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Universidade de Brasília - UnB

Instituto de Ciências Sociais - ICS


Programa de Pós-Graduação em Sociologia - PPGSOL
Disciplina: Tópicos Avançados em Sociologia Política
Professor: Dra. Sayonara de Amorim Gonçalves Leal
Estudante: Bruno Camargos Matrícula: 220004650

Resenha: BOLTANSKI, Luc. Sociologia crítica ou sociologia da crítica. In:


VANDENBERGHE, Frédéric & VÉRAN, Jean-François. Além do habitus:
Teoria social pós-bourdieusiana. Rio de janeiro: 7 Letras, 2016, pp. 129-154.
Luc Boltanski (Paris, 1940) é um sociólogo francês, professor de sociologia na École
des Hautes Études en Sciences Sociales. Em 2016, ele publicou na coletânea “Além do
habitus: Teoria social pós-boudieusiana” uma versão revisada de “Ce dont les gens sont
capables” (1990) sob o título “Sociologia crítica ou sociologia da crítica” em que ele justifica
teoricamente o quadro de análise apresentado em Les économies de la grandeur (edição
brasileira: “A justificação: sobre as economias da grandeza”).
Segundo Boltanski, o referido quadro analítico investiga as situações frequentes na
vida cotidiana em que os atores sociais são submetidos a um imperativo de justificação, com o
objetivo de analisar as operações que tais atores realizam quando engajam-se na crítica e
devem justificá-la. Trata-se de um modelo de análise dirigido às pesquisas que buscam
investigar “a forma como as pessoas colocam em prática seu sentido de justiça para se engajar
à crítica, justificar suas ações ou convergir ao acordo” (p. 130). Embora este modelo nos
remeta a uma teoria da ação, não há nele a intenção de relacionar a conduta dos agentes a
determinismos que motivam sua ação. Além disso, ele é orientado especificamente à questão
da justiça, renunciando à pretensão de descrever a realidade social em todos os seus aspectos.
Boltanski explica que o interesse pelas denúncias de injustiça comuns à vida
cotidiana se deve à problemática da atividade profissional do sociólogo e as motivações pelas
quais os sociólogos se engajam nela. Através de um diálogo implícito com Bourdieu et. al.
(1999), que enfatiza a preocupação com o risco do conhecimento sociológico ser validado por
atores externos à academia, o autor afirma que as pessoas comuns e os sociólogos
compartilham a atividade de formalizar denúncias de injustiça e levá-las ao espaço público.
Contra a sociologia crítica de Bourdieu, ele reconhece a dificuldade da pretensão de separar a
atividade de denúncia das pessoas e a atividade científica dos sociólogos, mas não considera
necessário enfrentá-la, pois é legítimo que as pessoas engajadas em casos de injustiça
retomem explicitamente as análises e os conceitos empenhados por sociólogos.
Ao observar a conciliação entre as atividades de denúncias ordinárias e a atividade
sociológica, Boltanski se vê diante de duas questões: Qual a postura que o sociólogo clássico
adotava em sua abordagem? Como definir uma abordagem que renuncie à intenção crítica da
sociologia crítica para que seja capaz de ter como objetivo o trabalho crítico operado pelos
atores sociais?
Quanto à primeira questão, Boltanski explica que a tarefa do sociólogo clássico é a
de descrever a ilusão dos atores investigados, que dissimula “a verdade quando ela é contrária
aos seus interesses” ou que dissimula “para eles próprios a verdade de seus atos e de suas
tomadas de posição” (pp. 132-133). Dessa forma, se este tivesse analisado as denúncias
cotidianas enquanto objeto de pesquisa, ele teria levantado dados e, em seguida, produzido
um relatório de pesquisa a partir de dois pressupostos básicos: a crença em sua capacidade de
revelar uma realidade diferente e superior àquelas apresentadas pelos atores sociais; e a
pretensão de validade do seu diagnóstico independente da aquiescência dos atores, pois a
dimensão da realidade revelada não é aparente para os atores. A capacidade de descrição da
ilusão do seu objeto seria produto do método científico e na posição de exterioridade que
permite ao sociólogo se alienar dos interesses em luta e descrevê-los. Em síntese, o sociólogo
clássico dispõe de um laboratório, consente o sacrifício da renúncia à apreensão de realidade
em sua totalidade e renuncia às ilusões dos outros, assim como as suas enquanto ator social. O
desvelamento de ilusões sociais como atividade científica aparece em conceitos como
ideologia, pré-noções, crenças, resíduos, entre outros. Essa abordagem deságua no alcance da
totalidade do mundo social “como um sistema de relações simbólicas cuja análise esgota-se
quando o revelamos como representação ou crença” (p. 133). Tudo é reduzido a apenas
crença e a ciência é sugerida como o suporte da realidade mais verdadeira que a ilusão e as
formas simbólicas que fundamentam sua identidade. O laboratório, então, serve para
reconhecer e transportar essas formas simbólicas.
Dessa forma, afirma Boltanski, o sociólogo clássico se apoia sobre o laboratório para
legitimar seu trabalho contra as ilusões dos atores sociais, pois seu relatório de pesquisa
extrapola o ambiente acadêmico e retorna ao espaço público por meio de intermediações,
passando a disputar com diversos outros relatórios produzidos pelos próprios atores, além de
servir como referência de apoio ao debate público. Por um lado, uma parte dos atores se
apoiam na objetividade do relatório para validar sua argumentação. Mas, por outro lado,
outros atores a rejeitam, desvelando os aspectos distorcidos no relatório, informações
equivocadas ou pressupostos ideológicos e políticos do autor. Ou seja, os atores sociais são
capazes de impor aos sociólogos o mesmo tipo de crítico que estes dirigem aos atores. Por
isso, “o laboratório nunca é tão poderoso, o método nunca é tão rigoroso a ponto de destacar
todo risco de ver o adversário desvelar as ilusões do autor e mostrar como elas são
sustentadas, ‘de fato’, por interesses ocultos” (p. 136).
Nesse sentido, Boltanski aponta que há semelhanças de forma e conteúdo entre
relatórios de pesquisa sociológica e os relatórios dos próprios atores, o que demonstra que “as
explicações que os atores dão não diferem radicalmente, em seu princípio, das explicações
trazidas pelos sociólogos” (p. 137). O papel do sociólogo, então, tem sido produzir teorias
sociais que organizam sistematicamente os elementos que sustentam os argumentos
mobilizados pelos atores em situações de justificação de suas ações ou das ações do outro,
além de fornecer aos atores recursos para o debate público, como uma chave de compreensão
segundo a qual a interpretação da ação das pessoas se dá quando se interpreta os seus
interesses particulares. Essa chave permite reduzir todas as pretensões do outro à interesses de
poder, assim como reivindicar o direito de abandonar a pretensão à justiça pela busca do
poder em nome do realismo. As ações de busca pelo poder tornou-se uma lei natural da
sociedade, um implícito inconsciente social, revelada pelas ciências sociais, sem a qual estas
seriam denunciadas como cínicas e injustas. Contudo, se tal lei fosse verdadeira, não seria
possível compreender as reivindicações por justiça e a possibilidade da crítica ser colocada
em jogo.
Boltanski empreende essa discussão não para reivindicar maior pureza científica ou
ética da sociologia crítica, mas para reivindicar que o engajamento do sociólogo seja levado a
cabo, ultrapassando a denúncia da desigualdade social para descrevê-la como injustiça e
esclarecer a posição de justiça a partir da qual a desigualdade pode ser definida como
injustiça, pois a sociologia crítica fez seu progresso científico com o sacrifício da sua escala
de valor em nome da pouco questionada divisão entre juízos de realidade e juízos de valor
contornada por Max Weber.
Ao compreender que essa perspectiva não permite a adoção das operações críticas
realizadas pelos atores como objeto de pesquisa, sendo, portanto, insuficiente para entender as
sociedades críticas contemporâneas, nas quais o mundo social é cotidianamente trabalhado
por denúncias de injustiça e demandas de reparação, Boltanski busca responder à segunda
questão do ensaio a partir do tensionamento entre a sociologia crítica (ou clássica) e a sua
proposta de sociologia da crítica.
Segundo Boltanski, a sociologia da crítica exige a renúncia da forma como a
sociologia crítica concebia a assimetria entre o sociólogo (desvelador de ilusões) e os atores
(portadores de ilusões). Isso não significa abandonar o exercício de exterioridade frente ao
objeto, pois a crítica se define pela exterioridade: “criticar é se desengajar da ação para
acessar uma posição externa de onde a ação poderá ser considerada de um outro ponto de
vista” (p. 144). Contudo, diferente da postura da sociologia crítica, o sociólogo da crítica deve
se dotar de uma exterioridade fundada em um princípio explícito de justiça que o permita
contrastar o modelo de justificação que orienta a situação na qual ele está engajado. A
sociologia da crítica, nesse sentido, se aproxima do movimento que caracteriza a passagem da
“sociologia do agente” a uma “sociologia da tradução” no quadro da teoria sociológica da
ação:
“Ao invés de definir os agentes por meio de atributos estáveis, de dotá-los de
interesses e de disposições inscritas nos corpos e capazes de engendrar intenções
objetivas e não conscientes (...), a sociologia da tradução mostra como os atores
elaboram os discursos sobre a ação” (p. 145).

Para Boltanski, ao mesmo tempo, a sociologia da crítica se distancia da sociologia da


tradução na medida em que ela não conhece o mundo social apenas a partir do que deriva da
ordem do discurso. O distanciamento entre essas duas sociologias é necessário para que se
reconheça no quadro de análise as coisas e sua importância nas atividades sociais e para
incluir os modos de relação entre pessoas nas pesquisas, os quais dificilmente são traduzidas
nos relatos dos atores sociais.
Em termos metodológicos, Boltanski afirma que o sociólogo da crítica deve
acumular o máximo possível de relatórios produzidos pelos próprios atores durante o trabalho
de campo, pois sua tarefa é produzir um relatório dos relatórios que compreenda o trabalho
interpretativo dos atores sem opor, no entanto, a eles uma interpretação pretensamente mais
verdadeira. O sociólogo da crítica não abandona o apoio do laboratório e a exterioridade em
relação ao seu objeto por duas razões: a exterioridade permite ao sociólogo reunir um
conjunto de relatórios que os atores particularmente são incapazes de constituir ou confrontar
no mesmo espaço; e o laboratório é exigido para clarificar os enunciados rápidos e lacônicos
presentes nos relatos dos atores.
Segundo Boltanski, clarificar significa avaliar o que é contingente e o que é estável
nos enunciados, colocá-los à prova a partir da relação com as “convenções que sustentam sua
inteligibilidade e sua aceitabilidade para um número indefinido de atores” (p. 147). Dito de
outro modo, clarificar consiste em desenvolver as reticências que os atores poderiam derivar,
refletindo individualmente, do enunciado, sem extrapolar o campo semântico. A análise do
sociólogo consiste em levantar o implícito que satisfaz os atores. Para que isso seja possível,
cada enunciado particular dos atores deve ser aproximado, pelo sociólogo da crítica, a
modelos construídos em laboratório que são, também, elaborados a partir dos argumentos
emitidos pelos atores e das situações em que os argumentos foram desenvolvidos. Esses
modelos permitem separar o contingente do estável, validar enunciados gerais e representar
explicitamente as convenções sobre os quais os enunciados gerais se apoiam.
Nesse sentido, o laboratório serve para a construção do “modelo teórico analógico”
proposto por Bourdieu et. al. (1999, p. 68), um “sistema de relações entre propriedades
selecionadas, abstratas e simplificadas, construído conscientemente com a finalidade de
descrição, explicação ou previsão” do objeto, que tem valor de explicação determinado pelo
seu poder de generalização. Então, a clarificação pode ser definida como um procedimento
dialético entre teoria e verificação empírica. Contudo, ao contrário de Bourdieu, o trabalho de
modelização ultrapassa os limites da construção de teorias sociológicas em Boltanski, e tem
como objetivo “reconstituir a competência à qual os atores devem poder ter acesso para
produzirem, em situações determinadas, argumentos que sejam aceitáveis pelos outros (...) e
dotados (...) de um grau elevado de objetividade e, por isso, de universalidade” (p. 150). A
construção de um modelo de competência se apoia, em Boltanski, na “análise do
agenciamento das situações nas quais as pessoas são levadas a realizar operações de crítica ou
de justificação” (p. 150). Les économies de la grandeur consagra, segundo Boltanski, a
construção deste modelo de competência cuja competência é a justiça, o qual é necessário
para esclarecer os enunciados dos atores “porque nas situações concretas da vida cotidiana, as
pessoas raramente levam até o fim o trabalho de reconstituir os princípios de justiça que
suportam seus argumentos” (pp. 150-151).
Por fim, Boltanski afirma que, assim como o sociólogo crítico, o sociólogo da crítica
desenvolve sua tarefa a partir do sacrifício. Enquanto o primeiro renuncia à ilusão, o segundo
sacrifica sua própria inteligência para renunciar à intenção de ter a última palavra sobre o
mundo social e reconhecer a capacidade crítica dos atores.
REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre, CHAMBOREDON, Jean-Claude, PASSERON, Jean-Claude. A


profissão de sociólogo: preliminares epistemológicas. Petrópolis: Vozes, 1999.

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