamento desde crenças e religiões antigas, porém, é com os gregos,
principalmente com Platão, na qual há uma sistematização. Com base no dualismo,
Platão constrói a Teoria das Ideias, segundo a qual substâncias abstratas
encontram-se em um mundo superior, inteligível, e tudo o que aqui há são
projeções imperfeitas deste mundo à parte, dito de outra forma, tudo o que existe
tem algo perfeito a ser encontrado. E, para alcançar a perfeição das coisas, ou
seja, ascender ao mundo das ideias, Platão alega que o homem deve livra -se do
corpo, pois este é perecível, transitório, um fardo para a alma (psiquê). Logo, está
desenhada a equação: a alma, entidade pensante e eterna, não poderá alcançar
as ideias universais das coisas em sua totalidade enquanto estiver em um corpo
desejante e finito.
O Cristianismo reinterpretou a filosofia platônica sobre a alma e o corpo
acrescentando um terceiro elemento, o espírito. Segundo a religião Cristã a alma
anima o corpo e nela habita o espírito, lugar onde habita Deus. É por meio da alma
– através dos sentidos e sentimentos – que o homem convive com demais seres
humanos. Contudo, como Adão, criado do pó, o ser humano se encontra
sintonizado com a Terra, por este motivo encontra-se aberto a todas as mudanças
e influências existentes ao seu redor: vontades, vícios, fantasias, inquietações,
dúvidas etc.
Para o Cristianismo alma e corpo são somente uma natureza humana,
material e espiritual ao mesmo temo – ao contrário do que pensou Platão.
Entretanto, há na singular alma humana um espaço onde Deus estancia, e este
espaço é chamado de espírito, uma existência sobrenatural existente nos homens.
Como a alma é dirigente e passível a respeito de muitas coisas humanas, como a
inteligência (e outros já citados anteriormente), ela acaba por não ser compatível
com o espírito.
Em outras palavras, Deus não encontra lugar para habitar nas paixões e nos
desejos do homem, pois considera-os pueris e superficiais. O Deus cristão
encontra lugar para habitar no íntimo humano, lugar onde o homem é ele mesmo,
sem artifícios nem inclinações; interior intimo meo, como dissera Agostinho de
Hipona nas Confissões (2017).
Os românticos, influenciados pela filosofia cristã, incorporaram esta
perspectiva à arte atrelada à dialética do Eu Puro de Johann Gottlieb Fichte. Fichte
40

formula a tese da seguinte forma: o Eu Puro cria a si próprio, dessa forma também
cria a realidade por entender a si mesmo como uma intuição intelectual, logo esse
Eu supre o fundamento dos objetos em si e dos acontecimentos do mundo,
possibilitando a junção entre o sensorial e o intelectual. No entanto, para o Eu
compreender seu papel, ele precisa do seu contrário para reconhecer-se como
aquele que cria – só cria porque age, e agindo ele passa a Ser –, ou seja, da
antítese: o Não-eu.
O Não-eu é o oposto do Eu, contudo não se encontra fora do aspecto do Eu
Puro, pois nada pode ser pensando fora dele. Desta feita, a síntese, segundo Fichte,
é a delimitação. Isto é, nem o Eu nem o Não-eu podem extinguir-se mutuamente, pois
um deve servir como delimitação do outro. Portanto, cada vez que o Eu delimita o
Não-eu, acontece o exercício moral e prático; por outro lado, quando o Não-eu delimita
o Eu, acontece o conhecimento. Assim, nesse sistema infinito e dinâmico, o Eu é
capaz de produzir a liberdade, pois esta se caracteriza em uma contínua e infinita
construção.
Como o homem precisa relacionar-se com o outro para, moralmente, ser
completo, o outro também é um Eu com vontades, desejos e pensamentos
semelhantes ou diferentes, e esta alteridade pode resultar em conflitos. Então, o Eu –
que é livre – precisa delimitar sua liberdade no convívio com o outro, em outras
palavras, para que o outro pratique a sua liberdade é necessário estabelecer o limite
da própria.
O doutor Fausto vive de acordo com a alma, logo é passível de sofrer as
angústias terrenas. Essas “almas opostas” – alma e espírito – são indicativos da
vontade contraditória de Fausto de alcançar as nuvens com os pés no chão, elevar-
se espiritualmente através da racionalidade. O erudito alemão não analisa sua
situação deplorável para entender com propriedade o que há consigo, não se distancia
de si para entender seus contrários interiores e ser livre.
Depois que Wagner sai, Fausto volta ao monólogo, dessa vez, suicida, pois já
não encontra mais maneiras de cessar os sentimentos negativos e a inquietação que
sente. Nem por invocação conseguiu, logo, o que resta é morrer:

Vidro único, precioso, eu te saúdo! / Reverente te empunho; em teu conteúdo


/ Do gênio humano exalto a arte e o labor / Substância, tu, do sono fluido
grato / De todas as letais virtudes almo extrato / Hoje a teu mestre outorga o
teu favor!” (p. 87).
41

Decidido, o sofrido doutor leva “o último hausto” (ibid. p. 87) aos lábios, mas é
interrompido pelas badalas dos sinos junto ao canto do coro dos anjos, das mulheres
e dos discípulos da manhã de Páscoa, o que o faz lembrar da infância, da nostalgia
de uma juventude interrompida pelos anos de estudos; e parar a ação fatal. Momento
deveras significativo por trazer à tona o simbolismo da Crucificação e Ressurreição
de Cristo – “Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o
mundo” (João 16:33) – como epifania.
Na cena posterior, Diante da Porta da Cidade (p. 97), Fausto, após escolher
viver, dará um passeio com o seu pupilo Wagner, pois sente-se revigorado, como se
tivesse ressuscitado da fonte descongelada: “Descongelou arroio e fontes / O vivífico
olhar da primavera” (ibid. p. 97).

3.2 O PACTO E A MISSÃO DE MEFISTÓFELES

Durante o passeio com seu aprendiz Wagner, Fausto dá-se conta que há um
cachorro seguindo-os: “Vês o cão negro a errar pelo restolho e seara?” (p. 121). O
pupilo responde que já o tivera percebido, porém deixou que o seguissem. O Diabo
disfarçar-se de cão é propício como ironia, pois em Salmos (22:20) o próprio Diabo é
chamado de “cão”, por causa de sua malignidade e ferocidade: “Livra a minha alma
da espada e a minha predileta, da força do cão”. Da mesma forma, em Apocalipse
(22:15), os barrados para o reino dos céus são chamados de “cães” por sua
indignidade espiritual: “Ficarão de fora os cães e os feiticeiros, e os que se prostituem,
e os homicidas, e os idólatras, e qualquer que ama e comete mentira”8.
O cachorro segue Fausto até o seu quarto de trabalho, e lá, revela-se como
Mefistófeles (ou simplesmente Mefisto)9, o Demônio, após o erudito alemão começar

8
O Diabo assume outras e variadíssimas formas animais, como a de um touro, gato, cavalo, porco,
veado, camundongo ou mosca. Mas a sua aparição com um cão, um cão preto – a cor denunciando a
presença demoníaca –, ocupa o segundo lugar na preferência dos relatos (NOGUEIRA, 2002, p. 68).
9 É a partir de Goethe que a forma variante do nome, Mefistófeles, aparece. A forma original,

Mephostophiles, é usada no livro História do Doutor Johann Fausto, do mui famoso mago e nigromante,
publicada no século XVI anonimamente, contudo, o seu significado não é exato. Citando a nota de
Magali Moura na 1ª edição do livro História do Doutor Johann Fausto, de 2019, ela explica: “Em Füssel;
Kreutzer (2006), se indica sobre a variada composição do nome que justapõe vários prefixos gregos,
forjando o significado: ‘o que não ama a luz’ ou ‘o que não ama os homens’. Henning (1963, p. 182)
oferece variadas possibilidades de interpretação do nome: ‘origem hebreia: mephir + tophel = destruidor
– mentiroso; origem grega: mephostophiles = o que evita a luz; origem latina = mefitis + philos = aquele
que aprecia a expansão venenosa’. Segundo Butler (Ritual Magic, Cambridge, University Press, 1949,
p. 164), esta variante inaugurada na História perdurará até o ano de 1765, quando passam a surgir
outras formas do nome com a variação da vogal o para a, assim como por alterações nas terminações
42

a traduzir o Evangelho de João (p. 137). Dos Evangelhos Canônicos do Novo


Testamento – Mateus, Marcos, Lucas –, João é o Evangelho no qual mais frisa a
representação de Jesus como divino, afirmando a identidade “Eu Sou o que Sou”
(Êxodo, 3:14) do Deus hebraico. Forçar, mesmo sem querer, o demônio a revelar-se
por meio das Escrituras Sagradas demonstra o poder de Deus e o domínio sobre o
Adversário.
Mefisto faz sua primeira tentativa de pacto com Fausto, contudo, ele recusa e
o é expulsa do quarto. Ele se vai, mas retorna momentos depois insistindo em
conversar com Fausto. Como no deserto (Mateus 4:1-11), Mefistófeles surge como o
solucionador dos problemas da carne, oferece seus “serviços” como tentativa de
apaziguar as contendas entre a alma e o espírito do velho doutor. Permitindo a
presença do Cão, “Bem, assim me agradas / Havemos de ser camarada!” (p. 157),
começa o diálogo-mor entre o doutor Henrique Fausto e o demônio Mefistófeles, ponto
mais importante da peça, pois a partir dele, tudo será decorrente do pacto-aposta.
O erudito alemão expõe ao Demônio os seus incômodos sem parcimônia, pois,
“Sou velho, pra brincar apenas / Jovem sou, pra ser sem desejo” (ibid. p. 157). Expõe
também sua vontade de morrer mais uma vez: “A morte almejo, a vida me é malquista”
(p. 159). Enquanto ouve toda a lamúria do estudioso medieval, Mefistófeles finge não
saber acerca daquilo que lhe está sendo contado, dissimula e atua como surpreso,
mas está ciente dos fatos ocorridos ao demonstrar que: “Tudo eu não sei: porém, ando
bem informado!” (p. 161). Mefisto observa o doutor desde sua conversa com Deus no
Prólogo do céu (p. 47), quando a divindade autoriza o demônio a tentar o dito-cujo
para provar que mesmo em situações adversas e miseráveis, o espírito, os valores e
as virtudes do homem são capazes de impulsioná-lo a continuar na presença da
Ordem do divino Criador em consequência de uma graça ulterior – é a aposta de Deus,
assim como fez com Jó (1:12).
Então, Fausto, por meio da metáfora, “Um doce, conhecido som” (ibid. p. 161),
referente ao Cristianismo, amaldiçoa as virtudes e princípios cristãos substanciais
como a fé, o amor, a esperança: “Maldita seja a presunção / Em que o critério se
emaranha! / Maldito o encanto da visão / Que no íntimo sensual se entranha! / Maldito

compondo outros nomes: Mephistofilis, Mephitophilus e Mephistophiel” (p. 35). Além disso, a figura de
Mefisto pode receber epítetos caracteristicamente brasileiros, como: Capeta; Satanás/Satã; Capiroto;
Príncipe, Rei, Senhor ou Anjo das Trevas; Rabo de Seta; Serpente; Maligno; Cão; Sete peles; Tinhoso;
Chifrudo etc.
43

o que em vão sonho enleia / Da fama e glória o falso brilho” (ibid. p. 161). O doutor
Fausto blasfemar contra Deus ante o Diabo é indicação profunda do quão longe de
entender e sanar seus tormentos ele está. Abandonar a fé, querer tudo e não se
comprazer com a sua própria condição é uma das características do homem moderno
como figura paradigmática.
Assistindo tudo de perto, Mefisto contempla a oportunidade de servir a Fausto
com o argumento de livrá-lo de suas decepções: “Pronto estou, sem medida / A ser
teu, neste instante / Companheiro constante / E se assim for do teu agrado / Sou teu
lacaio, teu criado!” (p. 165). Mas, o doutor tem conhecimento suficiente para imaginar
que esta proposta feita não pode vir à troco de nada para Mefistófeles, então o
questiona: "E com que ofício retribuo os teus?" (ibid. p. 165). O velho não espera
pouca coisa, visto que percebe o quão egoísta é o Diabo. O astuto Mefistófeles
responde que se certifica servir Fausto na terra quando este fizer “o mesmo” por ele
“no outro mundo” (p. 167). Porém, Fausto se mostra desinteressado pelo outro mundo
no além, o que ele quer é este: “Que importam do outro mundo os embaraços? / Faze
primeiro este em pedaços / Surja o outro após, se assim quiser! / Emana desta terra
o meu contento” (ibid. p. 167). De que vale um outro mundo quando se tem a
oportunidade de realizar as suas aspirações à reveria neste?
Testemunhando o descrédito por parte do doutor, Mefistófeles investe ainda
mais na proposta para conseguir persuadi-lo, oferta-lhe as suas artimanhas e
assegura que ele faria coisas que ninguém jamais vira antes. Apesar disso, Fausto
ainda não está convencido e põe-se a fazer pouco do demônio: “Que queres tu dar,
pobre demo?”. A fraqueza no imaginário demoníaco popular da época, como já dito,
é devido à desvalorização da Igreja Católica como instituição responsável pela
redenção espiritual. A personagem do Satanás era usada como propaganda para
aterrorizar regiões e populações não-cristãs a seguir e aderir ao Cristianismo como
religião oficial, consequentemente, tornando-se fiéis da Igreja.
A partir deste momento, Fausto pressiona Mefistófeles com contradições, em
um teste à prova de fogo para ter certeza sobre a sapiência da Serpente: “Mas,
possuis alimento que não satisfaça”; “Perdido sempre e jamais ganho” (ibid. p.
167). Aliás, ordena coisas mais contraditórias: “Mostra-me o fruto, podre antes que o
colha / E a árvore que de dia em dia se renova” (p. 169). Mefisto prova-se perspicaz
como era de se imaginar ao replicar com precisão e certeza: “De tais bens posso dar-
te a escolha / E põe-me o encargo a fácil prova” (ibid. p. 169). Ao ouvir tais palavras
44

ditas com segurança e postura irretocável pelo Chifrudo, Fausto é persuadido e


estabelece para Mefisto as condições da aposta-contrato: “Se eu me estirar jamais
num leito de lazer / Acabe-se comigo, já! / Se me lograres com deleite / E adulação
falsa e sonora / Para que o próprio Eu preze e aceite! / Seja-me aquela a última hora!”
(ibid. p. 169). O que muda na tentação de Mefisto é a análise que ele faz de Fausto.
Mefisto inicia em um lugar comum, em uma espécie de protocolo do pacto,
oferecendo-o: riqueza, rejuvenescimento, poder material e mágico, domínio sobre a
Terra, etc. Porém, percebe quem é Fausto – um espírito inquieto que busca fugir do
seu estéril mundo por meio ação do progresso –, e joga o jogo do doutor seduzindo-o
com a possibilidade de experimentar sobre a Terra tudo o que quiser para encontrar
a satisfação plena almejada, pois não faz sentido ele ter riqueza, poderes, influência
se continuar sendo um velho insatisfeito e angustiado.
Ambos entram em comum acordo com um suposto aperto de mão (“Topo!” / “E
sem dó nem mora!” (ibid. p. 169)), para só depois ser selado a barganha fáustica com
sangue: “Sangue é um muito especial extrato” (p. 173); que marca a garantia vitalícia
requerida entre os envolvidos pactários. A cena acaba com a avidez de Fausto, isto
é, de sentir o mais puro e irresistível júbilo: “Se vier um dia em que ao momento /
Disser: Oh, para! és tão formoso!” (p. 169). Esta exclamação diz respeito ao prazer
absoluto atingido, o qual Fausto anseia conseguir para somente, dessa forma, se
encontrar pronto para perder a sua alma. Dito isto, estas serão as consequências do
pacto: “Então algema-me a contento / Então pereço venturoso! / Repique o sino
derradeiro / A teu serviço ponhas fim / Pare a hora então, caia o ponteiro / O Tempo
acabe para mim!” (ibid. p. 169). Já esta exclamação é posta ao final para testificar e
fixar a estrutura da aposta-contrato.
Nota-se em todo o diálogo, que tanto Mefistófeles quanto Fausto têm quase o
mesmo tempo de fala, uma vez que ambos são protagonistas da tragédia e aqui o
plano comum está feito. Mefistófeles se expressa em uma linguagem simples, que
pode ser descrita como astuta e insidiosa, já que finge ser submisso a Fausto e lhe
oferece seus serviços. Ele consegue tranquilizar o velho com o seu jeito de falar, tenta
convencê-lo de si mesmo e dissuadi-lo de seu sofrimento, da crise existencial. O
doutor Fausto, por sua vez, identifica-se com Mefisto e, mesmo não totalmente seguro
da autoridade satânica ainda assim decide aceitar as regalias oferecidas, pois acredita
ter a rédea da situação, ter o demônio na garrafa. Por acreditar tanto nisso será cada
vez mais consumido pela cobiça erótica de satisfazer-se, entregando-se à vontade
45

terrena, primordial, animal como única e irremediável saída para seus altos voos
egóicos de aspiração.
Crer no poder metafísico demoníaco e tê-lo como símbolo é parte constituinte
do Romantismo alemão, pois este transformou

[...] Satã no símbolo do espírito livre, da vida alegre, não contra uma lei moral,
mas segundo uma lei natural, contrária à aversão por este mundo pregado
pela Igreja. Satanás significa liberdade, progresso, ciência e vida. Tornar-se-
á moda a identificação com o Demônio, assim como procurar refletir no
semblante o olhar, o riso, a zombaria impressa nas feições tradicionais do
Diabo. O demoníaco torna-se símbolo do Romantismo: demoníaco como
paixão, como terror do desconhecido, como descoberta irracional existente
no homem: a explosão da imaginação contra obstáculos excessivos da
consciência e das leis (NOGUEIRA, 2002, p. 104-105).

Ou seja, através da inquietação fáustica a visão do demoníaco como problema


do Mal, une-se ao problema do conhecimento e da vontade de dominar as forças da
Natureza, anunciando derradeiramente, segundo Nogueira (2002), o fim do terror da
fé absoluta da existência do Diabo, pois o Altíssimo no Prólogo do céu afirma “Que o
homem de bem, na aspiração que, obscura, o anima, / Da trilha certa se acha sempre
a par” (p. 55).

3.3 MARGARIDA SURGE, FAUSTO FOGE

Logo após realizarem o pacto de sangue, Fausto e Mefistófeles começam a


viagem pelo pequeno mundo10 (p. 199), e vão à taberna de Auerbach em Leipzig para
que Fausto prove um pouco da vida boêmia que nunca experimentou pelo fato de
estar sempre em seu quarto estudando. Na taberna, a dupla pactária encontra quatro
jovens estudantes festejando – Frosch, Brander, Siebel e Altmayer – e se junta a eles.
O Anjo das Trevas, então, decide usar de sua artimanha para deixar os jovens bem
mais à vontade, summona uma espécie de vinho especial que deixa os estudantes
mais descontrolados e bestiais à medida que bebem. É, neste momento, que o velho
sábio avisa a Mefisto que quer ir embora dali: “Convinha, acho, irmo-nos agora” (p.
229), pois não encontra naquilo nada a se aproveitar, contudo, Mefistófeles pede-lhe
que aguarde, visto que o melhor ainda estava por vir: “Espera um pouco, que a
bestialidade / Vai revelar-se sem demora” (ibid. p. 229). De repente, o vinho se

10 Definição feita por Mefistófeles para designar a realidade em si a ser experimentada.


46

derrama no chão e, inexplicavelmente, se transforma em fogo, porém, o Diabo,


familiar a este elemento, consegue exortar a chama. Os quatro estudantes irados com
tal brincadeira tentam agredir tanto Fausto quanto Mefisto, no entanto, através dos
poderes mágicos deste, ambos desaparecem da taberna de Auerbach11.
Nesta primeira cena, orquestrada por Mefistófeles, há a intenção de demostrar
um pouco do seu poder – que pode ir do horrendo e propriamente diabólico a meras
travessuras, representadas com um humor grotesco – para Fausto, no sentido de
assegurar que pode cumprir o que prometera a ele. Além de satirizar com o arquétipo
de estudante revolucionário do século XVIII12.
Depois de desaparecerem da taberna, Fausto e o Maligno, aparecem – antes
da cena Rua – na cozinha de uma bruxa, pois Mefisto tem pressa em proporcionar ao
seu senhor a felicidade suprema que ele tanto quer. O intento do Rabo de Seta é
rejuvenescer o velho Fausto para torná-lo mais apto às sensações mundanas. Fausto
se mostra cético, a princípio: “Não! dize, o que há de sair disso?” (p. 261), mas
concorda depois. A bruxa entrega-lhe uma taça com um líquido indescritível: “Faça-
vos bom proveito o trago!” (p. 265), e envolto em uma chama o velho se tornou jovem.
Mais uma vez a magia surge como medida de solução para algo –
rejuvenescimento, desta vez –, como prova do domínio sob a Natureza e como
tradição. A magia da bruxa nada tem a ver com a magia de Mefistófeles, pois aquela
é retratada como uma sabedoria cultural de um povo sem o desejo de usá-la para
prejudicar, causar dor e sofrimento a outrem. Diferentemente da magia demoníaca a
qual há propósito de roubar, matar e destruir a vida humana (João 10:10).
Após beber a poção preparada pela bruxa e transformar-se, Fausto retoma o
ânimo sugado em decorrência dos anos dedicados ao estudo monótono.
Sobressaltado, Mefistófeles não enrola e revela a Fausto o seu objetivo com o
rejuvenescimento: “E em breve sentirás, com o gozo mais genuíno / Cupido a
estrebuchar-se em lépido desmando” (p. 267). Ou seja, mais jovem, Fausto está mais
propenso a captar no mundo as sensações demasiadas aterradoras por meio dos

11 Tal cena lembra a situação, Sobre uma briga entre doze estudantes, da História do Doutor Johann
Fausto: “Em Wittenberg, diante de sua casa, sete estudantes começaram uma briga com outros cinco.
Isso não pareceu ao Doutor Fausto muito justo; levantou-se e lançou-lhes um feitiço, de modo que um
não podia ver o outro. Com raiva, brigavam entre si sem se enxergarem, o que fazia os espectadores
rirem bastante dessa estranha escaramuça. Ao final, todos tiveram de ser levados para suas casas.
Tão logo chegaram a suas moradas, recuperaram a visão” (2019, p. 135).
12
Juventude enérgica, determinada e intransigente que pensa saber de tudo por encontrar-se
cronologicamente afrente na História, sem ao menos analisar a própria História.
47

atributos concedidos pelo corpo menos velho. No entanto, o doutor Fausto não
compactua da mesma interpretação feita pelo Demônio acerca da finalidade do
rejuvenescimento. Ora, enquanto – como acima fora explicado – para Mefistófeles,
além da poção trazer de volta a potência de um Fausto mais novo, atiça também,
sobretudo, sua libido. Logo, é a respeito desta consequência a qual Mefisto tirará
proveito, crente em ter êxito na vigarice (ibid. p. 267).
No entanto, a aspiração de Fausto está além do tesão sentido, pois a sua
vontade encontra-se intrínseca ao tempo que lhe fora rejuvenescido. Com este tempo
a mais (ou a menos!) ele quer vislumbrar à imagem feminina que o atemorizou de tal
forma, cujo semblante avistou no espelho da bruxa (é irônico pensar que um desejo
tão altivo desabrochou em um lugar tão desagradável!): “Só quero ainda espreitar no
espelho a aparição! / Mulher nunca houve aquela!” (ibid. p. 267).
Uma vez que a efígie vista é uma mulher sui generis, traz à tona, de forma
evidente, que aquilo a qual Fausto atina é a autêntica feminidade13, cujo autor, Johann
Wolfgang von Goethe, denomina Ewig-Weibliche [Eterno-Feminino], ou seja, a pulsão
que faz o homem amar e, por consequência, atingir o zênite, levando-o a alçar-se
acima da sua mera existência.

O Eterno-Feminino é uma realidade depositada à qual o homem, quando


ama, se eleva, não por seu próprio poder ascendente, mas porque é atraído
– para o mais alto. Não vou negar que as mulheres são atraentes,
essencialmente atraentes; mas Goethe nos faz perceber que sua atração é
sempre, sempre, o zênite: O Eterno-Feminino nos atrai para o alto (tradução
nossa).14

Quanto a isso, pois está clara a diferença de interpretações entre ambos:


Mefisto traça uma vida regida pela profanidade, por emoções carnais, mundanas,
negando completamente qualquer anseio zenital, desde o princípio, expressado pelo
doutor Fausto. Isto confirma-se na reação do Capeta a solicitação feita por seu amo
de contemplar quem é aquela figura no espelho, visto que, apressa-o, e afirma que
ele terá tempo suficiente para se relacionar com alguma mulher, ademais revela quem
é a imagem no espelho: “Não! Não! há de surgir-te, em carne e osso, a visão / Do

13 A representação feminina provoca uma imensa afeição no doutor, principalmente, pois julga
encontrar nela o oposto da sua frustrada vida passada.
14
El Eterno Femenino es una realidad peraltada a la cual el hombre, cuando ama, se eleva, no por
propio poder ascensional, sino porque es atraído -hacia lo más alto. No se me negará que la mujer si
es algo, es atractiva, esencialmente atractiva; pero Goethe nos hace reparar que su atracción es
siempre, siempre, cenital: Das ewig- Weibliche Zieht uns hinam (ORTEGA y GASSET, p. 103-104).
48

sexo em breve a flor mais bela”, sussurra consigo para Fausto não ouvir, “Com esse
licor na carne abstêmia / Verás Helena em cada fêmea” (ibid. p. 267).
Em contrapartida, diferente do que planeja o Príncipe das Trevas, o erudito
alemão almeja a gênese feminina, um princípio, aquilo que, assim como Helena de
Tróia, simbolize em si a verdadeira beleza. Como Mefistófeles não põe fé na ideia a
qual Fausto quer concretizar, desdenha e o amaldiçoa ao sussurrar que “Verás Helena
em cada fêmea”, pois está convicto que o poder rejuvenescedor e sexual recuperado
pela mágica poção seja o suficiente para estimular a libidinagem de Fausto,
afastando-o de qualquer sensação transcendente. Ou seja, este último verso não é
por acaso, simboliza uma das consequências do trato feito com o Adversário e anuncia
a tragédia vindoura: a autodestruição pelo vício luxurioso.
Goethe utiliza com perspicácia – classicista e romântica – aquela na qual
causou um dos maiores conflitos da Antiguidade, a Guerra de Tróia, iniciada após o
rapto da esposa do rei Menelau de Esparta, Helena, realizado por Páris, filho do rei
Príamo de Troia. Páris sequestra a princesa Helena após apaixonar-se ferozmente
por ela enquanto estava em Esparta para ter um encontro diplomático. A primeira
figura por quem sente atração ao ser rejuvenescido representa a guerra que será
travada por Fausto para libertar-se do páthos. Ou seja, o amor será proibido e, caso
mergulhe profundo neste amor, somente o infortúnio trará.
Fora da Cozinha da bruxa, o velho doutor Fausto, o homem inquieto, que sofria
com um sentimento de insuficiência, de frustração, enquanto passou a maior parte da
sua vida buscando como único objetivo o conhecimento através dos livros e mesmo
assim não encontrou segurança para a sua adequação no mundo, transforma-se num
jovem doutor Fausto, revigorado e completamente propenso a gozar da liberdade e
das regalias do trato feito com o Diabo, isto é, designar o rumo da sua própria
trajetória. Em outras palavras, o erudito alemão pode, enfim, desfrutar na prática o
que dissera Mefisto na cena Quarto de Trabalho: “Hás de saber viver, assim que em
ti confiares” (p. 199). É, portanto, do lado de fora, onde Mefistófeles e Fausto deparam-
se com aquela na qual será o amor e a dor do agora jovem estudioso, Margarida
(também chamada pelo diminutivo Gretchen15) – doravante, se iniciará todo o drama
da tragédia anunciada outrora.

15
Ao longo da tragédia, Goethe se vale com frequência desse diminutivo para se referir a Margarida
(no original, Margarete) (MAZZARI, 2016, p. 269).
49

Detalhe importante acerca da tragédia de Margarida: todas as cenas


subsequentes entre o casal, Margarida e Fausto, apresentam influências do teatro do
Sturm und Drang por romper com todas as regras poéticas, principalmente com as
três unidades de lugar, tempo e ação16. Pois, segundo os jovens poetas, uma nova
era também exigia uma nova linguagem de forma, visto que a razão por si só não leva
a um conhecimento total do mundo, entretanto, ela requer de um suplemento por meio
dos sentimentos de um indivíduo brilhante.
A cena Rua, inicia-se com o confiante Fausto, em uma postura plenamente
discrepante da sentida ante a figura do espelho na cozinha da bruxa, tentando chamar
a atenção de Margarida para si de maneira cortês e aproximando-se dela, para assim,
excitá-la. Com “Formosa dama” (p. 271) – tratamento exclusivo a moças de elevada
classe social, algo que não condiz com a realidade social de Margarida – se dirige à
jovem e coloca-se a “Oferecer meu braço e companhia?” (ibid. p. 271). Todavia,
Margarida lida com o elogio falando-lhe que “Nem dama, nem formosa sou” (ibid. p.
271), e responde sobre a companhia oferecida em seguida: “Posso ir pra casa a sós,
e vou” (ibid. p. 271). Ou seja, ela rejeitou Fausto, preferiu seguir só, em uma postura
autoconfiante da qual não depende de homem para tal, visto que observando sua
resposta, ela provavelmente tenha conhecimento sobre homens ricos cortejarem
meninas pobres e de como este tipo de relação acaba depois.
Depois de Gretchen partir, Fausto começa mais um dos seus monólogos, mas,
desta vez, curto e diferente dos anteriores, romântico:

Por Deus, essa menina é linda! / Igual não tenho visto ainda / Tanta virtude e
graça tem / A par do arzinho de desdém / A boca rubra, a luz da face / Lembrá-
las-ei até o trespasse! / O modo por que abaixa a vista / Fundo, em minha
alma se regista / Sua aspereza e pudicícia / Aquilo então é uma delícia! (ibid.
p. 271).

Fausto somente consegue apreender a realidade por um único aspecto, o


emotivo, e este aspecto demonstra ser o oposto ao de Margarida que, em sua
apresentação: saindo da igreja e afastando a tentação lascívia do doutor, está mais
voltado para a busca espiritual, algo do qual o jovem erudito abriu mão.
A paixão intempestiva sentida por Fausto o contradiz como doutor das ciências,
como ser que usufrui de suas faculdades intelectivas racionalmente; ocorreu uma

16
Goethe, como é sabido, integrou o movimento pré-romântico Sturm und Drang, logo a primeira parte
do Fausto sofreu influências dos ideais defendidos deste Movimento nacional-irracionalista.
50

mudança não somente no seu corpo, mas também em seu espírito. A figura no
espelho, Helena de Tróia, dominou todos os seus pensamentos e sentimentos por ser
a representação da beleza outrora distante. Outro ponto a destacar é a nitidez do
interesse ínfimo por Margarida como indivíduo, entretanto, Fausto é regido por seus
instintos, por suas paixões, então esse pouco interesse é irrelevante para ele17.
Mefisto entra em cena e o seu senhor conta a respeito da menina linda e diz
estar completamento apaixonado por ela e pede para o Capiroto: “Escuta, tens de
arranjar-me a mocinha!” (ibid. p. 271). Sem embargo, Mefistófeles adverte Fausto:
“Aquela? ora! do padre vinha / Que de pecados a achou inocente / Passei ao
confessionário rente / É jovem muito ingênua e boa / Que foi à confissão à toa / Sobre
essa eu não tenho poder” (p. 273).
Nesses versos é perceptível a alma religiosa de Margarida – algo que será de
suma importância no decorrer da tragédia – como alguém compromissada com os
ensinamentos, sacramentos e a moral cristã, demente a Deus, com propósito de
fortalecer o espírito para não cair em desgraça. Outrossim é a extensão do poder
de Mefistófeles que se mostra diminuto e ineficaz ante os devotos a Deus.
Consequentemente, reconhece que Deus, com quem fez uma aposta no Prólogo do
Céu é soberano e mais poderoso.
Entretanto, mesmo sendo menos poderoso que o Altíssimo, o Diabo ainda é o
legítimo pai da mentira, visto que “ele foi homicida desde o princípio e não se apegou
à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é
mentiroso” (João 8:44). Portanto, não é de se admirar Mefisto dizer que não tem
autonomia para fazer tal ato – seduzir Gretchen por meio de magia demoníaca –, pois,
desse modo, nas entrelinhas, ele intensifica a cobiça de Fausto transformando a
conquista por Margarida mais atrativa. Sobretudo, a jovem moça provoca em Fausto
a reminiscência da mocidade virtuosa – tão árdua para o erudito –, aquela vista outrora
antes do doutor decidir acerca do suicídio (p. 87), pois Gretchen mais que personifica,
ela encarna a beleza de um tempo (até então) não maculado pela velhice infrutífera
da qual possuía, antes do pacto, o velho Fausto em sua própria existência, cujas
expectativas já se encontravam destruídas.

17
Observe-se que Goethe cria implicitamente um contraste entre os espaços anteriores a esta cena em
rua aberta: enquanto Fausto está vindo da "cozinha da bruxa", a moça acaba de deixar a igreja. Das
palavras posteriores de Mefistófeles pode-se depreender que, na verdade, este já havia espionado e
de certo modo "eleito" Margarida para a aventura amorosa de Fausto (MAZZARI, 2016, p. 269).
51

O ensaísta José Ortega y Gasset analisa acerca desse ideal feminino. Segundo
ele, este ideal deve ser compreendido sob o critério histórico e, além disso,
considerando as aspirações próprias de diferentes povos – neste caso, o povo
romântico alemão.

Um indivíduo, como um povo, é mais exatamente definido por seus ideais do


que por suas realidades. Alcançar nossos objetivos depende de boa sorte;
mas aspirar é a obra exclusiva de nossos corações. Por isso, os tipos de
feminilidade que são ao mesmo tempo formas de idealidade, marcam o
horizonte das capacidades latentes em cada povo. Em qualquer lugar e em
todos os tempos, as silhuetas do eterno feminino sobem ao zênite como
constelações, marcando destinos étnicos. (tradução nossa).18

Mefisto completa o seu discurso se referindo a Fausto como “João Corruptor”


(ibid. p. 273), porque ele “Pra si cobiça cada flor” (ibid. p. 273), em outras palavras,
quer se relacionar com todas as meninas. Por outro lado, o que Mefistófeles quer
mesmo não é dar lição de moral ao seu senhor, mas, contraditoriamente, dissuadi-lo
de Gretchen, objeto do seu desejo, visto que o Demo percebe que não poderá
satisfazer o desejo de Fausto, pois suas artes são inexpressivas frente a Deus e, por
consequência, inúteis também aos seus fiéis.
Comparado a um galã sedutor de mocinhas, Fausto devolve a referência no
mesmo patamar e chama o demônio de "Mestre na arte da honradez" (ibid. p. 273),
algo comum na vida acadêmica, todavia, neste caso foi ironia. Mefistófeles, tentando
ainda fazer Fausto abdicar do que quer, alega ao seu senhor que precisa ter paciência
e prudência, mesmo assim, Fausto ignora o Tinhoso e lhe põe contra a parede ao
assegurar que é capaz de romper o pacto caso não tenha nos “braços o anjo de
mulher” (ibid. p. 273).
A propósito, “anjo de mulher”, “mocinha”, e mais adiante “anjo formoso”, são
alguns dos prosônimos utilizados por Fausto para referir-se à Margarida, pois ele a
vincula substancialmente a particularidades tanto castas quanto divinas. Coisa do qual
Mefistófeles não faz: “belezinha”, “jovem ingênua” e “bonequinha humana” são as
outras formas atribuídas a Gretchen pelo Demônio por considerá-la imatura e

18
Un individuo, como un pueblo, queda más exactamente definido por sus ideales que por sus
realidades. El lograr nuestros propósitos depende de la buena fortuna; pero el aspirar es obra exclusiva
de nuestros corazones. Por esto los tipos de feminidad que son a la vez formas de idealidad, marcan
el horizonte de las capacidades latentes en cada pueblo. Dondequiera y em todo tiempo, las siluetas
del eterno femenino se elevan al cenit como constelaciones, preestableciendo los destinos étnicos
(ORTEGA y GASSET, p. 62).
52

ameninada. Não obstante, existe algo a mais para ser considerado além da mera
distinção de tratamento elegido pela dupla pactária.
Ao mesmo tempo que o doutor a endeusa, revestindo-a de qualidades
angelicais; Mefisto a menciona como inocente e por fazer, testifica a mundanidade, a
atração e o apelo sexual que Margarida excita. Logo, apesar de tanto Fausto quanto
Mefistófeles caracterizar a jovem como ingênua e infantil, é o seu futuro amante que
a eleva para um nível transcendental, acima do gênero humano, aproximando-a do
zênite no qual leva ao encanto, a beleza, ao atrativo provocado pelo feminino
goetheano.
De volta à ameaça da quebra do pacto, ainda que realize tal ato, a alma de
Fausto ainda seria de Mefisto, porém o que pesa para o Capeta é saber que foi
incapaz de satisfazer, apesar de todas as suas artimanhas e lábia satânica, um mortal,
pois de humilhação já basta o próprio Deus. Porém, algo a considerar é, mesmo que
o Doutor Fausto, porventura, saiba disso, não anula o nível de sandice no qual se
encontra, pois isto representa a suspensão da realidade, da força descomunal da
paixão sentida por Margarida exercida sobre ele; desafiar o Diabo, é a prova.
Feita a ameaça, a postura de Mefistófeles muda rapidamente, já que ele teme
que o pacto seja desfeito, logo confirmando seu fracasso diante de Deus e de
Fausto. Aliás, ele refaz o seu discurso de impossibilidade do desejo e estipula um
prazo, “De uns quinze dias eu preciso” (ibid.), para amansar Fausto da sua vontade.
Em contrapartida o erudito reflete qual a utilidade do pacto, e garante que poderia
seduzir a “menina” mesmo se “Tivesse [...] sete horas de prazo” (ibid.). O doutor não
se arrepende do trato feito, mas traz ao campo da utilidade a serventia de ter um
Demônio com poderes mágicos, sobrenaturais, e não conseguir ter êxito naquilo que
quer ou ordena a ser feito. E como está encharcado de paixão e mais jovem, acredita
ser mais eficaz, quiçá mais poderoso que o Capiroto – a imaginação romântica alça
voos cada vez mais altos na alma do estudioso alemão. Por outro lado, Mefisto,
novamente, tenta desestimular seu amo o convencendo de que “Mais vivo e bem
maior será / Se antes moldares e aprestares” (p. 275), ou seja, não será prazeroso o
suficiente caso ele se apresse a consegui-la, mas Fausto ignora.
Então, o Capeta cede ao intento do doutor e o explica como será executado o
seu plano de seduzir "a bonequinha humana" (ibid. p. 275) – é evidente através dessa
caracterização que Margarida ainda é deveras inocente e infantil, logo, influenciável
por não ter ainda formação moral consolidada nem imaginário amplo, e Mefisto tirará
53

vantagens disso com as suas artimanhas. Enquanto Mefistófeles explica, a volúpia


sedenta de Fausto só aumenta, a sua cobiça pela menina é avassaladora, e exige ao
Sete Peles: “Traze-me algo do anjo formoso! / Leva-me ao seu lugar de pouso! / Traze-
me um lenço do seu seio / um laço ao meu ardente anseio!” (ibid. p. 275).
Esses versos demasiadamente confirmam que Fausto, independentemente de
divinizá-la, quer saciar-se com Margarida carnalmente a construir um relacionamento
amoroso, conjugal – coisa que se confirmará durante o drama. Se antes Mefistófeles
estava desaconselhando o seu proprietário, agora está todo animado e responsável –
“Hás de ver com que afã te ajudo” (ibid.) –, visto que, além de ratificar o pacto ainda o
renova. Pois, é através da luxúria o modus operandi de Mefisto, e presenciar Fausto
ser consumido veementemente graças ao seu talento é regozijante. Ademais,
mantêm, mesmo mínima, a possibilidade de vencer Deus. Por isso o Demônio mudou
sua postura repentinamente e agora está emprenhado em ajudar Fausto, demonstrar
que é útil, serviçal, consciente da sua missão tratada no momento do pacto, como
forma de garantir a vitória na aposta terrena. Não bastando só o comprometimento da
sedução, Mefistófeles ainda certifica a Fausto adentrar ao quarto de Margarida,
provavelmente à noite.
Mesmo advertindo Fausto a esquecer Margarida, Mefisto se mostra satisfeito e
sossegado por conseguir manter o pacto. Desta feita, não há mais risco do doutor,
porventura, quebrá-lo, visto que a paixão do jovem alemão arde ferozmente. Ambos,
agora, têm um objetivo em comum, e para ter êxito, Fausto sugere ao Diabo, como
forma de seduzir Gretchen, de arranjar um presente para impressioná-la e, assim,
despertar o interesse dela.
Abre-se a cena Crepúsculo (p. 281). Margarida está em seu quarto, em frente
à penteadeira trançando os cabelos. Enquanto faz o penteado, não para de pensar
em Fausto: “O senhor de hoje, quem me dera / Saber-lhe o nome, quem ele era!” (p.
281). Devido aos seus traços fisionômicos, de postura corajosa e altiva, ela julga ser
Fausto um homem da alta sociedade, coisa que ele é mesmo. Apesar de ter
dispensado aquele quem a cortejava em um primeiro momento, Margarida flagra-se
demasiada curiosa sobre o dito-cujo. A interação feita por Fausto surtiu efeito
comunicativo suficiente para a imaginação de Gretchen.
Terminado o penteado, Margarida sai do quarto; é neste momento que Fausto
e Mefisto entram. Ao adentrarem, Fausto pede a Mefistófeles que o deixe sozinho,
então, outra vez, ele começa o seu monólogo e delira no quarto da amada por sentir
54

sensações espiritualmente elevadas; a deidade da figura de Margarida se fortalece,


não escapando nem os seus aposentos desta atmosfera singular: “Sinto flutuar, cá, ó
menina / Teu gênio da ordem e harmonia / Que, maternal, teus passos guia” (p. 283).
A propósito, aquela concupiscência atiçada ao vislumbrar o capital estético de
Gretchen é minimizada pelo sentimento afetivo de Fausto no instante no qual ele
adentra ao organizado quarto da mocinha.
O espírito romântico do doutor o faz delirar mais uma vez de desejo, mas dessa
vez é ao sentir o perfume, o clima suave e a presença de Margarida – afinal de contas
aquele era o quarto dela –, ou seja, ele passa a saber mais sobre o ilustre âmbito da
individualidade da amada. Verdade seja dita, já é mais do que o suficiente para
perceber como a postura de Fausto muda quando é tomado pelo sentimento amoroso,
dado que a sua vontade começa a manifestar singulares formas ao ponto dele próprio
condenar a excitação sentida: “E tu! que foi que aqui te trouxe? / Que emoção sinto,
estranha e doce! / Que me põe na alma este langor espesso? / Mísero Fausto! ah, já
não te conheço” (ibid.). Uma força sublime o invade e o faz navegar pelas ondas deste
oceano mui vasto e profundo o qual está submergido. Seus sentidos entorpecem-se
sob o efeito desta sensação impactante e voraz; desorienta-o da realidade.
Mefistófeles volta para o quarto para avisar ao jovem romântico do regresso de
Gretchen: “Ligeiro! anda! ela chega ali em frente” (p. 285). Todavia, antes de sair, o
Demônio coloca o presente que providenciou a mando do seu senhor, um estojo de
joias, no cofre de Margarida e ambos saem. Margarida retorna ao “asilo” (p. 281)19,
como chamou Fausto enquanto delirava, e, enquanto cantarola, sente uma presença
maligna, um clima bastante abafadiço e desarmonioso – diferentemente de Fausto
que, mesmo apaixonado, sentiu uma presença tênue e ordenada no quarto da garota.
Ao checar o cofre, encontra o estojo: “Que linda caixa! Como veio ter cá? / O cofre
não fechei, quiçá? (p. 289). Então, em posse do tal objeto, decide abri-lo e o que
encontra a deixa encantada: “Que é isso? Deus do Céu! à fé / Em minha vida não vi
cousa igual! / Que adorno! a uma fidalga, até? / Não ficaria em festas santas mal!”

19 Kerker, no original, cárcere – com esta palavra Goethe cria uma associação retrospectiva com o
“quarto de trabalho” de Fausto (apostrofado então de “cárcere”) e também já faz uma referência
antecipatória ao futuro “cárcere” real de Margarida (MAZZARI, 2016, p. 281). Antes de Mefistófeles
aparecer, o erudito encontrava-se refém da própria vida limitada da ciência infértil, no seu “cárcere”. Do
mesmo jeito sente-se Margarida sobre sua vida regrada pelo tradicionalismo, e assim como Fausto,
sustenta o desejo de modificar esta realidade vivenciada (o que será demonstrado à frente). O que,
diga-se de passagem, demonstra como será o relacionamento complementar-contraditório entre as
personagens.
55

(ibid.). Eram joias caríssimas – colar, pulseira, brincos – que “Dão logo um outro
aspecto à gente!” (ibid. p. 289).
Vê-se nestes versos, acompanhada da admiração, a revelação da pretensão
interior de Margarida: ascender socialmente a fim de ir a um mundo distante do seu
cubículo e da sua pacata vida provençal. Em posse das joias, ela tem nas mãos a
chance de conseguir relacionar-se com um aristocrata, como Fausto o é, e concretizar
seu desejo. Logo, a curiosidade outrora acerca do altivo homem que a abordou na
saída da igreja era a respeito dessa expectativa de Margarida.
Decerto, Mefisto já sabia disso quando elegeu Gretchen como potencial
parceira para Fausto, pois mesmo considerando-a infantil, ele sabe que a mulher-
Gretchen ambiciona estar num lugar de destaque na estrutura social, portanto, como
forma de trazer à tona a recôndita feminilidade coberta pela ingenuidade, Mefisto
desperta com as joias afanadas a consciência da mulher soberana em Gretchen, cuja
atração é irresistível para qualquer homem. Ou seja, o plano acertado do Diabo era
estimular o lado mulher da mocinha, afastar quaisquer características de criança;
deixá-la mais afeita aos objetos terrenos e plena para conseguir o que quiser através
da beleza e da sensualidade de uma mulher-feita. Mefistófeles conseguiu preparar
perfeitamente o terreno de modo sútil, mas eficaz, para a aproximação de Gretchen
com Fausto.
A cena seguinte, Passeio (p. 295), começa com Mefistófeles irado: “Com mil
traições de amor! com inferno e os elementos! / Quisera eu conhecer praguedos mais
odientos!” (ibid.). O motivo da sua raiva é porque Margarida ao pôr as joias, foi
apresentá-las a sua mãe e, esta por ser muito religiosa notou que as joias não tinham
uma boa energia, recolheu as bijuterias e entregou ao padre da sua igreja:

Pois vê, do adorno que eu pra Gretchen trouxe / Um padre há pouco


apoderou-se! / A mão chegou; a cousa espia / No íntimo logo se arrepia / Tem
a mulher olfato raro / Do livro de horas vem-lhe o faro / Sente em qualquer
traste, de plano / Se é objeto sagrado ou se é profano” (ibid.).

Segundo Nogueira (2002), o início da Modernidade na Europa ocidental é


marcado por um incrível medo do Diabo, pois

O Diabo podia estar em qualquer coisa ou em qualquer pessoa. Portanto,


tudo é suspeitoso e perigoso, uma vez que Satã e os seus demônios são os
mestres do disfarce. Pois seria desastroso se aparecessem sempre aos
homens como são na realidade [...] Frente a essa ilimitada capacidade de
56

manifestação do demoníaco, a comunidade cristã se via submergida em um


delírio persecutório, presa a um estado mental no qual surgia constantemente
a dúvida de identidade dos próprios amigos (NOGUEIRA, 2002, p. 61-62).

Mefistófeles continua narrando para Fausto o que presenciara e diz que


Margarida ficou cabisbaixa, pensando nas joias, porém, ainda curiosa para saber
quem a presenteou: “Irrequieta anda ela / Não sabe o que quer, deve e anela / Tem
sempre as joias no sentido / Mais ainda quem lhas tem trazido” (p. 297). Ou seja,
mesmo com o confisco do presente, o plano ainda sobrevivia graças aos desejos
particulares e as dúvidas de Gretchen acerca do remetente.
Como não deu certo a primeira tentativa com as joias, Fausto planeja junto ao
Demônio arranjar outras joias, fora isso, dessa vez o doutor ordena Mefistófeles a se
aproximar da vizinha de Margarida, Marta Schwerdtlein20 – esta passa por uma
situação delicada com o marido, o que é a oportunidade perfeita para o Chifrudo –,
para facilitar seu plano de sedução: “Anda, e acomoda-o à ideia minha! / Vai lá e
apega-te à vizinha! / Em frouxidão, Diabo, não caias / Corre trazer novas alfaias!” (p.
299). Pois desta forma, aproximando-se de alguém da confiança de Margarida, Fausto
aumentaria suas chances de estar mais perto e, consequentemente, ter com a jovem
amada.
Em casa, Marta está sozinha e só pensa no marido que a deixou “sobre a
palha” (v. 2868). Ela evita se relacionar, pois, não está certa da morte do marido:
“Contudo, mal nenhum lhe fiz / Deus é que sabe quando o quis / Morreu, talvez! Que
dor! Coitado! / Tivesse ao menos o atestado!” (p. 303). Nesse momento, entra em
cena Margarida e mostra a vizinha um outro estojo de joias que outra vez achou no
cofre do quarto: “Encontro um outro estojo – lá / Dentro do cofre, há um momento /
Com maravilhas! bem mais rico / Do que o primeiro, certifico” (ibid. p. 303). Ao vê-as,
Marta aconselha Gretchen a não mostrar as joias para a mãe dessa vez, e sugere o
uso das bijuterias somente em sua residência, longe do alcance da religiosa mãe. No
entanto, esse conselho é inútil, pois, ao encontrar novamente as joias, Gretchen,
diferentemente do que fez outrora, escondeu-as, tomou-as para si. Por isso o
conselho de Marta é inútil, Margarida sabe o que fazer para evitar, não somente a
intervenção da mãe, mas de qualquer um, pois vislumbrou claramente a oportunidade
de viver uma vida distinta da atual, tal qual no momento que experenciou o

20[...] a senhora Marta, espevitada e alcoviteira, desempenhará para sua jovem vizinha um papel
semelhante ao que Mefisto exerce para Fausto nessa aventura amorosa (MAZZARI, 2016, p. 301).
57

amadurecimento da própria feminilidade, no qual a mocinha obediente às normas do


convívio social e familiar sucumbe ante à mulher que se ergue através da expectativa
de ser senhora do próprio destino.
Não se sabe a idade de Marta, mas é perceptível que ela não é religiosa –
isso facilita bastante as coisas para Fausto e companhia – nem sabe direito sobre os
dogmas cristãos, visto que se fosse o caso, ela suspeitaria e deduziria o porquê mais
um estojo de joias fora deixado para Margarida e o mandaria levá-los diretamente à
Igreja, como fez anteriormente sua mãe.
Enquanto conversavam, alguém bate à porta, Marta espia pela cortina e vê
que é “um cavalheiro estranho” (p. 305) e manda a amiga atender e o deixar entrar.
Mefistófeles entra na casa e com cortesia, educação e gracejos – típico de um Diabo
erudito – pergunta sobre Marta Schwerdtlein a Margarida, pois, traz consigo uma
informação acerca do seu marido. Com astúcia, o Demônio aproveita o ensejo de
intensificar as vontades sociais de Margarida, que estava adornada com as joias,
tratando-a como uma fidalga não somente pelas joias usadas, mas pela postura
autêntica de mulher que nasceu para se tornar uma: “Não é só isso; é o seu contorno,
/ O seu donaire, o firme olhar! / Como me apraz poder ficar. (p. 307)”.
Neste instante a dona da casa aproxima-se do Príncipe das Trevas e este
informa que seu cônjuge “Está morto e manda abraços” (ibid. p. 307), e está enterrado
“Em Pádua sepultado jaz / Perto de Santo Antônio, em ermo” (p. 309). Marta chora
bastante pela perda, porém pede ao mensageiro um atestado de óbito. Ele, assim,
confirma que retornará à noite com este em mãos, além de vir acompanhado de uma
testemunha – no caso, Fausto. Antes de ir embora, Mefistófeles solicita a presença
de Margarida lá à noite para apresentá-la a Fausto: “E a nossa jovem, não virá? / É
rapaz fino, assíduo viajante / Com damas não vi mais elegante” (p. 319).
O Capeta “matou dois coelhos com uma cajadada só”, pois conseguiu arranjar
o ambiente perfeito para Fausto ter Gretchen definitivamente; e deixou Gretchen ainda
mais aberta a possibilidade da qual poderá ser mesmo uma mulher da alta classe ao
conquistar o amor de um homem aristocrata, como soou, nas palavras de Mefisto, ser
Fausto. Na Rua (p. 325), a dupla pactária se encontra, então Fausto questiona como
está o andamento do plano ao que o Capiroto responde: “Bravos, que ardor! Até
remoça / Em breve Gretchen será vossa / Vê-la-eis na tal vizinha Marta” (ibid.).
Mefistófeles também diz que Marta irá ajudá-lo, mas não antes de obter o atestado de
58

óbito do marido, além da testemunha. Fausto concorda e então tratam de providenciar


tal certidão.
Então, no Jardim (p. 333) de Marta, os quatro se encontram e passeiam de um
lado a outro: Margarida de braço dado com Fausto; Marta com Mefistófeles. O jovem
casal parece estar se divertindo um com o outro. Margarida, tímida, quer expressar
esse momento, então diz: “Bem sinto que me poupa o cavalheiro / Pra confundir-me,
com certeza / Contenta-se com pouco um forasteiro / Por hábito, por gentileza / Sei
que o senhor tão experimentado / Gosto algum pode dar ao meu pobre palavreado”
(ibid.). Mas Fausto trata logo de fazê-la segura na forma mais romântica possível:
“Mais gosto um dito, um teu olhar encerra / Do que todo o sabor da terra” (ibid.). A
timidez da moça traz consigo também arrependimento por ter julgado, à primeira vista,
Fausto como mais um senhor de classe alta a procura de satisfação sexual com
meninas humildes, desprovidas de posses, por julgá-las fáceis. Porém, admitiu o seu
equívoco e tranquilizou-se devido aos eventos ocorridos: o estojo de joias encontrado
duas vezes no cofre do quarto; a conversa persuasiva tida com Mefistófeles e agora
a postura e as palavras sedutoras do doutor. Enquanto isso, no outro casal,
Mefistófeles usa de todo o seu charme e astúcia para cortejar Marta e distraí-la: “Diz
o provérbio: Esposa digna e lar feliz / Têm preço de ouro e de rubis” (p. 341). Mefisto
consegue distanciar Marta de Margarida, esta está tão encantada com Fausto que
nem se dar conta do afastamento.
Sozinha com o amado, Gretchen apanha uma flor e põem-se a despetalá-la
dando início assim à brincadeira nascida na França conhecida popularmente como
bem me quer... mal me quer21. A jovem recorre a esta brincadeira para certificar se o
objeto do seu amor corresponde a esse mesmo amor ou não. De uma forma ou de
outra, sobrevive no interior de Margarida um pouco daquilo a qual ela escolheu
abandonar: a infância. A última pétala retirada da flor, na qual comprova
hipoteticamente a verdade sobre a reciprocidade dos amantes, veementemente
comprovada por Fausto, marca a desgraça de Margarida e o resultado da consulta:
“Bem-me-quer!” (p. 345). É a partir desta inocente brincadeira, portanto, que Gretchen
cede ao amor de Fausto22, convicta indubitavelmente que causou nele o amor
verdadeiro, que nem se tivesse tomado para si, de forma análoga, o pitaco de

21 Curiosamente, no original, effeuiller la marguerite, significa “desfolhar a margarida”.


22 [...] Margarida só passa a comportar-se e a falar de maneira solta e descontraída após consultar a
flor e assegurar-se pelo seu oráculo do amor de Fausto (MAZZARI, 2016, p. 331).
59

Mefistófeles dado ao velho doutor outrora: “Hás de saber viver, assim que em ti
confiares” (cf. p. 14).
Após a confirmação da flor, Fausto e Margarida, enfim, declaram uma para o
outro seus sentimentos recíprocos – que em breve será quebrado por Fausto: “Não
estremeças! Que este olhar / Que esta pressão da mão te diga / O que é inexprimível
/ Dar-se de todo e sentir na alma / Um êxtase que deve ser eterno! / Eterno! sim! –
seu fim seria o desespero / Não, não, sem fim! sem fim!” (p. 347). Margarida então
corre para dentro de um caramanchão23 e Fausto a segue, e lá se beijam pela primeira
vez: “Amado meu! amo-te com a alma inteira!” (p. 353).
Passado o encontro revelador, na cena Floresta e Gruta (p. 359), Fausto decide
ir à Natureza para agradecer ao Gênio da Terra por concretizar os seus desejos e
proporcionar sensações tão boas: “Ah! como sinto agora! A esse êxtase / Que mais e
mais dos deuses me aproxima” (ibid.).
A Natureza é o refúgio do romântico, pois nela não há amarras formais,
restrições ou qualquer tipo de regra artística. A Natureza é o invólucro da arte, e esta
deve estar comprometida com a veracidade, contudo não apenas com o belo, o
proporcionalmente harmônico, o agradável, mas também com o feio, o sombrio, o
grotesco. Ora, nem tudo o que há na Natureza é atrativo por sua beleza. Por exemplo,
o ornitorrinco não é um animal belo, mas sim, intrigante como ser: diferente do todo,
desproporcional, desconformemente natural comparado a outros bichos e espécies.
Portanto, o que há de maravilhoso na Natureza é o seu mistério, segredos, ou seja,
tudo o que existe de bonito e encantador, feio e assustador.
Com a vontade de dizer tudo sobre a grandiosidade e o temor da Natureza, o
gênio irá trazer à tona em sua obra – literatura, pintura, arquitetura: mais abundância
de símbolos e imagens esteticamente poderosas em sua essência, apresentando-as
com a totalidade das formas e conteúdo, consequentemente, elevando o espírito
apreendedor de quem as contempla. Mas para este fim, segundo Victor Hugo, a
Natureza não deve estar submetida à crivos artísticos, protocolada como um manual
de como fazer arte e afins, ela deve romper com as restrições definidas pelas
tradições Classicistas. Pois, a Natureza liberta de qualquer imposição, dará à Arte a
estética da totalidade no qual o sublime e do grotesco se misturam.

23Estrutura leve construída em parques ou jardins, geralmente de madeira, que se pode cobrir de
vegetação e usar para descanso ou recreação.
60

Fora a gratidão demonstrada, Fausto tem consciência do quão dependente de


Mefisto está – tudo, desde o pacto, ocorreu por meio dele, da sua magia e
malandragem –, e mesmo observando isso, não se dá conta que está cada vez mais
sendo consumido pelo demoníaco: “Juntaste o companheiro que não posso / Já
dispensar” (ibid.). E falando no Diabo, ele aparece na cena, o que faz surgir
repentinamente o anseio de Fausto por Margarida novamente: “Dela estou perto, e ao
longe, aonde me for / Jamais posso olvidar, jamais perder-lhe o encanto / Invejo até o
corpo do Senhor / Quando seu lábio o toca no ato santo” (p. 367). Sem saber o que
fazer perante a paixão sentida pela amada, Fausto tentou encontrar consolo com a
Natureza, algum meio de encontrar uma resolução de sair do enrosco chamado
Margarida. Ele sabe o que provocou nela, mas põe a culpa em Mefistófeles: “Fui
arruiná-la, a ela, à sua paz! / Tu, esta vítima exigiste, Satanás! / À ardente espera,
põe, demônio, fim! / O que há de ser, logo aconteça! / Possa ruir seu destino sobre
mim / E que comigo pereça!” (p. 369). Ao ouvir aquilo, Mefisto não entende Fausto,
que tem toda a liberdade de encontrá-la: “Como efervesce e arde! É mercê / Ir consolá-
la, asno testudo! / Onde tal cabecinha a solução não vê / Julga ser logo o fim de tudo”
(p. 369). Todavia, sabe que Fausto não tem coragem por temer a religiosidade dela,
assim como o seu sentimento, por isso diz isso. Fausto não quer fenecer de amor
como Werther24, ele quer fugir da Verdade.
Como Margarida está perdidamente apaixonada por Fausto, ambos se
encontram novamente no Jardim de Marta (p. 379), e é onde acontece a
Gretchenfrage [pergunta de Gretchen], uma das cenas mais importantes da obra:
“Dize-me, pois, como é com a religião?” (ibid.). Esta pergunta em relação ao juízo
religioso cristão de Fausto é bastante relevante para a tragédia, visto que Margarida,
mais crescida e cautelosa, amparada pelos ensinamentos cristãos, não confia em
Mefisto, e quer afastar o amado da influência dele: “Este homem que anda ao teu
redor / Odeio-o na mais funda alma interior / Em toda a minha vida, nada / No coração
já me deu tal pontada / Como desse homem a vulgar feição” (p. 385). Margarida quer
demonstrar ao doutor Fausto que as virtudes estão acima dos vícios, que desgarrar-
se do demoníaco para alcançar o sumo bem é uma peleja digna, honrosa e

24
No livro, Os Sofrimentos do Jovem Werther, um dos romances mais importantes da fase romântica
alemã e um clássico da Literatura universal, publicado em 1774, Goethe apresenta a seguinte situação:
Werther, um jovem que vê em Charlotte, mulher noiva de Alberto, a personificação de seus ideais. Por
vê-la dessa maneira, Werther se apaixona profundamente pela dama e se destrói num amor
entusiástico e desesperado que o leva ao suicídio.
61

recompensadora. No entanto, mesmo suspeitando, a jovem cristã ainda não tem


certeza de Mefisto ser o Diabo, mesmo assim não diminui os esforços para salvar o
amado da má companhia. Ademais, o que mais incomoda a jovem, de fato, não é
somente o prenuncio à salvação da alma de Fausto, mas sim a obstrução do vínculo
dos dois, o que resultaria num veto a realização do desejo de ascender socialmente,
uma vez que isso só será moralmente possível (e admissível dentro da comunidade)
através do casamento cristão.
Quanto a pergunta feita por Gretchen, Fausto retruca quanto a inefabilidade de
Deus, e manifesta o seu pensamento panteísta: Disso enche o coração até o coração,
até ao extremo, / E quando transbordar de um êxtase supremo, / Então nomeia-o
como queiras, / Ventura! amor! coração! Deus! / Não tenho nome para tal! / O
sentimento é tudo; / Nome é vapor e som, / Nublando ardor celeste.” (p. 383). Além
de deixar claro a oposição Margarita-Mefistófeles – que já se apresentava através de
como o doutor a mencionava com características divinas –, o verso “Sentimento é
tudo”, exprime a influência do movimento Sturm Und Drang, por absolutizar a
sensação como determinante da ação. Ante a resposta de Fausto, embora Gretchen
não consentir com a convicção do doutor sobre a religião cristã, suplica ao amado
atentar-se aos sacramentos e a liturgia cristã, sobretudo, porque o matrimônio faz
parte deles25.
Tais divergências entre ambos, apesar de importantes, não inibem as afeições
de Margarida que são verdadeiras e orgânicas. Pois, a admiração e os sentimentos
pelo amado são declarados em várias ocasiões, em especial quando está sozinha no
escuro do seu aposento, na cena Quarto de Gretchen – anterior a cena Jardim de
Marta –, e canta a saudade que sente e queixa-se da ausência do doutor Fausto26:
“Ausente o amigo / Tudo é um jazigo, / Soçobra o mundo / Em tédio fundo.” (p. 373).
Este relacionamento complementar-contraditório do casal evidência a
similitude dos seus espíritos, sobretudo, porque o desconforto de Gretchen é maior
que o do velho Fausto quando estava em sua empoeirada alcova de trabalho. Com
efeito, a vontade vivenciada pela jovem de libertar-se do seu pequeno mundo, do
lugarejo no qual habita, é equivalente à vontade substancial vivenciada pelo erudito

25
Segundo a doutrina católica, o matrimônio encontra-se ao lado dos demais sacramentos: batismo,
crisma, eucaristia, confissão, extrema-unção e absolvição sacramental (MAZZARI, 2016, p. 379).
26 O canto de Margarida a respeito do desejo de estar ao lado de quem ama nesta cena faz alusão aos

“Cantares de Salomão”, do Antigo Testamento.


62

alemão de elevar-se sobre o seu insuficiente conhecimento científico. No entanto, o


mesmo desconforto em comum que os une será também o que os impossibilitará de
continuarem unidos, visto que cada um enfrenta os ditames de um mundo
inexoravelmente pregresso e estagnado ao seu modo, optam por alternativas distintas
para conseguir escapar destes ditames: Fausto opta por criar princípios modernos;
Margarida aceita responsavelmente os antigos princípios e empenha-se para viver em
conformidade com eles. Ou seja, enquanto o doutor escapa desse mundo
improgressivo e improdutivo opondo à monotonia de um verbo convenientemente
inalterável a da constante transformação realizada pela intervenção humana 27,
Margarida insurge em oposição ao que em sua aldeia, regrada por valores morais
dominativos e incoerentes28, caracteriza-se em juízos enganosos e cruéis,
responsabilizando-se por tentar recuperar o que tais juízos possuiriam naturalmente
de legítimo e justificável. Portanto, sua relação com Fausto apresenta uma
individualidade catártica, dado que é como consequência dessa relação que
Margarida se dá conta da sua situação; que é impulsionada a repensar sobre os juízos
nos quais fora criada.
Na cena posterior, Na Fonte (p. 393), isto torna-se mais evidente, pois ao
término do encontro entre ela e a amiga, Luisinha, cuja fofoca e escárnio é sobre
Bárbara, uma menina da aldeia que fora abandonada grávida pelo namorado 29,
Margarida raciocina a respeito não somente da própria condição, mas também sobre
o impacto da mudança da sua cosmovisão e do seu papel após relacionar-se com o
doutor Fausto:

Quão rija era antes a ira minha, / Se errava alguma pobrezinha! / Como
exprobrava a culpa alheia / Com valentia, a boca cheia! / E a enegrecia, em
voz severa, / E negra assaz inda não me era, / E me ufanava, a fronte alta, /
E agora estou na mesma falta! / Mas, tudo o que pra tal me trouxe, / Céus! foi
tão bom! ah, foi tão doce! (p. 399).

Se, anteriormente, a vontade de Margarida demonstrava o interesse evidente


à ascensão social e financeira, agora passa a assumir um singular aspecto, mais
profundo e humano, da formação da própria consciência e da independência dos seus

27
O Eu-penso de Fitche.
28
A ideia mais evidente do tom desses valores aparecerá mais à frente na execração realizada por
Valentim, o seu irmão, em público antes de falecer.
29
Margarida já se encontrava grávida nesta cena.
63

juízos morais, porém, sem abandonar a oposição com os valores do povoado no qual
vive. Em outras palavras, a nova Gretchen que emerge então deixa de ser aquela
jovem infantil, cheia de ingenuidade, ameninada; transforma-se numa mulher que
começa a analisar sua existência no mundo pequeno no qual mora, sob jurisprudência
dos imperativos da Igreja Católica e da estrutura social dominante. Logo, o papel de
Margarida é questionar tais imperativos, apoiada, entretanto, sobre os princípios
morais que recebera da tradição cristã. Por isso, esta postura adquirida justifica o seu
desprezo por Mefisto na conversa com Fausto: “Ferve-me o sangue quando está
presente. / Sempre quis bem a toda gente; / Mas, como almejo ver o teu semblante, /
Dele íntimo pavor me rói, / E além do mais o tenho por tratante! / Se eu for injusta,
Deus que me perdoe!” (p. 385).
Apesar de não ter certeza sobre Mefistófeles, Margarida suspeita por sentir nele
o espírito destruidor, que a tudo corrompe; do seu gênio nefasto que “todo humano
ser detesta”30 (ibid.). Razão pela qual ela põe-se contra a rejeição imutável
materializada por Mefisto, como princípio oposto, na luta pela alma do doutor. Por um
lado, o pacto com um demônio cético que é Mefistófeles garante a Fausto o
cumprimento das suas mais ousadas ambições, uma vez que sua constante
inquietação e sua ávida aspiração de compreensão do mundo reconhecem, no poder
resultante deste pacto, a única chance de sentir a plena felicidade e satisfação. Por
outro, inviabiliza Fausto de experenciar o amor autêntico de Gretchen – sensação
ainda desconhecida por ele.
Entretanto, dado que o amor dela leva à salvação cristã, também coloca Fausto
num impasse, pois a permanência e aceitação deste sentimento acarretaria na
abdicação de realizar o seu maior desejo através do pacto: saber sobre tudo do grande
mundo. Apesar de tanto Margarida quanto Fausto serem espiritualmente
semelhantes, eles também são simultaneamente contrários e incompatíveis, já que
Gretchen, diferente do erudito, em hipótese alguma abdicaria à salvação da sua alma
em troca de escapar do pequeno mundo da aldeia onde habita.
Devido à hora, Margarida despede-se de Fausto que lamenta e suplica passar
uma noite com ela: “Ah, nunca posso / Pender-te ao seio uma horazinha em calma /
Penetrar peito em peito, e alma em alma?” (p. 387). Gretchen até quer, mas sabe a
rígida mãe que tem: “Dormisse eu só! com que abandono / Deixar-te-ia hoje o trinco

30 Mefistófeles é a personificação do Mal, não como poder supremo e não-humano, mas imanente ao
livre-arbítrio do homem.
64

aberto / Mas minha mãe! tão leve tem o sono / E se nos surpreendesse, é certo / Que
eu morreria de mil mortes” (ibid.). Ao relatar isso, Fausto puxa do bolso um frasco
capaz de adormecer31 quem tomar e entrega a Gretchen com as devidas instruções,
assim eles poderiam aproveitar a noite sem incômodo ou surpresas. Como Margarida
reverência e estima muito Fausto e quer agradá-lo sempre, ela nem suspeita o que
seria aquilo, apenas confia em quem ama, diferentemente do amado.
Desde o início do drama é notório afirmar que as paixões são mais tentadoras
e apetitosas que a razão por provocar nesta uma espécie de suspensão dos sentidos,
e isto é demonstrado nessa cena, pois, mesmo Gretchen devota ao Senhor, mais
adulta e responsável, não consegue resistir aos próprios impulsos, a ingenuidade
infantil restante em seu âmago, a ponto de aceitar algo sem ao menos perguntar do
que se trata; nem raciocinar direito e muito menos consultar ao Espírito Santo antes
de concordar.
O dissimulado Mefistófeles, que assistiu e ouviu toda a conversa do casal de
longe, aproxima-se de Fausto quando Margarida dá as costas e vai embora. Como
percebeu a ambivalência fundamental entre os dois, o Príncipe das Trevas
ardilosamente trata de minimizar os anseios religiosos da jovem transformando-os em
uma mera intenção de ter controle sobre o doutor: "Essas meninas dão muito valor /
À crença e à fé, conforme o velho estilo. / Pensam: seguir-nos-á também, quem segue
aquilo" (p. 391). Além do mais, repreende o que interpreta ser fragilidade proveniente
da volúpia de Fausto: “Galã sensual, suprassensual, / Pelo nariz te leva uma donzela”
(ibid. p. 391).
Em relação ao impasse, contudo, é meramente ilustrativo, pois já está
decidido desde o início: o doutor Fausto em nenhum instante demonstrou interesse
em abdicar o pacto, muito menos do seu desejo-mor pelo conhecimento absoluto do
grande mundo, em virtude do amor por Gretchen. Isto confirma-se na réplica à fala
debochada de Mefisto, onde o doutor revela o seu intuito: “Não vês tu, monstro
malquerente, / Como aquela alma amante e pura / E que em fé se derrama – / Que
unicamente / Salva, a seu ver – qual santa se tortura, / Por ter de ver perdido o homem
a quem ama.” (ibid.).

31
O que era para ser um sonífero provar-se-á ser algo mortal. Segundo Mazzari (2016), não se sabe
quem teria sido o responsável pela morte da mãe de Margarida, mas tudo indica ter sido o próprio
Mefisto, pois sabia do se tratava o líquido contido dentro do frasco antes de entregar ao doutor Fausto.
65

O discurso do doutor Fausto, então, antevê a separação com Margarida.


Embora ele declare seus sentimentos à reveria por ela, a ruptura – com conclusão
trágica –, uma hora ou outra se comprovaria irremediável. Assim sendo, o erudito
alemão segue o seu caminho em busca de conhecimento, em contrapartida,
Margarida cai profundamente numa série de desgraças: a mãe morre em decorrência
do líquido do frasco (p. 403), o irmão, Valentim, é assassinado e antes de morrer
humilha e estigmatiza a própria irmã por perder a castidade – “Já que és mesmo uma
prostituta” (p. 419) – em público; o seu amado, aquele que jurou eternidade ao seu
lado, a abandonara (p. 417); além de ser condenada à pena de morte por matar o
próprio filho recém-nascido (p. 503).

3.4 A TRAGÉDIA DE MARGARIDA: A SALVAÇÃO DE FAUSTO

Ao mesmo tempo que Fausto sobe com o Demônio a montanha de Blocksberg


onde acontecerá a Noite de Valpúrgis (p. 433), representando a ação de elevar-se na
esfera terrena, isto é, o crescimento do seu conhecimento sobre o mundo, Margarida
despenca em queda livre dos cachos morais e sociais: deixa de ser considerada o
“adorno de seu sexo inteiro”32 (p. 409), e torna-se motivo de desprezo pela própria
sociedade, pois é uma criminosa sentenciada à morte. Outrossim, os atributos
angelicais, quase divinos, como outrora fora retratada ruem ante à mácula de
prostituta.
No entanto, na esfera espiritual, acontece o contrário. A subida de Fausto o
leva passo a passo ao encontro com o universo da materialidade, da depravação e da
dominação terrena num mundo em progresso33. Margarida, por outro lado,
experimenta, em meio à própria tragédia, um demasiado processo de ascensão
espiritual relacionado aos princípios do Cristianismo, desamarrando-se num ritmo
frenético, e de forma bastante injusta, dos vínculos que a amarram ao mundo 34. Ela
percebe a sua atual conjuntura, da mudança pela qual sofrera e, principalmente, do
espaço que a afasta do meio de incompreensão moral da própria aldeia que até então
ela transitava e vivia livre, sem maiores problemas com os demais cidadãos.

32
Era o seu irmão, Valentim, que a considerava deste modo.
33 Durante toda a cena da Noite de Valpúrgis há alusões às revoluções burguesas do século XVIII.
34 Inicia-se a espiritualização gradual de Gretchen, que chegará ao seu apogeu na última cena, no

Cárcere, porém, já transparece nas cenas anteriores ao interlúdio ébrio da Noite de Valpúrgis: Na fonte,
Diante dos muros fortificados da cidade e Catedral.
66

Ajoelhada na presença da Mater Dolorosa, ícone que simboliza a tristeza de


Maria de Nazaré perante a cruz na qual estava Jesus Cristo morto, na cena Diante
dos muros fortificados da cidade (p. 401), Gretchen lamenta sua dor e sua agonia.
Esta cena é profundamente dramática, pois Margarida, com o semblante angustiado
expressa o intenso sofrimento pelo qual passa, consciente do abandono e imaginando
o caminho do Calvário que prestes teria de percorrer, suplica à santa que redirecione,
por um instante, o olhar do Cristo crucificado para o seu padecimento: “Da morte, ah!
salva-me! do horror! / Inclina, / Ó Mãe Divina, / Clemente olhar ao meu dolor!” (p. 440).
Desta forma, Gretchen prenuncia o seu próprio sacrifício, que faz lembrar,
através do seu martírio trágico, por um instante, o sacrifício de Jesus Cristo 35. Aliás,
será Margarida, enfim, convertida em um ser contrito, a representação feminina
redentora que rogará pela salvação do doutor Fausto no fim da segunda parte da
tragédia, publicada postumamente anos mais tarde, por meio de versos que ressoam
os anteriores: “Inclina, inclina, / Ó Mãe Divina, / À luz que me ilumina, / O dom de teu
perdão infindo! / O outrora-amado / Já bem-fadado, / Voltou, vem vindo” (GOETHE,
2016, p. 1055).
Após reconhecer a própria mudança pela qual está passando e ver que, por ter
transgredido as severas diretrizes da sociedade, não faz mais parte do pequeno
mundo no qual vive, a melancolia de Margarida toma proporções ainda mais
desesperadas de culpa e de autoacusação no decorrer do velório da sua mãe na
Catedral (p. 425). Pois, enquanto a cerimônia fúnebre acontece, a jovem é infernizada
pelo sentimento da culpa através da personificação de um Espírito Mau que murmura
ao ouvido, repreendendo-a pela renúncia da infância e acusando-a pelas mortes
ocorridas devido ao seu relacionamento com Fausto:

Quão outra, Gretchen, te sentias, / Quando ainda plena de inocência / Deste


altar santo te acercavas, / A balbuciar do livro gasto / As orações, / Em parte
folgas infantis, / Em parte Deus no coração! / Gretchen! / Tua cabeça, onde
anda? / No coração / Tens que delito?” (p. 427).

Atormentada, Gretchen assume todas as mortes e infortúnios que, sobretudo,


ela não praticou de absoluto querer. Caso realmente tenha dado o líquido mortal a
sua mãe, ela o fez sob a emoção ainda da ingenuidade infantil, desconsiderando

35
“Aceitando, na sua vontade humana, que se faça a vontade do Pai, Ele aceita a sua morte enquanto
redentora, para "suportar os nossos pecados no seu corpo, no madeiro da cruz" (1 Pe. 2:24).
67

totalmente o que consistia tal líquido no frasco, inclusive chegou até a contestar o
amado: "Tem algo que eu por ti não faça? / Espero não causar-lhe mal!" (p. 389).
Afora isso, a única lei que Margarida efetivamente descumpriu foram as severas
diretrizes morais existentes na sua comunidade.
Assim como sucedera com Bárbara, na fofoca contada por sua amiga Lusinha
Na Fonte, Gretchen está grávida de uma criatura cuja vida, segundo o Espírito Mau,
não seria de ideais presságios, visto que estaria condenada, se sobrevivesse, à
desgraça, à cólera e ao esquecimento. Eis, portanto, a causa que leva Margarida a
assassinar seu próprio filho recém-nascido: a rejeição moral da própria aldeia onde
cresceu e viveu contra ela; culminando, assim, na pena de morte sentenciada pela
instituição da lei civil.
Entre a conquista de Gretchen, o homicídio de Valentim com a imediata evasão
do assassino e o instante no qual é anunciado ao doutor sobre a situação que estava
Gretchen, aprisionada e destinada à morte, evidentemente, passou-se um espaço de
tempo significativo. Durante este espaço de tempo, Fausto, após ser apresentado a
voluptuosidade nua e crua da Noite de Valpúrgis, é lançado por Mefisto à “insultas
diversões” (p. 491) e só dar-se conta, atrasadamente, das circunstâncias e do que irá
acontecer com Margarida no momento que sua sensatez e sua vida passada já
sucumbiram: “Mefisto, ao longe e a sós / Não vês uma formosa e pálida donzela? /
Com lentidão se arrasta para nós / De pés atados é o andar dela / Confesso-o, julgo-
a parecida / Com minha boa Margarida” (p. 467).
Apesar de ser revelado a ele a atual condição da jovem, diferentemente da
amada, o doutor não se abala e atua como se fosse ilibado, culpabilizando
Mefistófeles e até mesmo o próprio gênero humano pela miséria sofrida por ela (p.
491-493). Sequer a objeção do Sete Peles provocou nele alguma lucidez súbita de ter
sido o causador de todo o suplício de Margarida: "E quem foi que a lançou à perdição?
Fui eu ou foste-o tu?" (p. 493).
Mais uma vez, embora semelhantes em espírito, tanto Fausto quanto Margarida
são desarmoniosos e não somente em relação aos caminhos adotados para conseguir
realizar os seus respectivos objetivos. Gretchen, mesmo que a princípio acredite no
sonho de libertar-se do seu espaço por meio da possibilidade de mudança do seu
status social, jamais cogitaria em renegar suas crenças morais e religiosas para
realizá-lo. Já para Fausto, a sua natureza titânica, direcionada à conquista de glórias
68

sobre-humanas e universalmente transformadoras, não dá lugar a sentimentos


limitativos tal qual é o da culpa.
Mefisto, com a lucidez sarcástica que demonstra em tantas situações da
tragédia, complementa a sua objeção contestando as acusações de Fausto lhe
relembrando mais a intransigência e consequência da sua escolha do que
precisamente expor a sua relativa fragilidade:

Tornamos aos confins do vosso entendimento, lá, onde a vós, mortais, o juízo
se alucina. Por que é que entraste em comunhão conosco, se és incapaz de
sustentá-la? Almejas voar e não te sentes livre da vertigem? Pois fomos nós
que a ti nos impusemos, ou foste tu que te impuseste a nós? (Ibidem. p. 493).

Essa inquietação profunda de espírito do doutor Fausto a qual o move à


transgressão também o moverá ao conhecimento absoluto que tanto anseia na
abertura da tragédia. Pois é devido a ela que o erudito alemão alcançará a redenção
humana, conforme relatara o Altíssimo no Prólogo do Céu: “Erra o homem enquanto
a algo aspira [...] Que o homem de bem, na aspiração que, obscura, o anima, / Da
trilha certa se acha sempre a par” (p. 55). Tais palavras passarão a ser
compreensíveis no final da segunda parte da tragédia, na cena Região aberta (p. 897),
onde Fausto já idoso confere os seus últimos dias de vida à construção da extensa
obra de aterramento marítimo, adaptando pela ação a natureza, mas tendo como
efeito as mortes inocentes daqueles que são contra o progresso, retratados pelas
personagens de Báucis e Filemon.
Mefistófeles e Fausto adentram ao Cárcere (p. 503) após planejarem o
resgate ainda na Montanha Blocksberg da seguinte forma: o Capeta distrai o
carcereiro para que Fausto roube-lhe as chaves e consiga, então, libertar a amada.

Levar-te-ei, sim, e ouve agora o que me é dado empreender. Todo o poder


no firmamento e sobre a terra, acaso, é meu? Do carcereiro entonteço os
sentidos, apossa-te das chaves, e para fora a guie a tua mão humana. Lá me
acho vigilante, os mágicos corcéis de prontidão! Levo-vos ambos. Este é o
poder que tenho (p. 495).

Após o êxito no plano, o doutor se depara com uma Margarida delirante, fora
de si, resultado do trauma psicológico em adição ao pico de estresse: “Varre-me o
corpo um calafrio / Toda a miséria humana aqui me oprime / Jaz, ela, aqui, detrás do
muro frio” (ibid. p. 503). Então, ao abrir a porta e entrar, de fato, na cela, Margarida
não o reconhece como tal e pensa ser o carrasco, pois está em um estado bastante
69

perturbado, o que a leva a divagar sobre o assassinato cometido, o negando: “Só


deixes que o nenê ainda amamente / A noite toda o acalentei / Por malvadeza
roubaram-me o inocente / E agora dizem que o matei” (p. 505). Ou seja, ela não
reconhece ser a causadora do afogamento do seu bebê.
Assistindo toda aquela fantasia-realista encenada na sua frente, Fausto eleva
o tom de voz: “Gretchen! Gretchen” (p. 507), o que desperta Margarida e a faz tanto
reconhecê-lo: “É a voz do meu amante!” (ibid. p. 507), quanto sentir-se livre com a sua
chegada, não no sentido de sair do cárcere, mas sim, de amar sem pesares, porque
não tem mais nada a perder: “Quero voar-lhe nos braços! / Sentir ser abraços! (ibid.
p. 507). Isto é, por amar genuinamente Fausto, Gretchen acredita já está salva e
liberta de qualquer condenação a posteriori: “Estou já salva! / Ressurge já a rua aqui
/ Em que a primeira vez que te vi” (p. 509).
No entanto, Fausto frustra as expectativas da amada, a trata de forma rude
quando esta quer lhe oferecer um beijo: “Anda, anda, vem! / Se não te aviares / Bem
caro o haveremos de expiar” (ibid. p. 509). Por sua vez, Margarida coloca-se a analisar
e percebe não ser mais o Fausto de antes: “Mas, por que junto a ti me atemorizo? /
Se outrora com teus lábios, teu olhar / Em mim vertias todo um paraíso / Aos beijos
teus, quase a me sufocar” (ibid. 509). Com efeito, o Fausto da Rua, não é mais o
mesmo Fausto do Cárcere.
Ciente da sua situação e sentindo a proximidade da morte, Margarida confessa
os seus pecados: “Não sabes? minha mãe, matei-a! / Afoguei meu filhinho amado” (p.
513). Ademais, ao avistar o sangue com a marca da Virgem celeste na mão de Fausto,
a jovem cristã revela o pecado cometido pelo erudito alemão ao assassinar Valentim,
seu irmão. Não bastando, Gretchen ainda instrui Fausto quanto a sepultura não só
dela, mas de toda a família: “Vou descrever-te as tumbas / Delas cuida, logo amanhã
/ Já de manhã / Dá à mãezinha o melhor lugar / Junto a ela, o mano, a repousar / Eu,
um pouco de lado / Mas não muito afastado! / E ao meu seio direito o pequenino” (ibid.
p. 513). Essa organização diz respeito a como Margarida se vê – pecadora –, logo
não quer estar próximo demais dos outros, e acrescenta, afirmando ser Fausto um
empecilho para a sua salvação: “E julgo ter de impor-me a ti / Que me repeles, para
trás” (p. 515).
O doutor Fausto não assume a responsabilidade pelos seus atos, porém,
Margarida, ao contrário deste, assume, em sua espiritualização ascendente, uma
personalidade essencialmente heroica e redentora por encarar o próprio destino com
70

coragem para além de uma simples sofredora abandonada tanto pelo amado quanto
pela comunidade, ela transforma-se, legitimamente, num herói trágico. Sua desgraça
é a condição para o desenvolvimento de si mesma – quiçá mais verdadeiro quando o
do próprio Fausto. Visto que, assim como o doutor, Margarida está buscando
transcender os limites da Igreja, da família e da sociedade, ou seja, ir além do mundo
no qual a religiosidade fanática e a autorregressão são as únicas formas da virtude.
No entanto, enquanto o erudito alemão tenta se libertar do mundo medieval através
da concepção de novos valores, ela aceita os antigos e procura de fato viver à critério
deles.
Tal pretensão exponencial a coloca no mesmo patamar que Fausto. Entretanto,
à medida que este escolhe como único propósito de seu espírito inquieto a ação da
transformação, Margarida, com a fé e a elevação espiritual que a fazem desamarrar-
se completamente dos objetos mundanos, excelsa, através da própria ruína, a
realidade restringida na qual vivera: “É o túmulo, lá fora” (p. 515). Ou seja, toda essa
postura evidencia a dimensão a dor sentida por Gretchen. A forma como Margarida
se arrepende será a mesma utilizada por Fausto na segunda parte da tragédia, e será
através dela que ele será salvo. O verso “Hei de ver-te, ainda” (p. 519) antecipa o
destino de Fausto: o céu.
Mefistófeles aparece do lado de fora para apressar o seu senhor quanto à fuga,
visto que o carcereiro estava prestes a acordar. Margarida avista-o, mas como está
decidida a sacrificar-se, o ser maligno a assusta pela última vez. Outrossim,
finalmente, consegue confirmar suas suspeitas que o companheiro vil do seu amado
é mesmo o Diabo, que quer levá-la deste mundo junto com Fausto. A jovem Gretchen
rejeita a oportunidade de escapar do cárcere oferecida pelo doutor e sua criatura, pois
se concordasse com tal oferta implicaria numa contradição: demonstraria que suas
aspirações e dimensões humanas não são autênticas e sua existência é frívola,
ademais, com o escape ela não teria nada como sustento existencial, estaria somente
fadada ao estrago do próprio corpo e da alma enquanto deserta em um mundo vão e
sem propósito. Nem ao menos o amor de Fausto, que ela percebe claramente não ser
mais o mesmo, poderia ser viável na vida fora do cárcere: "Ai de mim, teus lábios são
frios! / Mudos, também, / Teu amor, onde / Se esconde? / Roubou-mo quem?" (p.
511).
Por isso, a misericordiosa Margarida responsabiliza-se por todos os pecados
cometidos não somente por ela, mas também por Fausto. Entrega-se, então,
71

totalmente ao “celeste Poder” (p. 521) e separa-se do amado: “Henrique! aterro-me


contigo” (ibid. p. 521). Permitindo, portanto, que sua vida terrena seja consumada,
encarando o destino com persistência equivalente ao ímpeto fáustico, ela enfim atinge
o apogeu espiritual, redimindo a si mesma como também ao seu querido Henrique.
Como testemunha ao lado de Fausto, Mefistófeles a condena: “Está julgada!” (ibid. p.
521), e uma voz do alto a sentencia: “Salva!” (ibid. p. 521). E, assim, está feita a
transfiguração de Gretchen: renunciara de ser a jovem ingênua e infantil do início,
livra-se dos pecados através da desolação e do sofrimento, e, por fim, transforma-se,
com seu martírio, de mulher-feita a espírito penitente.
Da singela jovem, propriamente, quase não sobrou nada de característico, nem
aquela beleza pura que encantou um revigorado e jovial Fausto recém rejuvenescido
na Cozinha da Bruxa, do começo da tragédia. O que Margarida simboliza agora,
portanto, é o princípio feminino que eleva o homem para além de suas devidas
limitações físicas e existenciais: o Eterno-Feminino.
A tragédia de Margarida tem fim, mas início para Fausto, pois ele, a partir de
então, reconhece que para ser livre precisa por meio da sua natureza sensível, ir além
do contraste das suas duas almas, precisa harmonizá-las para enfim atingir o ideal de
estar satisfeito em absoluto, desprendendo-se de qualquer nó mundano para flutuar
na pura estética.
72

4 A HARMONIA DOS CONTRÁRIOS

A peça fáustica goetheana inicia-se decerto com a abertura da cena Noite,


porém, anterior a ela há dois textos introdutórios. O Prólogo no Céu é o segundo deles:
as personagens angelicais e demoníacas, estas representadas por Mefistófeles, estão
presentes na conversa deste com Deus, o Altíssimo. Nesta cena, como no decorrer
do drama, são apresentados profusos elementos de natureza cômica e trágica e suas
relações, porém, tais elementos não são exclusivos da narrativa, pois, eles já se
manifestam antes mesmo do Prólogo do Céu.
No Prólogo do teatro, primeiro texto introdutório, Goethe traz à tona um impasse
comum teatral: conciliar as concepções estéticas do poeta com o posicionamento
prático e monetário do diretor; o gênio humano do poeta contra o pragmatismo do
diretor. Durante este segundo texto introdutório36, o escritor alemão faz uso do Bufo37
como personagem de mediação, na qual tentará adequar essas perspectivas
antagônicas. Tais figuras estereotipas, o poeta, o diretor, e o bufo representam em
primeiro plano o que se desenvolverá com mais intensidade na história através de
Fausto, Margarida e Mefisto.
O poeta busca por vontade pura estilizar no interior do elemento impuro teatral,
o vulgar inestimável e a excentricidade, a tudo o que é sublime: “Tino, emoções,
paixão, sorrisos, choro” (p. 35). Por sua vez, o diretor almeja o impacto que a ação
acarreta no público, desta forma, garante o efeito do retorno financeiro, visto que
pessoas que assistiram atraem outras, procurarão tal emoção nesta peça: “Vem ver a
gente, e ver muito é o que quer. / Se apresentardes quantidade à vista, / Para que se
encha a multidão de pasmo, / Fareis também de muitos a conquista: / Amar-vos-ão
com entusiasmo. / A massa só se empolga pela massa” (p. 37). Já o bufo concorda
com a posição do poeta, mas sinaliza a favor do diretor ao sugerir que a peça
necessita também dos elementos cômicos para prender à atenção do público ao
espetáculo: “Tende, pois, juízo e graça, como eu disse, / Da fantasia armai o vasto
coro, / [...] / Mas que não faltem chistes e doidice” (p. 35). O poeta reluta com o
argumento de estar a transformar a sua obra em algo simplório, limitado e sem
relevância caso acrescente as características populares citadas pelo Bufo: “Deve o
poeta esbanjar seu máximo direito / E dom da natureza, o inato humano alento, /

36 O primeiro é Dedicatória (p. 27), um curto texto registrado em seu diário acerca da criação do Fausto.
37 No original, lustige Person, ou seja, “personagem cômica”.
73

Criminalmente, em teu proveito?” (p. 39). Entretanto, logo é convencido pelo Bufo a
aceitar a resolução com o argumento de estar a proporcionar o melhor dos dois
mundos, cômico e trágico, ao transformar o espetáculo num drama, cujo êxtase cresce
em companhia da dor:

Ponde espetáculo desses em cena! / Atende-vos à vida humana plena! / Cada


um a vive e dela é ignorante, / E onde a pintais, se torna interessante. /
Multíplices visões e pouca claridade, / Cem ilusões e um raio de verdade, /
Assim prepara-se a poção perfeita, / Que tudo, em torno, anima, atrai, deleita
(p. 41).

O que Goethe demonstra nesse primeiro prólogo, além de nortear o que uma
obra literária deve conter para ser considerada uma38 e jogar com o metateatro39, é
mais que uma mera situação comum entre participantes envolvidos em uma
apresentação de teatro, ele evoca com base fundamental o atrito entre os opostos
como possibilidade da combinação das partes ao eleva-las como complementares: o
Bufo combate a tese do poeta ao lançar o engraçado como antítese, ou seja, media
as concepções estéticas sobre a liberdade literária deste ao ridicularizá-las por não
contemplar a vida humana em sua integridade. O que resulta numa síntese, que é o
consentimento de ambos os envolvidos acerca da composição dos diferentes: “Tão
pronta a lágrima lhes vem como a risada” (ibid. p. 41).

38 Com August Wilhelm Schlegel, Goethe cunhou no início do século XIX o termo Weltliteratur [literatura
universal], a qual refere-se às obras literárias artisticamente mais valiosas e obstinadas de várias
nações. Para os alemães, principalmente para o próprio Goethe que era contra ao nacionalismo literário
do Romantismo, essas obras têm validade universal, ou seja, devem ser importantes para todas as
pessoas e não apenas para as pessoas da cultura em que a obra foi criada. Além disso, a característica
de atemporalidade é atribuída a elas. De acordo com A. W. Schlegel e Goethe, as obras literárias não
devem apenas preservar seu valor artístico fora das condições históricas e nas quais foram feitas, mas
também a importância dos ideais representados nessas obras para as pessoas. O pré-requisito para o
conceito de Weltliteratur é o pressuposto de constantes antropológicas universal e atemporalmente
válidas: certos valores básicos da ética e da estética devem, portanto, ser sempre válidos.
39 Diz-se da qualidade ou força em uma peça que desafia a afirmação do teatro de ser simplesmente

realista – ser nada além de um espelho no qual o público ver-se as ações e sofrimentos de personagens
como os seres humanos, suspendendo a descrença em sua realidade. O metateatro (ou metadrama)
começa por aguçar a consciência da dessemelhança da vida com a arte dramática. Nisso, pode
terminar tornando aqueles que assistem conscientes da semelhança misteriosa da vida com a arte ou
a ilusão. Ao chamar a atenção para a estranheza, artificialidade, ilusão ou arbitrariedade – em suma, a
teatralidade – da vida que vive-se, ela marca os quadros e limites que o realismo dramático
convencional esconderia. Ademais, pode apresentar uma ação tão estranha, improvável, estilizada ou
absurda que os espectadores sejam forçados a reconhecer a estrutura estranha que envolve toda uma
peça. Por outro lado, pode quebrar a moldura da "quarta parede" do teatro convencional, estendendo-
se para agredir o público ou atraí-lo para o reino da peça. O metateatro é uma característica contida
em boa parte da literatura ocidental.
74

No seguinte prólogo, o Prólogo do céu, o que aconteceu no âmbito do palco


imaginário do teatro se repete, porém, diferente daquele, este apresenta ares
espirituais por tratar-se de duas forças antagônicas: Deus e o Diabo. A figura de
Mefistófeles adentra a cena após os cantos dos arcanjos Gabriel, Rafael e Miguel,
conhecidos como os filhos legítimos do Senhor, às insondáveis maravilhas do
Universo. Os versos no discurso de Mefisto de imediato rompem com a ode cósmica
dos três arcanjos, pois assume um tom menos solene estabelecido por eles, sendo
mais cômico e atrevido, baseado na cadência flexível e frenética do verso desleixado
usado outrora pelo seu “irmão cômico” Bufo, o dito verso “madrigal”. Durante boa parte
da tragédia à frente, Mefistófeles fará uso desse tipo de verso, visto que sua
autonomia métrica e rítmica permite a melhor exploração e liberdade da sua
linguagem diabólica. Outrossim, com tais versos proferidos pelo Príncipe das Trevas,
é possível evocar o então conflito do Prólogo do teatro: os desejos do humano
ordinário contra a sagrada vontade artística do poeta, uma vez que Mefistófeles
deprecia tanto o homem quanto as suas mais elevadas aspirações40:

Já que, Senhor, de novo te aproximas, / Para indagar se estamos bem ou


mal, / E habitualmente ouvir-me e ver-me estimas, / Também me vês, agora,
entre o pessoal. / Perdão, não sei fazer fraseado estético, / Embora de mim
zombe a roda toda aqui; / Far-te-ia rir, decerto, o meu patético, / Se o rir fosse
ainda hábito para ti. / De mundo, sóis, não tenho o que dizer, / Só vejo como
se atormenta o humano ser. / Da terra é sempre igual o mísero deusito, / Qual
no primeiro dia, insípido e esquisito. / Viveria ele algo melhor, se da celeste /
Luz não tivesse o raio que lhe deste; / De Razão dá-lhe o nome, e a usa,
afinal, / Pra ser feroz mais que todo animal. / Parece, se o permite Vossa
Graça, / Um pernilongo gafanhão que esvoaça / Saltando e vai saltando à toa
/ E na erva a velha cantarola entoa; / E se jazesse ainda na erva o tempo
inteiro! / Mas seu nariz enterra em qualquer atoleiro” (p. 51).

Apesar de seu desprezo e negação demoníaca, Mefisto é considerado como


uma representação pitoresca – mesmo que Goethe não tenha optado pelo modelo da
alegoria com chifres ou com uma máscara de Arlequim41 –, e como tal é tolerado pelo
Altíssimo: “É o magano o que me pesa menos, / De todos vós, demônios que negais”
(p. 57), o que lhe permite gozar de liberdade na morada divina. Na maioria das
mitologias há a efígie divina ou semidivina e, ao seu lado, a figura do trapaceiro, do

40A chamada misantropia diabólica.


41O arlequim é uma personagem da Commedia dell'arte italiana, cuja função no início se delimitava a
entreter o público durante os intervalos dos espetáculos. Com o passar do tempo, o arlequim ganhou
uma nova função dentro do teatro europeu renascentista: ele deixava de divertir os espectadores entre
os espaços das apresentações para integrar as próprias peças, incorporando em sua forma
características grotescas do diabo medieval.
75

malandro que é relevado com relutância, em maior ou menor grau, pelos deuses. Por
exemplo, na mitologia grega, Hermes, o mensageiro do Olimpo, cumpria esse papel.
Assim também era Loki, o deus da trapaça, na mitologia nórdica. Já no Fausto
goetheano, é Mefistófeles quem assume o arquétipo do trapaceiro, dado que quase
nenhuma exímia poesia épica, mesmo moderna, pode desconsiderar a tal figura, cuja
contraparte humana é o pícaro da sua própria tradição literária, que decerto remete a
tradição mitológica.
O malandro incorpora um elemento amiúde de oposição dentro da Ordem
Divina, e, apesar de Goethe considerar a importância da figura mitológica
representada por Mefistófeles, a sua atuação não é independente como Loki ou
Hermes, isto é, mesmo Deus jamais tê-lo odiado – posição indiferente dos filhos
genuínos da Deidade –, e ainda poder trafegar livremente no mundo dos divinos
cosmos, Mefisto necessita ter a permissão do Senhor para manifestar-se como
deseja. Logo, ele é visto, em certo sentido, como o bobo da corte divina, pois o
Altíssimo não se preocupa tanto com malandro. Razão pelo qual, mesmo com a
autorização d’Ele para descer ao mundo humano, lhe é concedido um poder
minoritário: “Também nisso eu te dou poderes plenos” (ibid. p. 57).
O intento do Altíssimo quanto a permissibilidade da tentação de Fausto por
Mefistófeles, segundo Marcus Vinicius Mazzari (2016), dá-se como no Antigo
Testamento, no Livro de Jó, no qual Goethe baseou-se para criar este segundo
prólogo: Deus concebe o espírito da Negação e do Mal como instrumento da ordem
divina. Na medida que estimula Jó ou Fausto, representantes do gênero humano
neste contexto, o Pai da Mentira impede que estes afundem no pecado acídia ou
melancolia.
Goethe, como dito, baseia toda a cena do Prólogo do céu no Livro de Jó, mas
ao contrário do que demonstra o texto bíblico, o Deus goetheano sempre deixou claro
ao Adversário que não importasse o que ele fizesse, a alma de Fausto já se
encontrava salva. Ou seja, Mefisto nunca deve a menor chance de vencer a aposta
firmada com o Altíssimo. No entanto, mesmo o avisado, Mefistófeles acredita no seu
peremptoriamente em seu êxito, e Ele, portanto, autoriza a tentativa, cujo resultado é
o fracasso iminente do Demônio, por julgá-lo simplesmente como uma ferramenta a
ser usada para à Ordem Celeste, uma entidade cômica, grotesca.
A tolerância divina em relação a Mefistófeles contradiz o seu próprio juízo sobre
o Senhor. O Adversário justifica o fato de não proferir “fraseado estético” (p. 51) como
76

os anjos, e evita a sublime esfera do gênero por considerá-la incompatível com o seu
páthos provocador do riso. Para Mefisto, o riso emerge por meio de uma
incongruência desencadeada, neste caso, pelo páthos pertencente ao âmbito do
sublime encontrar-se na boca de uma criatura ardilosa e enganadora, inferior ao
gênero, como ele só. Mesmo assim, o páthos demoníaco é relegado ao irreal pelo
respectivo Mefistófeles, tal como o riso do Altíssimo – Deus não ri.
Embora o próprio Altíssimo seja um propugnador da negação em forma de
malandragem e patifaria, Mefisto parece ter demasiados motivos de ter com o “Velho”
(p. 57) às vezes, e zela para não quebrar esta ligação: “Vejo, uma ou outra vez, o
Velho com prazer, / Romper com Ele é que seria errôneo” (ibid. p. 57). Então,
Mefistófeles fecha a cena do Prólogo do céu com uma anedota irreverente, que
parodia a forma como Deus e o Diabo interagem com a relação humana entre um
cavalheiro e um selvagem: “É, de um grande Senhor, louvável proceder / Mostrar-se
tão humano até pra com o demônio” (ibid. p. 57) – mesmo o malandro Diabo pretenso
a atrapalhar a Ordem Celeste com malícia e sagacidade.
Sem dúvida a obra fáustica de Goethe é uma tragédia, mas é uma tragédia
composta por aspectos românticos precisos, cuja composição dramática é
diametralmente marcada pela relação do cômico e do trágico nos destinos impetuosos
das personagens principais: Margarida e Fausto.
Como é sabido, Fausto abandona a ciência fracassada e estéril de seu tempo
pela magia, e, posteriormente, pelo pacto com o Diabo para dominar o conhecimento
do mundo que, segundo ele, significa adentrar nos segredos e mistérios da Natureza,
compreender o mundo “em seu âmago profundo”, vislumbras os “germes” e “as vivas
bases”. Em outras palavras, por não encontrar na realidade física a certeza que tanto
buscou por anos a fio nos livros, nos experimentos e na vida, Fausto passa a
considera-se como um miserável, uma figura patética aos seus próprios. Porém, este
autodistanciamento, isto é, a capacidade de ver-se tal como é, e, consequentemente,
rir de si próprio, não é eficaz, visto que resultou em um espiral decadente de
desespero existencial em busca de alguns intentos através da suspensão e evasão,
como substituir os estudos científicos pela magia, evocação do Espírito da Terra, e o
suicídio.
Enquanto Fausto lamenta a sua condição, Goethe contrapõe os monólogos
solenes e transcendentes do velho alemão com a ignorância do seu orgulhoso fâmulo
Wagner, personagem que simboliza a estirpe dos eruditos pedantes que ocuparam o
77

palco da comédia desde o Renascimento42. Com o objetivo para além de criticar o


automatismo profissional dos letrados da época, Goethe estiliza a cena com os
elementos trágicos e cômicos, assim como outrora, de forma poética para produzir e
evocar a beleza pela mistura das categorias estéticas do Sublime e do Grotesco. Por
um lado, não há evidências as quais comprovem que o escritor de Weimar, desde o
início da obra em 177243, planejava fazer uso de tais categorias estéticas. Por outro,
pode-se intuir a respeito delas estarem presentes no decorrer da obra em
significativos momentos.
O Fausto, assim como outros grandes clássicos da Literatura, apresenta
símbolos para substanciar a história a ser narrada. A partir do símbolo é possível
estabelecer a mescla da ficção com a realidade, no que resulta num imaginário
robusto e equilibrado, propício a manter-se durante anos vindouros na imaginação de
um indivíduo, um grupo ou uma sociedade. O Alemão Goethe emprega na tragédia o
símbolo de Deus, do Diabo, do humano inconformado com sua factual condição
limitante, enfim, de representações que trazem em suas respectivas singularidades,
através da tradição, o Sublime ou o Grotesco ou ambos juntos. Portanto, é por meio
do símbolo e de como ele é usado, que pode ser identificado o efeito estético de um
e de outro.
Aliás, da mesma forma como contrapôs as lamúrias fáusticas pela ignorância
erudita da época, Goethe continua consistentemente a revelar a ambivalência entre a
dor e o prazer, o choro e a gargalhada, o desespero e a certeza, após a aparição de
Mefistófeles e Margarida, respectivamente. Aquele, aparece em cenas puramente
cômicas – quando incentiva e prega uma peça num arrogante estudante ginasial a
seguir em frente com o seu furor de tornar-se o mais sábio da cidade, na segunda
cena do Quarto de Trabalho (p. 155); na situação farsesca Na Taberna de Auerbach
em Leipizig (p. 201) e, imediatamente depois, na Cozinha da Bruxa (p. 239) –, surge
para dissipar completamente tanto a tragédia quanto a perspectiva do público/leitor.
Ou seja, é a figura cuja ação é suavizar e contornar qualquer circunstância inquietante
e tensa por meio da bufonaria, do chiste e do gracejo.

42 O dottore da Commedia dell’arte é o pedante erudito que em qualquer oportunidade de fala, abre a
boca para discursar verborragicamente. Tal personagem transformou-se, assim como o Arlequim, num
estereótipo.
43 Ano que Goethe inicia os primeiros esboços do que seria mais tarde conhecido como Urfaust [Fausto

zero].
78

A outra figura que aparece, em condições de mulher/personagem principal, é


Margarida, cuja a ação trágica exercida é entrecruzada pelo oposto cômico
mefistofélico nas cenas – a intriga de Mefisto, na Rua (p. 269); a execução do plano
acerca do estojo de joias no quarto de Gretchen, no Crepúsculo (p. 279); a história da
entrega das joias ao padre, no Passeio (p. 293); a forma como Mefistófeles seduz
Marta e a põe como intermediária-casamenteira do relacionamento de Fausto com
Margarida – que aludem às brincadeiras do carnaval da região de Schwaben44, bem
como a antiga comédia romana45. Não obstante, a cena Noite, onde sob a janela do
quarto de Margarida, Mefisto entona a “canção moralista” para seduzi-la novamente e
acontece o duelo entre seu irmão Valentim e o seu amado Fausto, – cujo desfecho é
a morte daquele – remete à Comédia de Capa e Espada46, retoma à ação trágica na
história.
De acordo com Wolfgang Kayser (2003), é no Romantismo alemão, a partir dos
pensamentos e proposições de Friedrich Schlegel, que o Grotesco se desenvolve
como a união entre o trágico e o cômico, afastando definitivamente tanto a ideia
gênese de ornamentação híbrida semelhante ao arabesco quanto a figura exclusiva
relacionada ao feio e ao disforme. Schlegel define o produto dessa conjugação como
tragicômico, pois considera que as partes autônomas de cada conceito atraem em si

44 O Schwäbisch-alemannische Fastnacht [Carnaval Suábio-alemânico] nasce nas festas medievais,


quando as comidas festivas deviam ser tragadas antes do início do período quaresmal. Outrossim, no
século XIV, agregou-se à folia práticas como danças, desfiles e jogos, como também, fantasias que
representavam figuras históricas regionais, entre elas: bruxas, demônios, fantasmas, fazendeiros,
tolos, animais e as mais variadas figuras míticas, separados em grupos que interagem entre si. Coo
por exemplo, a figura do burro e do cocheiro que geralmente está equipado com chicote ou conduz
o burro com uma corda. Tal interação e combinação pode ser possível com outros animais, como
ursos, ovelhas, lobos ou outros tipos de animais, que por sua vez são domes ticados ou caçados por
outras figuras.
45 Dois dos mais importantes comediógrafos romanos, Terêncio e Plauto, conceberam em suas peças

as figuras populares do pimpão, do pão-duro, do escravo astucioso, do filho sem-vergonha etc.;


brincavam com as emoções da raiva, da angústia, da confusão e do temor incitando preocupações que
acabavam em demasiados risos do público. Esses arquétipos criados por ambos, mais tarde se
tornariam ainda mais conhecidos em virtude da Comédia della’Arte, tornando-se referência para a
posteridade da Comédia.
46 Tipo de comédia característico do Século de Ouro do drama espanhol, também conhecido

por comedia de ingenio. A designação deve-se ao fato das suas personagens serem de condição nobre
e se apresentarem com uma capa e uma espada. Além disso, o termo comédia não tem o mesmo
sentido que atualmente lhe é atribuído, porque o elemento cômico não é dominante neste tipo de teatro,
a que convinha melhor a designação de “drama romântico”. Visto que no Século de Ouro espanhol, o
termo comédia era utilizado indistintamente, quer se tratasse de um tema cômico quer se tratasse de
um tema trágico (CEIA, Carlos. Comedia de Capa y Espada. E-Dicionário de Termos Literários, 2009.
Disponível em https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/comedia-de-capa-y-espada/. Acesso em: 30 mar.
2021).
79

mesmas uma semelhança que não as excluem enquanto unidas: a força de descobrir
o obscuro contido no gênero humano.

O que significa “grotesco” neste contexto? Grotesco – assim rezam os


Fragmentos 75, 305, 389 – é o contraste pronunciado entre forma e matéria
(assunto), a mistura centrífuga do heterogêneo, a força explosiva do
paradoxal, que são ridículos e horripilantes ao mesmo tempo. Como na
estética do século XVIII, os conceitos de caricatura, mas também os do
trágico e do cômico, penetram agora nos enunciados: “A caricatura é uma
vinculação passiva do ingênuo e do grotesco. O poeta pode empregá-la tanto
trágica quanto comicamente” (KAYSER, 2003, p. 56-57).

Ou seja, Mefistófeles não é o símbolo tradicional do diabo vermelho,


monstruoso, com rabo de seta, chifre e fedorento; este símbolo é tornado estranho
para representar um agente antropomórfico, educado, bem-vestido e cheiroso, que
dispõe de um humor à princípio zombeteiro para esconder de fato o riso insinuador e
funesto do ator que cumpre bem o seu papel na peça trágica: ser a representação
exposta do âmago fáustico. Esta transfiguração do demoníaco feita artisticamente por
Goethe, liberta o Diabo da sua realidade divergente, obscura e silenciosa e o
ressignifica como elemento alheio ao mundo, isto é, faz presente repentinamente o
estranho que outrora era conhecido e familiar na sua própria dimensão. Por este
motivo, Kayser (2003) afirma que a configuração do grotesco é a tentativa de dominar
e conjurar o elemento demoníaco do mundo, desejo vislumbrado por Fausto ao ter
Mefisto como servo, visto que o obscuro foi encarado, o sinistro descoberto e o
inconcebível levado a falar.
No entanto, o objetivo transcendental do pactário não é o mesmo objetivo,
como se sabe, do Demônio. Este desce à Terra já com um propósito imutável:
aniquilar Fausto; destruir quaisquer que sejam suas aspirações elevadas; arrastá-lo
para os campos vulgares e malignos da vida comum para, ao fim, opor-se ao gênero
Sublime com o gênero Grotesco, porém, não somente através da sua sagacidade
obscena e cinismo presunçoso, da sua natureza demoníaca. Mefistófeles usa os
recursos da própria realidade e comportamento humano para satisfazer seu âmago
de negação e soberba, por exemplo, quando foi capaz de convencer aos jovens
estudantes da Taberna de Auerbach a entonar versos que dizem respeito à
capacidade do Capeta de inverter princípios morais altivos em estupidez patológica:
“Canibalmente bem estamos / Que nem quinhentos suínos!” (p. 229). Ou seja, Mefisto
80

puxa o espírito das alturas para a terrena e crua bestialidade, função que desempenha
com maestria.
Assim como Moisés utiliza um cajado para simbolizar a autoridade divina
(Êxodo 4:2), o cajado com o qual o Maligno conduz às bufonarias e farsas instigadas
desde Na Taberna de Auerbach em Leipzig (p. 201), passando pela Noite de Valpúrgis
(p. 433) até chegar à mascarada carnavalesca (entrudo), na cena Noite de Valpúrgis
Clássica47 – que usa o cômico bazofio para finalidades sórdidas –, é o cajado do falo
demoníaco. Pois, por meio do falo reconhece-se a autoridade e poder do Diabo,
assim, com ele se dá a conhecer à bruxa na Cozinha da Bruxa: “Que delicada espécie,
observa! / Eis o criado! esta é a serva!” (p. 245). Por sua vez, a bruxa provida do senso
infernal pela comédia fálica mefistofélica, gargalha intensamente ao reconhecê-lo
como tal: “Há! Há! pois sóis vós, sem engano! / Fostes sempre ótimo magano!” (p.
259).
Em outro momento da peça goetheana, na cena Floresta e gruta (p. 357),
Mefisto reitera o falo como o verdadeiro senhor de tudo que há para um Fausto
afastado de Margarida, retirado à solidão, cedido à uma inédita visão da Natureza,
não mais científica como outrora, mas místico-contemplativa (panteísta), que ameaça
o pacto e os planos do Tinhoso. À vista disso, Mefistófeles tenta acender novamente
a sensualidade e estimular a libido de Fausto, recorda-lhe do “desejo do doce corpo”
de Gretchen com fingida sensibilidade; e consegue na caradura! ao explorar a
relutância de Fausto: “Perverso! foge e não me acenes / Com a imagem da formosa
criatura! / Não tragas de seu corpo aspirações infrenes / Ante os sentidos prenhes de
loucura!” (p. 367). Outrossim, ainda aproveita para, no cume do cinismo, apequenar
radicalmente o misticismo natural de Fausto a uma mímica masturbatória48:

MEFISTÓFELES

Um prazer suprarreal, celeste!


Jazer na escuridão e orvalho no ermo agreste,
Cingir a terra e o céu num rapto abraço,
Sentir-se divindade em arrogante inchaço,
Da terra revolver com ímpeto tutano,
Viver da criação o afã Eu soberano,
Gozar eu não sei o quê com macho peito,
No todo extravasar-se em êxtase perfeito,
Desvanecido o térreo ente,

47Ato II, da segunda parte do Fausto (p. 345)


48A respeito sobre a falta de sinceridade do discurso, por trás dele se pode, como ocorre em tantas
outras ilações jocosas de Mefisto, identificar a opinião contraria de Goethe.
81

E pôr termo à intuição potente...


(Com um gesto obsceno)
Não me perguntes de que jeito.

FAUSTO

Vergonha sobre ti!

MEFISTÓFELES

Ouvi-lo não te é grato;


E poderás gritar vergonha com recato.
Não deve ouvir a orelha casta e infensa
O que a alma casta não dispensa.
(GOETHE, 2016, p. 363-365).

O apogeu das investidas de Mefisto em “subtrair essa alma à sua inata fonte”
(p. 55) acontece na iniciação de Fausto na Noite de Valpúrgis. Entre bruxas nuas, atos
libidinosos, blasfêmias e conversas obscenas, o espírito fáustico decai e chafurda no
mais repugnante lamaçal moral, tornado um suíno, como anteriormente cantaram os
jovens estudantes da taberna, do qual nada pode ser feito para ser salvo. Não
obstante, a cena mais grotesca em toda obra por evocar figuras clássicas animalescas
dotadas de intenso estímulo sensorial, como o assombro, o medo e o impulso de
autopreservação, é a mesma que elevará mais uma vez o afã espírito sublime de
Fausto.
Segundo explica Edmund Burke (2016), o Sublime encontra-se no exagerado,
na escuridão, no vazio, na uniformidade, no infinito. Isso inclui a grandeza, o robusto,
o poderoso, o terrível, sensações intensificadas pelos elementos demoníacos da Noite
de Valpúrgis, visto que

O que quer que de alguma forma seja capaz de excitar as ideias de dor e de
perigo, ou seja, tudo o que for terrível de alguma forma, ou que compreenda
objetos terríveis, ou opere de forma análoga ao horror é fonte do sublime; ou
seja, é capaz de produzir a emoção mais forte que a mente é capaz de sentir
(BURKE, 2016, p. 52).

Contudo, a tomada de consciência de Fausto não acontece somente por


incitações desses elementos sensualísticos, pois abalado pelas ameaças que atentam
contra o seu instinto de autopreservação não poderia ser capaz de voltar a si apenas
por meio deles. Por esta razão – tal como os objetos sensíveis incitam os sentimentos,
a razão pode dimensiona-los –, o que passa a ocorrer com o erudito alemão, neste
estado de dor e perigo, é o impulso, definido por Friedrich Schiller (2011) como um
dos dois impulsos inscritos na natureza do homem os quais são fonte do Sublime, de
82

autoconservação, isto é, a conservação da integridade para levar adiante a existência,


o qual permite Fausto distanciar-se e enxergar a efígie de Margarida no horizonte
escuro da montanha Blocksberg. Em outras palavras, o arrepio desencadeado pela
experiência subjetiva iminente de Fausto ao observar a natureza Sublime de
Gretchen, altera-se em uma sensação de ser atraído pelo objeto quando há
possibilidade de afastar-se de si mesmo ou manter distância e, assim, criar uma
dimensão pessoal.
A partir de então, Fausto procura saber sobre a amada, e após estar situado
da situação dela, exige de Mefisto o esforço para salvá-la. Porém, mais uma vez é
preciso ter em mente que Fausto em nenhum momento, apesar dos lapsos sublimes,
tem a ousadia de desfazer-se do caminho que escolheu trilhar em troca de viver
amorosamente com Margarida. A súbita recobrada de consciência através da
elevação racional sob a impotência física em relação à natureza, provocado pelos
objetos grotescos, não significa a compreensão da Verdade do Altíssimo: “Que o
homem de bem, na aspiração que, obscura, o anima, / Da trilha certa se acha sempre
a par.” (p. 55). O ímpeto de salvar Gretchen faz parte do escopo fáustico de dominar
e controlar as situações, consequências e ineditismo da vida. Nada além isso!
O Cárcere, cena posterior e última, põe o Grotesco anterior em consonância
com o Sublime por meio do desfecho redentor da tragédia de Margarida. Se por um
lado, Mefistófeles é a representação exposta do âmago fáustico, por outro, Gretchen
é o símbolo exposto da autêntica existência vivida em suas plenas condições; não é
a vida idealizada em preceitos falhos e egóicos da busca infinita por sentido, todavia,
é a vida baseada no reconhecimento do Eu em relação às interações humanas na
ordem universal divina. Aliás, o martírio de Margarida dá a Fausto não só a certeza
da sua salvação, mas também demonstra, assim como fez Mefisto no Quarto de
Trabalho (p. 155), a condição humana que ele nega e não reconhece desde o início
do seu primeiro monólogo: “No fim sereis sempre o que sois.” (p. 177). Isto é, apesar
de conquistar as maiores glórias, realizar seus desejos mais profundos e satisfazer-
se, no fim, Fausto ainda será um pobre ser mortal, nem mais e nem menos relevante
que um homem comum.
Com base nas cenas ora cômicas, ora trágicas, Goethe compôs o drama do
homem moderno a partir de categorias artísticas existentes desde a Antiguidade, pois
conforme desenvolve Victor Hugo (2014), o drama, é a convergência tanto da tragédia
quanto da comédia; é “o traço característico, a diferença fundamental” entre a Arte
83

Moderna da Arte Antiga, ou, da Literatura Romântica da Literatura Clássica. Como


consequência dessa convergência, as impressões estéticas sublimes são
intensificadas pelas grotescas, haja vista que no período romântico caracteriza-se
pelo descortinamento do estranho e do feio ao incrementá-los à Arte sob o pretexto,
segundo Hugo (2014), de que o Grotesco constitui a Natureza por originar-se dela,
uma vez que é a mais rica fonte que a Natureza pode abrir à Arte.
Assim, Fausto, o qual representa a humanidade que anseia pelo sentido mais
absoluto da existência, é levado a acreditar pelo Diabo que pode sim dominar o
desconhecido e o misterioso presente na realidade, dado que conseguiu estabelecer
contato e firmou pacto com um ser cujo maior truque é enganar o mundo da sua não
existência. Iludido do falso prazer do poder, não percebe que abriu a possibilidade de
conhecer a si mesmo – uma vez que a força do Grotesco é a de revelar o que é mais
obscuro, vil e animal no homem; por trazer à tona a natureza dupla do ser: a benigna
e ilibada, de um lado; e a viciosa e pecadora, do outro – o que só acontece, embora
em decurso mínimo, quando conhece e relaciona-se com Margarida.
A jovem cristã causa um mal-estar com admiração em Fausto, pois apesar de
ter os seus desejos íntimos de ascender socialmente, não negocia os seus princípios
e convicções à custa de perder a sua alma. Ou seja, a postura virtuosa e íntegra de
Gretchen assusta o pactário, ao mesmo tempo que o encanta, por demonstrar
sinceramente o quão arrogante tem sido e do quanto perdeu ao abrir mão da própria
vida para seguir um caminho, ironicamente, de incertezas e ilusão. Seja em vida, no
decorrer dos tormentos enfrentados ou nos últimos momentos encarcerada,
Margarida marca-o pela veracidade, sobretudo, de certificar que o caminho seguido
por ela à conduziu à verdade da própria condição mortal, além de saber pelo que é
realmente importante existir.
Logo, caso a proposição do Altíssimo, “erra o homem enquanto a algo aspira”,
for verdadeira e significar o desejo de algo que tem a possibilidade de completar e
satisfazer profundamente o ser, então o destino de Fausto para conseguir o repouso
das suas inquietações espirituais deveria ser mesmo este: viver o grotesco diabólico
fechado em si mesmo para, por meio dele, ver e contemplar o sublime divino
abertamente, já que o real e o verdadeiro surgem na harmonia de ambos na vida,
pois, em última análise, como afirma o próprio Johann Wolfgang von Goethe, “todo
anseio humano é, na verdade, um anseio por Deus”.
84

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Fausto de Goethe ocupa, certamente, ao lado de outras grandes obras


literárias, o lugar de clássico universal por diversos motivos. Neste trabalho, o tema
abordado foi a maneira como as categorias estéticas do Grotesco e do Sublime
aparecem constituindo a peça trágica que, na verdade, mostra-se também ser uma
peça cômica, porém, em um sentido mais extenso por incluir e usar formas opostas
da Comédia: da satânica à divina; da sensual farsesca à plácida celestial; em uma
combinação de elementos tanto pertencentes da Comédia Antiga quando da
Moderna. Ou seja, Goethe, no Fausto, harmoniza santidade e satânico, o divino e o
cômico.
O termo surgido, a princípio, no campo das Artes Visuais cujo conceito é a
composição híbrida de diferentes espécies – homem, planta ou animal – numa
ornamentação, o Grotesco, prolongou-se até à arte literária, onde desenvolveu-se
com mais consistência a partir do século XVIII, no período romântico, através de
escritores como Friedrich Schlegel e Victor Hugo. Segundo ambos, a estética do
Grotesco na Literatura é descrita como uma forma de contraste integrado na poesia
que aparece no momento que se versa sobre o bem e o mal, visto que o Cristianismo,
a visão de mundo cristã, abre precedente para a imaginação e os segredos de Deus.
Graças ao caráter dualista cristão, o ser humano enfrenta uma disputa ambígua
interior, o que o fragmenta entre o bem e o mal. Porém, o fim não é a mera mistura
das convenções características com relevância no bom ou mau – como ocorre na
ornamentação –, mas na importância de trazer à luz aquilo que outrora não é
plenamente conhecido da natureza humana, isto é, através da mescla, com efeitos de
provocação, de perturbação, de desordem e de experimentação estética dos
elementos narrativos em consonância, puxar do âmago profundo humano o que está
escondido ou nunca se viu, mas que, sobretudo, faz parte do seu ser.
Com efeito, na poética da obra teatral de Goethe, tal mescla é feita por meio de
figuras que estimulam sensações terríveis, como a dor, o perigo e o horror, ao mesmo
tempo que proporciona à aproximação da realidade através das representações
dramáticas contidas no texto. Porém, esta nova forma de colocar em colaboração os
opostos não é atribuída exclusivamente ao escritor de Weimar, mas aos primeiros
românticos, os quais buscavam outras formas para contrapor às normas clássicas, de
mimesis, estabelecidas na Arte. Razão pela qual poetas como Novalis e os irmãos
85

Schlegel estavam comprometidos em suprimir o discurso hegemônico de monopólio


da razão iluminista que começava a estabelecer-se nas instituições mais concretas –
universidades, jornais, editoras especializadas, galerias de arte etc. Ou seja, eles
sentiram a necessidade em elaborar meios dramáticos subversivos para descobrir
quais eram os mecanismos da estrutura da sua época. Outrossim, a influência
Iluminista, da razão fundamentada na técnica, estava fadada a gerar um impacto
expresso na percepção romântica da realidade, uma vez que, para os primeiros
românticos, contemplar a realidade, a natureza, a vida, é uma forma de sobrepujar a
mimesis, assim como os efeitos psicológicos próprios a ela.
Apesar de não ter sido o responsável pela elaboração dessa nova forma para
conter a ação iluminista, com certeza Goethe é um dos mais proeminentes literatos
por escrever uma peça trágica e cômica, ao mesmo tempo, explorando a
potencialidade que a junção de ambas provoca. O drama, para Victor Hugo, ou a
tragicomédia, para F. Schlegel, é o melhor de dois mundos, pois explora com mais
completude a realidade da vida complexa, contraditória e enigmática como esforço de
uma poesia mais sensível ao todo da existência em detrimento a qualquer regra,
técnica ou teoria. Com o Fausto, Goethe buscou explicar a percepção sensível como
a união entre a particularidade subjetiva e a particularidade pragmática. Com efeito,
estabeleceu a forma para uma inclinação literária com aspecto onírico e inquietante.
Embora soe mais como combinação de sentidos para designar a sua própria utopia
na qual o mundo concreto e real é “ligado” conforme um elevado nível de autonomia.
Porém, é devido a esta visão mais fantasiosa, transcendental e trágica integrada na
peça, atrelada à vontade de transfiguração da realidade e da Natureza através do
Grotesco, é o que provoca, ao fim e ao cabo, a estética do Sublime.
Quanto ao Sublime, Edmund Burke e Friedrich Schiller elaboraram
investigações filosófica-estéticas para definir o quê, como e por qual motivo o Sublime
se manifesta. O filósofo irlandês afirma que

[...] o que quer que de alguma forma seja capaz de excitar as ideias de dor e
de perigo, ou seja, tudo o que for terrível de alguma forma, ou que
compreenda objetos terríveis, ou opere de forma análoga ao horror é fonte
do sublime” (BURKE, 2016, p. 52).

Ou seja, é determinado por suas qualidades sensualísticas, pois aparece no


exagero, na escuridão, no vazio, na uniformidade, no infinito, etc. O que estimula os
86

sentidos de grandeza, de poder e do mais impactante, o terrível, que se configura


como tal por funcionar como emissário do rei dos terrores, a morte. Portanto, para
Burke, o Sublime manifesta-se por meio dos objetos capazes de provocar sensações
de sofrimento e ameaça.
Por outro lado, o que o poeta Friedrich Schiller concede ao Sublime é a
capacidade do homem superar a violência da Natureza, pois ela manifesta-se de duas
formas: no teórico-sublime, que remete à pulsão imaginária; e no sublime-prático, que
está relacionado ao instinto de autopreservação. Quer dizer, segundo Schiller, para
conter a violência da natureza de forma prática ou para impor à vontade sobre ela,
usa-se a razão. Quanto à forma teórica de lidar com a natureza, baseia-se em
suspender a ideia de potencial subordinando-se a ela espontaneamente. Tal
experiência excita dois gênios, um leva à beleza, cujo domínio é o mundo das
sensações dos objetos; o outro conduz, de maneira latente, mas imponente, às
profundezas extasiantes. Razão pela qual o Sublime também está relacionado à
cessação, pois, não aos poucos, mas de súbito e com impactos sucessivos,
impressiona pelo terrível assombro de transformação que desfaz e refaz tudo. Logo,
o Sublime é valioso para a humanidade por referenciar o espírito puro nele.
No entanto, assim como Goethe, Schiller constata que para bons espíritos
presenciar este estado de deleite na natureza é necessário ser capaz de definir limites
casuais a fim de afastar e direcionar o prazer à vontade. Decerto, o Sublime supera
as fronteiras da compostura, porém, sua essência não está somente na grandeza, no
ilimitado, no imponente, no infinito, isto é, não compreende apenas referências
positivas em negligência a elementos impuros. Embora o poeta alemão considere-o
como a atitude da razão, ele ressalta que o Sublime mostra sua força de espírito ao
instituir um limite para as concepções ilimitadas do pensamento: propicia ao artista
expor as desgraças da fúria, as doenças da peste, as destruições da guerra, como
males de um jeito belo. Contudo, com referência a uma espécie de feiura, expressa
repulsa. Pois, para Schiller, essa emoção prejudica todo o prazer estético, por
consequência, a beleza artística.
Do mesmo modo, o romântico alemão Friedrich Schlegel reconhece a impureza
como parte constituinte da alma humana, pois, tal como o oxigênio puro é prejudicial
à respiração quando não misturado ao nitrogênio, opor-se ao que é impuro é a
essência da idiotice. Ao debater a respeito da poesia e da psicologia, ele acredita ser
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incoerente hesitar até mesmo da análise mais pormenorizada do prazer impuro, como
agonias horríveis, ultraje repulsivo, impotência presunçosa, seja física ou mental.
O romântico francês Victor Hugo compartilha da mesma leitura feita pelo seu
colega alemão, mas manifesta-se com mais veemência ao estabelecer que esta
impureza na natureza do homem pode ser retratada, desde a Antiguidade, sob a forma
da Comédia e pelo princípio estranho introduzido na poesia, o Grotesco. Pois, este
tipo conduz a poesia à verdade ao vislumbrar as coisas com olhar mais elevado e
amplo, sentindo que nem tudo na criação é humanamente belo, ou seja, proporciona
liberdade ao romper com a estrutura clássica difundida na sua época, o que “o feio
existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime,
o mal com o bem, a sombra com a luz” (HUGO, 2014, p. 26). Ao convergir o tipo
Grotesco com o tipo Sublime, que é evocado através da Tragédia, Hugo define,
portanto o drama romântico, isto é, uma nova forma de poesia produto da época
moderna que teria de destruir inteiramente as antigas expressões clássicas pautadas
em normas e regulamentos definidos.
O Sublime é evocado através da Tragédia por causa do valor da intensidade.
Segundo Schiller, o roubo numa Tragédia seria capaz, moralmente falando, de ser
visto como um ato sem-vergonha. Contudo, esteticamente falando, o artista não verá
dessa forma, pois, este mesmo ato sem-vergonha pode ser restituído à apreciação
estética, relevante e impactante caso o artista consiga elevá-lo ao ponto de crime
hediondo, como por exemplo, o latrocínio. Eis, então, a contradição revelada por
Schiller: o juízo moral despreza o terrível, enquanto o juízo estético busca disfarçar-
se por uma intensa sensação. No entanto, Schiller elucida esta contradição ao afirmar
que o terror excitado pela experiência subjetiva imediata ao contemplar a natureza
Sublime transforma-se num sentimento de afeição pelo objeto terrível na medida em
que há a chance de manter distância tanto dele quando de si mesmo; como efeito
disso, abre-se uma dimensão mais pessoal que provoca “[...] o sentimento penoso de
nossos limites, não fugimos dele, mas somos, pelo contrário, atraídos com uma
violência irresistível” (SCHILLER, 2011, p. 60). Por isso, o romântico alemão não
restringe o Sublime ao que é inacessível para a imaginação, mas ao que é misterioso
para a razão, desde que ascenda à representação do suprassensível como obra
pertencente à Natureza.
Dado o cenário do final do século XVIII a respeito da estética do Sublime e do
Grotesco – este passa a ser parte integrante daquele em virtude do manifesto do
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escritor Victor Hugo –, o Fausto adquire ares ainda mais longevos e profundos, pois
não mais se apresenta só como uma peça trágica, mas também como uma peça
cômica, logo, constituído como um drama romântico, que contrasta e ridiculariza o
desejo humano impulsivo de dominar o desconhecido do mundo, representado por
Fausto, ante a própria limitação da condição humana, cuja as ações e objetos evocam
as sensações sublimes, por intermédio de Margarida, e grotescas, por intermédio de
Mefistófeles. Além da obra de Goethe atuar no campo poético, sobretudo, junto aos
desenvolvimentos dos fundamentos ontológicos e psicológicos, ela não negligência
as dimensões sociopolíticas da época – uma das particularidades do Romantismo.
Pois, crer que a poética romântica transcende os limites e, portanto, está o tempo todo
ausente das fronteiras do Eu ou da sociedade, configura-se como um simples mal-
entendido. Uma vez que para os românticos, o Eu não é imutável, pelo contrário, o Eu
renova-se constantemente, porém, essa ação renovada é concebida por fragmentos
que se reintegram na falta de outros fragmentos materiais. Ademais, o arcabouço das
obras românticas insinua um regresso no qual a sensibilidade cintilante, exposta aos
terrores do infinito, move o Eu e a sociedade; uma mudança que significa também
uma “transferência” das formas auferidas do passado.
Portanto, referente à estética do Grotesco e do Sublime, os escritores
românticos tinham como finalidade a força das representações (e pós-imagens)
projetadas por suas obras. Diferentemente do que acontece na “Alegoria da Caverna”,
de Platão, as sombras ou figuras quiméricas deste mundo não afastam a essência,
pois eles mesmos tornam-se essência que descortinam a roda-viva das silhuetas. O
espírito é a caverna, é a grotta, donde emergem as formas grotescas que, por sua
vez, provocam as percepções sublimes da imponência do profundo crepúsculo da
vida.
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