Você está na página 1de 5

ALENCAR, Chico e GENTILI, Pablo. Educar na esperança em tempos de desencanto.

Rio
de Janeiro / Petrópolis: Editora Vozes, 2001. (p. 69-76)

Qual educação para qual cidadania?

Tal como afirmam Will Kymlicka e Wayen Norman, no importante ensaio “O


retorno do Cidadão” (1997), a cidadania pode ser pensada e analisada em duas dimensões:
como condição legal e como atividade desejável.
Como condição legal, a cidadania é reconhecida como o pertencimento a uma
comunidade política na qual os indivíduos são portadores de direitos. Os direito configuram
a cidadania ao mesmo tempo em que tornam os indivíduos cidadãos, no contexto de um
conjunto de instituições que garantam sua efetivação. Uma das expressões mais difundida
dessa posição são as contribuições dadas por T. H. Marshall em sua célebre conferência
“Cidadania e Classe Social”, de 1949.
Para o sociólogo inglês, deve-se distinguir três dimensões na construção histórica da
cidadania: a civil, a política social. Na interpretação evolucionista de Marshall, o século
XVIII foi o cenário no qual se criaram as condições necessárias para o desenvolvimento da
cidadania civil. Foi nesta época em que o direito à liberdade de expressão, de pensamento e
de religião ganharam reconhecimento; a época na qual a doutrina dos direitos naturais e a
consagração dos direitos humanos a consolidação da dimensão civil do longo mas, em
aparência, seguro caminho que percorreria a cidadania moderna. Em um sentido seqüencial,
o século XIX permitiu o desenvolvimento dos direitos políticos (em especial, o direito à
participação: a cidadania política); enquanto, no século XX, foram criadas as condições
que permitiriam a extensão da cidadania para a esfera social mediante o desenvolvimento
dos direitos sociais e econômicos (o direito à educação, ao bem-estar, à saúde, ao trabalho,
etc.); em suma: as condições para a construção da cidadania social.
Entre as revoluções francesa e americana, no século XVIII, e os estados Bem-estar,
no século XX, localiza-se o processo histórico de consolidação dos direito definem o
campo da cidadania segundo a perspectiva otimista formulada por Marshall. Para ele, “a
cidadania consiste em assegurar que cada qual seja tratado com um membro pleno de uma
sociedade de iguais. A maneira de assegurar esse tipo de condição consiste em outorgar aos
indivíduos um número crescente de direitos de cidadania” (Kymlicka e Norman, 1997:7).
Esse tipo de interpretação estabelece uma sinonímia entre cidadania e posse de
direitos: ser cidadão significa ser portador de uma série de direitos, cuja natureza pode
mudar ao longo do tempo. Para Marshall, essa mudança teve um sentido positivo e um
resultado alentador. A extensão dos direitos para esferas cada vez mais amplas da vida
social (desde a liberdade de religião ao direito a uma renda segura) significou a
conseqüente ampliação da cidadania a setores cada vez mais amplos da população.
Podemos afirmar que, embora sendo fundamental, essa concepção limita a
cidadania a um conjunto de atributos formais (o reconhecimento de direitos comuns) que
restringem e condicionam as possibilidades e os alcances da condição cidadã. A redução do
campo da cidadania a uma questão meramente jurídica e, mais especificamente, de direito
positivo, acaba condenando a condição cidadã à esfera da lei e ao compromisso por
respeitá-la. Apelar aos indivíduos em sua condição de cidadãos e cidadãs significa, aqui,
referir-se aos direitos que lhes pertencem e não a determinado tipo de comportamento, de
responsabilidade, de deveres ou de ações que os mesmos devem realizar, conquistar,
cumprir e desenvolver.
Sendo assim, educar para o exercício da cidadania significa transmitir a todos os
direitos que formalmente lhe são reconhecidos. a educação, a partir desse enfoque, deveria
ser vista como um mecanismo de difusão, de socialização e de reconhecimento dos direitos
(civis, políticos e sociais) que definem o campo da cidadania. Uma ação pedagógica
destinada ao aprendizado da Constituição e das leis permitiria, por exemplo, consolidar e
desenvolver nos indivíduos a autopercepção de sua condição de cidadãos e,
consequentemente, o respeito e a proteção do sistema democrático e de suas instituições.
A rigor, seguindo os delineamentos desse enfoque, um sujeito não se torna cidadão
porque conhece seus direitos. Na sua própria definição, os direitos da cidadania devem ser
sempre compartilhados por todos os membros de uma comunidade. Neste sentido,
desconhecer, por exemplo, que temos direito à saúde, não significa deixar de ter (ou perder)
o reconhecimento formal desse direito. Ocorre que a ignorância pode nos impedir de
exercitar esse direito ou de reclamar por seu cumprimento. Por isso, a educação entendida
como o mecanismo de difusão dos direitos existentes, não forma ou concede a cidadania,
embora a faça mais consciente.
Esta concepção subjaz em alguns enfoques educacionais, para os quais a formação
cidadã se limita a mera transmissão pedagógica dos direitos reconhecidos pela lei. Como se
torna evidente, uma interpretação limitada da educação cidadã acaba sendo sempre
funcional a uma interpretação limitada da própria cidadania. do mesmo modo, uma
concepção formal de cidadania deriva sempre de uma concepção formalista da educação
cidadã.
Definida como atividade desejável, a cidadania exige uma dimensão mais
substancial e radical. A partir desse ponto de vista, a posse de direitos deve combinar-se
com uma série de atributos e virtudes que fazem dos indivíduos cidadãos ativos em
consonância e mais além do que a lei lhes concede. O exercício da cidadania se vincula,
assim, ao reconhecimento de certas responsabilidades derivadas de um conjunto de valores
constitutivos daquilo que poderia definir-se como o campo da ética cidadã. Nesta segunda
perspectiva, a cidadania é considerada uma dimensão que excede o meramente formal (a
esfera dos direitos legalmente reconhecidos) para vincular-se, de forma indissolúvel, a um
tipo de ação social e de possibilidades concretas (não apenas subjetivas) para a realização
dos atributos que a definem.
Na perspectiva formalista, a cidadania é concedida (o indivíduo se torna cidadão na
medida em que lhes são atribuídos direitos de diverso tipo). Contrariamente, pensada como
prática desejável, como aspiração radical de um vida emancipatória, a cidadania é
construída socialmente como um espaço de valores, de ações e de instituições nas quais se
garantem condições efetivas de igualdade que permitem o mútuo reconhecimento dos
sujeitos como membros de uma comunidade de iguais.
A cidadania é, desta forma, o exercício de uma prática inegavelmente política e
fundamentada em valores como a liberdade, a igualdade, a autonomia, o respeito às
diferenças e às identidades, a solidariedade, a tolerância e a desobediência a poderes
totalitários.
Sendo assim, é evidente que a cidadania substantiva é sempre um espaço aberto,
uma construção comum, nunca um estado final. Dito de outra forma, os valores e as
atitudes que definem a cidadania são resultado de uma ação social em movimento
constante, na qual consensos e dissensos se sobrepõem de forma complexa: como entender
a liberdade e as práticas que a constroem?; que princípios definem a igualdade entre
indivíduos ou comunidades?; que diferenças merecem ser defendidas e quais merecem se
combatidas?; quais os significados e os alcances da tolerância (devemos, por exemplo, ser
tolerantes com os intolerantes)? Essas e outras questões estão no próprio centro do
problema da cidadania, fazendo dela uma esfera sempre instável.
Mesmo que essa segunda concepção permita superar as limitações da primeira, ela
delineia alguns problemas nada desprezíveis no que se refere à educação e à própria
cidadania.
Com efeito, se a educação cidadã se vincula à possibilidade de construir referências
comuns no plano dos valores e das práticas que as fazem realidade: que valores e que
práticas são essas?; quem os define e como defini-los?; de onde eles obtêm sua
legitimidade?; através de quais mecanismos institucionais dever ser socializados?; de que
forma e através de quais procedimentos eles devem ser revistos e avaliados?
A solução mais simples a essas indagações consiste em preestabelecer o conjunto de
valores e de práticas que definem o campo da cidadania para, uma vez feito isso, poder
transmiti-lo aos indivíduos que, ao “incorporá-los”, se tornarão cidadãos e cidadãs
“conscientes”. Isso é o que comumente se denominou “formação ética e cidadã”, ocupando
um lugar de destaque nas reformas educacionais dos anos 90: a transmissão de valores e o
treinamento numa série de práticas vinculadas a seu exercício.
Ainda que superadora do reducionismo que supõe limitar a formação cidadã ao
conhecimento da lei, esta opção pedagógica resolve um problema, mas cria vários outros. A
cidadania está vinculada com valores e práticas, em tal sentido, conhecer esses valores e
exercitar-se nas práticas que os tornam efetivos são, sem sombra de dúvida, um desafio
fundamental que enfrentam os cidadãos e as cidadãs (não apenas durante sua vida infantil,
como também, é claro, durante sua vida adulta). A raiz problemática da questão reside em
que, se aceitamos que a cidadania é sempre um horizonte em construção, como fazer para
que a transmissão predeterminada de valores e práticas por parte dos (as) educadores (as)
não acabe limitando ou impedindo que os indivíduos (em processo de cidadanização) se
tornem efetivos de “sua” própria cidadania? Se, por exemplo, preestabelecemos o conteúdo
da “liberdade” e da “autonomia”, transformando-os em uma verdade (pedagógica)
inquestionável, que “liberdade” e “autonomia” terão os indivíduos para apropriar-se livre e
autonomamente desses valores e dessas práticas sociais que lhes estão associadas?
O dilema é complexo e pode ser melhor abordado se entendemos que,
dialeticamente, a cidadania é um processo construtivo, o que significa que ela inclui a
possibilidade de definir (sempre de modo conflitante) os valores e as práticas que
constituem sua própria esfera de ação. Dessa forma, quando a cidadania se fecha em um
“dever ser” de valores e práticas imutáveis ou predeterminadas deixa, por assim dizer, de
ser “cidadã”.
Analiticamente, essa é a questão central: que tipo de ação educativa é coerente com
a formação de sujeitos cuja cidadania vai além do mero reconhecimento forma de direitos?
que tipo de formação humana pode se construir em uma barreira para o desenvolvimento
ativo dos valores e das práticas que estão associadas à cidadania substantiva? Torna-se
evidente que se a cidadania implica sempre em uma ética cidadã, a questão fundamental
reside em definir as ações pedagógicas que, dentro ou fora da escola, sejam mais
conscientes e coerentes com os princípios éticos que a sustentam.
Em outras palavras, não se pode educar para a autonomia através de práticas
heterônomas, não se pode educar para a liberdade a partir de práticas autoritárias e não
se pode educar para a democracia a partir das práticas autocráticas.
A formação de cidadãos e cidadãs é, ao mesmo tempo, um desafio ético e político.
Um desafio ético de formação cidadã, se põe em jogo o caráter constitutivamente político
da ação educativa. Assim, pensar na educação da cidadania significa pensar em valores,
normas e direitos (não apenas legais, senão também morais) que configuram a práxis cidadã
e que, indissoluvelmente, devem constituir a práxis educativa.

Você também pode gostar