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Universidade de Brasília - UnB

Instituto de Ciências Sociais - ICS


Programa de Pós-Graduação em Sociologia - PPGSOL
Disciplina: Tópicos Avançados em Sociologia Política
Professor: Dra. Sayonara de Amorim Gonçalves Leal
Estudante: Bruno Camargos Matrícula: 220004650

Comentário: LEAL, Sayonara. Concepções de justiça acerca de um dispositivo


de inclusão social: (in)capacidades e registros normativos segundo beneficiários
do Programa Bolsa Família. In: CANTU, Rodrigo, et. al. Sociologia, crítica e
pragmatismo: diálogos entre França e Brasil. Campinas: Pontes Editores, 2019,
pp. 225-263.
Sayonara Leal é uma socióloga brasileira e professora do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (PPGSOL/UnB). Em 2019, publicou
no livro “Sociologia, crítica e pragmatismo” o capítulo “Concepções de justiça acerca de um
dispositivo de inclusão social: (in)capacidades e registros normativos segundo beneficiários
do Programa Bolsa Família”, no qual ela parte dos limites do paradigma (re)distributivo para
o estudo dos programas de inclusão social direcionados às populações de baixa renda no
Brasil e propõe um estudo sobre o trabalho normativo dos usuários do Programa Bolsa
Família - PBF diante deste dispositivo de inclusão social. Ao considerar a coexistência de
uma pluralidade de concepções de justiça entre os atores sociais que integram este dispositivo,
a autora questiona o que os usuários deste programa consideram justo e injusto em suas
críticas sobre a forma como são reconhecidos pela política social, especificamente em relação
à satisfação de suas necessidades de subsistência. Para isso, entrevistou 23 famílias usuárias
do PBF em Samambaia, no Distrito Federal. Os dados foram analisados a partir da
triangulação entre percepção, ação e reflexão dos sujeitos entrevistados, com foco nas
experiências morais com relação à pobreza e nos seus engajamentos normativos às
condicionalidades do programa. Na primeira parte do texto, discute-se a relação entre
pobreza, capacidades críticas e justiça social, apontando-se para a capacidade do PBF de
promover capability em contextos sociais de déficits de liberdade e autonomia; enquanto na
segunda, a discussão recai sobre a relação entre ação e regras capazes de gerar uma gramática
moral a partir do conhecimento que o ator social possui acerca dos parâmetros normativos e
institucionais do dispositivo supracitado.
Leal parte da hipótese de que as capacidades de agir e criticar dos atores sociais
ordinários em situações incomuns dependem de três regimes de capacidade que favorecem a
justiça cognitiva: i) “competências sociocognitivas inerentes” àqueles de uma “mesma
comunidade linguística e institucional” (CHOMSKY apud LEAL, 2019, p. 229); ii)
“competência moral e hermenêutica adquiridas” (BOLTANSKI e HABERMAS, apud idem);
e iii) acesso a liberdades substanciais (acesso a bens, serviços e direitos básicos), como
proposto por Amartya Sen. Para a autora, a pobreza é um obstáculo para a capability enquanto
liberdades e capacidade moral e hermenêutica. Diante disso, argumenta que a inclusão social
deve ser pensada em diálogo com a igualdade social sob o risco de manter o status quo por
meio de uma assistência social fundada no interesse de mitigar manifestações extremas de
diferenciação social e evitar rupturas sociais radicais, como aponta a concepção simmeliana
sobre a pobreza e o assistencialismo. Nesta mesma linha, Sen aponta para a necessidade de
eliminar as restrições de liberdades políticas, direitos fundamentais e de liberdades
substanciais, como a fome e o analfabetismo, para o combate à pobreza. Disso decorre que o
tratamento da pobreza para além do paradigma de distribuição de renda é mais promissor,
uma vez que as desigualdades sociais promovem, também, desigualdades de capability. Por
isso, os dispositivos de inclusão social devem ser capazes de promover autonomia e liberdade,
exigência que o PBF cumpre ao articular acesso à renda com prestação de serviços sociais,
como saúde e educação (obrigatoriedade de vacinação e de frequência escolar das crianças).
No entanto, aponta Leal, enquanto dispositivo que ambiciona a inclusão social, o
PBF é alvo de polêmicas levantadas tanto pela condicionalidade do programa quanto pela sua
ênfase no pobre. Para discutir os regimes de provação que o dispositivo enfrenta, a autora
investiga a percepção dos usuários do PBF sobre a pobreza e a avaliação destes em relação ao
cumprimento das finalidades e às condicionalidades do programa. Sobre a primeira questão,
os dados mostram que os entrevistados não se consideram pobres ou vítimas de arranjos
sociais injustos, pois, para eles, a pobreza significa miséria (extrema-pobreza) e, por isso,
antes de qualquer coisa, eles se sentem amparados pela justiça divina por desfrutarem de
saúde e disposição para o trabalho. Sobre a segunda, a autora mostra que os entrevistados
reconhecem que o PBF ajuda com as despesas de primeira necessidade, mas é insuficiente
para erradicar a pobreza. Além disso, todos consideram justas as condicionalidades do PBF,
que são vistas como estímulo para que os pais se atentem para a saúde e a educação das
crianças e adolescentes; todos repudiam o recebimento e o uso indevido do benefício, como
fraudes e o gasto do recurso com bebidas alcoólicas e roupas caras; e é preponderante a
percepção do PBF como direito social, embora alguns destaquem que se sentem ajudados,
pois não se sentem contemplados pelos direitos que deveriam ser garantidos pelo Estado
democrático de direito e porquê têm dificuldade de distinguir “ajuda” e “direito” -
competência que exige capital cultural. Diante disso, a autora conclui que apesar dos
entrevistados levantarem críticas radicais ao uso indevido do benefício - um risco moral
testemunhado por eles -, não há uma significativa “contradição hermenêutica” entre o
princípio de justiça que orienta o PBF e a fala dos beneficiários, pois não foi constatado “uma
total discordância sobre a concepção do justo em termos do que o programa oferece e as suas
condicionalidades de acesso” (p. 255), o que demonstra coerência entre a realidade social dos
entrevistados e as normas do dispositivo, ainda que estas os submetam a condicionalidades.
Por fim, Leal aponta que o âmbito da pobreza, como categoria heterogênea e
marcada por níveis distintos de desvantagens, privações e incapacidades, também pode ser um
espaço epistêmico de formulação de princípios de justiça “a partir do recurso da experiência
com a despossessão de bens e requisitos considerados necessários para uma vida boa” (p.
256). Assim, ela constata que as operações críticas acerca do justo e o injusto entre os
entrevistados “fabricam uma espécie de ‘conhecimento robusto’ ancorado em representações
e experiências existenciais inscritas no quadro social de pobreza” (p. 258).

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