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A-Liberdade-Interior - Parte 1 - Cap 1
A-Liberdade-Interior - Parte 1 - Cap 1
Jacques Philippe
A LIBERDADE INTERIOR
Coordenação Geral: Filipe Cabral
Coordenação Editorial: Carolina Fernandes
Diagramação: Daniel Garcia da Silva
Capa: Leonardo Biondo
Rafael Studart
Revisão: Keila Maciel Marques
Sandra Viana
Edições Shalom
Estrada de Aquiraz - Lagoa do Junco
CEP: 61.700-000 - Aquiraz/CE | Tel.: (85) 3308.7465
www.edicoesshalom.com.br | comercialedicoes@comshalom.org
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reprodu-
zida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico
ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer
sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.
ISBN: 978-85-7784-002-1
8ª Edição
© EDIÇÕES SHALOM, Aquiraz, Brasil, 2011.
|Introdução
3. Mt 5,3
4. Recherche la paix et poursuis-la, Du temps pur Dieu, À l`Ecole de l`Ésprit Saint, ed.
dês Béatitudes.
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Parte 1
Capítulo 1
|Liberdade e Aceitação
|A BUSCA DA LIBERDADE
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noção de liberdade pode ser um lugar de encontro
privilegiado entre a cultura moderna e o cristianismo.
Este se propõe, com efeito, como uma mensagem de
liberdade e libertação. Para convencer-se disso, é suficiente
abrir o Novo Testamento, no qual as palavras “livre”, “liber-
dade”, “libertar” são utilizadas com frequência: A verdade vos
libertará , diz Jesus em São João5. São Paulo afirma: Onde está
o Espírito do Senhor, aí está a liberdade 6 , e mais adiante: É para
sermos verdadeiramente livres que Cristo nos libertou 7 . A lei cris-
tã é chamada por São Tiago de lei de liberdade 8 . Precisamos
conhecer qual é a verdadeira natureza desta liberdade.
A cultura moderna é marcada pela busca de liberdade há
séculos, como facilmente se pode constatar. Sabemos, entre-
tanto, como a noção de liberdade suscita ambiguidades e pode
conduzir a desvios que têm produzido alienações terríveis e
causado a morte de milhões de pessoas. Disso o século XX dá
infeliz testemunho. Apesar disso, o desejo de liberdade con-
5. Jo 3,2
6. 2Cor 3,17
7. Gl 5,1
8. Tg 2,12
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tinua a manifestar-se em todos os domínios: social, político,
econômico, psicológico, o que se deve, sem dúvida, ao fato de
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que, apesar de todo “progresso”, tal desejo permanece insatis-
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feito.
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No plano moral, tem-se a impressão de que o único va-
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lor que goza ainda de alguma unanimidade neste início de
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terceiro milênio é o da liberdade: todos estão, de certa forma,
| de acordo sobre o fato de que a liberdade é uma norma ética
fundamental. Evidentemente, trata-se de um valor mais teóri-
co do que real (o liberalismo ocidental torna-se cada vez mais
autoritário ao seu modo), pode até mesmo ser uma simples
manifestação do egoísmo do homem moderno, para o qual
o respeito da liberdade de cada um seria menos o reconheci-
mento de uma exigência ética que uma reivindicação indivi-
dualista: “que ninguém se meta a me impedir de fazer o que
eu bem quiser!”.
|L IBERDADE E FELICIDADE
É preciso ressaltar que essa aspiração à liberdade, tão forte
no homem contemporâneo, mesmo que traga em si uma boa
dose de ilusão e se realize, por vezes, por caminhos errôneos,
traz em si algo de muito justo e nobre.
Na verdade, o homem não foi criado para ser escravo,
mas para dominar sobre a criação. O livro do Gênesis o diz
explicitamente. Não foi feito para levar uma vida inexpressiva,
mesquinha, fechada em um espaço estreito. Foi criado para
viver livre. O confinamento lhe é insuportável, simplesmente
porque foi criado à imagem de Deus e, assim, tem em si uma
necessidade irrepreensível de absoluto e de infinito. Esta é sua
grandeza e, algumas vezes, sua infelicidade.
O ser humano manifesta tamanha sede de liberdade por-
que sua aspiração mais fundamental é a de felicidade e ele
percebe que não existe felicidade sem amor nem amor sem
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liberdade, o que é perfeitamente correto. O homem foi criado
por amor e para amar, e só encontrará a felicidade ao amar e
ser amado. Como diz Santa Catarina de Sena 9, o homem não O
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saberia viver sem amar. Seu problema vem do fato de que, fre- Ç
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significa, frequentemente, poder desembaraçar-se de todo li-
mite e de toda autoridade: “Nem Deus nem patrão”. Para o
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Cristianismo, ao contrário, só se pode encontrar a liberdade
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em uma submissão a Deus, na obediência da fé , da qual nos
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fala São Paulo10.
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A verdadeira liberdade, mais que uma conquista do ho-
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mem, é um dom gratuito de Deus, um fruto do Espírito Santo,
| recebido na medida em que nos colocamos em uma dependên-
cia de amor diante do nosso Criador e Salvador. Aí se manifesta
plenamente o paradoxo evangélico: Quem quiser salvar sua vida
vai perdê-la; mas quem perder sua vida por minha causa, vai salvá-
la 11. Em outras palavras: quem quiser, a todo preço, preservar e
defender sua liberdade vai perdê-la, mas quem aceitar “perdê-
la”, colocando-a confiantemente nas mãos de Deus, salvá-la-á:
ela lhe será restituída infinitamente mais bela e profunda, como
um maravilhoso presente da ternura divina. Como veremos,
nossa liberdade é, na verdade, proporcional ao amor e à con-
fiança filial que nos unem ao nosso Pai do Céu.
A experiência de vida dos santos encoraja-nos: eles se en-
tregaram a Deus sem reservas, desejando fazer unicamente a
sua vontade e, em troca, receberam progressivamente o senti-
mento de gozar de uma imensa liberdade, que nada no mundo
lhes poderia roubar, razão de sua intensa felicidade. Como isso
é possível? Vamos tentar compreender passo a passo.
10. Rm 1,5
11. Mt 16,25
12. Há, aqui, uma evidência muito simples, mas que levamos tempo para compreender: en-
quanto nosso sentimento de maior ou menor liberdade depender de circunstâncias exteriores,
é sinal que não somos ainda verdadeiramente livres.
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Neste domínio, como em muitos outros, reproduzimos o dra-
ma experimentado por Santo Agostinho: “Tu estavas dentro
de mim e eu estava fora e era fora que eu te procurava”13. O
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Expliquemo-nos. Frequentemente, temos a impressão A
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|L IBERTAÇÃO OU SUICÍDIO?
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O desejo de liberdade que habita o coração do homem
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contemporâneo traduz-se, assim, frequentemente, por uma
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tentativa desesperada de ultrapassar os limites dos quais se
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considera prisioneiro. Queremos ir cada vez mais longe, mais
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L depressa, ter um poder cada vez maior de transformar a reali-
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| dade. Isso se aplica a todos os domínios da existência. Cremos
que seremos mais livres quando o “progresso” da biologia nos
permitir escolher o sexo dos filhos. Imaginamos encontrar a
liberdade tentando sempre ultrapassar nossas possibilidades.
Não contente de praticarmos o alpinismo convencional, lan-
çamo-nos no alpinismo radical, até o dia em que vamos longe
demais e a excitante aventura acaba em uma queda mortal.
Este lado suicida de certo tipo de busca de liberdade é evocado
de maneira significativa pela cena final do filme Le grand Bleu:
o herói do filme, fascinado pela liberdade de movimento dos
golfinhos nas profundezas do oceano, acaba por segui-los. O
filme deixa de dizer o que é evidente: ao fazê-lo, ele se con-
dena à morte certa! Quantos jovens mortos pelos excessos de
velocidade ou overdose de heroína por causa de uma aspiração
à liberdade que não soube encontrar os caminhos autênticos
para realizar-se!
Mas será que a liberdade não passaria de um sonho ao
qual seria melhor renunciar para contentar-se com uma vida
medíocre e sem graça? Certamente não! É preciso descobrir a
verdadeira liberdade em si mesmo e em um íntimo relaciona-
mento com Deus.
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que tive com Santa Teresinha do Menino Jesus e que me fez
crescer bastante.
Há muitos anos, Santa Teresinha tem sido uma amiga O
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muito cara e, pessoalmente, aprendi enormemente em sua A
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riam o Carmelo para veneração nas cidades que as haviam so- R
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licitado (creio que na cidade de Marseille), eu me encontrava |
em Lisieux. As irmãs carmelitas haviam pedido a irmãos da
comunidade Beatitudes para ajudar a transportar o pesado e
precioso relicário até o carro que o conduziria a seu destino.
Ofereci-me como voluntário para a agradável tarefa e isso
me deu uma oportunidade inesperada de entrar no claustro
do Carmelo de Lisieux e descobrir, com alegria e emoção, os
locais onde Teresinha viveu: a enfermaria, o coro, a lavan-
deria, o jardim com a alameda de nogueiras. Locais que eu
conhecia através dos escritos da santa em seus Manuscritos
Autobiográficos . Na visita, um detalhe me impressionou: os
locais eram bem menores do que eu havia imaginado. Um
exemplo: Teresinha, ao final de sua vida, evoca com humor
suas irmãs que passavam e faziam questão de dar-lhe uma
palavrinha quando iam recolher o feno. O grande campo de
feno que eu havia imaginado, entretanto, era do tamanho de
um lenço de bolso!
A evidência inesperada da pequenez dos locais onde ha-
via vivido Teresinha me fez refletir muito. Percebi a que pon-
to ela havia vivido em um mundo bastante reduzido aos olhos
humanos: um pequeno Carmelo no interior, de uma arqui-
tetura banal, um jardim minúsculo, uma pequena comuni-
dade formada de religiosas cuja educação, cultura e maneiras
frequentemente deixavam a desejar, um clima no qual o sol
nem sempre aparecia... E uma existência tão breve neste mo-
nastério, dez anos! No entanto – e este é o paradoxo que me
impressionou – quando se leem os escritos de Teresa, não se
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tem, de forma alguma, a impressão de uma vida passada em
um mundo estreito. Muito pelo contrário. Se ultrapassarmos
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certas limitações do seu estilo, perceberemos, em sua maneira
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de exprimir-se, em sua sensibilidade espiritual, uma impres-
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são de amplitude, de maravilhosa dilatação. Teresa vive em
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horizontes muito largos: os da misericórdia infinita de Deus e
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de seu desejo ilimitado de amá-lo. Sente-se como uma rainha
| que tem o mundo inteiro a seus pés, uma vez que ela tudo
pode obter de Deus e, pelo amor, estar em todos os pontos
do universo onde um missionário necessite de sua oração e de
seus sacrifícios!
Seria necessário um estudo filológico sobre a impor-
tância dos termos que em Teresinha exprimem a dimensão
iluminada do universo espiritual no qual ela se move: “ho-
rizontes infinitos”, “desejos imensos”, “oceanos de graça”,
“abismos de amor”, “torrentes de misericórdia” e assim por
diante. O manuscrito B, em particular, no qual Teresa conta
a descoberta de sua vocação no coração da Igreja, é muito
revelador. Naturalmente, o sofrimento também está presente
em seus escritos, assim como a monotonia do sacrifício, mas
tudo isso é ultrapassado e transfigurado pela intensidade da
vida interior.
Por que o mundo de Teresa, humanamente tão estreito
e pobre, dá a impressão de ser tão amplo e dilatado? Por que
tal impressão de liberdade se difunde de sua descrição da vida
do Carmelo? Simplesmente porque Teresa ama intensamente.
Ela está abrasada do amor por Deus, de caridade para com as
irmãs. Abraça a Igreja e o mundo inteiro com uma ternura
de mãe. Eis o seu segredo: ela não se sente prisioneira em seu
pequeno convento porque ama. O amor transfigura tudo e dá
um toque de infinito às coisas mais banais. Todos os santos fi-
zeram a mesma experiência: “o amor é um mistério que trans-
figura tudo o que toca em coisas belas e agradáveis a Deus. O
amor de Deus faz a alma livre. Ela é como uma rainha que não
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conhece o peso da escravidão”, exclama Santa Faustina em seu
Diário Espiritual 14 .
Refletindo sobre isso, veio-me à mente uma frase de São O
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Paulo aos cristãos de Corinto: Não é estreito o lugar que ocupais A
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|UM TESTEMUNHO PARA O NOSSO SÉCULO:
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|E TTY HILLESUM
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Gostaria de contar brevemente outro testemunho mais
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recente de liberdade interior, em um tempo muito diferente e
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muito próximo do de Teresinha do Menino Jesus e que mui-
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L to me tocou. Trata-se do testemunho de Etty Hillesum, uma
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| jovem judia morta em Auschwitz em setembro de 1942, cujo
diário foi publicado em 198116. Sua “história de uma alma”
desenrola-se na Holanda no momento em que se intensifica a
perseguição nazista contra os judeus. Graças a um amigo psi-
cólogo, também judeu, ela descobre (sem jamais se tornar ex-
plicitamente cristã) valores profundamente cristãos: a oração,
a presença de Deus no seu interior e o convite evangélico a
abandonar-se confiantemente à Providência. É impressionan-
te constatar como essa jovem, afetivamente frágil, mas anima-
da de por uma forte exigência de verdade quanto a si mesma,
aplica-se a viver esses valores. No momento em que todas as
liberdades exteriores lhe são progressivamente retiradas, des-
cobre nela mesma uma felicidade e uma liberdade interior que
ninguém lhe poderá tirar. Oportunamente citaremos mais al-
gumas passagens de seus escritos. No momento, transcreve-
mos um texto muito significativo de sua experiência espiritual:
“Esta manhã, contornando de bicicleta o Stadionkae, fi-
quei encantada de ver o vasto horizonte que se descobre nas
fronteiras da cidade enquanto respirava o ar fresco que ainda
não conseguiram racionar. Em todo lugar, os cartazes proíbem
os judeus caminhar pelos pequenos caminhos que dão acesso
à natureza. Abaixo deste trecho de estrada que nos resta, o céu
é imóvel, tranquilo. Ninguém pode fazer nada de mal contra
nós. Nada. Podem nos tornar a vida dura, nos despojarem de
certos bens materiais, tirar-nos alguma liberdade de movimen-
to exterior, mas somos nós mesmos quem nos despojamos de
16. Etty Hillesum, Une vie bouleversée. Journal (1941-43) ed. Du Seuil, 1985.
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nossas melhores forças por uma atitude psicológica equivoca-
da ao nos sentirmos perseguidos, humilhados, oprimidos; ao
experimentarmos ódio; fazendo-nos de corajosos para escon- O
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|A LIBERDADE INTERIOR:
|LIBERDADE DE CRER, DE ESPERAR, DE AMAR
Na linha do que viveu Teresinha e Etty, a ideia que desejo
desenvolver agora é: a verdadeira liberdade, aquela liberdade
soberana de quem crê consiste em que se disponha em toda
circunstância graças à assistência do Espírito Santo, que vem
em socorro de nossa fraqueza 18 , da possibilidade de crer, de es-
perar e de amar. Ninguém jamais poderá impedi-lo. Sim, eu
tenho certeza: nem a morte nem a vida, nem os anjos nem as
dominações, nem o presente nem o futuro, nem as potências, nem
as forças das alturas, nem as das profundezas, nem outra criatura
alguma, nada poderá separar-nos do amor de Deus, manifestado
em Jesus Cristo, nosso Senhor 19 .
Nenhuma circunstância no mundo poderá jamais me
impedir de crer em Deus, de colocar nele toda a minha con-
fiança, de amá-lo de todo o meu coração e de amar meu pró-
ximo. A fé, a esperança e a caridade são soberanamente livres,
17. op. cit. p. 132.
18. Rm 8,26
19. Rm 8,38s
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pois, se estão bem enraizadas em nós, têm o poder de nos
alimentar exatamente daquilo que a elas se opõe! Se, através
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da perseguição, querem me impedir de amar, tenho sempre a
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possibilidade de perdoar os meus inimigos e transformar a si-
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tuação de opressão em um amor ainda maior. Se querem aba-
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far minha fé tirando-me a vida, minha morte se torna a mais
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bela confissão de fé que se possa conceber! O amor, e somente
| ele, é capaz de vencer o mal pelo bem, e tirar do mal o bem.
Todos os capítulos que se seguem querem ser, a partir de
diferentes pontos de vista, uma ilustração dessa verdade tão
preciosa, uma vez que aquele que a compreende e pratica atin-
ge uma liberdade soberana. O crescimento na fé, na esperança
e no amor é a única via de acesso à liberdade.
Antes de aprofundar esse assunto, examinemos um pon-
to importante concernente às diferentes modalidades segundo
as quais a liberdade pode ser exercida concretamente.
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e deixar o resto... Para tomar outra imagem bem atual, gosta-
ríamos de escolher nossa vida como se escolhe uma roupa em
um espesso catálogo de venda por correspondência. O
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quando ficares velho, estenderás as mãos e um outro atará o teu
cinto e te conduzirá para onde não quiseres 20 . O que sobra de
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nossa liberdade se nossa visão for a da “liberdade de supermer-
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cado” que descrevemos há pouco?
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Essa falsa concepção da liberdade tem repercussões pro-
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fundas sobre o comportamento dos jovens de hoje. A ati-
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tude com respeito ao casamento ou outras formas de com-
| promisso é significativa: retardam-se, ao máximo, as escolhas
definitivas, pois cada uma é percebida como uma perda de
liberdade. Resultado: não se ousa decidir, logo, não se vive.
O que ocorre é que a vida escolhe em nosso lugar, pois o
tempo passa, implacável.
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aquilo que nos causa desprazer, que nos contraria, que nos faz
sofrer. No entanto, é justamente aí que somos chamados a nos
tornar verdadeiramente livres, a “escolher” aquilo que não de- O
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A revolta é frequentemente a primeira reação diante
do sofrimento. Porém, o problema é que ela nunca resolveu
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nada adequadamente. Tudo o que consegue é somar um mal
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a outro mal. É fonte de desespero, de violência e de ressen-
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timento. Certo romantismo literário fez a apologia do revol-
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tado, mas basta um pouco de bom senso para entender que
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nada de grande ou de positivo jamais foi construído a partir
| da revolta: seu único efeito é propagar ainda mais o mal que
deseja remediar.
À revolta pode vir a suceder a resignação: ao dar-me conta
de que não posso mudar uma situação ou a mim mesmo, aca-
bo por resignar-me. A resignação pode representar certo pro-
gresso se comparada à revolta quando conduz a uma atitude
menos agressiva e mais realista. No entanto, ela é insuficiente.
A resignação pode até ser uma virtude filosófica, mas não é
uma virtude cristã, pois lhe falta a esperança. A resignação é
uma confissão de impotência. Nada mais. Ela pode ser uma
etapa necessária, mas se não passa disso, é estéril.
A atitude conveniente é a da acolhida . Comparada à
resignação, a acolhida leva a uma disposição interior com-
pletamente diferente. A acolhida me faz dizer “sim” a uma
realidade percebida em um primeiro momento como negati-
va, porque me vem o sentimento de que algo positivo pode
surgir da situação. Há, então, uma perspectiva de esperança.
Posso, por exemplo, dizer sim ao que eu sou apesar dos meus
desafios porque sei que sou amado por Deus, porque tenho
confiança de que, a partir da minha pobreza, o Senhor é ca-
paz de fazer coisas maravilhosas. Posso dizer sim à realidade
mais pobre e decepcionante no plano humano porque creio
que “o amor é tão poderoso em obras que sabe tirar proveito
de tudo, do bem e do mal que encontra em mim” 23, para
citar Teresinha.
23. Ver Manuscrito autobiográfico A, 53.
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A diferença decisiva entre a resignação e a acolhida vem
do fato de que, no consentimento, mesmo que a realidade
objetiva na qual me encontro continue idêntica, a atitude do O
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