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OLINDA/PE
2021
JHOY PEREIRA DE SOUZA
OLINDA/PE
2021
JHOY PEREIRA DE SOUZA
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Felipe de Queiroga Aguiar Leite
Orientador
_____________________________________________________
Prof. Me. Neilton Limeira Florentino de Lima
Arguidor l
_____________________________________________________
Prof. Esp. Ronaldo Cordeiro dos Santos
Arguidor ll
À minha família!
AGRADECIMENTOS
Olavo Bilac
RESUMO
Escrito entre os anos de 1770 e 1832, Fausto é composto de referências históricas que
dificultam a sua classificação. Há características do Iluminismo, do movimento pré-romântico
Sturm und Drang, do Classicismo de Weimar e, principalmente, do Romantismo, que podem
ser notadas na obra. Este trabalho de cunho bibliográfico tem por finalidade relacionar e
identificar as manifestações estéticas do Grotesco e do Sublime na primeira parte do drama
fáustico goetheano; além disso, analisar propriamente a obra; averiguar como cada autor
específico define tais estéticas e seus efeitos; contextualizar o período romântico, sua
importância e influência em Goethe para a concepção do Fausto; e, por fim, demonstrar como,
tanto o Grotesco quanto o Sublime são partes constituintes do espírito inquieto do ser que
anseia elevar-se além da sua própria condição humana.
Written between 1770 and 1832, Faust is made up of historical references that make it difficult
to classify. There are characteristics of the Enlightenment, the pre-romantic Sturm und Drang
movement, the Classicism of Weimar and, especially, of Romanticism, which can be noticed
in the work. This bibliographical work is intended to relate and identify the aesthetic
manifestations of the Grotesque and the Sublime in the first part of the Goethean Faustian
drama; in addition, properly analyze the work; find out how each specific author defines such
aesthetics and their effects; contextualize the romantic period, its importance and influence on
Goethe for the conception of Faust; and, finally, to demonstrate how both the Grotesque and
the Sublime are constituent parts of the restless spirit of the being that yearns to rise beyond
its own human condition.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 89
10
INTRODUÇÃO
1 Considerado por muitos como um dos principais escritores alemães e um dos mais importantes nomes
da literatura universal e do Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX.
Goethe nasceu Frankfurt no dia 28 de agosto de 1749 e faleceu em Weimar em 22 de março de 1832.
De sua vasta produção fazem parte: romances, peças de teatro, poemas, escritos autobiográficos,
reflexões teóricas nas áreas de arte, literatura e ciências naturais.
2 Não são muitas as fontes que se referem a Johann Georg Faust e as de que se têm conhecimento
símbolo da humanidade que falha quando age, mas que deve agir para conquistar a
salvação.
A tragédia do homem moderno que busca sua redenção perante o divino
voltando-se para a contemplação, mas que precisa aceitar a sua própria natureza, o
seu próprio eu para conseguir, corrobora a pulsão do período romântico na Alemanha
por trazer à tona a reflexão e interpretação de dois elementos estéticos tidos como
opostos, mas complementares: o Sublime e o Grotesco.
Embora os conceitos da estética do Sublime e do Grotesco já fossem
conhecidos na Antiguidade, foi no Romantismo em que encontrou solo fértil para o
seu desenvolvimento e profundidade por meio dos artistas alemães.
Sobre o Sublime, no século I, Longino4 o aborda referindo-se a uma “linguagem
sublime”, espécie de características do discurso da linguagem que não pode ser
contaminado por “vícios que impurificam o sublime”, como “as transposições, as
hipérboles e os plurais em lugar do singular” (LONGINO, 2014, p. 76). Já o Grotesco
deriva de estilos de ornamentação encontradas “em fins do século XV, no decurso de
escavações feitas primeira em Roma”, até então “desconhecida pintura ornamental
antiga” (KAYSER, 2003, p. 18); mais tarde volta-se para a prática literária, por meio
dos românticos como “[...] a tentativa de dominar e conjurar o elemento demoníaco do
mundo” (KAYSER, 2003, p. 161).
No Romantismo, todavia, estas duas formas de relacionar-se com a arte se dão
de maneira particular. O Sublime, a partir do Romantismo, é considerado nas forças
poderosas da natureza como uma combinação do assombro, do horror e do deleite;
além disso, o impacto das forças naturais provoca uma abertura para a elevação
sensível e racional ante o grandioso. Por sua vez, o Grotesco preenche cada canto
da fantasia do artista, desvela a própria natureza sombria do homem e a coloca nas
infinitas representações do sombrio, monstruoso e demoníaco.
Tendo em vista o conceito trabalhado e usado no Romantismo, o presente
trabalho trata de averiguar na primeira parte da obra Faust, eine Tragödie, a maneira
como Goethe concebe essas duas formas de estética e onde estas se manifestam na
4O primeiro registro que se conhece sobre este termo é um tratado, intitulado Do sublime, atribuído
erroneamente a Longino. Não se sabe quem é realmente o autor deste tratado. Foi falsamente atribuído
a Longino (213–273 d.C.), filósofo grego, discípulo de Amónio Sacas, que estudou na escola
Neoplatónica de Alexandria, mas até o nome deste autor é de difícil identificação porque poderia tratar-
se de Cassius Longinus, Dionysius Longinus ou até mesmo Dionysius de Halicarnassus. Sabe-se agora
que o tratado remonta ao século I d.C. O erro na atribuição do tratado a Longino fez com que se optasse
por identificar o autor como Longino ou Anônimo.
12
própria obra, em sua trama, como encontro dos contrários, ou como chamamos: uma
harmonização dos contrários, quase sempre cheia de tensões.
Para isto, como base para conceituar a estética do Sublime, será utilizado o
pensamento de Edmund Burke e Johann Christoph Friedrich von Schiller. Aquele por
entender que, para se chegar a uma reflexão mais exata do Sublime, é necessário
averiguar as paixões e emoções no homem que são os motores para o surgimento
deste sentimento. Este por concordar com Burke e estabelecer uma forma de utilidade
moral do Sublime, levando em conta a liberdade da razão do homem ao se relacionar
com as forças da natureza.
Para o conceito da estética do Grotesco, será utilizado o estudo analítico de
Wolfgang Kayser e do pensamento do poeta Victor-Marie Hugo. Ambos, tanto Kayser
quanto Hugo, apontam que o Grotesco se relaciona com a parte sombria do homem,
com os seus vícios e suas paixões por possuir como essência estética a deformidade
revelada, geralmente, por meio da escritura do corpo e imagens maléficas.
O trabalho de cunho bibliográfico está organizado em quatro capítulos. No
primeiro capítulo intitulado O Romantismo e o Romântico, contextualizar-se-á o
período histórico, como as influências e ideias do pré-Romantismo e dos primeiros
românticos ajudaram a amadurecer os conceitos teóricos daquilo que mais tarde seria
considerado por Sublime e Grotesco. No segundo capítulo, Do Sublime e do Grotesco,
já contextualizadas historicamente, as duas estéticas serão concretizadas
teoricamente a fim de, doravante, servir como referência para a identificação dos
momentos sublimes e grotescos dentro da obra posteriormente. Prosseguirá no
terceiro capítulo, Da Noite ao Cárcere, uma análise literária mais aprofundada no
enredo do poema. E, no quarto capítulo, A Harmonia dos Contrários, serão postas as
duas estéticas integradas e identificadas no Fausto, com objetivo de responder como,
especificamente, no decorrer da trama surge e manifesta-se a sensação tanto do
Sublime quanto do Grotesco?
É essa, portanto, a investigação pensada para este trabalho, entretanto,
diferentemente de Fausto não tentei a magia para “[...] ver se o espiritual império pode
entreabrir-me algum mistério”, pois neste propósito “[...] o estudo fiz, com máxima
insistência [...] para que apreenda o que a este mundo liga em seu âmago profundo”
(GOETHE, 2016, p. 63).
13
1 O ROMANTISMO E O ROMÂNTICO
5
É o título de uma peça dramática do pré-romântico Friedrich Maximilian von Klinger (1752 – 1831)
(CARPEAUX, 2013, p. 54).
14
(latim para movimento de sentimento, emoção). Ou seja, a arte deveria ser arte
novamente, dar liberdade ao artista e deixar espaço para o desenvolvimento do seu
Eu criativo.
A revolta dos jovens autores alemães é “[...] a revolta do sentimento contra a
razão e do sentimentalismo contra o racionalismo” (CARPEAUX, 2013, p. 54).
Entretanto, as agitações ocorridas neste período não eram somente contra o
Iluminismo – este apenas criou as condições –, mas, sobretudo, contra as imposições
racionais e sociais provocadas pelo absolutismo do Ancien Régime na Alemanha:
Logo, visto que antes a casa do vigário protestante nas aldeias e pequenas
cidades fora o centro de tranquilas e inofensivas atividades literárias, e, sendo os
vigários que criaram na Alemanha o racionalismo, a poesia anacreôntica, a literatura
do Rococó, agora, são os filhos desses vigários revoltados contra a obrigatoriedade
da carreira “estudante-preceptor de aristocrata-vigário”, que criam o pré-romantismo
do Sturm und Drang (CARPEAUX, 2013).
[...] o racionalismo foi tão longe que, como sempre acontece em tais casos, o
sentimento humano que foi bloqueado por tal racionalismo procurou alguma
saída em outras direções. Quando os deuses do Olimpo se tornam muito
dóceis, muito racionais e muitos normais, as pessoas naturalmente começam
a se inclinar para as divindades mais sombrias, mais subterrâneas. Foi isso
o que aconteceu no século III a.C., na Grécia, e começou a acontecer no
século XVIII (BERLIN, 2015, p. 81).
[...] empreende uma viagem por mar à França, de modo súbito e como em
fuga, cansado das condições de vida limitadas em Riga, onde o jovem pastor
tinha de brigar contra os ortodoxos e estava envolvido em aborrecidas
contendas literárias. A caminho da França, tem ideias que inspirariam não
apenas ele mesmo (SAFRANSKI, 2010, p. 15-16).
seus conhecimentos literários, para descobrir e “criar aquilo no que penso e acredito”
(SAFRANSKI, 2010, p. 22), postura incorporada pelo movimento do Sturm und Drang
e característica do irrompimento alemão:
[..] nos meios limitados a bordo e na solidão do alto mar, o pregador, tomado
pela vontade de ir mais longe, cria um novo mundo; ele não encontra índios,
não derruba nenhum reino asteca ou inca, não acumula nenhum tesouro em
ouro nem escravos, não leva a cabo nenhum novo cálculo sobre a extensão
do mundo; seu novo mundo é um mundo que num piscar de olhos assumirá
novamente a forma de livros (SAFRANSKI, 2010, p. 22).
As ideias tidas no mar fizeram parte de toda a sua vida. O Journal meiner Reise
in Jahr 1769 [Diário de minha viagem no ano de 1769] apresenta a postura do espírito
primordial do romântico nos projetos literários pensado pelo escritor e filosofo alemão.
Que obra sobre a raça humana! sobre o espírito humano! a cultura da terra!
todos os espaços! Tempos! Povos! Forças! Misturas! Figuras! Religião
asiática! E cronologia e polícia e filosofia... Tudo do grego! Tudo do romano!
Religião nórdica, direito, costumes, guerra, honra! O tempo dos papas,
monges, conhecimento!... Política japonesa, chinesa! Estudo natural de um
novo mundo! Hábitos americanos, etc. [...] História universal da constituição
mundial! (HERDER, 1984 apud SAFRANSKI, 2010, p. 22).
princípio criador que ele via em ação nas culturas populares” em “[...] democracia tão
simpática” (SAFRANSKI, 2010, p. 30). Era o momento de os românticos entrarem em
cena.
2 DO SUBLIME E DO GROTESCO
É preciso saber [...] no curso ordinário da vida, nada é grande quando haja
grandeza em desprezá-lo; por exemplo, riqueza, honrarias, fama, realeza,
tudo mais que apresenta uma exterioridade teatral, ao sensato não pareciam
bens superiores, porquanto o mesmo desprezá-los é um bem não medíocre
(pelo menos, mais admiração do que os possuidores deles desperta quem,
podendo possuí-los, por grandeza de alma os menoscaba); mais ou menos
assim se deve examinar se os passos elevados em verso e prosa não têm
uma aparência de grandeza semelhante, a que se tenha juntado grande soma
de elementos forjados ao acaso, removidos os quais, aliás, eles revelam
ocos, havendo mais nobreza em os desprezar do que em admirá-los.
(LONGINO, 2014, p. 76).
Logo, segundo Longino (2014), é preciso educar a alma a fim de torná-la capaz
de reconhecer a emoção genuína, pois o Sublime é o eco da grandeza da alma.
Por isso, mesmo sem uma palavra, suscita admiração de per si um mero
pensamento, graças à sua grandeza mesma [...] com efeito, pessoas de
pensamentos e ocupações mesquinhas e servis a vida toda é impossível que
produzam algo admirável, merecedor de imortalidade; grandeza,
naturalmente, existe nas palavras daqueles cujos pensamentos são graves.
Assim é que as frases sublimes ocorrem às pessoas de sentimentos elevados
[...] (LONGINO, 2014, p. 78).
Além dos estados – indiferença, dor e prazer – que são apresentados pelos
sentidos, a mente humana ainda possui uma espécie de faculdade criativa própria: a
saber, por um lado, põe em ordem as aparências dos objetos como são recebidas
pelos sentidos para reproduzi-las à vontade e, por outro lado, combina essas
aparências com ideias sabidas em uma ordem diferente. Essa faculdade é chamada
de imaginação e comporta tudo o que é astúcia, fantasia e invenção. Não obstante,
deve-se salientar que a imaginação não é capaz de produzir algo completamente
novo; ela só pode mudar a ordem das ideias que recebeu dos sentidos.
Após estabelecidas as suas observações, Burke, portanto, procede com a
análise do objeto e caracteriza o Sublime por seus traços sensualísticos. Segundo o
filósofo, o Sublime encontra-se no exagerado, na escuridão, no vazio, na
uniformidade, no infinito. Isso inclui a grandeza, o robusto, o poderoso, o terrível. A
saber,
O que quer que de alguma forma seja capaz de excitar as ideias de dor e de
perigo, ou seja, tudo o que for terrível de alguma forma, ou que compreenda
objetos terríveis, ou opere de forma análoga ao horror é fonte do sublime; ou
22
seja, é capaz de produzir a emoção mais forte que a mente é capaz de sentir
[...] porque acredito que as ideias de dor são muito mais poderosas do que
as que são introduzidas pelo prazer. Sem qualquer dúvida, os tormentos que
podemos sofrer são muito maiores em seus efeitos sobre o corpo e a mente
do que quaisquer prazeres que o mais sensualista possa sugerir, ou do que
a imaginação mais viva e o corpo mais requintadamente sensível possam
desfrutar (BURKE, 2016, p. 52)
A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful
[Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo], de
Edmund Burke, teve uma influência perene na estética nos séculos XVIII e XIX, e,
portanto, assumiu uma posição importante. Numerosos filósofos e escritores lidaram
com o Sublime e até adotaram algumas das observações de Burke. Dentre os
escritores alemães destaca-se Friedrich Schiller; mas não se pode adentrar a teoria
de Schiller acerca do Sublime sem antes abordar o pensamento daquele, cujos anos
de vida dedicou-se a entender, Immanuel Kant.
O filósofo alemão abordou a teoria do Sublime de Burke em sua obra Kritik der
Urteilskraft [Crítica da Faculdade do Juízo], publicada em 1790. Seguindo Burke, Kant
concorda que objetos, predominantemente, da Natureza podem transmitir a sensação
do Sublime e, para demonstrar, utiliza como exemplo:
Por outro lado, Kant introduz uma distinção dentro do sublime e diferencia entre
o sublime-matemático e o sublime-dinâmico. O matemático-sublime, segundo o
pensador alemão, seria uma grandeza (quantum) que se encontra para além da nossa
percepção, enquanto o dinâmico-sublime é um poder que suscita o medo. A partir de
ambos os termos que Schiller propõe outra terminologia em seu ensaio Über das
Erhabene [Sobre o Sublime], publicado em 1793, que ancorou na natureza do homem
dois impulsos fundamentais: o teórico-sublime, que remete à pulsão imaginária, e o
sublime-prático, que está relacionado ao instinto de autopreservação.
não tendo ordem, nem proporção [...]” (MONTAIGNE apud KAYSER, 2003, p. 24).
Graças ao filósofo francês, então, o Grotesco adquiriu um sentido mais amplo na
literatura que nas artes plásticas.
No século XVII, perdida a exclusividade conceitual, o Grotesco passa a ser
vinculado à sátira e à comédia trágica por consequência do estilo do desenhista e
gravador francês Jacques Callot, que viaja a Florença para aperfeiçoar seus traços.
Callot é tão influenciado pela cultura italiana de usar máscaras que termina por ser
considerado um dos mais importantes ilustradores da Commedia dell’arte.
O elemento “quimérico”, por seu lado, foi ainda intensificado pelo fato de os
atores usarem máscaras que iam acima do nariz. O objetivo a que serviam
transparece nos desenhos do genial ilustrador que a commedia dell’arte
conseguiu encontrar: Jacques Callot. As estampas do ciclo dos Balli di
Sfessania constituem reelaboração fiel dos esboços feitos por Callot durante
os espetáculos, não representando, pois, as distorções, acréscimos do
desenhista. As máscaras, como é fácil compreender, servem de meio para
aplicar aos corpos humanos algo de animalesco: surgem assim narizes
enormes, embicados, aos quais corresponde um queixo pontiagudo,
enquanto a cabeça desponta mais atrás ainda, alongada, e na maioria das
vezes os traços ornitóides se complementam em excrescências com formas
morcegais e agitados remígios de galo. Os desenhos de Callot também dão
a perceber o estilo calcado no movimento: por exemplo, aqui a completa
paralisação que, ali, no instante seguinte, pode transformar-se numa
excentricidade do movimento que chega até a ponta dos dedos (KAYSER,
2003, p. 43).
Assim sendo, o riso do humor não mais se mostra puro, livre, nas
representações dramatúrgicas (e nem na vida); porque surge o riso em que há ainda
dor, cujo maior humorista seria o diabo.
28
Em 1827, Victor Hugo publica o prefácio do seu drama Cromwell. Prefácio este
que se converteu em um manifesto da jovem geração romântica, devido ao seu
ímpeto anticlássico. No Préface de Cromwell [Prefácio de Cromwell], Hugo, após uma
breve introdução, desenvolve como, segundo sua ideia básica, comparar o
desenvolvimento da literatura com o desenvolvimento histórico da humanidade.
Isto é, o gênero humano se desenvolveu ainda mais através dos tempos, assim
como sua expressão poética, pois esta é sempre o reflexo da sociedade, a
representação de cada indivíduo em relação ao seu meio. Então, Hugo divide a
história em três épocas, cada uma das quais atribuindo uma forma poética.
29
Nos tempos primitivos, quando o homem desperta num mundo que acaba de
nascer, a poesia desperta com ele. Em presença das maravilhas que o
ofuscam e o embriagam, sua primeira palavra não é senão um hino [...] A
terra está ainda mais ou menos deserta. Há famílias, e não povos; pais, e não
reis. Cada raça existe à vontade; não há propriedade, não há lei, não há
melindres, não há guerras. Tudo pertence a cada um e a todos. A sociedade
é uma comunidade. Nada incomoda o homem. Ele passa esta vida pastoril e
nômade pela qual começam todas as civilizações, e que é tão propícia às
contemplações solitárias, às caprichosas fantasias [...] Seu pensamento,
como sua vida, assemelha-se à nuvem que troca de forma e de caminho,
segundo o vento que o impele. Eis o primeiro homem, eis o primeiro poeta. É
jovem, é lírico. A prece é toda a sua religião: a ode é toda sua poesia (HUGO,
2014, p. 17).
“No entanto a idade da epopéia”, escreve Victor Hugo (2014, p. 21), “chega ao
fim”, pois, continua ele, “assim como a sociedade que ela representa, esta poesia se
gasta girando sobre si mesmo”. Eis, portanto, uma “nova era” para “o mundo e para a
poesia”.
Apresentado por Hugo (2014) como uma grande transformação, o Cristianismo
raia em meio aos esfacelamentos da poesia e da civilização antiga, já que “Roma
decalca a Grécia, Virgílio copia Homero”, de modo que esse declínio se reflete
também no íntimo das pessoas.
[...] ele tem duas vidas que deve viver, uma passageira, a outra imortal; uma
de terra, a outra do céu [...] ele é duplo como o seu destino, que há nele um
animal e uma inteligência, uma alma e um corpo; em uma palavra, que ele é
o ponto de intersecção, o anel comum das duas cadeias de seres que
abraçam a criação, da série dos seres materiais e da série dos seres
incorpóreos, a primeira, partido da pedra para chegar ao homem, a segunda,
partindo do homem para acabar em Deus (HUGO, 2014, p. 22).
De acordo com Hugo (2014), essa nova concepção de mundo já era vista em
partes por alguns sábios na Antiguidade, “mas é do Evangelho que data sua plena,
luminosa e ampla revelação” (p. 22). Embora tenha tornado tudo visível e apresentado
31
Na sociedade antiga, o indivíduo era colocado tão baixo, que, para que fosse
atingido, cumpria que a adversidade descesse até a sua família. Portanto não
conhecia quase o infortúnio, fora das dores domésticas. Era quase inaudito
que as infelicidades gerais do Estado lhe perturbassem a vida. Mas no
instante em que veio estabelecer-se a sociedade cristã, o antigo continente
estava agitado [...] fazia-se tanto ruído na terra, que era impossível que
alguma coisa deste tumulto não chegasse até o coração dos povos. Foi mais
que um eco, foi um contragolpe. O homem, concentrando-se em si mesmo
em presença destas profundas vicissitudes, começou a sentir dó da
humanidade, a meditar sobre as amargas irrisões da vida. Deste sentimento
[...] o cristianismo fez a melancolia” (HUGO, 2014, p. 25).
Por isso, o drama, para Hugo (2014), se trata da convergência tanto da tragédia
quanto da comédia. Além disso, é também “o traço característico, a diferença
fundamental” entre a arte moderna da arte antiga, ou, da literatura romântica da
literatura clássica.
32
Realizada, pois, a separação entre a nova poesia - como chama Victor Hugo -
da poesia clássica, o escrito romântico considera a comédia como reprodução do
Grotesco na poesia. Hugo (2014), acredita na liberdade proporcionada pelo Grotesco,
tendo em vista que sua função na arte causa uma ruptura dos modus operandi artístico
dos antigos; pelo fato do Grotesco volta-se para a musa da natureza onde dela
deságua abundantes oportunidades de inspirações; “[...] tentemos fazer ver que é da
fecunda união do tipo grotesco com o tipo sublime que nasce o gênio moderno, tão
complexo, tão variado nas suas formas, tão inesgotável nas suas criações [...] (HUGO,
2014, p. 28).
No entanto, Hugo (2014) não nega que a comédia já existia na literatura antiga,
ou que a epopeia também trazia à tona o feio. Existia, porém, só se completou no
drama, no Romantismo, e fez-se próprio do seu tempo.
Não que fosse verdade dizer que a comédia e o grotesco eram absolutamente
desconhecidos entre os antigos. A coisa aliás seria impossível. Nada vem
sem raiz; a segunda época está sempre em germe na primeira. Desde a
Ilíada, Tersites e Vulcano, oferecem a comédia, um aos homens, o outro aos
deuses [...] Os tritões, os sátiros, os ciclopes, são grotescos, as sereias, as
fúrias, as parcas, as harpias, são grotescas; Polifemo é um grotesco terrível;
Sileno é um grotesco bufo” (HUGO, 2014, p. 28-29).
Para o artista romântico, o Grotesco se mostra amplo para que ele se debruce
nas artes com toda a sua genialidade, usando seus atributos para desnudar o normal,
33
Com efeito, na poesia nova, enquanto o sublime representará a alma tal qual
ela é purificada pela moral cristã, ele representara o papel da besta humana.
O primeiro tipo livre de toda mescla impura, terá como apanágio todos os
encantos, todas as graças, todas as belezas; é preciso que possa criar um
dia Julieta, Desdémona, Ofélia. O segundo tomará todos os ridículos, todas
as enfermidades, todas as feiuras. Nesta partilha da humanidade e da
criação, é a ele que caberão as paixões, os vícios, os crimes; é ele que será
luxurioso, rastejante, guloso, avaro, pérfido, enredador, hipócrita; é ele que
será alternadamente Iago, tartufo, Basílio; Polônio, Harpagão, Bartolo;
Falstaff, Scapino, Fígaro. O belo tem somente um tipo; o feio tem mil (HUGO,
2014, p. 35-36).
Porque os homens de gênio, por grandes que sejam, tem sempre sua fera
que parodia sua inteligência. (...) “do sublime ao ridículo há apenas um
passo”, dizia Napoleão, quando se convenceu de que era homem; este
relâmpago de uma alma de fogo que se entreabre, ilumina ao mesmo tempo
a arte e a história, este grito de angústia é o resumo do drama da vida (HUGO,
2014, p. 49).
3 DA NOITE AO CÁRCERE
6 A palavra grega téchne é normalmente traduzida como técnica, mas também pode ser traduzida como
cultura. Esta surge no contexto romano a partir do termo latino colere, que significa cultivar à terra, ou
seja, a atividade própria do agricultor. A modernização da técnica seria, partindo do sentido do termo
cultura de um contexto muito concreto e material para outro – que é, ainda que análogo, muito mais
abstrato –, o impedimento da ligação da criatura (microcosmo), para os românticos, com a Natureza
(macrocosmo), e o que ela provoca: sensações e impressões vastas, logo com o solo da Arte. Pois,
para o agricultor assim como para o artista romântico é importante conhecer as relações dos elementos
da Natureza que desempenham uma função primordial que tornam o solo propício para produzir por
meio da experiência da sensação, da contemplação, o que é próprio da natureza anímica do gênio
romântico. (INSTITUTO HUGO DE SÃO VÍTOR. 27 mar. 2021. Instagram: @institutohugodesaovitor.
Disponível em https://www.instagram.com/p/CM7QpV-Jgi-/. Acesso em: 28 mar. 2021).
36
uma ambição insaciável para o velho Fausto. O verso “Pra cá e lá, aqui ou acolá, sem
diretriz" (ibid. p. 63) confirma que conhecer é um processo deveras complexo e,
apesar dessa diversidade, pode ainda ser insatisfatório, o que se prova ser neste
momento com mais efervescência na vida do doutor.
No decorrer do seu monólogo, Fausto chega à conclusão de que “não sabemos
nada” (ibid. p. 63), o que faz soar um tanto quanto inquietante, considerando que,
apesar da quantidade de energia e disposição aplicada em cada estudo realizado,
além da trajetória acadêmica construída durante anos, existe, em última análise, um
resultado niilista do qual Fausto interpreta ser o fim: a ignorância. A ignorância outrora
entendida, segundo o filósofo grego Sócrates, como parti pris, ou seja, o primeiro
passo para a busca da Verdade, passa a ser compreendida por Fausto como fim
humano, término, transformando o paradoxo socrático “Só sei que nada sei” em “Só
sei o que sei”.
Com essa conclusão, por meio da mente e do espírito inquieto, o doutor traz à
tona sua prepotência em uma comparação: “Sei ter mais tino que esses maçadores /
Mestres, frades, escribas e doutores” (ibid. p. 63). De fato, Fausto pertence à elite
intelectual – portanto, a uma minoria –, porém, não sabe o que fazer com aquilo que
sabe, apesar disso. Por outro lado, ele se sente um pouco menos desesperado por
não ser perturbado com dúvidas nem temer o Inferno, tampouco respeita Satanás,
coisa das quais assustam essas tais classes desrespeitadas por ele.
Ademais, não temer o Inferno, muito menos o próprio Satanás é sinal do
descredito pela Igreja Católica, no século XVI, como instituição em combater as forças
malignas, os agentes do caos, os demônios tentadores do homem cristão;
consequência da cisão entre a Igreja e o Estado, o que fez a figura do Diabo livre da
utilização punitiva e ameaçadora da Igreja contra os pecadores. Sem a Igreja a todo
o tempo por meio de sermões semanais; literatura; teatro; missões eclesiásticas a
povos longínquos; usufruir do antagonista de Deus; decai o medo e a influência do
Maligno, assim como dos seus demônios na medida em que há a ascendência da
Ciência no século XVIII.7
Em contraste com a Natureza almejada pelo letrado alemão está o seu quarto
de estudos, no qual é abominado como “Maldito, abafador covil” (ibid. p. 65). Nele há
o que é comum para um estudioso, muitos materiais científicos, como livros; há
também bastante poeira, resíduos imundos de lata e de vidros etc. Seu quarto é,
portanto, não só o espelho de sua própria vida espiritual e intelectual, onde estão os
seus fracassos científicos, seu desgosto, sua esterilidade, sua inutilidade, como
também a forma de simbolizar a impotência do Racionalismo como resposta e
condução da vida em qualquer escala, pois o páthos não é objeto de domínio da razão.
Por isto, a aflição de Fausto provoca uma sensação de coração comprimido e a
"flama" (ibid. p. 65) o impede de sentir o que anseia para a sua vida, reforçado pelos
versos: "Em vez da viva natureza / Em que criou Deus os mortais / De crânios cerca-
te a impureza / De ossadas os homens e animais" (ibid. p. 65).
Ao encontrar o livro do adivinho Nostradamus, o doutor Fausto, imediatamente,
como se naquele momento fosse o seu último suspiro de vida, evoca um espírito da
terra, ao passo do qual está convencido de que é divino por ter realizado tal ato: “Sou
eu um deus? Vejo tal luz!” (p. 67) – a arrogância fáustica, isto é, a arrogância humana
de superestimar a própria força. Porém, o espírito da terra encerra o devaneio fáustico
de superioridade com: “És um, com o gênio que em ti sondas / Mas não comigo!” (p.
73). O espírito da terra, como já dito, não é sujeito aos desejos egoístas. Fausto neste
episódio representa todo o gênero humano pelo fato de ser tomado por suas paixões
e, somente por alguns segundos, sentir dominar algo além de suas capacidades, ter
o olho maior que a barriga.
Após isso, batem à porta. Era seu aprendiz Wagner com quem tem uma
conversa sobre as suas limitações e pesares, e esta conversa se mostra importante,
pois é onde Fausto relata sentir dentro dele a existência inquietante de duas almas,
uma terrena e outra espiritual, que estão em conflito todo o tempo.
FAUSTO
formula a tese da seguinte forma: o Eu Puro cria a si próprio, dessa forma também
cria a realidade por entender a si mesmo como uma intuição intelectual, logo esse
Eu supre o fundamento dos objetos em si e dos acontecimentos do mundo,
possibilitando a junção entre o sensorial e o intelectual. No entanto, para o Eu
compreender seu papel, ele precisa do seu contrário para reconhecer-se como
aquele que cria – só cria porque age, e agindo ele passa a Ser –, ou seja, da
antítese: o Não-eu.
O Não-eu é o oposto do Eu, contudo não se encontra fora do aspecto do Eu
Puro, pois nada pode ser pensando fora dele. Desta feita, a síntese, segundo Fichte,
é a delimitação. Isto é, nem o Eu nem o Não-eu podem extinguir-se mutuamente, pois
um deve servir como delimitação do outro. Portanto, cada vez que o Eu delimita o
Não-eu, acontece o exercício moral e prático; por outro lado, quando o Não-eu delimita
o Eu, acontece o conhecimento. Assim, nesse sistema infinito e dinâmico, o Eu é
capaz de produzir a liberdade, pois esta se caracteriza em uma contínua e infinita
construção.
Como o homem precisa relacionar-se com o outro para, moralmente, ser
completo, o outro também é um Eu com vontades, desejos e pensamentos
semelhantes ou diferentes, e esta alteridade pode resultar em conflitos. Então, o Eu –
que é livre – precisa delimitar sua liberdade no convívio com o outro, em outras
palavras, para que o outro pratique a sua liberdade é necessário estabelecer o limite
da própria.
O doutor Fausto vive de acordo com a alma, logo é passível de sofrer as
angústias terrenas. Essas “almas opostas” – alma e espírito – são indicativos da
vontade contraditória de Fausto de alcançar as nuvens com os pés no chão, elevar-
se espiritualmente através da racionalidade. O erudito alemão não analisa sua
situação deplorável para entender com propriedade o que há consigo, não se distancia
de si para entender seus contrários interiores e ser livre.
Depois que Wagner sai, Fausto volta ao monólogo, dessa vez, suicida, pois já
não encontra mais maneiras de cessar os sentimentos negativos e a inquietação que
sente. Nem por invocação conseguiu, logo, o que resta é morrer:
Decidido, o sofrido doutor leva “o último hausto” (ibid. p. 87) aos lábios, mas é
interrompido pelas badalas dos sinos junto ao canto do coro dos anjos, das mulheres
e dos discípulos da manhã de Páscoa, o que o faz lembrar da infância, da nostalgia
de uma juventude interrompida pelos anos de estudos; e parar a ação fatal. Momento
deveras significativo por trazer à tona o simbolismo da Crucificação e Ressurreição
de Cristo – “Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o
mundo” (João 16:33) – como epifania.
Na cena posterior, Diante da Porta da Cidade (p. 97), Fausto, após escolher
viver, dará um passeio com o seu pupilo Wagner, pois sente-se revigorado, como se
tivesse ressuscitado da fonte descongelada: “Descongelou arroio e fontes / O vivífico
olhar da primavera” (ibid. p. 97).
Durante o passeio com seu aprendiz Wagner, Fausto dá-se conta que há um
cachorro seguindo-os: “Vês o cão negro a errar pelo restolho e seara?” (p. 121). O
pupilo responde que já o tivera percebido, porém deixou que o seguissem. O Diabo
disfarçar-se de cão é propício como ironia, pois em Salmos (22:20) o próprio Diabo é
chamado de “cão”, por causa de sua malignidade e ferocidade: “Livra a minha alma
da espada e a minha predileta, da força do cão”. Da mesma forma, em Apocalipse
(22:15), os barrados para o reino dos céus são chamados de “cães” por sua
indignidade espiritual: “Ficarão de fora os cães e os feiticeiros, e os que se prostituem,
e os homicidas, e os idólatras, e qualquer que ama e comete mentira”8.
O cachorro segue Fausto até o seu quarto de trabalho, e lá, revela-se como
Mefistófeles (ou simplesmente Mefisto)9, o Demônio, após o erudito alemão começar
8
O Diabo assume outras e variadíssimas formas animais, como a de um touro, gato, cavalo, porco,
veado, camundongo ou mosca. Mas a sua aparição com um cão, um cão preto – a cor denunciando a
presença demoníaca –, ocupa o segundo lugar na preferência dos relatos (NOGUEIRA, 2002, p. 68).
9 É a partir de Goethe que a forma variante do nome, Mefistófeles, aparece. A forma original,
Mephostophiles, é usada no livro História do Doutor Johann Fausto, do mui famoso mago e nigromante,
publicada no século XVI anonimamente, contudo, o seu significado não é exato. Citando a nota de
Magali Moura na 1ª edição do livro História do Doutor Johann Fausto, de 2019, ela explica: “Em Füssel;
Kreutzer (2006), se indica sobre a variada composição do nome que justapõe vários prefixos gregos,
forjando o significado: ‘o que não ama a luz’ ou ‘o que não ama os homens’. Henning (1963, p. 182)
oferece variadas possibilidades de interpretação do nome: ‘origem hebreia: mephir + tophel = destruidor
– mentiroso; origem grega: mephostophiles = o que evita a luz; origem latina = mefitis + philos = aquele
que aprecia a expansão venenosa’. Segundo Butler (Ritual Magic, Cambridge, University Press, 1949,
p. 164), esta variante inaugurada na História perdurará até o ano de 1765, quando passam a surgir
outras formas do nome com a variação da vogal o para a, assim como por alterações nas terminações
42
compondo outros nomes: Mephistofilis, Mephitophilus e Mephistophiel” (p. 35). Além disso, a figura de
Mefisto pode receber epítetos caracteristicamente brasileiros, como: Capeta; Satanás/Satã; Capiroto;
Príncipe, Rei, Senhor ou Anjo das Trevas; Rabo de Seta; Serpente; Maligno; Cão; Sete peles; Tinhoso;
Chifrudo etc.
43
o que em vão sonho enleia / Da fama e glória o falso brilho” (ibid. p. 161). O doutor
Fausto blasfemar contra Deus ante o Diabo é indicação profunda do quão longe de
entender e sanar seus tormentos ele está. Abandonar a fé, querer tudo e não se
comprazer com a sua própria condição é uma das características do homem moderno
como figura paradigmática.
Assistindo tudo de perto, Mefisto contempla a oportunidade de servir a Fausto
com o argumento de livrá-lo de suas decepções: “Pronto estou, sem medida / A ser
teu, neste instante / Companheiro constante / E se assim for do teu agrado / Sou teu
lacaio, teu criado!” (p. 165). Mas, o doutor tem conhecimento suficiente para imaginar
que esta proposta feita não pode vir à troco de nada para Mefistófeles, então o
questiona: "E com que ofício retribuo os teus?" (ibid. p. 165). O velho não espera
pouca coisa, visto que percebe o quão egoísta é o Diabo. O astuto Mefistófeles
responde que se certifica servir Fausto na terra quando este fizer “o mesmo” por ele
“no outro mundo” (p. 167). Porém, Fausto se mostra desinteressado pelo outro mundo
no além, o que ele quer é este: “Que importam do outro mundo os embaraços? / Faze
primeiro este em pedaços / Surja o outro após, se assim quiser! / Emana desta terra
o meu contento” (ibid. p. 167). De que vale um outro mundo quando se tem a
oportunidade de realizar as suas aspirações à reveria neste?
Testemunhando o descrédito por parte do doutor, Mefistófeles investe ainda
mais na proposta para conseguir persuadi-lo, oferta-lhe as suas artimanhas e
assegura que ele faria coisas que ninguém jamais vira antes. Apesar disso, Fausto
ainda não está convencido e põe-se a fazer pouco do demônio: “Que queres tu dar,
pobre demo?”. A fraqueza no imaginário demoníaco popular da época, como já dito,
é devido à desvalorização da Igreja Católica como instituição responsável pela
redenção espiritual. A personagem do Satanás era usada como propaganda para
aterrorizar regiões e populações não-cristãs a seguir e aderir ao Cristianismo como
religião oficial, consequentemente, tornando-se fiéis da Igreja.
A partir deste momento, Fausto pressiona Mefistófeles com contradições, em
um teste à prova de fogo para ter certeza sobre a sapiência da Serpente: “Mas,
possuis alimento que não satisfaça”; “Perdido sempre e jamais ganho” (ibid. p.
167). Aliás, ordena coisas mais contraditórias: “Mostra-me o fruto, podre antes que o
colha / E a árvore que de dia em dia se renova” (p. 169). Mefisto prova-se perspicaz
como era de se imaginar ao replicar com precisão e certeza: “De tais bens posso dar-
te a escolha / E põe-me o encargo a fácil prova” (ibid. p. 169). Ao ouvir tais palavras
44
terrena, primordial, animal como única e irremediável saída para seus altos voos
egóicos de aspiração.
Crer no poder metafísico demoníaco e tê-lo como símbolo é parte constituinte
do Romantismo alemão, pois este transformou
[...] Satã no símbolo do espírito livre, da vida alegre, não contra uma lei moral,
mas segundo uma lei natural, contrária à aversão por este mundo pregado
pela Igreja. Satanás significa liberdade, progresso, ciência e vida. Tornar-se-
á moda a identificação com o Demônio, assim como procurar refletir no
semblante o olhar, o riso, a zombaria impressa nas feições tradicionais do
Diabo. O demoníaco torna-se símbolo do Romantismo: demoníaco como
paixão, como terror do desconhecido, como descoberta irracional existente
no homem: a explosão da imaginação contra obstáculos excessivos da
consciência e das leis (NOGUEIRA, 2002, p. 104-105).
11 Tal cena lembra a situação, Sobre uma briga entre doze estudantes, da História do Doutor Johann
Fausto: “Em Wittenberg, diante de sua casa, sete estudantes começaram uma briga com outros cinco.
Isso não pareceu ao Doutor Fausto muito justo; levantou-se e lançou-lhes um feitiço, de modo que um
não podia ver o outro. Com raiva, brigavam entre si sem se enxergarem, o que fazia os espectadores
rirem bastante dessa estranha escaramuça. Ao final, todos tiveram de ser levados para suas casas.
Tão logo chegaram a suas moradas, recuperaram a visão” (2019, p. 135).
12
Juventude enérgica, determinada e intransigente que pensa saber de tudo por encontrar-se
cronologicamente afrente na História, sem ao menos analisar a própria História.
47
atributos concedidos pelo corpo menos velho. No entanto, o doutor Fausto não
compactua da mesma interpretação feita pelo Demônio acerca da finalidade do
rejuvenescimento. Ora, enquanto – como acima fora explicado – para Mefistófeles,
além da poção trazer de volta a potência de um Fausto mais novo, atiça também,
sobretudo, sua libido. Logo, é a respeito desta consequência a qual Mefisto tirará
proveito, crente em ter êxito na vigarice (ibid. p. 267).
No entanto, a aspiração de Fausto está além do tesão sentido, pois a sua
vontade encontra-se intrínseca ao tempo que lhe fora rejuvenescido. Com este tempo
a mais (ou a menos!) ele quer vislumbrar à imagem feminina que o atemorizou de tal
forma, cujo semblante avistou no espelho da bruxa (é irônico pensar que um desejo
tão altivo desabrochou em um lugar tão desagradável!): “Só quero ainda espreitar no
espelho a aparição! / Mulher nunca houve aquela!” (ibid. p. 267).
Uma vez que a efígie vista é uma mulher sui generis, traz à tona, de forma
evidente, que aquilo a qual Fausto atina é a autêntica feminidade13, cujo autor, Johann
Wolfgang von Goethe, denomina Ewig-Weibliche [Eterno-Feminino], ou seja, a pulsão
que faz o homem amar e, por consequência, atingir o zênite, levando-o a alçar-se
acima da sua mera existência.
13 A representação feminina provoca uma imensa afeição no doutor, principalmente, pois julga
encontrar nela o oposto da sua frustrada vida passada.
14
El Eterno Femenino es una realidad peraltada a la cual el hombre, cuando ama, se eleva, no por
propio poder ascensional, sino porque es atraído -hacia lo más alto. No se me negará que la mujer si
es algo, es atractiva, esencialmente atractiva; pero Goethe nos hace reparar que su atracción es
siempre, siempre, cenital: Das ewig- Weibliche Zieht uns hinam (ORTEGA y GASSET, p. 103-104).
48
sexo em breve a flor mais bela”, sussurra consigo para Fausto não ouvir, “Com esse
licor na carne abstêmia / Verás Helena em cada fêmea” (ibid. p. 267).
Em contrapartida, diferente do que planeja o Príncipe das Trevas, o erudito
alemão almeja a gênese feminina, um princípio, aquilo que, assim como Helena de
Tróia, simbolize em si a verdadeira beleza. Como Mefistófeles não põe fé na ideia a
qual Fausto quer concretizar, desdenha e o amaldiçoa ao sussurrar que “Verás Helena
em cada fêmea”, pois está convicto que o poder rejuvenescedor e sexual recuperado
pela mágica poção seja o suficiente para estimular a libidinagem de Fausto,
afastando-o de qualquer sensação transcendente. Ou seja, este último verso não é
por acaso, simboliza uma das consequências do trato feito com o Adversário e anuncia
a tragédia vindoura: a autodestruição pelo vício luxurioso.
Goethe utiliza com perspicácia – classicista e romântica – aquela na qual
causou um dos maiores conflitos da Antiguidade, a Guerra de Tróia, iniciada após o
rapto da esposa do rei Menelau de Esparta, Helena, realizado por Páris, filho do rei
Príamo de Troia. Páris sequestra a princesa Helena após apaixonar-se ferozmente
por ela enquanto estava em Esparta para ter um encontro diplomático. A primeira
figura por quem sente atração ao ser rejuvenescido representa a guerra que será
travada por Fausto para libertar-se do páthos. Ou seja, o amor será proibido e, caso
mergulhe profundo neste amor, somente o infortúnio trará.
Fora da Cozinha da bruxa, o velho doutor Fausto, o homem inquieto, que sofria
com um sentimento de insuficiência, de frustração, enquanto passou a maior parte da
sua vida buscando como único objetivo o conhecimento através dos livros e mesmo
assim não encontrou segurança para a sua adequação no mundo, transforma-se num
jovem doutor Fausto, revigorado e completamente propenso a gozar da liberdade e
das regalias do trato feito com o Diabo, isto é, designar o rumo da sua própria
trajetória. Em outras palavras, o erudito alemão pode, enfim, desfrutar na prática o
que dissera Mefisto na cena Quarto de Trabalho: “Hás de saber viver, assim que em
ti confiares” (p. 199). É, portanto, do lado de fora, onde Mefistófeles e Fausto deparam-
se com aquela na qual será o amor e a dor do agora jovem estudioso, Margarida
(também chamada pelo diminutivo Gretchen15) – doravante, se iniciará todo o drama
da tragédia anunciada outrora.
15
Ao longo da tragédia, Goethe se vale com frequência desse diminutivo para se referir a Margarida
(no original, Margarete) (MAZZARI, 2016, p. 269).
49
Por Deus, essa menina é linda! / Igual não tenho visto ainda / Tanta virtude e
graça tem / A par do arzinho de desdém / A boca rubra, a luz da face / Lembrá-
las-ei até o trespasse! / O modo por que abaixa a vista / Fundo, em minha
alma se regista / Sua aspereza e pudicícia / Aquilo então é uma delícia! (ibid.
p. 271).
16
Goethe, como é sabido, integrou o movimento pré-romântico Sturm und Drang, logo a primeira parte
do Fausto sofreu influências dos ideais defendidos deste Movimento nacional-irracionalista.
50
mudança não somente no seu corpo, mas também em seu espírito. A figura no
espelho, Helena de Tróia, dominou todos os seus pensamentos e sentimentos por ser
a representação da beleza outrora distante. Outro ponto a destacar é a nitidez do
interesse ínfimo por Margarida como indivíduo, entretanto, Fausto é regido por seus
instintos, por suas paixões, então esse pouco interesse é irrelevante para ele17.
Mefisto entra em cena e o seu senhor conta a respeito da menina linda e diz
estar completamento apaixonado por ela e pede para o Capiroto: “Escuta, tens de
arranjar-me a mocinha!” (ibid. p. 271). Sem embargo, Mefistófeles adverte Fausto:
“Aquela? ora! do padre vinha / Que de pecados a achou inocente / Passei ao
confessionário rente / É jovem muito ingênua e boa / Que foi à confissão à toa / Sobre
essa eu não tenho poder” (p. 273).
Nesses versos é perceptível a alma religiosa de Margarida – algo que será de
suma importância no decorrer da tragédia – como alguém compromissada com os
ensinamentos, sacramentos e a moral cristã, demente a Deus, com propósito de
fortalecer o espírito para não cair em desgraça. Outrossim é a extensão do poder
de Mefistófeles que se mostra diminuto e ineficaz ante os devotos a Deus.
Consequentemente, reconhece que Deus, com quem fez uma aposta no Prólogo do
Céu é soberano e mais poderoso.
Entretanto, mesmo sendo menos poderoso que o Altíssimo, o Diabo ainda é o
legítimo pai da mentira, visto que “ele foi homicida desde o princípio e não se apegou
à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é
mentiroso” (João 8:44). Portanto, não é de se admirar Mefisto dizer que não tem
autonomia para fazer tal ato – seduzir Gretchen por meio de magia demoníaca –, pois,
desse modo, nas entrelinhas, ele intensifica a cobiça de Fausto transformando a
conquista por Margarida mais atrativa. Sobretudo, a jovem moça provoca em Fausto
a reminiscência da mocidade virtuosa – tão árdua para o erudito –, aquela vista outrora
antes do doutor decidir acerca do suicídio (p. 87), pois Gretchen mais que personifica,
ela encarna a beleza de um tempo (até então) não maculado pela velhice infrutífera
da qual possuía, antes do pacto, o velho Fausto em sua própria existência, cujas
expectativas já se encontravam destruídas.
17
Observe-se que Goethe cria implicitamente um contraste entre os espaços anteriores a esta cena em
rua aberta: enquanto Fausto está vindo da "cozinha da bruxa", a moça acaba de deixar a igreja. Das
palavras posteriores de Mefistófeles pode-se depreender que, na verdade, este já havia espionado e
de certo modo "eleito" Margarida para a aventura amorosa de Fausto (MAZZARI, 2016, p. 269).
51
O ensaísta José Ortega y Gasset analisa acerca desse ideal feminino. Segundo
ele, este ideal deve ser compreendido sob o critério histórico e, além disso,
considerando as aspirações próprias de diferentes povos – neste caso, o povo
romântico alemão.
18
Un individuo, como un pueblo, queda más exactamente definido por sus ideales que por sus
realidades. El lograr nuestros propósitos depende de la buena fortuna; pero el aspirar es obra exclusiva
de nuestros corazones. Por esto los tipos de feminidad que son a la vez formas de idealidad, marcan
el horizonte de las capacidades latentes en cada pueblo. Dondequiera y em todo tiempo, las siluetas
del eterno femenino se elevan al cenit como constelaciones, preestableciendo los destinos étnicos
(ORTEGA y GASSET, p. 62).
52
ameninada. Não obstante, existe algo a mais para ser considerado além da mera
distinção de tratamento elegido pela dupla pactária.
Ao mesmo tempo que o doutor a endeusa, revestindo-a de qualidades
angelicais; Mefisto a menciona como inocente e por fazer, testifica a mundanidade, a
atração e o apelo sexual que Margarida excita. Logo, apesar de tanto Fausto quanto
Mefistófeles caracterizar a jovem como ingênua e infantil, é o seu futuro amante que
a eleva para um nível transcendental, acima do gênero humano, aproximando-a do
zênite no qual leva ao encanto, a beleza, ao atrativo provocado pelo feminino
goetheano.
De volta à ameaça da quebra do pacto, ainda que realize tal ato, a alma de
Fausto ainda seria de Mefisto, porém o que pesa para o Capeta é saber que foi
incapaz de satisfazer, apesar de todas as suas artimanhas e lábia satânica, um mortal,
pois de humilhação já basta o próprio Deus. Porém, algo a considerar é, mesmo que
o Doutor Fausto, porventura, saiba disso, não anula o nível de sandice no qual se
encontra, pois isto representa a suspensão da realidade, da força descomunal da
paixão sentida por Margarida exercida sobre ele; desafiar o Diabo, é a prova.
Feita a ameaça, a postura de Mefistófeles muda rapidamente, já que ele teme
que o pacto seja desfeito, logo confirmando seu fracasso diante de Deus e de
Fausto. Aliás, ele refaz o seu discurso de impossibilidade do desejo e estipula um
prazo, “De uns quinze dias eu preciso” (ibid.), para amansar Fausto da sua vontade.
Em contrapartida o erudito reflete qual a utilidade do pacto, e garante que poderia
seduzir a “menina” mesmo se “Tivesse [...] sete horas de prazo” (ibid.). O doutor não
se arrepende do trato feito, mas traz ao campo da utilidade a serventia de ter um
Demônio com poderes mágicos, sobrenaturais, e não conseguir ter êxito naquilo que
quer ou ordena a ser feito. E como está encharcado de paixão e mais jovem, acredita
ser mais eficaz, quiçá mais poderoso que o Capiroto – a imaginação romântica alça
voos cada vez mais altos na alma do estudioso alemão. Por outro lado, Mefisto,
novamente, tenta desestimular seu amo o convencendo de que “Mais vivo e bem
maior será / Se antes moldares e aprestares” (p. 275), ou seja, não será prazeroso o
suficiente caso ele se apresse a consegui-la, mas Fausto ignora.
Então, o Capeta cede ao intento do doutor e o explica como será executado o
seu plano de seduzir "a bonequinha humana" (ibid. p. 275) – é evidente através dessa
caracterização que Margarida ainda é deveras inocente e infantil, logo, influenciável
por não ter ainda formação moral consolidada nem imaginário amplo, e Mefisto tirará
53
19 Kerker, no original, cárcere – com esta palavra Goethe cria uma associação retrospectiva com o
“quarto de trabalho” de Fausto (apostrofado então de “cárcere”) e também já faz uma referência
antecipatória ao futuro “cárcere” real de Margarida (MAZZARI, 2016, p. 281). Antes de Mefistófeles
aparecer, o erudito encontrava-se refém da própria vida limitada da ciência infértil, no seu “cárcere”. Do
mesmo jeito sente-se Margarida sobre sua vida regrada pelo tradicionalismo, e assim como Fausto,
sustenta o desejo de modificar esta realidade vivenciada (o que será demonstrado à frente). O que,
diga-se de passagem, demonstra como será o relacionamento complementar-contraditório entre as
personagens.
55
(ibid.). Eram joias caríssimas – colar, pulseira, brincos – que “Dão logo um outro
aspecto à gente!” (ibid. p. 289).
Vê-se nestes versos, acompanhada da admiração, a revelação da pretensão
interior de Margarida: ascender socialmente a fim de ir a um mundo distante do seu
cubículo e da sua pacata vida provençal. Em posse das joias, ela tem nas mãos a
chance de conseguir relacionar-se com um aristocrata, como Fausto o é, e concretizar
seu desejo. Logo, a curiosidade outrora acerca do altivo homem que a abordou na
saída da igreja era a respeito dessa expectativa de Margarida.
Decerto, Mefisto já sabia disso quando elegeu Gretchen como potencial
parceira para Fausto, pois mesmo considerando-a infantil, ele sabe que a mulher-
Gretchen ambiciona estar num lugar de destaque na estrutura social, portanto, como
forma de trazer à tona a recôndita feminilidade coberta pela ingenuidade, Mefisto
desperta com as joias afanadas a consciência da mulher soberana em Gretchen, cuja
atração é irresistível para qualquer homem. Ou seja, o plano acertado do Diabo era
estimular o lado mulher da mocinha, afastar quaisquer características de criança;
deixá-la mais afeita aos objetos terrenos e plena para conseguir o que quiser através
da beleza e da sensualidade de uma mulher-feita. Mefistófeles conseguiu preparar
perfeitamente o terreno de modo sútil, mas eficaz, para a aproximação de Gretchen
com Fausto.
A cena seguinte, Passeio (p. 295), começa com Mefistófeles irado: “Com mil
traições de amor! com inferno e os elementos! / Quisera eu conhecer praguedos mais
odientos!” (ibid.). O motivo da sua raiva é porque Margarida ao pôr as joias, foi
apresentá-las a sua mãe e, esta por ser muito religiosa notou que as joias não tinham
uma boa energia, recolheu as bijuterias e entregou ao padre da sua igreja:
20[...] a senhora Marta, espevitada e alcoviteira, desempenhará para sua jovem vizinha um papel
semelhante ao que Mefisto exerce para Fausto nessa aventura amorosa (MAZZARI, 2016, p. 301).
57
Mefistófeles dado ao velho doutor outrora: “Hás de saber viver, assim que em ti
confiares” (cf. p. 14).
Após a confirmação da flor, Fausto e Margarida, enfim, declaram uma para o
outro seus sentimentos recíprocos – que em breve será quebrado por Fausto: “Não
estremeças! Que este olhar / Que esta pressão da mão te diga / O que é inexprimível
/ Dar-se de todo e sentir na alma / Um êxtase que deve ser eterno! / Eterno! sim! –
seu fim seria o desespero / Não, não, sem fim! sem fim!” (p. 347). Margarida então
corre para dentro de um caramanchão23 e Fausto a segue, e lá se beijam pela primeira
vez: “Amado meu! amo-te com a alma inteira!” (p. 353).
Passado o encontro revelador, na cena Floresta e Gruta (p. 359), Fausto decide
ir à Natureza para agradecer ao Gênio da Terra por concretizar os seus desejos e
proporcionar sensações tão boas: “Ah! como sinto agora! A esse êxtase / Que mais e
mais dos deuses me aproxima” (ibid.).
A Natureza é o refúgio do romântico, pois nela não há amarras formais,
restrições ou qualquer tipo de regra artística. A Natureza é o invólucro da arte, e esta
deve estar comprometida com a veracidade, contudo não apenas com o belo, o
proporcionalmente harmônico, o agradável, mas também com o feio, o sombrio, o
grotesco. Ora, nem tudo o que há na Natureza é atrativo por sua beleza. Por exemplo,
o ornitorrinco não é um animal belo, mas sim, intrigante como ser: diferente do todo,
desproporcional, desconformemente natural comparado a outros bichos e espécies.
Portanto, o que há de maravilhoso na Natureza é o seu mistério, segredos, ou seja,
tudo o que existe de bonito e encantador, feio e assustador.
Com a vontade de dizer tudo sobre a grandiosidade e o temor da Natureza, o
gênio irá trazer à tona em sua obra – literatura, pintura, arquitetura: mais abundância
de símbolos e imagens esteticamente poderosas em sua essência, apresentando-as
com a totalidade das formas e conteúdo, consequentemente, elevando o espírito
apreendedor de quem as contempla. Mas para este fim, segundo Victor Hugo, a
Natureza não deve estar submetida à crivos artísticos, protocolada como um manual
de como fazer arte e afins, ela deve romper com as restrições definidas pelas
tradições Classicistas. Pois, a Natureza liberta de qualquer imposição, dará à Arte a
estética da totalidade no qual o sublime e do grotesco se misturam.
23Estrutura leve construída em parques ou jardins, geralmente de madeira, que se pode cobrir de
vegetação e usar para descanso ou recreação.
60
24
No livro, Os Sofrimentos do Jovem Werther, um dos romances mais importantes da fase romântica
alemã e um clássico da Literatura universal, publicado em 1774, Goethe apresenta a seguinte situação:
Werther, um jovem que vê em Charlotte, mulher noiva de Alberto, a personificação de seus ideais. Por
vê-la dessa maneira, Werther se apaixona profundamente pela dama e se destrói num amor
entusiástico e desesperado que o leva ao suicídio.
61
25
Segundo a doutrina católica, o matrimônio encontra-se ao lado dos demais sacramentos: batismo,
crisma, eucaristia, confissão, extrema-unção e absolvição sacramental (MAZZARI, 2016, p. 379).
26 O canto de Margarida a respeito do desejo de estar ao lado de quem ama nesta cena faz alusão aos
Quão rija era antes a ira minha, / Se errava alguma pobrezinha! / Como
exprobrava a culpa alheia / Com valentia, a boca cheia! / E a enegrecia, em
voz severa, / E negra assaz inda não me era, / E me ufanava, a fronte alta, /
E agora estou na mesma falta! / Mas, tudo o que pra tal me trouxe, / Céus! foi
tão bom! ah, foi tão doce! (p. 399).
27
O Eu-penso de Fitche.
28
A ideia mais evidente do tom desses valores aparecerá mais à frente na execração realizada por
Valentim, o seu irmão, em público antes de falecer.
29
Margarida já se encontrava grávida nesta cena.
63
juízos morais, porém, sem abandonar a oposição com os valores do povoado no qual
vive. Em outras palavras, a nova Gretchen que emerge então deixa de ser aquela
jovem infantil, cheia de ingenuidade, ameninada; transforma-se numa mulher que
começa a analisar sua existência no mundo pequeno no qual mora, sob jurisprudência
dos imperativos da Igreja Católica e da estrutura social dominante. Logo, o papel de
Margarida é questionar tais imperativos, apoiada, entretanto, sobre os princípios
morais que recebera da tradição cristã. Por isso, esta postura adquirida justifica o seu
desprezo por Mefisto na conversa com Fausto: “Ferve-me o sangue quando está
presente. / Sempre quis bem a toda gente; / Mas, como almejo ver o teu semblante, /
Dele íntimo pavor me rói, / E além do mais o tenho por tratante! / Se eu for injusta,
Deus que me perdoe!” (p. 385).
Apesar de não ter certeza sobre Mefistófeles, Margarida suspeita por sentir nele
o espírito destruidor, que a tudo corrompe; do seu gênio nefasto que “todo humano
ser detesta”30 (ibid.). Razão pela qual ela põe-se contra a rejeição imutável
materializada por Mefisto, como princípio oposto, na luta pela alma do doutor. Por um
lado, o pacto com um demônio cético que é Mefistófeles garante a Fausto o
cumprimento das suas mais ousadas ambições, uma vez que sua constante
inquietação e sua ávida aspiração de compreensão do mundo reconhecem, no poder
resultante deste pacto, a única chance de sentir a plena felicidade e satisfação. Por
outro, inviabiliza Fausto de experenciar o amor autêntico de Gretchen – sensação
ainda desconhecida por ele.
Entretanto, dado que o amor dela leva à salvação cristã, também coloca Fausto
num impasse, pois a permanência e aceitação deste sentimento acarretaria na
abdicação de realizar o seu maior desejo através do pacto: saber sobre tudo do grande
mundo. Apesar de tanto Margarida quanto Fausto serem espiritualmente
semelhantes, eles também são simultaneamente contrários e incompatíveis, já que
Gretchen, diferente do erudito, em hipótese alguma abdicaria à salvação da sua alma
em troca de escapar do pequeno mundo da aldeia onde habita.
Devido à hora, Margarida despede-se de Fausto que lamenta e suplica passar
uma noite com ela: “Ah, nunca posso / Pender-te ao seio uma horazinha em calma /
Penetrar peito em peito, e alma em alma?” (p. 387). Gretchen até quer, mas sabe a
rígida mãe que tem: “Dormisse eu só! com que abandono / Deixar-te-ia hoje o trinco
30 Mefistófeles é a personificação do Mal, não como poder supremo e não-humano, mas imanente ao
livre-arbítrio do homem.
64
aberto / Mas minha mãe! tão leve tem o sono / E se nos surpreendesse, é certo / Que
eu morreria de mil mortes” (ibid.). Ao relatar isso, Fausto puxa do bolso um frasco
capaz de adormecer31 quem tomar e entrega a Gretchen com as devidas instruções,
assim eles poderiam aproveitar a noite sem incômodo ou surpresas. Como Margarida
reverência e estima muito Fausto e quer agradá-lo sempre, ela nem suspeita o que
seria aquilo, apenas confia em quem ama, diferentemente do amado.
Desde o início do drama é notório afirmar que as paixões são mais tentadoras
e apetitosas que a razão por provocar nesta uma espécie de suspensão dos sentidos,
e isto é demonstrado nessa cena, pois, mesmo Gretchen devota ao Senhor, mais
adulta e responsável, não consegue resistir aos próprios impulsos, a ingenuidade
infantil restante em seu âmago, a ponto de aceitar algo sem ao menos perguntar do
que se trata; nem raciocinar direito e muito menos consultar ao Espírito Santo antes
de concordar.
O dissimulado Mefistófeles, que assistiu e ouviu toda a conversa do casal de
longe, aproxima-se de Fausto quando Margarida dá as costas e vai embora. Como
percebeu a ambivalência fundamental entre os dois, o Príncipe das Trevas
ardilosamente trata de minimizar os anseios religiosos da jovem transformando-os em
uma mera intenção de ter controle sobre o doutor: "Essas meninas dão muito valor /
À crença e à fé, conforme o velho estilo. / Pensam: seguir-nos-á também, quem segue
aquilo" (p. 391). Além do mais, repreende o que interpreta ser fragilidade proveniente
da volúpia de Fausto: “Galã sensual, suprassensual, / Pelo nariz te leva uma donzela”
(ibid. p. 391).
Em relação ao impasse, contudo, é meramente ilustrativo, pois já está
decidido desde o início: o doutor Fausto em nenhum instante demonstrou interesse
em abdicar o pacto, muito menos do seu desejo-mor pelo conhecimento absoluto do
grande mundo, em virtude do amor por Gretchen. Isto confirma-se na réplica à fala
debochada de Mefisto, onde o doutor revela o seu intuito: “Não vês tu, monstro
malquerente, / Como aquela alma amante e pura / E que em fé se derrama – / Que
unicamente / Salva, a seu ver – qual santa se tortura, / Por ter de ver perdido o homem
a quem ama.” (ibid.).
31
O que era para ser um sonífero provar-se-á ser algo mortal. Segundo Mazzari (2016), não se sabe
quem teria sido o responsável pela morte da mãe de Margarida, mas tudo indica ter sido o próprio
Mefisto, pois sabia do se tratava o líquido contido dentro do frasco antes de entregar ao doutor Fausto.
65
32
Era o seu irmão, Valentim, que a considerava deste modo.
33 Durante toda a cena da Noite de Valpúrgis há alusões às revoluções burguesas do século XVIII.
34 Inicia-se a espiritualização gradual de Gretchen, que chegará ao seu apogeu na última cena, no
Cárcere, porém, já transparece nas cenas anteriores ao interlúdio ébrio da Noite de Valpúrgis: Na fonte,
Diante dos muros fortificados da cidade e Catedral.
66
35
“Aceitando, na sua vontade humana, que se faça a vontade do Pai, Ele aceita a sua morte enquanto
redentora, para "suportar os nossos pecados no seu corpo, no madeiro da cruz" (1 Pe. 2:24).
67
totalmente o que consistia tal líquido no frasco, inclusive chegou até a contestar o
amado: "Tem algo que eu por ti não faça? / Espero não causar-lhe mal!" (p. 389).
Afora isso, a única lei que Margarida efetivamente descumpriu foram as severas
diretrizes morais existentes na sua comunidade.
Assim como sucedera com Bárbara, na fofoca contada por sua amiga Lusinha
Na Fonte, Gretchen está grávida de uma criatura cuja vida, segundo o Espírito Mau,
não seria de ideais presságios, visto que estaria condenada, se sobrevivesse, à
desgraça, à cólera e ao esquecimento. Eis, portanto, a causa que leva Margarida a
assassinar seu próprio filho recém-nascido: a rejeição moral da própria aldeia onde
cresceu e viveu contra ela; culminando, assim, na pena de morte sentenciada pela
instituição da lei civil.
Entre a conquista de Gretchen, o homicídio de Valentim com a imediata evasão
do assassino e o instante no qual é anunciado ao doutor sobre a situação que estava
Gretchen, aprisionada e destinada à morte, evidentemente, passou-se um espaço de
tempo significativo. Durante este espaço de tempo, Fausto, após ser apresentado a
voluptuosidade nua e crua da Noite de Valpúrgis, é lançado por Mefisto à “insultas
diversões” (p. 491) e só dar-se conta, atrasadamente, das circunstâncias e do que irá
acontecer com Margarida no momento que sua sensatez e sua vida passada já
sucumbiram: “Mefisto, ao longe e a sós / Não vês uma formosa e pálida donzela? /
Com lentidão se arrasta para nós / De pés atados é o andar dela / Confesso-o, julgo-
a parecida / Com minha boa Margarida” (p. 467).
Apesar de ser revelado a ele a atual condição da jovem, diferentemente da
amada, o doutor não se abala e atua como se fosse ilibado, culpabilizando
Mefistófeles e até mesmo o próprio gênero humano pela miséria sofrida por ela (p.
491-493). Sequer a objeção do Sete Peles provocou nele alguma lucidez súbita de ter
sido o causador de todo o suplício de Margarida: "E quem foi que a lançou à perdição?
Fui eu ou foste-o tu?" (p. 493).
Mais uma vez, embora semelhantes em espírito, tanto Fausto quanto Margarida
são desarmoniosos e não somente em relação aos caminhos adotados para conseguir
realizar os seus respectivos objetivos. Gretchen, mesmo que a princípio acredite no
sonho de libertar-se do seu espaço por meio da possibilidade de mudança do seu
status social, jamais cogitaria em renegar suas crenças morais e religiosas para
realizá-lo. Já para Fausto, a sua natureza titânica, direcionada à conquista de glórias
68
Tornamos aos confins do vosso entendimento, lá, onde a vós, mortais, o juízo
se alucina. Por que é que entraste em comunhão conosco, se és incapaz de
sustentá-la? Almejas voar e não te sentes livre da vertigem? Pois fomos nós
que a ti nos impusemos, ou foste tu que te impuseste a nós? (Ibidem. p. 493).
Após o êxito no plano, o doutor se depara com uma Margarida delirante, fora
de si, resultado do trauma psicológico em adição ao pico de estresse: “Varre-me o
corpo um calafrio / Toda a miséria humana aqui me oprime / Jaz, ela, aqui, detrás do
muro frio” (ibid. p. 503). Então, ao abrir a porta e entrar, de fato, na cela, Margarida
não o reconhece como tal e pensa ser o carrasco, pois está em um estado bastante
69
coragem para além de uma simples sofredora abandonada tanto pelo amado quanto
pela comunidade, ela transforma-se, legitimamente, num herói trágico. Sua desgraça
é a condição para o desenvolvimento de si mesma – quiçá mais verdadeiro quando o
do próprio Fausto. Visto que, assim como o doutor, Margarida está buscando
transcender os limites da Igreja, da família e da sociedade, ou seja, ir além do mundo
no qual a religiosidade fanática e a autorregressão são as únicas formas da virtude.
No entanto, enquanto o erudito alemão tenta se libertar do mundo medieval através
da concepção de novos valores, ela aceita os antigos e procura de fato viver à critério
deles.
Tal pretensão exponencial a coloca no mesmo patamar que Fausto. Entretanto,
à medida que este escolhe como único propósito de seu espírito inquieto a ação da
transformação, Margarida, com a fé e a elevação espiritual que a fazem desamarrar-
se completamente dos objetos mundanos, excelsa, através da própria ruína, a
realidade restringida na qual vivera: “É o túmulo, lá fora” (p. 515). Ou seja, toda essa
postura evidencia a dimensão a dor sentida por Gretchen. A forma como Margarida
se arrepende será a mesma utilizada por Fausto na segunda parte da tragédia, e será
através dela que ele será salvo. O verso “Hei de ver-te, ainda” (p. 519) antecipa o
destino de Fausto: o céu.
Mefistófeles aparece do lado de fora para apressar o seu senhor quanto à fuga,
visto que o carcereiro estava prestes a acordar. Margarida avista-o, mas como está
decidida a sacrificar-se, o ser maligno a assusta pela última vez. Outrossim,
finalmente, consegue confirmar suas suspeitas que o companheiro vil do seu amado
é mesmo o Diabo, que quer levá-la deste mundo junto com Fausto. A jovem Gretchen
rejeita a oportunidade de escapar do cárcere oferecida pelo doutor e sua criatura, pois
se concordasse com tal oferta implicaria numa contradição: demonstraria que suas
aspirações e dimensões humanas não são autênticas e sua existência é frívola,
ademais, com o escape ela não teria nada como sustento existencial, estaria somente
fadada ao estrago do próprio corpo e da alma enquanto deserta em um mundo vão e
sem propósito. Nem ao menos o amor de Fausto, que ela percebe claramente não ser
mais o mesmo, poderia ser viável na vida fora do cárcere: "Ai de mim, teus lábios são
frios! / Mudos, também, / Teu amor, onde / Se esconde? / Roubou-mo quem?" (p.
511).
Por isso, a misericordiosa Margarida responsabiliza-se por todos os pecados
cometidos não somente por ela, mas também por Fausto. Entrega-se, então,
71
36 O primeiro é Dedicatória (p. 27), um curto texto registrado em seu diário acerca da criação do Fausto.
37 No original, lustige Person, ou seja, “personagem cômica”.
73
Criminalmente, em teu proveito?” (p. 39). Entretanto, logo é convencido pelo Bufo a
aceitar a resolução com o argumento de estar a proporcionar o melhor dos dois
mundos, cômico e trágico, ao transformar o espetáculo num drama, cujo êxtase cresce
em companhia da dor:
O que Goethe demonstra nesse primeiro prólogo, além de nortear o que uma
obra literária deve conter para ser considerada uma38 e jogar com o metateatro39, é
mais que uma mera situação comum entre participantes envolvidos em uma
apresentação de teatro, ele evoca com base fundamental o atrito entre os opostos
como possibilidade da combinação das partes ao eleva-las como complementares: o
Bufo combate a tese do poeta ao lançar o engraçado como antítese, ou seja, media
as concepções estéticas sobre a liberdade literária deste ao ridicularizá-las por não
contemplar a vida humana em sua integridade. O que resulta numa síntese, que é o
consentimento de ambos os envolvidos acerca da composição dos diferentes: “Tão
pronta a lágrima lhes vem como a risada” (ibid. p. 41).
38 Com August Wilhelm Schlegel, Goethe cunhou no início do século XIX o termo Weltliteratur [literatura
universal], a qual refere-se às obras literárias artisticamente mais valiosas e obstinadas de várias
nações. Para os alemães, principalmente para o próprio Goethe que era contra ao nacionalismo literário
do Romantismo, essas obras têm validade universal, ou seja, devem ser importantes para todas as
pessoas e não apenas para as pessoas da cultura em que a obra foi criada. Além disso, a característica
de atemporalidade é atribuída a elas. De acordo com A. W. Schlegel e Goethe, as obras literárias não
devem apenas preservar seu valor artístico fora das condições históricas e nas quais foram feitas, mas
também a importância dos ideais representados nessas obras para as pessoas. O pré-requisito para o
conceito de Weltliteratur é o pressuposto de constantes antropológicas universal e atemporalmente
válidas: certos valores básicos da ética e da estética devem, portanto, ser sempre válidos.
39 Diz-se da qualidade ou força em uma peça que desafia a afirmação do teatro de ser simplesmente
realista – ser nada além de um espelho no qual o público ver-se as ações e sofrimentos de personagens
como os seres humanos, suspendendo a descrença em sua realidade. O metateatro (ou metadrama)
começa por aguçar a consciência da dessemelhança da vida com a arte dramática. Nisso, pode
terminar tornando aqueles que assistem conscientes da semelhança misteriosa da vida com a arte ou
a ilusão. Ao chamar a atenção para a estranheza, artificialidade, ilusão ou arbitrariedade – em suma, a
teatralidade – da vida que vive-se, ela marca os quadros e limites que o realismo dramático
convencional esconderia. Ademais, pode apresentar uma ação tão estranha, improvável, estilizada ou
absurda que os espectadores sejam forçados a reconhecer a estrutura estranha que envolve toda uma
peça. Por outro lado, pode quebrar a moldura da "quarta parede" do teatro convencional, estendendo-
se para agredir o público ou atraí-lo para o reino da peça. O metateatro é uma característica contida
em boa parte da literatura ocidental.
74
malandro que é relevado com relutância, em maior ou menor grau, pelos deuses. Por
exemplo, na mitologia grega, Hermes, o mensageiro do Olimpo, cumpria esse papel.
Assim também era Loki, o deus da trapaça, na mitologia nórdica. Já no Fausto
goetheano, é Mefistófeles quem assume o arquétipo do trapaceiro, dado que quase
nenhuma exímia poesia épica, mesmo moderna, pode desconsiderar a tal figura, cuja
contraparte humana é o pícaro da sua própria tradição literária, que decerto remete a
tradição mitológica.
O malandro incorpora um elemento amiúde de oposição dentro da Ordem
Divina, e, apesar de Goethe considerar a importância da figura mitológica
representada por Mefistófeles, a sua atuação não é independente como Loki ou
Hermes, isto é, mesmo Deus jamais tê-lo odiado – posição indiferente dos filhos
genuínos da Deidade –, e ainda poder trafegar livremente no mundo dos divinos
cosmos, Mefisto necessita ter a permissão do Senhor para manifestar-se como
deseja. Logo, ele é visto, em certo sentido, como o bobo da corte divina, pois o
Altíssimo não se preocupa tanto com malandro. Razão pelo qual, mesmo com a
autorização d’Ele para descer ao mundo humano, lhe é concedido um poder
minoritário: “Também nisso eu te dou poderes plenos” (ibid. p. 57).
O intento do Altíssimo quanto a permissibilidade da tentação de Fausto por
Mefistófeles, segundo Marcus Vinicius Mazzari (2016), dá-se como no Antigo
Testamento, no Livro de Jó, no qual Goethe baseou-se para criar este segundo
prólogo: Deus concebe o espírito da Negação e do Mal como instrumento da ordem
divina. Na medida que estimula Jó ou Fausto, representantes do gênero humano
neste contexto, o Pai da Mentira impede que estes afundem no pecado acídia ou
melancolia.
Goethe, como dito, baseia toda a cena do Prólogo do céu no Livro de Jó, mas
ao contrário do que demonstra o texto bíblico, o Deus goetheano sempre deixou claro
ao Adversário que não importasse o que ele fizesse, a alma de Fausto já se
encontrava salva. Ou seja, Mefisto nunca deve a menor chance de vencer a aposta
firmada com o Altíssimo. No entanto, mesmo o avisado, Mefistófeles acredita no seu
peremptoriamente em seu êxito, e Ele, portanto, autoriza a tentativa, cujo resultado é
o fracasso iminente do Demônio, por julgá-lo simplesmente como uma ferramenta a
ser usada para à Ordem Celeste, uma entidade cômica, grotesca.
A tolerância divina em relação a Mefistófeles contradiz o seu próprio juízo sobre
o Senhor. O Adversário justifica o fato de não proferir “fraseado estético” (p. 51) como
76
os anjos, e evita a sublime esfera do gênero por considerá-la incompatível com o seu
páthos provocador do riso. Para Mefisto, o riso emerge por meio de uma
incongruência desencadeada, neste caso, pelo páthos pertencente ao âmbito do
sublime encontrar-se na boca de uma criatura ardilosa e enganadora, inferior ao
gênero, como ele só. Mesmo assim, o páthos demoníaco é relegado ao irreal pelo
respectivo Mefistófeles, tal como o riso do Altíssimo – Deus não ri.
Embora o próprio Altíssimo seja um propugnador da negação em forma de
malandragem e patifaria, Mefisto parece ter demasiados motivos de ter com o “Velho”
(p. 57) às vezes, e zela para não quebrar esta ligação: “Vejo, uma ou outra vez, o
Velho com prazer, / Romper com Ele é que seria errôneo” (ibid. p. 57). Então,
Mefistófeles fecha a cena do Prólogo do céu com uma anedota irreverente, que
parodia a forma como Deus e o Diabo interagem com a relação humana entre um
cavalheiro e um selvagem: “É, de um grande Senhor, louvável proceder / Mostrar-se
tão humano até pra com o demônio” (ibid. p. 57) – mesmo o malandro Diabo pretenso
a atrapalhar a Ordem Celeste com malícia e sagacidade.
Sem dúvida a obra fáustica de Goethe é uma tragédia, mas é uma tragédia
composta por aspectos românticos precisos, cuja composição dramática é
diametralmente marcada pela relação do cômico e do trágico nos destinos impetuosos
das personagens principais: Margarida e Fausto.
Como é sabido, Fausto abandona a ciência fracassada e estéril de seu tempo
pela magia, e, posteriormente, pelo pacto com o Diabo para dominar o conhecimento
do mundo que, segundo ele, significa adentrar nos segredos e mistérios da Natureza,
compreender o mundo “em seu âmago profundo”, vislumbras os “germes” e “as vivas
bases”. Em outras palavras, por não encontrar na realidade física a certeza que tanto
buscou por anos a fio nos livros, nos experimentos e na vida, Fausto passa a
considera-se como um miserável, uma figura patética aos seus próprios. Porém, este
autodistanciamento, isto é, a capacidade de ver-se tal como é, e, consequentemente,
rir de si próprio, não é eficaz, visto que resultou em um espiral decadente de
desespero existencial em busca de alguns intentos através da suspensão e evasão,
como substituir os estudos científicos pela magia, evocação do Espírito da Terra, e o
suicídio.
Enquanto Fausto lamenta a sua condição, Goethe contrapõe os monólogos
solenes e transcendentes do velho alemão com a ignorância do seu orgulhoso fâmulo
Wagner, personagem que simboliza a estirpe dos eruditos pedantes que ocuparam o
77
42 O dottore da Commedia dell’arte é o pedante erudito que em qualquer oportunidade de fala, abre a
boca para discursar verborragicamente. Tal personagem transformou-se, assim como o Arlequim, num
estereótipo.
43 Ano que Goethe inicia os primeiros esboços do que seria mais tarde conhecido como Urfaust [Fausto
zero].
78
por comedia de ingenio. A designação deve-se ao fato das suas personagens serem de condição nobre
e se apresentarem com uma capa e uma espada. Além disso, o termo comédia não tem o mesmo
sentido que atualmente lhe é atribuído, porque o elemento cômico não é dominante neste tipo de teatro,
a que convinha melhor a designação de “drama romântico”. Visto que no Século de Ouro espanhol, o
termo comédia era utilizado indistintamente, quer se tratasse de um tema cômico quer se tratasse de
um tema trágico (CEIA, Carlos. Comedia de Capa y Espada. E-Dicionário de Termos Literários, 2009.
Disponível em https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/comedia-de-capa-y-espada/. Acesso em: 30 mar.
2021).
79
mesmas uma semelhança que não as excluem enquanto unidas: a força de descobrir
o obscuro contido no gênero humano.
puxa o espírito das alturas para a terrena e crua bestialidade, função que desempenha
com maestria.
Assim como Moisés utiliza um cajado para simbolizar a autoridade divina
(Êxodo 4:2), o cajado com o qual o Maligno conduz às bufonarias e farsas instigadas
desde Na Taberna de Auerbach em Leipzig (p. 201), passando pela Noite de Valpúrgis
(p. 433) até chegar à mascarada carnavalesca (entrudo), na cena Noite de Valpúrgis
Clássica47 – que usa o cômico bazofio para finalidades sórdidas –, é o cajado do falo
demoníaco. Pois, por meio do falo reconhece-se a autoridade e poder do Diabo,
assim, com ele se dá a conhecer à bruxa na Cozinha da Bruxa: “Que delicada espécie,
observa! / Eis o criado! esta é a serva!” (p. 245). Por sua vez, a bruxa provida do senso
infernal pela comédia fálica mefistofélica, gargalha intensamente ao reconhecê-lo
como tal: “Há! Há! pois sóis vós, sem engano! / Fostes sempre ótimo magano!” (p.
259).
Em outro momento da peça goetheana, na cena Floresta e gruta (p. 357),
Mefisto reitera o falo como o verdadeiro senhor de tudo que há para um Fausto
afastado de Margarida, retirado à solidão, cedido à uma inédita visão da Natureza,
não mais científica como outrora, mas místico-contemplativa (panteísta), que ameaça
o pacto e os planos do Tinhoso. À vista disso, Mefistófeles tenta acender novamente
a sensualidade e estimular a libido de Fausto, recorda-lhe do “desejo do doce corpo”
de Gretchen com fingida sensibilidade; e consegue na caradura! ao explorar a
relutância de Fausto: “Perverso! foge e não me acenes / Com a imagem da formosa
criatura! / Não tragas de seu corpo aspirações infrenes / Ante os sentidos prenhes de
loucura!” (p. 367). Outrossim, ainda aproveita para, no cume do cinismo, apequenar
radicalmente o misticismo natural de Fausto a uma mímica masturbatória48:
MEFISTÓFELES
FAUSTO
MEFISTÓFELES
O apogeu das investidas de Mefisto em “subtrair essa alma à sua inata fonte”
(p. 55) acontece na iniciação de Fausto na Noite de Valpúrgis. Entre bruxas nuas, atos
libidinosos, blasfêmias e conversas obscenas, o espírito fáustico decai e chafurda no
mais repugnante lamaçal moral, tornado um suíno, como anteriormente cantaram os
jovens estudantes da taberna, do qual nada pode ser feito para ser salvo. Não
obstante, a cena mais grotesca em toda obra por evocar figuras clássicas animalescas
dotadas de intenso estímulo sensorial, como o assombro, o medo e o impulso de
autopreservação, é a mesma que elevará mais uma vez o afã espírito sublime de
Fausto.
Segundo explica Edmund Burke (2016), o Sublime encontra-se no exagerado,
na escuridão, no vazio, na uniformidade, no infinito. Isso inclui a grandeza, o robusto,
o poderoso, o terrível, sensações intensificadas pelos elementos demoníacos da Noite
de Valpúrgis, visto que
O que quer que de alguma forma seja capaz de excitar as ideias de dor e de
perigo, ou seja, tudo o que for terrível de alguma forma, ou que compreenda
objetos terríveis, ou opere de forma análoga ao horror é fonte do sublime; ou
seja, é capaz de produzir a emoção mais forte que a mente é capaz de sentir
(BURKE, 2016, p. 52).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] o que quer que de alguma forma seja capaz de excitar as ideias de dor e
de perigo, ou seja, tudo o que for terrível de alguma forma, ou que
compreenda objetos terríveis, ou opere de forma análoga ao horror é fonte
do sublime” (BURKE, 2016, p. 52).
incoerente hesitar até mesmo da análise mais pormenorizada do prazer impuro, como
agonias horríveis, ultraje repulsivo, impotência presunçosa, seja física ou mental.
O romântico francês Victor Hugo compartilha da mesma leitura feita pelo seu
colega alemão, mas manifesta-se com mais veemência ao estabelecer que esta
impureza na natureza do homem pode ser retratada, desde a Antiguidade, sob a forma
da Comédia e pelo princípio estranho introduzido na poesia, o Grotesco. Pois, este
tipo conduz a poesia à verdade ao vislumbrar as coisas com olhar mais elevado e
amplo, sentindo que nem tudo na criação é humanamente belo, ou seja, proporciona
liberdade ao romper com a estrutura clássica difundida na sua época, o que “o feio
existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime,
o mal com o bem, a sombra com a luz” (HUGO, 2014, p. 26). Ao convergir o tipo
Grotesco com o tipo Sublime, que é evocado através da Tragédia, Hugo define,
portanto o drama romântico, isto é, uma nova forma de poesia produto da época
moderna que teria de destruir inteiramente as antigas expressões clássicas pautadas
em normas e regulamentos definidos.
O Sublime é evocado através da Tragédia por causa do valor da intensidade.
Segundo Schiller, o roubo numa Tragédia seria capaz, moralmente falando, de ser
visto como um ato sem-vergonha. Contudo, esteticamente falando, o artista não verá
dessa forma, pois, este mesmo ato sem-vergonha pode ser restituído à apreciação
estética, relevante e impactante caso o artista consiga elevá-lo ao ponto de crime
hediondo, como por exemplo, o latrocínio. Eis, então, a contradição revelada por
Schiller: o juízo moral despreza o terrível, enquanto o juízo estético busca disfarçar-
se por uma intensa sensação. No entanto, Schiller elucida esta contradição ao afirmar
que o terror excitado pela experiência subjetiva imediata ao contemplar a natureza
Sublime transforma-se num sentimento de afeição pelo objeto terrível na medida em
que há a chance de manter distância tanto dele quando de si mesmo; como efeito
disso, abre-se uma dimensão mais pessoal que provoca “[...] o sentimento penoso de
nossos limites, não fugimos dele, mas somos, pelo contrário, atraídos com uma
violência irresistível” (SCHILLER, 2011, p. 60). Por isso, o romântico alemão não
restringe o Sublime ao que é inacessível para a imaginação, mas ao que é misterioso
para a razão, desde que ascenda à representação do suprassensível como obra
pertencente à Natureza.
Dado o cenário do final do século XVIII a respeito da estética do Sublime e do
Grotesco – este passa a ser parte integrante daquele em virtude do manifesto do
88
escritor Victor Hugo –, o Fausto adquire ares ainda mais longevos e profundos, pois
não mais se apresenta só como uma peça trágica, mas também como uma peça
cômica, logo, constituído como um drama romântico, que contrasta e ridiculariza o
desejo humano impulsivo de dominar o desconhecido do mundo, representado por
Fausto, ante a própria limitação da condição humana, cuja as ações e objetos evocam
as sensações sublimes, por intermédio de Margarida, e grotescas, por intermédio de
Mefistófeles. Além da obra de Goethe atuar no campo poético, sobretudo, junto aos
desenvolvimentos dos fundamentos ontológicos e psicológicos, ela não negligência
as dimensões sociopolíticas da época – uma das particularidades do Romantismo.
Pois, crer que a poética romântica transcende os limites e, portanto, está o tempo todo
ausente das fronteiras do Eu ou da sociedade, configura-se como um simples mal-
entendido. Uma vez que para os românticos, o Eu não é imutável, pelo contrário, o Eu
renova-se constantemente, porém, essa ação renovada é concebida por fragmentos
que se reintegram na falta de outros fragmentos materiais. Ademais, o arcabouço das
obras românticas insinua um regresso no qual a sensibilidade cintilante, exposta aos
terrores do infinito, move o Eu e a sociedade; uma mudança que significa também
uma “transferência” das formas auferidas do passado.
Portanto, referente à estética do Grotesco e do Sublime, os escritores
românticos tinham como finalidade a força das representações (e pós-imagens)
projetadas por suas obras. Diferentemente do que acontece na “Alegoria da Caverna”,
de Platão, as sombras ou figuras quiméricas deste mundo não afastam a essência,
pois eles mesmos tornam-se essência que descortinam a roda-viva das silhuetas. O
espírito é a caverna, é a grotta, donde emergem as formas grotescas que, por sua
vez, provocam as percepções sublimes da imponência do profundo crepúsculo da
vida.
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REFERÊNCIAS
GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto: uma tragédia – Primeira parte. Tradução
de Jenny Klabin Segall; apresentação, comentário e notas de Marcus Vinicius
Mazzari. 6ª ed. São Paulo: 34, 2016. Edição bilíngue alemão-português traduzida de
Faust. Der Tragödie erster Teil ou Faust I.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Fradique Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Sérgio Milliet. 1. ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1973.