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O Guerreiro rí
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O Profeta 0
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TRECHO DO LIVRO 1

a mesma forma como o propósito de Deus, nos seis dias da criação,

D era o plantio de um jardim, assim o propósito de tudo o que


fazemos, do brinquedo à política, é recuperar o jardim perdido.
No corpo da criança e no corpo do guerreiro mora o mesmo sonho. E a
0
menos que nos lembremos deste sonho estamos condenados ã infelicida­
de. A psicanálise nada mais faz que repetir aquilo que os místicos e os
poetas têm dito o tempo todo: “É o ego humano que carrega dentro de
si a busca de um mundo que possa ser amado”, diz Norman O. Brown.
"Este projeto, nos níveis inconscientes do ego, guia a consciência humana
na sua busca sem fim de um objeto que possa satisfazer o seu amor".
Mas, se preferirem, o verso de Angelus Silésius afirma: “Se no teu centro
um Paraíso não puderes encontrar, não existe chance alguma de, um dia,
nele entrar”.

jg 9 8 3 8 1 9 G A --
Capa: Wladimir Mello

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1 R u b e m A A lv e s 1

VO ZES lllllllll m in II
U m a v id a p e lo b o m liv ro
livr° 1F 641
000

P oeta
Q u errei ro
Profeta
Rubem Alves é professor de filosofia
na IJNICAMP, psicanalista, escritor
de literatura infantil e um teólogo que
descobriu a poesia, a linguagem da­
quilo que não se pode dizer, a lingua­
gem com que devemos falar com
Deus, e que mudou sua vida. De re­
pente, como Alice de Lewis Carroll,
ele se viu a olhar no espelho e a
descobrir como as palavras não po­
dem ser dirigidas para leituras con­
vencionais, mas são antes como
pássaros selvagens debatendo-se para
não serem engaiolados. Ele penetrou
num mundo como o de M.C. Escher,
de que ele incluiu em seu texto mui­
tos quadros enigmáticos, em que to­
das as dimensões familiares são
viradas ao avesso.
A experiência produziu este livro no­
tável, nascido a partir das Confe­
rências de Edward Cadbury (1990),
apresentadas na Universidade de Bir-
mingham, que fascinaram os ouvin­
tes. Aqui a teologia anda de mãos
dadas com a literatura, com a poesia
e a história, para criar uma atmosfera
inesquecível de espanto e visão, como
vemos, por exemplo, na mágica de
Babette’s Feast (A Festa de Babette),
de Isak Dinesen’s, ao evocar um qua­
dro de “palavras que são boas de se
comer”.
Isso leva ao culto, sobretudo à euca­
ristia, numa exploração da área em
que "palavra e carne fazem amor”. E
leva também à política e à profecia -
e por fim ao tema da ressurreição que
Rubem Alves sugere ser o verdadeiro
Rubem A. Alves

O POETA,
O GUERREIRO,
O PROFETA

Petrópolis
1992
© 1991, Rubem Alves

Direitos de publicação em língua portuguesa:


Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25689 Petrópolis, RJ
Brasil

Copidesque:
Shirley Nataline
e
Elizabete Velloso

Diagramação:
Daniel Sant 'Anna
e
Patrícia Florêncio

ISBN 85.326.0745-4 (Edição portuguesa)


ISBN 0.334.02475-7 (Edição inglesa)

Este livro foi composto e impresso nas oficinas gráficas da Editora Vozes Ltda cm
maio de 1992.
Sumário

Capítulo 1 - Desaprendendo, 7
Capitulo II - Silêncio, 25
Capítulo III - Palavras e came, 39
Capítulo IV - O que realmente aconteceu, 59
Capítulo V - Palavras boas de se comer, 71
Capítulo VI - Poesia e magia, 85
Capítulo VII - Beleza e política, 99
Capítulo VIII- Profecia, 121
Referências Bibliográficas, 139
Capítulo I

DESAPRENDENDO

Mas Deus escolheu aquilo que no mundo é louco, até mesmo as


coisas que não são, para reduzir a nada as coisas que são.

(ICor 1,27-28)

Eu tento, portanto, permitir-me ser possuído pela força de toda a


vida viva: o esquecimento...
Há um tempo quando se ensina aquilo que se sabe.
Mas um outro tempo se segue, quando se ensina aquilo que não se
sabe...
Talvez agora chegue o tempo de uma outra experiência: aquela de
desaprender...

Roland Banhes
|J m a aranha fez sua teia num canto do meu escritório. Eu a descobri
ontem e, com a minha vassoura, tratei de me livrar dela. Teias de
aranha são sinais de descaso e eu não queria que aqueles que me visitam
pensassem mal de mim. Mas hoje ela está no mesmo lugar. Durante a
noite refez a sua teia. Acho que ela gostou do lugar, me perdoou, e
confia na minha compreensão. Compreendí. E decidi que ela vai ser
minha companheira.
Embora ela não saiba falar, ela me fez pensar. Confesso que a
aranha me fascinou. Primeiro, por aquilo que vejo. Lá está ela, segura
e feliz, pendurada sobre o vazio. Não existe hesitação alguma nos seus
passos. Suas longas pernas se movem sobre os finos fios de sua teia
com tranqüila precisão, como se fossem dedos de um violinista, dan­
çando sobre as cordas. Sua teia é coisa frágil, feita com fios quase
invisíveis. E, no entanto, é perfeita, simétrica, bela, perfeitamente
adequada ao seu propósito. Mas o fascínio tem a ver com aquilo que
não vejo e só posso imaginar. Eu não tive a sorte de ver o seu primeiro
movimento, o movimento que foi o início de sua arquitetura flutuante,
o salto no abismo... Imagino aquela criaturinha quase invisível, suas
patas coladas à parede. Ela vê as outras paredes, tão distantes, e mede
os espaços vazios... E só pode contar com uma coisa para o trabalho
incrível que está para ser iniciado: um fio, ainda escondido dentro de
seu corpo. E então, repentinamente, um salto sobre o abismo, e um
universo começa a ser criado...
Acho que a aranha me fez pensar por ser ela uma metáfora de
mim mesmo. Eu também quero construir uma teia sobre o vazio. Só
que meu mundo tem de ser construído com um material ainda mais
etéreo que o fio, tão etéreo que alguns chegaram a compará-lo ao vento.
O mundo humano é construído com palavras. Como dizem os textos
sagrados: “No princípio de todas as coisas está a Palavra...” E, à
semelhança da aranha, é dentro do corpo que a palavra é gerada. É ali,
no caldeirão mágico do corpo, que se processa a transformação alquí-
mica de palavras em carne. Fico a imaginar se Nietzsche não estava
também observando uma aranha ao dizer que o homem é “uma corda
sobre o abismo” (PN 126).
A primeira palavra que se diz é um pulo no abismo, um pulo a
partir de um abismo (pois a alma não é um abismo?).

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Mas a aranha é mais feliz do que nós, pois ela já traz, escrita no
seu corpo, a receita para este evento fantástico. A receita, ela a recebeu
como dádiva da natureza, ao nascer. O seu corpo sabe, o seu corpo se
lembra. Mas nós moramos no esquecimento. Não sabemos, não lem­
bramos. Como Eliot o disse, sabemos as muitas palavras, mas ignora­
mos a Palavra (CPP 96).
Ouvir as Variações Goldberg, de Bach, é um dos prazeres a que
gosto de me entregar. É uma obra de arte sólida, terminada, uma
estrutura perfeita. Nela não existe nada de supérfluo, nenhuma adipo­
sidade, nenhum fio solto, nenhum som desnecessário. É como deveria
ser. Como a teia da aranha...
E, no entanto, existe um vazio de silêncio em volta da música de
Bach, um vazio muito maior do que aquele à volta da teia. A aranha,
na verdade, não inventou coisa alguma. Ela só fez tocar de novo um
tema que vem sendo repetido, sem variações, através dos milênios, por
todas as aranhas iguais a ela. Quando ela se lançou sobre o vazio ela já
sabia, de cor, a partitura que estava escrita no seu corpo. Mas as
Variações Goldberg são uma palavra nova, que nunca havia sido
ouvida antes. Bach teve de ouvi-las primeiro, tocadas por um Estranho,
dentro do silêncio do seu corpo. Elas vieram como o vento, como uma
corda sobre o abismo, os fios soltos dos sons sendo trançados num tema
único, e assim a teia musical foi tecida.
Creatio ex nihilo - criação que emerge do nada.
Há palavras que crescem a partir de dez mil coisas e palavras que
crescem a partir de outras palavras. O seu número não tem fim.
Mas há uma palavra que brota do silêncio, a Palavra que é o
começo do mundo.
Esta palavra não pode ser produzida. Não é uma filha da práxis.
Não nasce nem das nossas mãos e nem dos nossos pensamentos.
Temos de esperar em silêncio, até que ela se faça ouvir: Ad-ven-
to... Graça.
É fácil distinguir a Palavra das palavras. Quando a Palavra se faz
ouvir, o corpo inteiro reverbera e sabemos que o mistério do nosso Ser
nos falou, das funduras do seu esquecimento...
Mallarmé desejava escrever um livro de uma só palavra. Pensei
que ele era louco... Mas agora, observando a aranha, penso que com
preendo: ele desejava capturar a primeira Palavra, que é o início de
todas as outras. Esta é a essência da poesia: retomar à Palavra funda
dora, gerada no abismo do silêncio.

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Em outros teqnpos acho que fui um bom professor. Como a
aranha eu sabia tecer minha teia de palavras. Eu sabia o que ensinava
e só ensinava o que sabia. Mesmo quando falava sem um esboço à
minha frente, e os meus estudantes me observavam tecendo minha teia
de palavras com o mesmo encantamento com que eu observava a
aranha, o fato é que nós dois, eu e a aranha, líamos um texto. O dela,
milenar; o meu, produzido no meu escritório. Nós líamos. Sabíamos as
nossas “lições”. “Lição” é uma palavra que vem do latim lectio, leitura,
derivada de legere, ler. O professor lê um texto escrito, ele dá uma lição.
Bons professores, como a aranha, sabem que lições, estas teias
de palavras, não podem ser tecidas no vazio. Elas precisam de funda­
mentos. Os fios, por finos e leves que sejam, têm de estar amarrados a
coisas sólidas: árvores, paredes, caibros. Se as amarras são cortadas a
teia é soprada pelo vento, e a aranha perde a sua casa. Professores
sabem que isto vale também para as palavras: se elas são separadas das
coisas, elas perdem o seu sentido. Por si mesmas, elas não se sustentam.
Como acontece com a teia de aranha, se suas amarras às coisas sólidas
são cortadas, elas se tomam sons vazios: non-serise...
A fim de evitar este perigo, os bons professores fazem uso de
espelhos. Se uma palavra é um reflexo, dentro de um espelho, de uma
realidade que existe do lado de fora, pode-se ter a certeza de que ela
tem um sentido: não está flutuando solta no ar.
Palavras: reflexos...
O sentido de uma imagem dentro do espelho é a coisa real do
lado de fora.
Uma lição rigorosa: reflexos claros e distintos dentro de um
espelho luminoso.
Um bom professor: um bom espelho...
Esta metáfora não é minha. Foi Nietzsche que falou sobre o ideal
científico da “percepção imaculada de todas as coisas”. E acrescentou
que para que tal ideal se realizasse seria necessário que nos prostrásse-
mos “diante das coisas como um espelho com cem olhos” (/W234).
Cada palavra um reflexo fiel:
fazer visível e luminoso o mundo que existe lá fora;
falar a verdade, a verdade toda, nada mais que a verdade.
Mas para que isto aconteça é preciso que o espelho esteja vazio.
Quando eu era menino tentei muitas vezes imaginar o que é que
aparecería dentro de um espelho que não estivesse refletindo nada. E
até imaginei uma situação em que isto pudesse acontecer, empirica-
mente: um espelho diante de um espelho, nada refletindo nada. Que é

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que se veria então? E tratava de, discretamente, espiar para ver o que
aparecia refletido. Mas o que eu via era só o meu olho, refletido em
imagens sem fim, que se perdiam no fundo do espelho. Não, o espelho
é vazio de si mesmo. Nada tem para mostrar. Mostra sempre algo que
está fora, que não é ele mesmo. Os espelhos não têm um “lá dentro”,
não têm uma alma. Um espelho com um “lá dentro” - idéia louca que
encontramos em Lewis Carroll e Escher - só pode ser um mentiroso.
O espelho nada tem a mostrar, nada tem a dizer sobre si mesmo. É por
isto que a linguagem científica rigorosa proíbe o uso do pronome “eu”.
Eu sou o espelho. Mas, se sou espelho, estou proibido de dizer-me. Ao
invés do “Eu”, usa-se o “se” impessoal. Observa-se, verifica-se, con­
clui-se. Quem? Ninguém. Todos.
Acontece que meu espelho ficou cansado desta função de só
repetir o que vinha de fora e começou a ter idéias próprias. Ao invés
de só mostrar reflexos fiéis, começou a mostrar imagens para as quais
não havia, do lado de fora, nenhum objeto que lhes correspondesse.
Será que o Lewis Carroll estava certo? Será que até mesmo os
espelhos têm um lado de dentro? Não consegui resistir à curiosidade.
Agarrei as mãos da Alice, e lá fomos os dois, através do espelho. Mas,
ao fazer isto, minhas credenciais como professor respeitável se perde­
ram. Carroll sabia que era perigoso brincar com espelhos, e que um
professor não deveria sair do mundo dos reflexos. E foi assim que
sobreviveu, como professor de lógica e matemática na Universidade
de Oxford. Suas aventuras do lado de lá do espelho tratou de mantê-las
a salvo dos “guardiães dos espelhos” (há tantos, por todos os lados,
vestidos de batina, de aventais científicos e becas filosóficas...). Dis­
farçou-as sob a forma de histórias para crianças. E todo mundo sabe
que, no mundo da fantasia infantil, tudo é permitido, nada é para ser
levado a sério. E, por meio deste ardil, não perdeu suas credenciais...
As minhas, ninguém as tirou. Fui eu mesmo que percebi que meu
espelho sofria de uma perturbação...
Mas há ainda outros agravantes. Aranhas normais sabem, ainda
que inconscientemente, o que elas têm de fazer. Elas trabalham com
um método. Não sei se estudaram com Descartes ou se foi Descartes
que estudou com elas. Imagino que, lá no quarto onde o filósofo pensou
e escreveu suas meditações, deveria existir uma aranha. É bem possível
que ela tenha sido sua mestra, que ela lhe tenha sugerido a importância
dos fundamentos além da dúvida e que o seu procedimento ordenado
lhe tenha dito da necessidade de se caminhar passo a passo, para não
se cair no vazio... Afinal de contas não pode haver dúvidas de ser esta
a filosofia do aracnídeo... As aranhas, como se sabe, partem de funda­
mentos confiáveis e avançam segundo uma ordem racional. Improvi-

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saçòes não são permitidas e elas nunca se deixam distrair por sugestões
duvidosas.
E é justamente isto que se espera de uma boa lição, de uma
pre-leção competente.
O professor começa daquilo que se conhece e prossegue meto­
dicamente na direção do desconhecido, construindo pontos com os
materiais disponíveis, tecendo com rigor suas redes de palavras. As
palavras marcham, como soldados, na direção predeterminada.
Mas assim que atravessei o espelho percebi que, lá dentro, as
palavras se recusam a marchar. Não obedecem ordens. São surdas ao
ritmo do tambor. Elas pulam e dançam como se estivessem num
espetáculo coreográfico. “Chocam-se entre si e emitem chispas metá­
licas ou formam pares fosforescentes. O céu verbal se povoa sem cessar
de novos astros. Todos os dias afloram à superfície do idioma palavras
e frases, minando ainda umidade e silêncio por entre suas frias esca­
mas” (AL 43). No jargão psicanalítico, é a “associação livre das
idéias”... Mas quem é que entregaria o seu filho a um professor-dança-
rino?
O professor dá uma “lição”; ele lê um texto. E houve mesmo um
tempo que recebia o nome de “lente”, o leitor.
Um texto são palavras imobilizadas no papel pela química da
tinta. Quando elas apareceram pela primeira vez, seu estado não era
este: mais se pareciam com pássaros selvagens, batendo suas asas... O
professor armou suas arapucas, pegou os pássaros, selecionou os que
lhe interessavam, e engaiolou-os com papel e tinta. Pobres palavras...
Perderam sua liberdade. Agora estão congeladas no tempo e no espaço.
Mas depois, quando o professor se puser a lê-las, será a sua vez de
perder a liberdade. Agora, sob o comando das palavras escritas, ele será
obrigado a dizer aquilo a que elas o obrigam. A química prende as
palavras no papel. Mas, no momento da leitura, a física da luz faz com
que elas voem do papel para os olhos, dos olhos para a morada dos
pensamentos, e daí para a boca. E o “lente” as transforma em sons. Ele
as diz. Se, por um acaso, pássaros diferentes passam batendo suas asas,
ele faz de conta que não os vê. Se ele se sente tentado a voar com eles,
o texto o chama de volta. Barthes, no seu maravilhoso livro sobre a
fotografia, diz que cada foto é uma imagem da morte. O que se vê é um
momento que já foi, que não mais existe. A mesma coisa pode ser dita
de um texto. O que nos faz lembrar a sabedoria dos textos sagrados:
“... a letra mata mas o Vento faz de novo viver” (ICor 3,6).
Este é o preço que se paga pela segurança. Pássaros selvagens
são tão imprevisíveis quanto o Vento: não se sabe donde vêm e nem

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para onde vão. Sempre que aparecem provocam uma enorme confusão
na ordem militar e rigorosa do texto escrito. É óbvio que um professor
prudente poderá brincar com eles em casa, mas terá o cuidado de fechar
as janelas da sala de aulas pois, caso contrário, ele poderá perder o
controle do conhecimento que deve transmitir.
Por razões que não conheço, comecei a gostar mais dos pássaros
voantes do que dos pássaros engaiolados. Acho que isto se explica pelo
fato de haver eu começado a ler poesia... Ou por me haver embrenhado
na selva psicanalítica. O fato é que me tomei incapaz de ler meus textos
do principio ao fim. Ao final, ao invés de chegar a uma conclusão clara
e distinta, o que tinha em mãos era um punhado de fragmentos e
perguntas. E comecei a me perguntar se eu ainda era.um professor, ou
se eu havia me convertido ao estilo dos mestres Zen.
Ensinar,
dar lições,
pre-leções,
ler.
A leitura depende dos olhos.
E os olhos dependem da luz.
Para se ler, as luzes têm de estar acesas.
E, inversamente, lê-se para que as luzes se acendam:
os ouvintes devem ficar iluminados.
Pontos obscuros devem ser es-clarecidos.
Nada de cantos escuros...
» Tudo deve ser “claro" e “distinto”, de acordo com as leis clássicas
da etiqueta científica, estabelecidas por Descartes. Se, por acaso, as
luzes do professor não são suficientes, qualquer estudante pode solici­
tar um es-clarecimento.“ Por favor, um pouco mais de luz neste ponto
obscuro...”
Uma lição é uma explanação, uma explicação. Explanar vem do
latim ex-planare, que significa “tomar chato, estender, tomar plano”.
Um grande trator empurrará as misteriosas montanhas para dentro dos
obscuros abismos e tudo se transformará numa planície luminosa, onde
tudo é visível, nada se furta à luz, nada se esconde dos olhos.
Explicação vem também do latim ex-plicare, um verbo derivado
de plicare, que significa “dobrar”. Explicar é, assim, tirar as dobras
onde mora a escuridão, alisar o texto como se alisa o pano com o ferro
quente, de forma a eliminar todas as sombras.
Um bom professor é uma criatura luminosa. Onde quer que vá,
a escuridão desaparece. Tem mesmo o costume de levar velas e

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fósforos dentro do bolso, que ele acende sempre que encontra um canto
obscuro no seu texto: notas de rodapé...
Minha suspeita de que eu não era mais um professor respeitável
se tomou certeza quando descobri que, ao invés de acender as luzes,
eu preferia apagá-las...
Amo a neblina que cobre montanhas e abismos e fico triste
quando o Sol as enxota porque a minha imaginação, junto com duendes
e gnomos, se descobre roubada da atmosfera misteriosa sem a qual ela
não pode respirar. Nada mais fatal para a imaginação que a luz do meio
dia.
Também amo a obscuridade que mora dentro dos bosques fundos
e belos da poesia de Robert Frost, e a luz que se fratura através das
águas inquietas dos poemas de Eliot, e a penumbra colorida da catedral
gótica, que me faz lembrar as entranhas do grande peixe dentro do mar:
uma catedral submersa Meu Ser inteiro reverbera, e sei então que ele
mora nos bosques, nas águas, nas catedrais submersas... Se as luzes se
acendem ele foge, por se descobrir num mundo estranho...
Fico a perguntar sobre as razões que me fizeram desviar e que
me fazem andar na direção oposta à de todo mundo. Mas razões eu não
encontro. Somente suspeitas...
Acho que é porque, entre o porto e o mar, eu prefiro o mar...
Entre as respostas e as perguntas, eu prefiro as perguntas...
“Sou uma partida em todas as portas”, dizia Zaratustra {PN 233).
Sinto-me assim também. Não sei ensinar chegadas, só partidas. Ao
invés de arapucas para pegar pássaros, pássaros para pegar arapucas.
“Sempre uma bela resposta que faz uma pergunta mais bela ainda”,
dizia E.E. Cummings (SNL 66). Como o mestre Zen, que vira as
perguntas de cabeça para baixo com os seus koans. “Eu só dou resposta
para perguntas que ninguém perguntou”, dizia Guimarães Rosa (T 18).
Se as suas respostas fossem respostas para perguntas perguntadas, o
perguntador permanecería dentro do mesmo mundo de onde suas
perguntas haviam brotado. O conhecimento só faria confirmar a mes­
mice do mundo familiar das nossas rotinas cotidianas. Respostas que
fazem tropeçar, respostas que são o começo de um outro mundo.
Não gosto de conclusões. Conclusões são chaves que fecham (do
Latim con e claudere, fechar). Palavras não conclusivas, que deixam
abertas as portas das gaiolas para que os pássaros voem de novo. Cada
conclusão faz parar o pensamento. Como nos livros de Agatha Christie:
resolvido o crime, nada sobra sobre o que pensar. E não adianta ler o

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livro de novo. Quando o pensamento aparece assassinado, pode-se ter
a certeza de que o criminoso foi uma conclusão...
Faz muito tempo, eu gostava mesmo era da claridade. Aí, fiquei
amigo de um poeta. Mostrei-lhe meus textos. “Luz demais, luz de­
mais”, ele reagiu com desgosto, como se seus olhos só gostassem da
noite. “É preciso misturar um pouco de neblina e de sombra às suas
palavras, é preciso borrar os contornos... Você não sabe que uma idéia
clara faz parar a conversa, enquanto uma idéia mergulhada na sombra
dã asas às palavras e a conversa não tem fim?” Talvez seja esta a razão
que fez com que Lessing dissesse que se Deus lhe oferecesse escolher
entre a verdade e a busca sem fim da verdade ele preferiría esta última
(CUP91). Lessing também preferia navegar a atracar no porto. Como
Guimarães Rosa que dizia que a coisa não estava nem na partida e nem
na chegada, mas na travessia.
A pura alegria de navegar,
a pura alegria de pensar,
palavras voando ao Vento
pela pura alegria de voar.
O venerável Santo Agostinho afirmava que tudo no mundo se
divide entre coisas para serem gozadas e coisas para serem usadas.
“Usar algo é empregá-lo com o propósito de se obter aquilo que se ama.
Gozar algo é ligar-se a ele com amor, por causa dele mesmo. As coisas
que devem ser gozadas nos tomam felizes...” (OCD 9).
Também as palavras podem ser usadas como utensílios para nos
levar para outros lugares. Pontes. Meios para um fim diferente delas
mesmas. Andaimes que devem ser desmontados e esquecidos, depois
de terminada a construção da casa. Este é o caminho da ciência.
Mas as palavras também podem ser objetos de fruição, se nos
ligamos a elas pela mesma razão que nos ligamos a um pôr-de-sol, a
uma sonata, a um fruto: pelo puro prazer que nelas mora... Brinquedos,
fins em si mesmas, palavras que não são para ser entendidas, mas que
são comida para ser comida: o caminho da poesia.
Começo a me entender. Começo a compreender a metamorfose
que me aconteceu. Não mais lido com as palavras como “coisas a serem
usadas”. Lido com elas como “coisas a serem gozadas”. Não sou mais
um professor. Se o sou, meu destino deve ser semelhante ao do
professor de poesia do filme A Sociedade dos Poetas Mortos. Cada
preleção é um jantar, uma celebração eucarística, uma festa de Babette.
“Tomai, comei, bebei, isto é o meu corpo, isto é o meu sangue”.
Palavras de carne e sangue... Parece que meu lugar não é na sala de

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aulas mas na cozinha. Lido com minhas palavras da mesma forma
como o cozinheiro lida com a comida que ele prepara...
Lições como festas gastronômicas...
Banquetes acontecem sob o controle da etiqueta. Etiqueta é um
conjunto de regras que garantem que todos os convidados jogarão o
mesmo jogo. A etiqueta está para o comer da mesma forma como a
gramática está para o falar. É inútil conhecer as palavras se não se sabe
como brincar com elas. É inútil ter a comida se os participantes não
sabem a maneira adequada de comer. Como a dança. A melodia não
tem muita importância, se o par sabe como se mexer, de acordo com o
ritmo. Se os corpos seguem o ritmo, tudo será harmônico. Caso con­
trário, será embaraçoso...
Numa deliciosa descrição da etiqueta para um jantar de cerimô­
nia na Inglaterra, publicada em 1872 (MEPP), o autor diz que “em cada
prato deverá ser colocado o menu, para que os hóspedes saibam de
antemão o que vai ser servido”. É preciso saber o que se vai comer, e
o que se pressupõe é que todos os pratos serão do gosto dos convidados.
Caso contráno o banquete poderia se tomar numa embaraçosa catás­
trofe digestiva. O tipo de comida, os gostos, os temperos, o cheiro, as
cores - tudo deve ser combinado de uma maneira artística, para o prazer
de todos. Se o hóspede de honra for um vegetariano será imperdoável
ter lombo como o prato principal. Não se pode, igualmente, convidar
um rabino judeu para uma feijoada. A escolha dos pratos revela a alma
do anfitrião e o seu conhecimento do gosto dos seus hóspedes.
Mas não basta que a comida seja fisicamente agradável ao corpo.
É preciso que se saiba como comer. Gandhi, na sua autobiografia, conta
do seu constrangimento ao fazer sua primeira viagem à Inglaterra. Ele
nunca havia usado garfos, facas e colheres. Sempre havia comido com
as mãos, como manda a etiqueta indiana. A atrapalhação no uso dos
talheres revelaria que ele era um estranho naquele mundo. Assim,
preferiu a dor de passar fome à dor de confessar a sua condição de
estranho ao mundo da etiqueta inglesa: durante toda a viagem de navio
não apareceu uma só vez no refeitório. Ficou no camarote comendo
bolachas e frutas.
“Você deverá tomar a sopa pelo lado da colher e não pela ponta”,
reza o dito manual de etiqueta. “Você não deve fazer barulho ao
tomá-la; cuidado para não prová-la muito quente, ou engoli-la muito
depressa, pois isto poderá fazê-lo tossir”. Qualquer quebra da etiqueta
é uma gafe que irá revelar que você talvez tenha sido convidado por
engano, pois aquele não é o seu lugar. Como na teoria dos conjuntos,

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são as regras da etiqueta que irão dizer se você “pertence” ou “não
pertence” ao conjunto.
Um jantar é um ritual mágico. O seu propósito é realizar o sonho
do alquimista, a transubstanciação universal de todas as coisas. Ele se
inicia com os poderes mágicos da digestão. Cebolas, pimentões, feijão,
batatas, tomates, pão, carne, peixe, galinha, queijo, doces, vinho,
cerveja... Todos são entidades diferentes, com nomes e propriedades
diferentes. E, a despeito disto, pela alquimia do corpo, todos irão perder
sua identidade. Deixarão de ser o que eram. Serão assimilados. Ficarão
idênticos ao corpo (do latim assimilare, que significa “tomar igual”).
Serão “incorporados”: tomar-se-ão um com o corpo. Uma refeição é
um triunfo do corpo sobre a comida. Todas as diferenças se trans­
formam em identidade.
Mas uma outra transformação acontece, ao se acrescentar a
etiqueta à comida. Como no sacramento: a “coisa real” vem a existir
quando certas palavras são acrescentadas ao pão e ao vinho. São os
hóspedes que são transformados. É verdade que continuam a ser
embaixadores, militares, clérigos, banqueiros, professores... Mas, da
mesma forma como numa sopa de verduras as coisas mais variadas são
cozidas para se transformar numa única coisa, também os hóspedes se
transformam numa única sopa. Ao comer juntos transformam-se em
“companheiros” que, etimologicamente, quer dizer, “aqueles que co­
mem juntos o mesmo pão”. O propósito de um jantar não é o fim
pragmático da alimentação e dos prazeres do paladar. O que se espera
é que o ato de comer juntos se tome numa ocasião de companheirismo,
de amizade. Os hóspedes assimilam a comida. O ritual assimila os
hóspedes... Como na festa de Babette...
Uma lição e uma pre-leção são uma refeição: palavras são
distribuídas para serem comidas. Sendo uma refeição, são também
regidas por regras de etiqueta.
Um menu deve ser distribuído pelos hóspedes, para que saibam
de antemão o que irão comer. Se sua dieta é diferente, se pertencem a
um grupo com hábitos alimentares diferentes, terão tempo de arranjar
uma desculpa para não comparecer, evitando assim o desprazer de ter
que engolir o que detestam, para logo depois vomitar tudo depois de
terminada a festa. É preciso anunciar com antecedência as palavras que
vão ser servidas.
As palavras terão de ser bem cozidas, preparadas com cuidado,
com devida consideração pelos gostos dos convidados. “Não mostre
nunca o seu poema a um não poeta”, diz um ditado Zen. Servir um
poema a um não poeta é lançar pérolas aos porcos. As palavras devem

17
ser de digestão fácil, pois devem ser assimiladas e incorporadas. A
mesma operação alquímica do jantar deve também ocorrer no evento
de uma lição ou pre-leção: as diferenças devem se tomar identidades.
Quando as diferenças se tomam igualdades os convidados dizem:
“Entendi...” Compreender significa: as palavras que me foram servidas
deixaram de ser entidades estranhas. Agora elas são iguais a mim. Eu
permaneço o mesmo e novos itens foram acrescentados à minha
mesmice. Se isto não acontecer os hóspedes fecham a cara para o
cozinheiro-preletor, e é certo que não aceitarão outros convites.
A etiqueta da ciência. Sua primeira regra é que só devem ser
comidas palavras que estiverem solidamente enraizadas nas coisas. Ao
cientista é interditado gozar a palavra, pelo simples prazer que ela
contém. Na verdade, ele afirma que o prazer estraga a refeição. Ele não
acredita no testemunho do seu corpo, o prazer da boca, a alegria do
nariz. Ele examina as palavras para ver se elas são reflexos fiéis do
mundo exterior. Na verdade, é disto que sua dieta é constituída: reflexos
dentro do espelho. Se os reflexos são fiéis, ele sorri e diz “Que gosto
bom!” Não, isto não é invenção minha. A regra básica da etiqueta da
ciência pode ser encontrada na primeira declaração do livro A Lógica
da descoberta científica, de Karl Popper: “Um cientista, teórico ou
experimental, propõe declarações e as testa passo a passo” (LSD 27).
E o propósito da festa, como o propósito do jantar, é reduzir as
diferenças à mesmice. De novo não estou inventando. “A ciência
normal", diz T. S. Kuhn, “não procura nem novidades de fato e nem de
teoria. Quando ela é bem sucedida ela não encontra novidades" (SSR,
em FUS, vol. 2, 114). Se as aparentes diferenças de fato não forem
reduzidas à mesmice da teoria todos os hóspedes terão uma grande
indigestão...
Agora, por um momento, vamos brincar com a imaginação. Na
imaginação o pensamento é onipotente e tudo é possível. Pois vamos
imaginar o impossível! Um pesadelo: um estranho jantar, absurdo puro,
todas as regras da realidade viradas de cabeça para baixo! As lagostas
estão vivas, e também peixes, os camarões, as ostras, as aves... Junta­
mente com os vegetais, todos têm facas e garfos em suas mãos, e estão
assentados à mesa, prontos para começar a comer. A anfitriã, uma
gorda cebola, pede que a criada traga a entrada. E lá estamos nós, saídos
do forno, servidos numa travessa de prata, prontos a ser comidos. E no
momento preciso, quando a lagosta está ao ponto de agarrar o nosso
nariz com suas tenazes, acordamos aterrorizados...
Puro non-sense, dizemos com um suspiro de alívio. “Acho que
devo parar de ler o Lewis Carroll...”
Não tenha tanta certeza disto.

18
Sonhos contêm revelações de uma verdade reprimida que só
pode aparecer mascarada de non-sense. É justamente aí que a psicaná-
lise procura a verdade. Guimarães Rosa era um mestre nisto e sabia que
“o náo-senso reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos
envolve e cria” (78).
A realidade familiar nos diz: “Nós comemos a comida, nós
assimilamos a comida, a comida se toma o que somos.”
Mas de repente uma nova verdade se ouve, quando a etiqueta da
normalidade é subvertida e o mundo vira de cabeça para baixo:
“Somos comidos pela comida; a comida nos assimila; nós nos
tomamos o que comemos...”
A anfitriã me oferece vinho. O liquido se mostra manso, inocente
e bem comportado dentro da taça. Bebo um pouquinho, um pouquinho
mais. Esvazio a taça. Delicioso, o vinho. O meu corpo o assimila e
experimenta a alegria da leveza do ser. O mundo permanece o mesmo,
com uma gota a mais de sabor.
Mas repentinamente, num momento sutil, uma inversão aconte­
ce. Não sou eu que bebo o vinho. É o vinho que me tem dentro de uma
taça e me bebe. Não é o vinho que entra em mim. Sou eu que entro no
vinho e me descubro dentro de um mundo estranho que não conheço.
O meu corpo é possuído pelos “espíritos” que haviam ficado de fora
até aquele momento. Não é significativo que a língua inglesa chame
pelo nome de spirits as bebidas alcoólicas? Donde esta curiosa suges­
tão? Penso que ela tem origens religiosas. No Pentecostes, os discípulos
foram possuídos pelo Espírito, falaram e entenderam línguas que até
então lhes eram desconhecidas, e os circunstantes tiveram a nítida
impressão de que estavam bêbedos.
Pentecostes é loucura, non-sense, a quebra das regras familiares
de compreensão, a revelação de um conhecimento que havia permane­
cido oculto até então, Babel ao contrário. A sabedoria emerge da
loucura. Aquilo a que damos o nome de “realidade” é “feitiço”. “É
preciso fazer parar o mundo”, dizia D. Juan, o bruxo (J113-14). Se isto
não acontecer, ele não poderá ser visto com olhos diferentes. Nas
palavras de Hegel, “aquilo que é conhecido com familiaridade não é
realmente conhecido, pela simples razão de ser familiar” (PM 92). A
verdade só aparece quando o mundo que nos é familiar se toma
estranho, quando sua etiqueta é subvertida. “A verdade”, é Hegel ainda
quem fala, “é uma orgia bacanal em que nem um dos participantes está
sóbrio” (PM 105).
Uma inversão da lógica do comer.
O que é normal: comemos o alimento.

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A inversão: somos comidos pela comida.
Antropofagia: a Eucaristia.
A Eucaristia é um jantar antropofágico: um ritual mágico. Os
convidados comem o corpo de uma pessoa morta a fim de se tomarem
semelhantes a ela. É a comida (e não os participantes) que executa a
transformação alquímica. Se a carne e o sangue da vítima forem
assimilados ao nosso corpo, eles se tomarão o que somos, e nós
permaneceremos os mesmos. Mas se, ao contrário, a carne e o sangue
nos devorarem e nos assimilarem, ficaremos semelhantes a eles: o
corpo e o sangue de Cristo.
Ser bebidos pelos espíritos,
ser comidos pela comida:
uma experiência de terror,
um pesadelo,
loucura...
O ego percebe repentinamente que não mais consegue manter os
seus pássaros dentro da gaiola. Ele não mais pode dizer: “Eu tenho uma
idéia”, porque é a idéia que o possui. Já não é senhor da situação. Não
sabe que palavras se falarão pela sua boca...
“Estou muito curioso sobre aquilo que o senhor irá dizer",
alguém comentou a Wilfried Bion, logo antes de uma de suas confe­
rências. Ao que ele retrucou:
“Eu também...”
Os escritores conhecem o poder mágico das palavras. Octávio
Paz as denomina de “criaturas vorazes. E E. E. Cummings observa,
acerca de um dos seus livros: “Quando este livro se escreveu?” (SNL
65). O livro se escreveu? Mas não foi ele, Cummings? Como se o livro
já estivesse escrito em regiões muito distantes da consciência, emer­
gindo repentinamente do seu esconderijo... Guimarães Rosa disse que
foi isto que aconteceu com o seu conto A terceira margem do rio. Ele
lhe veio pronto, redondo, enquanto andava pela rua, chegando mesmo
a levantar as mãos para agarrá-lo, como o goleiro faz com a bola (7
175). Mas é Nikos Kazantzakis que faz a descrição de que mais gosto
do poder mágico das palavras.
“... as letras do alfabeto me aterrorizam. Elas são demônios
astutos e desavergonhados - e perigosos! Você abre o tinteiro e as solta:
elas correm - e você não mais conseguirá trazê-las de novo para o seu
controle! Elas ficam vivas, juntam-se, separam-se, ignoram as suas
ordens, arranjam-se ao seu bel-prazer no papel - pretas, com rabos e

20
chifres. Você grita e implora: tudo em vão. Elas fazem o que querem...’*
(DEBC, sem número de página).
O professor é alguém que fez uma viagem e voltou. Ele foi até
terras desconhecidas e teceu suas teias. Ao voltar ele as mostra àqueles
que não foram. Ele lhes diz como é o mundo. Suas teias de palavras
são mapas que mostram os caminhos seguros e indicam as trilhas que
não levam a lugar algum.
Ensinar é mapear o mundo, fazer visível, pelo poder da palavra,
os lugares conhecidos. “Minha linguagem denota os limites do meu
mundo", dizia Wittgenstein... (TLP 115). Sem mapas a vida seria muito
difícil, o mundo seria permanentemente desconhecido, impossível de
ser aprendido.
O professor carrega seus mapas nos seus bolsos. Seus pássaros
estão dentro da gaiola. Ele é o dono. Ele os possui. Como os animais
domésticos que sempre retomam à casa onde moram: o cão que fareja
no ar o caminho da casa, o pombo correio que voa de volta, por
misteriosos poderes de orientação, o burrinho pedrês, do conto de
Guimarães Rosa, que levou o seu dono bêbado em meio à escuridão da
tempestade de volta a casa (os que não estavam embriagados, que
sabiam o caminho, se perderam e morreram...). O professor conhece o
mundo. Tudo é explicado, tudo é iluminado...
O professor é a nossa boa amiga, a aranha. Ela sabe. Ela é
competente. Ela tem um método. Ela amarra sua teia em coisas sólidas.
Seus alunos aprenderão a lição. E tecerão suas teias sobre o vazio...
A aranha encara a vida como uma tarefa e sobrevive por seu fazer
competente. Os teólogos chamam isto de “justificação pelas obras”. O
seu ser está dependurado no fio que ela produziu dentro do seu próprio
corpo...
Mas há ocasiões quando o mundo familiar e seguro chega ao fim.
Repentinamente a planície explanada é interrompida por precipícios e
abismos. Impossível prosseguir... Ou a lisa superfície explicada come­
ça a rachar e se percebe que aquilo que se acreditara ser um sólido
fundamento nada mais era que a gelada face de um lago que começa a
derreter... Por vezes nós simplesmente nos cansamos da segurança
monótona da teia. “A solidez da terra, monótona, parece-nos fraca
ilusão. Queremos a ilusão do grande mar, multiplicada em suas malhas
de perigo...” (FP 104). E navegamos na direção do desconhecido. O
Vento sopra com violência inesperada.
A aranha flutua solta no ar.
Nada há a se fazer. Ninguém se salvará pelas obras...

21
Nossos pássaros engaiolados, nossos mapas, nosso conheci­
mento prévio de nada valem.
Estamos no fim do mundo. Diante do abismo. Contemplando o
mistério.
Contemplamos o vôo dos pássaros, mas eles ignoram as arapucas
que lhes armamos. Nós os chamamos, mas eles não vêem.
O mundo parou. Estamos mudos, sem palavras.
Nada há para ser feito exceto esperar. Esperar pela grande
metamorfose: a aranha se transformando em pássaro selvagem.
Sem mapas, sem pássaros engaiolados, sem conhecimento: é
assim que estou. Não mais sou um professor. Nenhum texto para ser
lido, nenhuma lição a ser dada.
No meu embaraço procurei por amigos, companheiros de igno­
rância. Tinha medo da solidão. E foi então que comecei a ouvir vozes...
Lembrei-me de E. E. Cummings que deu o titulo de “Des-Prele-
ções” (Non-lectures) às suas preleções em Harvard. E pensei que este
seria um título apropriado para estas conversas - “Bate-papos à volta
da mesa” (Tischrede), como Lutero as teria denominado: “des-prele-
ções”. Minha leitura é não-leitura, meus textos, pre-textos: gaiolas-pa-
lavras sem nada dentro, portas abertas, cujo propósito é criar o vazio
para que a Palavra esquecida se diga. Na verdade, pouco importa o que
digo e escrevo. O que importa são as palavras que se dizem, vindas das
funduras de quem lê.
Lembrei-me de Wittgenstein, para quem a filosofia é uma batalha
contra o “feitiço” das palavras. Há uma batalha contra as palavras por
amor à Palavra esquecida que diz a nossa verdade. O encantamento
precisa ser quebrado, a palavra enfeitiçante e o mundo enfeitiçado têm
de ser enterrados e esquecidos. A vida necessita do esquecimento...
Lembrei-me também das palavras de Alberto Caeiro:
“Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu... (PAlbC 66).
É preciso esquecer a fim de lembrar,
É preciso desaprender a fim de aprender de novo...
Estranha teoria da aprendizagem, filosofia subversiva da educa­
ção que horrorizaria todos os respeitáveis professores e educadores.

22
Estou pronto a aceitar este escândalo e faço minhas as palavras de
Lichtenberg:
“Desejaria poder desacostumar-me de tudo, poder ver de novo,
ouvir de novo, sentir de novo...
Atualmente procura-se divulgar a sabedoria por toda a parte.
Quem sabe daqui a poucos séculos não haverá universidades
destinadas a restabelecer a antiga ignorância” (TR 155).
Mas foi Roland Barthes quem, finalmente, me salvou do meu
embaraço de me haver transformado num “nào-professor” que dá
“des-lições" e tenta ensinar o esquecimento. Ao lê-lo percebi que eu
não estava só. Talvez houvesse uma pitada de sabedoria na minha
loucura. Estas são as palavras com que ele concluiu sua aula inaugural
como professor do College de France:
“Eu tento, portanto, permitir-me ser possuído pela força de
toda a vida viva: o esquecimento...
Há um tempo quando se ensina aquilo que se sabe.
Mas há um tempo que se segue quando se ensina aquilo que
não se sabe.
Talvez agora chegue o tempo de uma outra experiência: aquela
de desaprender, quando a gente se permite estar à mercê das
transformações imprevisíveis que o esquecimento impõe sobre a
sedimentação de todos os tipos de conhecimento, de culturas, de
crenças... Esta experiência, eu creio, tem um nome ilustre e
antiquado, que ouso tomar aqui sem um pingo de vergonha, no
lugar preciso da etimologia: Sapientia:

nenhum poder,
uma pitada de conhecimento,
uma pitada de sabedoria,
e o máximo possível de sabor...” ( 1 45-46).
Eu não poderia ter encontrado palavras mais adequadas para
exprimir a minha verdade presente-provisória. E creio que elas expri­
mem a verdade do evangelho; é preciso permitir-se renascer, pelo poder
imprevisível do Vento, a Fim de entrar no Reino. É preciso que nos
tomemos crianças de novo.

23
Capítulo II

SILÊNCIO

“Que somos nós sem o socorro daquilo que não existe?”

Valéry

“O início dos céus e da terra é aquilo que não tem nome.


Escuridão dentro da escuridão:
a porta de todo mistério."

Tao Te Ching
Háuma estória que não me canso de repetir,
e, a cada vez que o faço, pássaros selvagens passam voando, bem
alto.
Eu a li pela primeira vez num dos livros de Grabriel Garcia
Marques. Mas isto aconteceu há muito tempo atrás... Nem sei se a
história continua a mesma porque histórias ficam diferentes, a cada vez
que sáo contadas. Como os poemas, elas sáo o mesmo que é sempre
diferente...
É sobre uma vila,
uma vila de pescadores,
perdida em um nenhum lugar/todo lugar,
o enfado misturado com o ar,
cada novo dia já nascendo velho,
igual a todos os outros,
as mesmas palavras vazias,
os mesmos gestos vazios,
as mesmas faces vazias,
os mesmos corpos vazios,
a excitação do amor sendo algo de que ninguém mais se
lembrava...
Aconteceu que, num dia como todos os outros, um menino viu
uma forma estranha flutuando longe no mar. E ele gritou. Todos
correram. Num lugar como aquele, até uma forma estranha é motivo
de festa. E ali ficaram, na praia, olhando, esperando. Até que o mar,
sem pressa, trouxe a coisa e a colocou na areia, para o desapontamento
de todos.
Um homem morto.
Todos os homens mortos sáo parecidos porque há apenas uma
coisa a se fazer com eles: enterrar. E naquela vila o costume era que as
mulheres preparassem os mortos para o sepultamento. Assim, carrega­
ram o cadáver para uma casa, as mulheres dentro, os homens fora. E o
silêncio era grande enquanto o limpavam das algas e líquens, mortalhas
do mar.
Mas, repentinamente, uma voz quebrou o silêncio: uma mulher...

26
“Se ele tivesse vivido entre nós, ele teria de ter curvado sempre
a sua cabeça ao entrar em nossas casas. Ele é muito alto...”
Todas as outras fizeram que sim, com discretos gestos de cabeça.
E de novo o silêncio foi profundo, até que uma outra voz foi
ouvida. Uma outra mulher...
“Fico pensando em como teria sido a sua voz... Como o sussurro
da brisa? Como o trovão das ondas? Será que ele conhecia aquela
palavra secreta que, quando pronunciada, faz com que uma mulher
apanhe uma flor e a coloque no cabelo?
E todas sorriram.
De novo o silêncio. E, de novo, a voz de outra mulher:
“Estas mãos... Como são grandes! Que será que fizeram? Brin­
caram com crianças? Navegaram mares? Travaram batalhas? Cons­
truiram casas? Será que sabiam abraçar e acariciar um corpo de
mulher?"
E todas riram, e se surpreenderam ao perceber que o enterro
estava se transformando em ressurreição: um movimento nas suas
carnes, sonhos esquecidos, que pensavam mortos, retomando, cinzas
virando fogo, desejos proibidos aparecendo na superfície de sua pele,
seus corpos vivos de novo...
Seus maridos, de fora, observavam o que estava acontecendo
com as suas mulheres, e ficaram com ciúmes do afogado, ao perceber
que ele tinha um poder que eles mesmos não tinham mais. E pensaram
sobre os sonhos que nunca haviam tido (“os sonhos por haver, é que
sáo o cadáver..."), os poemas que nunca haviam escrito, os mares que
nunca tinham desejado ver, as mulheres que nunca haviam abraçado,
sequer na fantasia.
A história termina dizendo que finalmente enterraram o morto.
Mas a aldeia nunca mais foi a mesma.
Entenderam a história?
Espero que não.
Se a entenderam é porque a digeriram. Quando entendemos
ficamos como sempre tínhamos sido...
Histórias são como poemas. Não são para serem entendidas.
O que é entendido nunca é repetido.
O entendimento esgota o sentido da palavra. Deixa-a vazia com
nada mais a ser dito. Quando uma palavra é entendida segue-se um
silêncio morto.

27
Mas histórias são como uma sonata, um abraço de amor, um
poema, um pór-de-sol: queremos a repetição porque o seu sabor é
sempre novo. Parecem-se, na verdade, com gaiolas. São construídas
com grades de palavras. Mas estão vazias. Nelas mora o Vazio, que
não se enche nunca.
Um funeral: que etiqueta rigorosa! Até a morte tem suas regras.
Os pranteadores sabem o que se espera deles. Conhecem as palavras
certas, os gestos adequados. A decomposição deve ser cozida de
maneira própria, segundo receitas sobre que todos concordam, para que
se tome agradável ao gosto e de fácil digestão.
Muitos sepultamentos já haviam acontecido naquela aldeia, e
ninguém se lembrava de ocasião alguma em que as regras da etiqueta
tivessem sido quebradas. Cada cadáver é um sólido fundamento para
que nele as aranhas amarrem seus fios: cada defunto é o início de uma
longa conversa. Cada um deles tem um nome, e ao redor de cada nome
muitas estórias podem ser contadas. Os cadáveres, todos eles, são
cobertos com símbolos. Textos. Podem ser lidos. Deles se extraem
lições e preleções...
“Você se lembra?” - assim se iniciam as conversas de velório.
E as aranhas começam a fazer as suas teias...
Há sempre sobre o que falar, diante do morto.
E assim, a etiqueta da morte garante que não haja interrupção
alguma na etiqueta da vida.
Mas aquele morto! Ele não tinha nome, não tinha história...
Ele não era lugar onde as aranhas pudessem amarrar os seus fios.
Não sabiam o que fazer, diante daquele vazio imenso. O silêncio
em volta do cadáver era absoluto. E o abismo, muito escuro.
Era verdade que ele estava coberto com signos. Mas estavam
escritos numa linguagem que ninguém conhecia.
Sua morte era diferente: bloqueava todos os caminhos normais
da conversa. Os pranteadores não tinham um objeto sobre que falar.
O morto era uma gaiola vazia.
O mundo parou.
Nos enterros comuns são os vivos que tomam conta de tudo. Mas
ali a situação se invertera: era o morto que presidia a liturgia da morte
com o mistério do seu silêncio... Quem é aquele que perturba mais? O
hóspede que fala demais ou o outro que não fala coisa alguma?
Os místicos e os poetas sabem que o silêncio é a nossa morada
original.

28
O Tao Te Ching diz que “as dez mil coisas”, aquelas que
compõem o mundo das nossas rotinas diárias, sáo filhas das palavras.
Mas o “inefável”, que “não pode ser dito”, “é o início dos céus e da
terra”. Antes da Palavra, o Vazio. “E a terra era sem forma e vazia,
havia trevas sobre a face do abismo, e o Vento de Deus soprava sobre
a face das águas” (Gn 1,2). “Não me importa a palavra, esta corriquei­
ra”, diz Adélia Prado. “Quero é o esplêndido caos de onde ela emerge,
os sítios escuros onde ela nasce” (B 30).
Falamos palavras a fim de não ouvir a Palavra que brota do
silêncio. Muitas palavras para exorcizar a Palavra. “Um silêncio", diz
Octávio Paz, “é como um lago, uma superfície lisa e compacta. Dentro,
submersas, as palavras aguardam" (AL 179). Há uma Palavra que só
pode ser ouvida quando todas as outras palavras ficaram mudas, uma
Palavra escatológica que se faz ouvir no fim do mundo. Pura graça,
nenhum pássaro engaiolado, um pássaro selvagem que voa com o
Vento...
O morto: nele morava o silêncio e o mistério do mar.
O mar: talvez ele seja a nossa morada original. “Nosso olhar é
submarino”, diz T. S. Eliot. “Nossos olhos olham para cima e vêem a
luz que se fratura através de águas inquietas...” (CPP 112). E parece
que este era o mundo onde Cecília Meireles vivia:
“Mas, neste espelho, no fundo
desta fria luz marinha,
como dois baços peixes,
nadam meus olhos à minha procura...”
E é de dentro do grande peixe que Jonas se lembra da sua palavra
esquecida. E ele ora... (Jonas 2,1-5).
Se não o mar, o silêncio que habita na escuridão profunda dos
bosques, como no poema de Frost:
“Os bosques sáo belos, sombrios, fundos.
Mas tenho promessas a guardar,
e milhas a andar
antes de poder dormir...”
Seria uma simples coincidência, que os poetas falam sobre os
mesmos mundos? Ou poderia ser que eles vivem no mistério que é a
casa do nosso Ser? Poesia: o esforço desesperado para dizer o que não
pode ser dito.
Silêncio: o Vazio onde vivem criaturas impensáveis, protegidas
pela escuridão.

29
O Tao Te Ching diz:
“Trinta raios se cravam no centro da roda;
mas é o buraco central que a toma usável.
Tome a argila e dê-lhe a forma de um vaso:
é o vazio interior que a toma usável” (TTC verso 11).
Somos a roda,'
somos o vaso.
Nossa alma é um vazio...
O Vazio: não é ele a morada de Deus? “Pai nosso que estás nos
céus...” Quando eu era menino e repetia estas palavras, pensava num
lugar muito distante, cheio de anjos e casas brilhantes. Confesso que
ele não me atraía. Mas uns poucos versos adiante a fnesma palavra é
usada para indicar a morada dos pássaros: “Olhai as aves dos céus...”
(Mt 6,26). Será que Deus e as aves moram no mesmo lugar? Que Deus
se parece com os pássaros? Que eles precisam do espaço vazio? Os
pássaros, para voar, Deus, para soprar como o Vento...
A roda só pode ajudar porque o seu coração é um vazio. O vaso
só pode conter a água por causa do vazio que ele contém.
O pensamento exige o Vazio, pois é nele que o inesperado
aparece. Algo que era sabido por aqueles que construíram as catedrais
góticas: as paredes, os relevos, as esculturas, os vitrais - todos eles
foram construídos para trazer à existência um espaço vazio.
“Pensar”, diz Octávio Paz, “é produzir o vazio para que o ser
aflore” (AL 126).
O Ser jaz submerso.
Onde?
Escondido pela luz que habita a superfície do lago,
nas profundezas das águas;
silenciado pelo barulho de dez mil palavras,
nos espaços do esquecimento, onde sua Palavra não pode ser
ouvida;
mergulhado na escuridão da noite
pelo brilho do sol de meio dia.
Lá estavam eles, sem nada a dizer, à volta do morto.
No ar, as palavras de Rilke:
“Mas ouve essa aragem, a incessante mensagem que gera o
silêncio...” (ED 5).
Mas, repentinamente, do silêncio, estranhas palavras começaram
a ser ouvidas.

30
Esquecidas... Os moradores da aldeia haviam delas perdido toda
memória: por muito tempo elas tinham permanecido mortas... Mas não!
Apenas se esconderam longe do barulho das dez mil palavras. Na
verdade, não podem ser faladas ao mesmo tempo, pois pertencem a
mundos diferentes. Algumas são criaturas da luz, e se fazem ouvir
quando estamos acordados, durante o dia, e moram entre os reflexos
que brilham na superfície do lago. São muitas. Outras são entidades
misteriosas que vivem escondidas ou nas funduras marinhas ou nas
sombras dos bosques. Sendo criaturas tímidas - ou proibidas - elas
saem do seu esconderijo durante a noite, quando dormimos e sonha­
mos. Na maioria das vezes são ouvidas mas não entendidas - como se
tivessem sido faladas numa língua estranha. Não são muitas. E poetas
e místicos chegaram mesmo a sugerir que são uma única Palavra: uma
única Palavra que contém o universo.
Não é de se estranhar que tais palavras não sejam admitidas em
nossos jantares de cerimônia e preleções eruditas. Nossa etiqueta
entende que a verdade é uma criatura da luz e do entendimento. Cogito,
ergo surn: “penso, logo existo.” O meu ser mora na luz, na companhia
de idéias claras e distintas. A verdade é um reflexo fiel dentro do
espelho. Mas, para que os reflexos existam, as luzes devem estar acesas.
Agora, entretanto, falamos de palavras que moram na escuridão e no
silêncio...
Os gregos sabiam que a verdade mora na escuridão: os que vêem
são cegos, e somente os cegos podem ver. Aqueles que possuem bons
olhos e são sóbrios não podem. Édipo tinha uma inteligência brilhante.
Era capaz de decifrar os enigmas que moram à luz do dia. E foi assim
que ele matou a Esfinge, ao dar a resposta correta à sua pergunta. Mas
a sua própria verdade permaneceu escondida... Somente aqueles que
se moviam na escuridão podiam ver a tragédia que se escondia por
detrás de sua luz. Primeiro, um homem embriagado, num banquete: ele
revelou a Édipo que seus pais não eram seus pais. Depois, o oráculo de
Delfos, “que falava sempre a verdade, nunca dava respostas diretas,
como o fazem os protestantes; falava sempre por meio de enigmas...
Ambigüidades... Ensinar não é contar; é não-contar; como Heráclito, o
obscuro...” (LB 245). E finalmente o vidente Tirésias, “cuja alma
conhece todas as coisas, aquelas que podem ser ditas e também o
indizível, os segredos dos céus e as coisas comuns da terra” - estas são
palavras do próprio Édipo. E, no entanto, ele era cego. Não via com os
olhos, porque via com a alma. Édipo Rei é uma história sobre aqueles
que, tendo olhos, não vêem, e sobre aqueles que, sendo cegos, vêem.
A verdade está além do visível. Mas está também além do audível. Ela
é absurda, como o sugeriu Kierkegaard (do latim ab e surdus, “surdo,

31
insensível*’), indigna de ser ouvida: esta é a razão por que as regras de
etiqueta proíbem que ela entre. A verdade tem de Ficar do lado de fora
do salão onde o banquete é servido, nos cotTedores e nos pátios
externos, sob a proteção das sombras. A verdade é underground,
clandestina, subversiva. Por isto reprimida, o que a força a fugir de toda
evidência. Para se ver é preciso fechar os olhos; para se falar é preciso
fechar a boca: este é o sentido original de mistério: “fechar os olhos”
ou “fechar a boca” (ST vol. I, 108).
A psicanálise nasceu com a descoberta de que as palavras são
cheias de silêncio. Aqueles que só entendem o que é falado ou escrito
não entendem coisa alguma: a letra mata.
O corpo fala línguas ininteligíveis: glossolalia. Babel deve dar
lugar ao Pentecostes. A verdade vive no avesso daquilo que é conhe­
cido com familiaridade. Sabedoria é loucura, loucura é sabedoria.
Como o “Deus Absconditus”, a verdade também vem escondida, sob
um disfarce. Ela usa máscaras. Todas as palavras, tomadas literalmente,
são falsas. A verdade mora no silêncio que existe em volta das palavras.
Prestar atenção ao que não foi dito, ler entre as linhas. A atenção flutua:
toca as palavras sem cair nas suas armadilhas, sem ser por elas enfei­
tiçada. Cuidado com a sedução da clareza! Cuidado com o engano do
óbvio! A verdade meridiana era que o homem estava morto. O que era
óbvio era que o seu corpo era um silêncio impenetrável. E, no entanto,
os pensamentos dos moradores do vilarejo começaram a dançar... De
alguma forma eles experimentaram aquilo que César Vallejo disse:
“... su cadáver estava lleno de mundo"... (AL 116).
A psicanálise é um ouvir atento do silêncio que mora nos inters­
tícios das palavras, a Fim de ouvir o que não foi falado.
Mas isto não foi invenção da psicanálise: a psicanálise apenas
acreditou naquilo que já havia sido conhecido por milhares de anos, e
depois varrido para fora do salão como lixo, pela etiqueta das idéias
claras e distintas.
Muito antes da psicanálise, os poetas o sabiam. Os poetas buscam
as palavras que moram no silêncio.
A poesia é um mergulho no lago misterioso, um atravessar do
espelho, para longe do engano da superfície dos reflexos, para dentro
das funduras onde as palavras nascem e vivem...
“Penetra surdamente no reino das palavras.
Lã estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Chega mais perto e contempla as palavras.

32
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo" (RD 76).
O silêncio é o espaço onde as palavras nascem e começam a se
mover. Por vezes elas existem porque as dissemos. Dependem de nossa
vontade de pensar, de falar, de escrever: pássaros engaiolados. Mas no
silêncio ocorre uma metamorfose. As palavras se tomain selvagens,
livres. Elas tomam a iniciativa. E só nos resta ver e ouvir. Elas nos vêm
de um outro mundo. E nos sentimos repentinamente transportados para
este outro mundo, que começa com a Palavra. Os lugares comuns se
transformam em transparências, e podemos ver milhares de sentidos e
caos no seu avesso. Um mundo que não havíamos visitado antes. Não,
talvez o tenhamos visitado... Talvez seja ele o lar do nosso Ser, onde
nascemos. Mas ele foi esquecido quando o brilho dos reflexos nos fez
esquecer as nossas origens. Cada poema é um testemunho deste mundo
perdido. Esta é a razão por que as palavras são criaturas das profundezas
"minando ainda umidade e silêncio por entre suas frias escamas" (AL
42).
Aquilo que os poetas viram e desejam dizer não pode ser dito.
Goethe sabia que a tarefa da poesia era uma tarefa impossível, por ser
ela a "linguagem do inefável” (LV 15).
O morto não disse uma única palavra.
Ele estava grávido de silêncios.
E o seu silêncio era o espaço da memória.
Seu corpo estava cheio das memórias esquecidas dos moradores
do vilarejo.
Ele era um poema...
A clareza faz o pensamento parar.
Mas na escuridão nascem mundos.
A arte chinesa: já notaram que os seus cenários aparecem sempre
cobertos por neblinas? Estão lá porque a alma precisa delas... Durante
a revolução cultural as neblinas foram proibidas. Revoluções são
tempos de certezas. Palavras de ordem não toleram as brumas, pois é
lá que moram os sonhos. Luminosidade total para tomar impossível

33
sonhar. Pois os sonhos são testemunhos de que a alma se recusa a se
tomar um pássaro engaiolado. No mundo totalitário que Orwell des­
creveu em 1984 um homem foi preso por haver falado enquanto
dormia, e na sua fala ter confessado os seus sonhos. Nenhum lugar
protegido pela sombra, nenhum canto escuro, longe dos olhos, nenhum
mistério. Visibilidade total. Os contornos devem ser definidos com
clareza. Os sentidos devem ser declarados sem ambigüidades, sem
intervalos nos seus interstícios. Pensa-se que, assim, o ideal da comu­
nicação perfeita foi atingido. O professor ideal, o preletor perfeito. “O
que é que você queria precisamente dizer?” Mas a visibilidade total é
totalitária: ela enche os espaços interiores da alma com imagens de fora,
e assim a verdade que mora escondida é forçada a permanecer em
silêncio. Em linguagem psicanalítica: repressão. Visibilidade total
coloca a alma à mercê dos olhos. Os olhos sáo entidades persecutórias.
Os deuses cruéis têm os seus olhos permanentemente abertos, sem
pálpebras. Não se fecham nunca. Deus te vê... Neblinas e nuvens, ao
contrário, sáo generosas: elas sáo uma recusa de ver e de dizer: elas
abrem um espaço vazio de silêncio. E assim, as tímidas criaturas que
moram dentro de nossos mares e florestas aparecem, protegidas pelas
sombras.
“O que é que o pintor queria dizer?”
A resposta é fácil, se nos encontramos diante de uma pintura
realista. Mas se há neblinas e nuvens, o que vejo é o meu próprio rosto:
os cenários que moram dentro do meu corpo.
Sou um psicanalista. No meu escritório há dois quadros. Um
deles é um cenário luminoso, cores brilhantes, papoulas vermelhas num
prado verde, e lá longe montanhas tocando os céus. Quando as pessoas
o vêem pela primeira vez, elas geralmente dizem a mesma coisa:
“Como é bonito!”
Mas isto é tudo. A clareza diz tudo o que há para ser dito. A
conversa termina aí. A alma fica possuída pelas dez mil coisas.
O outro é um bosque escuro e profundo, formas esfumaçadas,
árvores indefinidas, uma trilha solitária que desaparece numa atmosfe­
ra de luz difusa. Tudo sugere mistério. Quando as pessoas o vêem elas
param, sem saber direito o que dizer. Mas depois de alguns momentos
de indecisáo vem sempre a mesma observação:
“Penso... no que se esconde na neblina, atrás das árvores, no
escuro...”
Este quadro é um poema: ele não quer dizer o que mostra. O
visível é apenas uma linha discreta que sugere o invisível, o sem nome,

34
o que não pode ser dito. Os olhos que só vêem o visível não podem ver
as ausências que moram ali.
Um sonho... A verdade está escondida. Ausente. Não é mostrada,
não é dita. Ela é apenas invocada/evocada.
“Ponham o nada de novo dentro das palavras”, diz Norman O.
Brown. “O objetivo são palavras que nada contenham; palavras que
apontem para além de si mesmas antes que para si mesmas; transpa­
rências, palavras vazias. Palavras vazias, que correspondem ao vazio
que mora nas coisas” (LB 259). Reverberações de Kierkegaard, que
compreendeu que a verdade é essencialmente um segredo (CUP 73).
Não o segredo acidental, que é segredo apenas porque ainda não foi
revelado como palavra. Segredo porque nenhuma palavra pode dizê-lo.
A palavra é apenas a beirada do abismo. O abismo, ele mesmo, está
coberto de neblina; nele habita o silêncio. As dez mil palavras que
comunicam o conhecimento das dez mil coisas são inúteis: o vento não
pode ser capturado por redes, a beleza dos bosques profundos e escuros
desaparece se acendemos as nossas lanternas. Ouve-se então uma
palavra: palavra que não é conhecimento, palavra que não é gaiola para
pássaros selvagens. Ela diz sem dizer, como uma obra de arte; ela
evoca, como a poesia; e como um peixe que se deseja pegar com as
mãos nuas, ela escapole do nosso controle.
Cristologia: um poema que se recita diante do Vazio.
“O ensino sobre Cristo começa com o silêncio”, diz Bonhoeffer
na primeira linha de sua cristologia (IVJVJC 9). E eu imagino que um
novo prólogo para o evangelho de João poderia ser escrito:
“Antes que todas as coisas existissem
havia o silêncio.
E então, repentinamente,
ex nihilo
uma Palavra foi ouvida,
e o mundo começou..."
No vazio, versos,
universos,
como no corpo do afogado.
Qual era o seu nome? Poderia ter sido Jesus Cristo?
Os moradores da aldeia, mulheres e homens, começaram a falar.
Nada disseram sobre o morto.
Mas a partir dele.
O seu silêncio lhes restaurou a fala.
Sua fala não era um ato original.
Falaram porque ouviram.

35
Ouviram palavras que lhes eram desconhecidas:
elas não podiam ser encontradas no meio das coisas que o seu
conhecimento havia armazenado.
Seus pássaros engaiolados não tinham cantos para aquela
ocasião.
Pássaros selvagens, vindos de regiões esquecidas
- nem mesmo sabiam que eles existiam! -
bateram suas asas, penas de cores brilhantes,
cantando canções desconhecidas,
possuíram os seus corpos,
e eles falaram -
como poetas,
como mágicos,
como amantes,
como teólogos,
porque teologia é a Palavra que é falada diante do vazio,
como uma invocação do Ausente...
Moramos no esquecimento.
As palavras que sabemos não são a nossa verdade.
Penso, logo existo.
Estou onde penso.
Mas agora o mundo é forçado a parar e tudo se inverte.
Onde eu penso, lá não estou.
Estou onde não penso.
Meu ser mora no lugar do esquecimento.
Lembro-me das palavras do apóstolo Paulo:
“Não sabemos orar como devíamos”.
Mas o que é oração, se não o nome do nosso desejo? Mas é
precisamente o nome do nosso desejo que nós não mais sabemos.
Perdemos o mapa que conduz ao nosso lar perdido, perdemos o mapa
que aponta para o Paraíso.
Não mais sabemos o nome do nosso desejo. Por isto resta-nos
gemer com suspiros profundos demais para palavras (Rm 8,26).
Mas não importa que nos tenhamos esquecido, porque em nós
mora um Estranho que sabe aquilo que o nosso esquecimento diz...
Lá, sob os reflexos que moram na superfície do lago,
lá onde as idéias claras e distintas nos abandonam,
lá onde o nosso olhar é submarino,
o Espírito diz a Palavra misteriosa.

36
E Deus, a despeito do nosso esquecimento, “sabe o que está sendo
dito na linguagem que nós mesmos não entendemos”.
E nossa verdade mora além do nosso conhecimento. Ela mora
em nossos sonhos.
Os moradores da aldeia nada podiam dizer sobre o morto: ele não
tinha um nome.
E, todavia, do seu silêncio novas palavras foram ouvidas.
O seu silêncio os fez sonhar de novo:
se ele tivesse morado em nossa aldeia,
se nós tivéssemos ouvido a sua voz,
se tivéssemos sido tocados por suas mãos...
Parecia que estavam contando histórias sobre o morto. Mas cotno
poderiam, se nada sabiam sobre ele? As histórias que contaram sobre
o morto foram histórias sobre eles mesmos: seus sonhos foram ressus­
citados dos sepulcros onde haviam sido enterrados. As suas almas eram
o cemitério...
E eles descobriram que todos tinham os mesmos sonhos. Todos
eles participavam do mesmo festival eucarístico. O início de uma
comunidade: quando muitos sonham os mesmos sonhos.
“Con-spiradores”: respiravam o mesmo Vento. Respiramos a
mesma Ausência: sonhos são emissários da Ausência...
Cada palavra era uma confissão:
Hoc est corpus meum: pedaços da minha came que viveram de
novo pelo poder do silêncio do morto.
A memória do desejo esquecido possuiu os seus corpos. E eles
foram ressuscitados para a vida.
Não é estranho?
Os sonhos nascem do desejo, e desejo é saudade. Mas a saudade
só pode existir perante o Vazio...
Foram ressuscitados pelo poder do Vazio.
O que nos faz lembrar as palavras de Valéry:
“Que somos nós sem o socorro daquilo que não existe?”

37
Capítulo III

PALAVRAS E CARNE

“A velha fonte -
uma râzinha mergulha,
e a água espirra."

Basho

“Ai daqueles que não morderam o sonho


e de cuja loucura
nem mesmo a morte os redimirá.”

Paulo Leminski

“Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci


de sonhar?
Esses, sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.”

Álvaro de Campos
g a aldeia nunca mais foi a mesma.
Os mortos ressuscitaram.
Como explicar o milagre?
Sobre isto a história faz silêncio... Ela simplesmente conta, sem
dar explicação alguma. Aponta para a superfície do lago onde os dez
mil reflexos brincavam o seu jogo de enganar. E diz que repentinamen­
te, vinda não se sabe de onde, uma pedra foi lançada na água... Como
na velha história sobre um anjo que, de tempos em tempos, agitava as
águas de um tanque (João 5,4). E ela descreve a dança dos peixes
mágicos que, vindos do fundo, saltaram para fora d ’água, e aqueles que
os viram foram curados.
A história está cercada de obscuridade. Ela é, para nós, o que o
homem morto foi para os moradores da aldeia: um mistério.
Na verdade, é preciso escuridão: os poderes mágicos têm medo
de muita luz. São irmãos do amor, que exige discrição, penumbra,
palavras não ditas. Não se faz amor sob a luz do sol do meio dia. Não
se pode seduzir com a precisão dos conceitos científicos. Que amante
diria para a sua amada: “Que belas são as suas mamas”? A sedução faz
uso da linguagem da poesia. As sombras “belas, sombrias e fundas”
dos bosques são mais acolhedoras. É ali que a imaginação acorda do
seu sono. E, para a magia acontecer, é preciso imaginação. Coisa bem
sabida de Feuerbach que disse mesmo que “o poder do milagre é o
poder da imaginação” (EC 130).
Um visitante não teria percebido nenhuma mudança visível. Os
mesmos céus, o mesmo mar, as mesmas faces... Mas eles sabiam que
tudo estava diferente. Sua vida banal cotidiana que eles conheciam tão
bem tinha sido transfigurada. O morto lhes havia dado novos olhos, e
os objetos sólidos e as faces de pedra que enchiam o seu espaço estavam
agora transparentes. Era como se vissem coisas invisíveis que podiam
ser vistas apenas por aqueles que tinham visto o anjo agitando as águas
- o afogado. Vocês se lembram da Ultima Ceia, de Salvador Dali? O
Filho de Deus - os sinais da despedida já inscritos no seu rosto - está
com os seus discípulos. A luz se filtra através de tudo: através do seu
corpo, através das paredes vítreas... E através desta transparência
mágica o mundo inteiro e os espaços cósmicos se tomam iridescentes

40
e são abraçados pelos braços abertos de Alguém... O mundo nunca mais
será o mesmo.
Olhando para os rostos sorridentes dos moradores da aldeia
tem-se a impressão de que eles devem ter visto algo muito bonito.
Teria sido, por acaso, o rosto do homem morto? Não, não pode
ter sido, porque a morte é sempre feia. Quando alguém chora diante do
cadáver não é por aquilo que se vê, mas por aquilo que não mais pode
ser visto, e que permanece apenas como saudade, como ausência...
Teria sido, por acaso, por causa deles mesmos? Suspeito que,
naquela vila, todos os espelhos tinham sido quebrados, por medo; todos
eles tinham já, dentro dos seus olhos, a imagem da morte, e é provável
que tenha sido lá que Escher recebeu a inspiração para o seu desenho
O Olho... A Morte mora nos espelhos. Espelhos são o lugar onde a
Morte aparece mais próxima de nós, vagarosamente espalhando a sua
presença nos nossos corpos, ganhando visibilidade, tomando posse da
carne que, um dia, será sua.
Onde foi que viram a beleza que fez brilhar os seus rostos?
Será que eles possuíam um espelho mágico, dotado de poderes
para ver coisas que eram invisíveis aos olhos?
Sim, eles tinham...
Seus sonhos. Os sonhos sào os espelhos do invisível...
Os espelhos normais refletem as coisas que estào presentes, mas
os sonhos mostram as coisas que estão ausentes.
Vocês sabiam que as imagens têm o poder de possuir aqueles que
as vêem? Riobaldo, o herói de Grande sertâo-veredas, diz que leva
apenas um minuto para transformar um medroso num valentão. Basta
pedir que ele faça cara de corajoso e malvado e, justo neste instante,
mostrar a ele sua cara refletida no espelho... (G SV 38).
Os moradores do vilarejo, nos seus sonhos, se viram como seres
alados, e os seus corpos começaram a voar.
Foram possuídos pela visão de sua beleza adormecida.
As histórias que contaram sobre o morto não eram sobre o morto
Como poderíam contar estórias de alguém que nunca haviam visto
antes?
As histórias sobre o morto eram estórias sobre eles mesmos.
Histórias, não sobre aquilo que eles eram (isto, eles podiam ver nos
espelhos), mas histórias sobre os seus desejos.
Dentro dos nossos corpos, e misturada com os barulhos da Morte,
encontra-se escrita uma inesquecível história de beleza. E mesmo sem

41
o saber, sabemos que estamos destinados a esta felicidade: o Príncipe
deve encontrar a Bela Adormecida.
Os moradores da vila se lembraram. Suas histórias eram o retomo
do tempo perdido. O passado, desejado, reprimido, esquecido, morto,
se levantava do túmulo.
Este passado - obscuro objeto do desejo - teria ele acontecido,
de fato?
Será que eles, em algum momento perdido, teriam sido bonitos
como agora se viam, refletidos nos seus sonhos?
“Era uma vez, há muito, muito tempo...”
Assim começam as histórias infantis.
Minha filha, quando pequena, me perguntava sempre se a história
que eu começava a contar havia acontecido de fato. E eu não sabia
como explicar. Como já disse, as explicações destroem o poder mágico
das palavras. Como podería eu lhe explicar que aquela história se
repetia sempre no presente justamente por nunca haver acontecido no
passado, na terra distante? É preciso que nunca tenha acontecido para
que possa acontecer sempre... E eu lhe dizia: “Não sei ...”
As histórias são como a música. Não se pergunta da Primeira
Sinfonia, de Brahms: “Será que ela aconteceu?” Não, ela nunca acon­
teceu. A sinfonia não é um retrato daquilo que aconteceu uma vez, no
passado. Aquilo que aconteceu está para sempre perdido. Mas a sinfo­
nia, toda vez que é repetida - a magia acontece de novo. A beleza deseja
voltar. Por oposição ao tempo cronológico, tempo do “nunca mais",
que devora os seus filhos, o tempo da beleza é sagrado, tempo da
ressurreição que renasce a cada manhã.
“Era uma vez, numa terra distante...”: uma neblina cobre a
narrativa, escondendo o seu tempo e espaços reais, que são o “agora”
e o "aqui”. O tempo mítico é sempre presente: nas funduras do lago
não há tempo. O “era uma vez, numa terra distante” é uma forma
metafórica de falar sobre uma perda presente. A história desenha os
contornos de um abismo que existe dentro dos nossos corpos; suas
palavras são uma teia sobre o vazio. “Palavras e sons, não são eles
arcos-íris e pontes sobre coisas etemamente separadas?” (PN 329),
pergunta Nietzsche.
Beleza é o nome daquilo que perdemos.
E aquilo que perdemos se faz presente como nostalgia e desejo...
É por isto que ela nunca aparece na superfície do lago. Ali é a
morada das presenças, dos objetos que possuímos - e a despeito disto
a nostalgia permanece. “Por mais rosas e lírios que me dês," diz Álvaro

42
de Campos, “eu nunca acharei que a vida é bastante. Faltar-me-á
sempre qualquer coisa...” (PAC 102). No espelho da imaginação,
dentro dos nossos corpos, ali mora a beleza. É nele que as coisas que
não existem se tomam visíveis.
“O dedo aponta para a Lua”: assim começa um ditado Zen. Os
olhos passam do dedo para a Lua - e eles vêem. Mas se os céus estão
nublados, se não há lua alguma para ser vista, o dedo será inútil. Os
olhos se voltarão para os céus mas não verão coisa alguma.
“Lua” - alguém diz.
E o luar brilha dentro da alma, mesmo que a luz esteja ausente
dos céus...
Dentro dos nossos corpos, ali moram todas as luas ausentes. E a
palavra tem o poder de tomá-las visíveis à alma.
“É a esperança que nos salva; mas na esperança os olhos não
vêem...” (Rm 8,24).
O corpo: uma fina camada de carne tecida sobre o abismo da
beleza, a única evidência da mesma sendo a palavra.
Todas as vezes que a história é recontada,
que as palavras são recitadas,
que a melodia é de novo ouvida,
que o mito é repetido,
voltamos às nossas origens: a carne estremece ao ouvir os sons que
invocam as imagens da nossa beleza perdida. Octávio Paz descreve esta
experiência mágica.
“Todos os dias atravessamos a mesma ma ou o mesmo jardim;
todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado,
feito de tijolos e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a
ma dá para um outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro
fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora
ficam os espantados por serem eles assim: tanto e tão
esmagadoramente reais. Sua própria realidade compacta nos faz
duvidar: são as coisas assim ou de outro modo? Não, isso que
estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes. Em
algum lugar, onde nunca estivemos, já estavam o muro, a ma, o
jardim. E à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que nos
recordamos e quereriamos voltar para lá, para este lugar onde as
coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiqüíssima e
ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá.
Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantados, suspensos

43
no meio da tarde imóvel. Advínhamos que somos de outro
mundo. É a ‘vida anterior’ que retoma” (AL 161).
Era uma vez,
no início de todas as coisas:
uma história foi contada,
uma palavra foi ouvida... (João 1).
A palavra foi falada àqueles que a tinham escrita nos seus
próprios corpos. Mas ela soou como “o barulho do bronze e o retinir
de um címbalo”. A carne permaneceu fria, inerte. Ela não entendeu,
muito embora aquela fosse a sua língua materna.
Mas alguns se lembraram...
Alguns sentiram seus corpos tremer...
Reconheceram o nome...
Só o nome? O simples nome bastaria?
E os seus ensinos? E a sua vida? E a sua sabedoria?
Nomes gravados nas cascas de velhas árvores: para mim nada
significam. Mas posso imaginar alguém que chorará, só em vê-los:
aquele que os gravou, muitos anos antes. O nome contém tudo o que
deve ser lembrado: imagens de uma felicidade perdida. Neles mora um
universo. Talvez que o livro de Mallarmé já tenha sido escrito muitas
vezes, nas cascas de velhas árvores...
Nomes são mais que reflexos dentro de um espelho. Eles são
entidades sagradas. “Santificado seja o teu nome...” Paul Lehmann
sugere uma maravilhosa tradução para o segundo mandamento: “Não
dirás o nome de Deus como se este dizer não fizesse diferença algu­
ma...” Os nomes são entidades mágicas, carregadas de poder.
Nomes: arcos-íris e pontes sobre este grande vazio que tem o
nome de Deus.
Quando o nome é lembrado, começa a ressurreição.
Não o nome do morto, mas os seus próprios nomes:
“O seu cadáver estava cheio de nomes, como Deus..."
O mistério do amor: amamos, não as coisas, mas as palavras que
estão nelas inscritas. Somos belos pelos poemas que nossa carne
conhece, de cor, com o coração, mesmo que a cabeça deles não se
recorde...
Era outono no estado do Maine. Disseram-me que naquele ano
as cores estavam especialmente brilhantes. A beleza era tanta que doía:
a última explosão de cores antes da chegada do inverno. Tempo das
maçãs. No centro do meu pequeno apartamento, uma cesta cheia de
maçãs vermelhas. Meus estudantes à minha volta.

44
“Amamos não a coisa”, eu disse, “mas as palavras que estão
escritas nelas”.
Um dos estudantes me olhou, pegou uma maçã, deu uma mordida
e disse:
“Eu amo maçãs...”
O suco lhe escorria pelos cantos da boca enquanto ele me sorria
de forma matreira. Entendi o que ele dizia sem palavras:
“Uma maçã é uma maçã: este fruto redondo, vermelho, suculen­
to. Quando eu mordo uma maçã eu mordo uma maçã somente. Não
sinto o gosto de palavra alguma na minha boca...”
Peguei a maçã de sua mão, o mesmo fruto, e dei outra mordida
e disse:
“Eu também gosto de maçãs. Mas nós dois nunca poderemos
comer o mesmo fruto, mesmo que a maçã seja a mesma, como esta.
Esta maçã é moradora de dois mundos diferentes. O seu está cheio de
memórias de outonos passados. Ela está cheia de folhas amarelas e
vermelhas; e até mesmo uma brisa fria. Se se prestar bem atenção ela
dirá o poema de Robert Frost:
“ó , silenciosa delicadeza matutina de outubro,
Tuas folhas já estão prontas pra cair no chão...
O vento, amanhã, se quiser,
Levará todas, em turbilhão...
(O hushed October moming mild,
Thy leaves have ripened to the fali...
Tomorrow^ wind, if it will,
Shall waste them all...)
Você não vê as cores? Não ouve o barulho que as folhas fazem
sob os pés? Sua pele não se arrepia sentindo o vento?
Mas em volta da minha maçã gira um outro universo que você
nunca conhecerá... Eu era um menino numa cidadezinha no Brasil. Ali
as maçãs não cresciam. Eu nunca havia visto uma. Sabia o nome, da
história de Branca de Neve. Sabia também que elas cresciam em países
distantes e que, para chegarem até onde eu vivia, teriam de viajar por
muito tempo. Meu pai voltou de uma viagem e me trouxe presentes.
Era véspera de Natal. Dos presentes não guardo memória alguma. Com
excessão de uma maçã. Ela veio embrulhada num papel de seda
amarelo. Eu não tinha coragem para comê-la, porque se a comesse eu
a perderia. E eu pensava que, naquela cidade, eu era o único menino
que tinha uma maçã. Assim, eu fiquei polindo a sua casca, para que
brilhasse como um espelho, como uma forma de adiar o seu Fim

45
inevitável. É, eu também gosto de maçãs... Mas, como você vê, a sua
e a minha, muito embora sejam a mesma, moram em universos dife­
rentes. Elas contam histórias diferentes...”
Você se lembra do Pequeno Príncipe? Ele seduziu a raposa, por
insistência dela. E ela o amou. Mas o tempo da despedida chegou e o
Pequeno Príncipe anunciou que ele tinha de partir.
“Eu vou chorar”, disse a Raposa.
“Não me venha culpar por isto”, disse o Principezinho, como que
se desculpando. “Eu não queria seduzir você. E agora você vai chorar.
Que é que você ganhou com isto, com o seu amor por mim?”
“Ganhei por causa dos campos de trigo.”
“Os campos de trigo?”, perguntou o Príncipe sem entender.
“É”, respondeu a Raposa. “Sou uma raposa. Raposas, como você
sabe, não comem trigo. Nós gostamos mesmo é de comer galinhas. Mas
o seu cabelo é louro e os campos de trigo são dourados. De agora em
diante, todas as vezes que o vento soprar sobre o trigo maduro eu me
lembrarei de você...”
Os teólogos usavam definir sacramento como um “sinal visível
de uma graça invisível”. Os campos de trigo deixaram de ser simples
campos de trigo. Ficaram uma outra coisa: arcos-íris e pontes sobre
coisas etemamente separadas. Metáforas poéticas: sinais visíveis de
uma graça invisível. Os campos de trigo abandonam o reino da agri­
cultura e entram no reino da poesia. Metáfora: “isto é aquilo”: o vento
sopra sobre o campo de trigo e eu ouço a sua voz: uma pitada de
nostalgia, uma pitada de beleza, uma pitada de tristeza. O corpo voa
sobre o abismo. Êxtase: a gente não está mais lá onde estava. Assim é
o amor. “Já lhe disse que as metáforas são perigosas”, diz Milan
Kundera. “O amor começa pelo poder de uma metáfora. O amor
começa no momento quando uma mulher se inscreve com uma palavra
em nossa memória poética" (ILS 210).
Que os campos de trigo tenham o poder para operar esta trans­
formação mágica é coisa que podemos entender. Afinal de contas,
campos de trigo são bonitos. Mas quem podería imaginar que a opera­
ção repulsiva de limpar um peixe na cozinha pudesse se transformar
num sacramento para o ato de amor no quarto? Vejam este poema da
Adélia Prado:
“Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

46
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como ‘este foi difícil’,
prateou no ar dando rabanadas
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva” (75C 29).
‘‘Erótica é a alma”, ela diz num outro poema (B 66).
As palavras podem fazer qualquer coisa. Felicidade é isto: quan­
do o corpo só toca de leve as coisas sólidas com os seus pés, dançando
sobre o arco-íris com as palavras. Ficamos leves, seres pneumáticos,
milagres alados, flutuando no vento...
Por muitos anos tive um sonho: queria plantar o meu jardim. Não
um jardim, mas o meu jardim. Digo o meu jardim porque ele tinha de
ter o poder de evocar imagens e histórias que eu amo. Muitos jardins
são deleites para os sentidos. Mas são mudos. Nada dizem. Falta-lhes
o poder para fazer a memória reverberar. Andamos por seus caminhos
mas o nosso jardim interno continua adormecido. Dentro dos nossos
corpos mora um mundo vegetal. Lembro-me dos versos de Rilke:
“Amava seu mundo interior,
caos selvagem,
bosque antiqüíssimo e adormecido,
sobre cujo silencioso despertar verde-luz seu coração se erguia”
(££> 17).

Eu sonhava em plantar o meu jardim porque, na realidade, eu não


podia. O terreno da minha casa era muito pequeno. Mas um dia eu
consegui comprar o terreno baldio ao lado do meu, e o meu sonho virou
realidade.
Para aqueles para quem não contei meus sonhos, as minhas
plantas são apenas plantas: entidades vegetais que dão uma pitada de
prazer ao corpo. Para mim, entretanto, elas são mágicas: elas têm o
poder para fazer reviver o passado. O rosmaninho me foi dado pelo
meu pai. Sempre que sinto o seu cheiro lembro-me do seu rosto e ouço
a sua voz. A murta me leva de volta para o jardim público da cidade
onde nasci. A flor do imperador crescia no jardim da enorme casa
colonial do meu avô, cheia de mistérios, onde eu brinquei quando

47
menino. Ando por entre as minhas plantas. Há presenças invisíveis no
meio delas. O passado se toma presente. Meu jardim é o texto. Cada
planta é uma metonímia poética. Muitas outras plantas me dão prazer.
Mas o meu jardim me dá alegria. Prazer é uma experiência que existe
somente no presente. Segundo Freud, trata-se de uma descarga de
energia represada, cujo protótipo é o orgasmo. Realizada a descarga o
corpo volta a um estado de repouso, sem desejo. Ele não mais busca o
objeto. Mas alegria não é descarga, é reunião. E mesmo quando a
experiência passa, permanece a sua memória como saudade, como
acontece quando acabamos de ouvir uma sonata de Mozart. Ah! Que
o fim nunca chegue! Que a beleza não termine nunca! Ninguém chora
de prazer, mas choramos de alegria.
“Por favor, não vá... Por favor, volte...” Platão estava certo ao
dizer que Eros era filho de Penia e Poros, de pobreza e plenitude, de
perda e posse. Se nós fôssemos acrescentar algo ao mito, diriamos que
Eros tem uma irmã, e o seu nome é Saudade. Saudade é o sentimento
da presença de uma ausência: o brinquedo da criança que morreu, uma
velha fotografia, uma carta que acaba de chegar, um quarto vazio.
Saudade é o nome para este sentimento de mutilação, “pedaço arran­
cado de mim”, “revcs do parto, arrumar o quarto para o filho que já
morreu...” Saudade: um nome que só pode ser pronunciado diante do
Vazio...
As palavras que se dizem perante o vazio da saudade não têm
nenhuma função cognitiva. Seu propósito não é descrever objetos. Ao
contrário, como o disse Maurice Blanchot, a palavra “não é a expressão
de uma coisa, mas antes da ausência desta coisa... A palavra faz
desaparecer as coisas e nos impõe um sentimento de falta universal e
mesmo de sua própria falta" (LTM 1580).
Lembro-me do amor desesperado de Fiorentino Ariza por Firmi-
na Dazza, que Gabriel Garcia Marques conta em Amor nos tempos do
cólera. Tudo começou quando eram muito jovens. Ela, adolescente.
Ele, um modesto escriturário numa firma de navegação. Aqueles eram
dias em que as filhas eram donas dos seus sentimentos mas não dos
seus corpos, e por isso o seu amor por Fiorentino foi inútil, porque seu
pai lhe destinou futuro mais promissor, fazendo-a casar-se com o Dr.
Urbino, próspero médico do local. Pobre Fiorentino, quase enlouque­
ceu de amor, ao ponto de perder o seu emprego, pois suas cartas
comerciais passaram a ser escritas como se se destinassem à amada
perdida. Havia, na cidade, uma praça onde rábulas e jovens advogados
ganhavam um dinheirinho extra escrevendo petições, requerimentos e
documentos legais para o povo. Fiorentino não tinha inclinação alguma
para escrever documentos legais, mas seu coração estava cheio de

48
cartas de amor, e foi isto, precisamente, que ele se pôs a oferecer. Coisa
muito fácil, se o freguês era homem. Ele imaginava que a carta se
dirigia à sua amada Firmina. Se era uma mulher, ele imaginava o tipo
de carta que desejava dela receber. Um dia um jovem se aproximou e
lhe contou sua história. Estava apaixonado por uma jovem, com quem
nunca havia conversado antes. Queria que Fiorentino lhe escrevesse a
primeira carta. E assim se fez. Dias depois, uma jovem o procurou.
Tinha uma carta nas suas mãos. O homem que a havia escrito tinha de
ser tão bonito quanto as suas palavras. Ela estava apaixonada, mas não
sabia o que escrever como resposta. E, com estas palavras, passou a
carta para as mãos de Fiorentino: era a carta que ele mesmo havia
escrito, dias antes. Por algumas semanas ele ficou envolvido numa
furiosa correspondência amorosa consigo mesmo. E, á medida que as
cartas passavam pelos namorados, elas realizavam o que diziam, e os
amantes eram transformados segundo as imagens poéticas das pala­
vras. A história termina dizendo que eles, finalmente, se casaram.
Passado algum tempo descobriram o que havia acontecido e quando
seu primeiro filho foi batizado, Fiorentino foi o padrinho...
Palavras de amor são imagens dentro do espelho: nós somos o
espelho.
A outra pessoa é bela porque vemos a nós mesmos belos, refle­
tidos nas suas palavras.
Espelhos falantes, como na história de Branca de Neve. O
personagem trágico da história não é a menina, tolinha, que nada sabe.
É a madrasta nos seus diálogos com o espelho: alguém que, no passado,
lhe falara palavras que a refletiam bela, mas que agora lhe falava
palavras que a faziam feia. E a bela mulher se metamorfoseou numa
bruxa. O sentirmo-nos feios nos faz malvados. E ela quebrou o espelho.
Magia negra: quando, pelo poder da palavra enfeitiçante, o belo se
transforma em feio.
Tenho de contar uma história que já contei inúmeras vezes. Sobre
o meu sogro. Nasceu na Alemanha e veio para o Brasil depois da
primeira guerra. Era filho de um pastor da Igreja Adventista do Sétimo
Dia. Como é bem sabido, os membros deste grupo religioso são
extremamente rigorosos acerca dos seus hábitos alimentares. Não
comem came de porco ou sangue, não bebem bebidas alcoólicas, café
ou chá. Meu sogro, muito embora tivesse deixado de ser um fiel
praticante, não se esquecera dos tabus alimentares. Eles estavam escri
tos na sua própria came. E tinha mesmo um tabu todo seu, particular
ele não comia miolos, muito embora nunca os tivesse comido antes O
fato é que, mesmo assim, sem comer, não gostou... Um dia foi convi
dado para um jantar. Era o convidado de honra. E ficou muito contente

49
ao ver que a anfitriã, certamente sabedora dos seus hábitos quase
vegetarianos, havia escolhido couve-flor empanada como o prato prin­
cipal. Delícia pura! Comeu, gostou e repetiu. Ao final, reconciliado
com a vida (isto sempre acontece quando a comida nos dá prazer), a
alquimia da digestão já se tendo iniciado, disse à dona da casa:
- A couve-flor empanada estava um prato digno dos deuses...
- Que bom!, ela respondeu. Alegro-me que o senhor tenha
gostado. Só que nào era couve-flor; era miolo...
Pobre senhora! Nào podia imaginar a tempestade que uma pala­
vra inocente na boca podia provocar no corpo... Meu sogro, esquecen­
do-se de todas as regras de etiqueta, pulou da cadeira, correu para o
banheiro, e vomitou tudo...
Como explicar o ocorrido?
A “coisa": os sentidos já nào a haviam aprovado, declarando-a
deliciosa? A boca náo a havia transportado para dentro do corpo, dando
assim o seu Nihil Obstatl E o estômago? Não estava feliz, entregue aos
seus jogos alquímicos de incorporação? Que catástrofes físicas e quí­
micas poderíam ter acontecido por obra mágica de uma simples pala­
vra, sopro, vento, para que o corpo mudasse de opinião tào de repente,
vetando tudo aquilo que já havia provado e aprovado? Nenhuma. Meu
sogro, na cabeça, sabia disto, que as palavras nào podem mudar a coisa.
Mas o seu corpo seguia outra filosofia, pois para o corpo a comida nào
é só a coisa: é a coisa misturada com palavras. Nào foi o gosto, não foi
o cheiro, nào foi a vista, nào foi o tato, o que provocou a indigestão.
Foi uma simples palavra. Meu sogro nào vomitou a coisa. O que ele
vomitou foi uma palavra. O que dá prazer e desprazer nào são as coisas,
mas as palavras que nelas moram. Como Zaratustra sugeriu, o que toma
as coisas agradáveis sào os nomes e os sons que lhes sào dados (PN
329). Por razões desconhecidas a palavra “couve-flor", no corpo do
meu sogro, era moradora de um mundo bonito, enquanto a palavra
“miolo” era o elo de uma cadeia de imagens repulsivas. Basta uma
única palavra para transformar um príncipe num sapo. E nem é preciso
a presença de uma bruxa. O próprio príncipe se enfeitiça...
O corpo tem uma filosofia que é toda sua. Para ele “realidade"
não é aquilo que comumente chamamos por este nome. Nào é algo
dado, pronto. É antes o resultado de uma operação alquímica por meio
da qual a coisa sem nome é misturada com palavras. É assim que o seu
mundo é criado. E é isto que é dado ao corpo para ser comido.
Guimarães Rosa conhecia a sabedoria do corpo e foi por isto que disse:
“tudo é real porque tudo é inventado". “Somos feitos de sonhos”, diz
Norman O. Brown (LB 254). Meu sogro não vomitou a coisa. Ele

50
vomitou sonhos maus, pesadelos, entidades sinistras invocadas pela
palavra enfeitiçante...
Meus pensamentos dançam e saltam deste jantar desastrado para
a teologia sacramental medieval. Os teólogos medievais, ao descrever
o que acontecia na eucaristia, faziam uso da palavra “transubstancia-
ção” - transformação de substância. Os teólogos protestantes não
podiam entender este conceito porque, para eles, as palavras não têm
poder mágico algum. Elas são apenas matéria-prima para o pensamen­
to. Imagino que seus sogros nunca tiveram a experiência de uma
indigestão provocada por uma única palavra. Estas duas situações: não
são elas curiosamente idênticas? Pão e vinho: as coisas básicas para a
refeição. Então, uma palavra é pronunciada. Nada se altera. Sob os
critérios do conhecimento objetivo, o pão continua a ser pão e o vinho
continua a ser vinho. Nas palavras dos teólogos medievais, os “aciden­
tes” continuam os mesmos. A despeito disto, diziam eles, uma mudança
imperceptível acontece: sob a identidade dos mesmos acidentes existe
agora uma outra “substância" no lugar da antiga: o corpo e o sangue
de Cristo.
Mas, que palavra é esta, com tal poder mágico? Não é a palavra
que anuncia uma ausência? A eucaristia é uma refeição diante do
Ausente. “Comei e bebei em memória de mim” (ICor 11,25). Se o
comer e o beber acontecem em memória é porque algo ou alguém está
ausente. Pão e vinho são entidades físicas. Servem para alimentar o
corpo. Até mesmo as formigas e as abelhas sabem disto: o pão deixado
sobre a mesa se cobre de formigas que levam as migalhas para suas
casas, e as abelhas tratam de sugar o doce do vinho que restou. Mas
quando uma certa palavra é pronunciada, abre-se um grande vazio
dentro dos nossos corpos, e sentimos saudades, e os nossos corpos
ficam diferentes, são transubstanciados pelo poder da ausência. Os
moradores da aldeia foram ressuscitados pelo poder do Vazio: eles
ouviram palavras que chamaram as suas nostalgias pelos seus nomes.
Eles perceberam que estavam perdidos, sem o auxílio daquilo que não
existe.
Mundo estranho, este - envolvido por ausências... Não temos
memória da língua que ali se fala. “Trouxeste a chave?” ele pergunta.
Mas nós a perdemos. Na verdade, temos muitas chaves. Mas não
sabemos onde deixamos aquela chave, a palavra...
Nossas chaves abrem as portas de um mundo que é conhecido e
familiar a todos e sobre o qual nós falamos. Ele é sólido, amarrado a
coisas firmes, construído sobre fundamentos que se encontram além
das dúvidas. Os que moram nele repetem, sem problemas, o seu
evangelho:

51
“No princípio eram as coisas...”
As palavras vêm depois, como consequências.
Primeiro o original; depois as cópias.
Primeiro as árvores, nuvens e montanhas; depois os seus refle­
xos invertidos na água.
Mas todos sabemos que reflexos não possuem realidade. Eles
nada mais são que a luz brincando com os nossos olhos. Têm sentido
mas não têm poder. O dedo aponta para a Lua, mas ai daquele que tomar
o dedo pela Lua.
Mas as chaves que não temos nos pennitem entrar dentro do
espelho, como Alice... Mergulhamos através da superfície brilhante do
lago, e lá dentro as palavras não mais são reflexos, mas peixes que
nadam em águas profundas: o universo mágico e sagrado que está
escondido dentro da nossa came. Estas palavras são mais reais que as
coisas.
Agora são as coisas que são reflexos das palavras.
No princípio antes que qualquer coisa existisse, e nada havia
para aparecer refletido na superfície das águas, era o Vazio. Nenhuma
palavra verdadeira podia ser dita porque nada havia que pudesse ser
refletido.
E, não obstante, uma palavra se ouviu, ex nihilo, enchendo o
silêncio primordial.
Tinha de ser uma palavra mágica, pois que ela tinha de ter o
poder de trazer à existência aquilo que não existia.
“Deus era Palavra e a Palavra estava com Deus. Este é um
problema demasiado sério para ser largado nas mãos de uns poucos
ignorantes...” É Guimarães Rosa que se expressa assim (L V 14):
No princípio, a Palavra.
Depois, o universo.
Espelho de Deus. A Palavra assumindo visibilidade.
Universo,
uni-Verso.
Na terminologia hegeliana, a objetivação do Espírito.
Não é o universo que é o sentido da Palavra.
É a Palavra que é o sentido do universo.
Não é o dedo que aponta para a Lua.
É a Lua que aponta para o dedo.
O sentido do universo é
o verso
que jaz escondido, não falado,
dentro do seu silêncio.

52
Deus é como Narciso: ambos querem ver a sua beleza refletida.
Mas Narciso foi enfeitiçado pelos equívocos da luz, e o que ele amava
era nada mais que um reflexo que não podia ser tocado e abraçado.
Todas as vezes que tentava fazê-lo, sua imagem desaparecia, quando
seus dedos tocavam a água.
Deus pronuncia a Palavra e um universo aparece, como objeto
de amor: um jardim, paraíso.
E ali a beleza toma uma forma humana: mulher e homem,
imagem de Deus, espelho de Deus.
Que é um homem? Um homem é um vazio, o desejo por uma
mulher.
Que é uma mulher? Uma mulher é um vazio, o desejo por um
homem.
Eles são aquilo que não são...
A palavra é masculina: a fala se projeta como falus, eleva-se e
penetra, a fim de dar prazer e engravidar.
Pela palavra coloco meu sêmen dentro de outro.
O ouvir é feminino. O ouvido é um vazio, concha, um convite à
palavra que lhe trará prazer e vida.
Mas a separação anatômica dos sexos é mais que um acidente
biológico. Homem e mulher, sem separação e sem confusão, como no
dogma cristológico, imagem de Deus. Perda etema, desejo etenio.
Deus é masculino e feminino, pai e mãe, homem e mulher, desejo pelo
outro.
Aqui está a tragédia de Narciso: ele não desejava o que não tinha.
Nele não havia vazios. Ele não podia sonhar... O nosso segredo é a
androginia... A felicidade não é o prazer; é reunião com o objeto-es-
pelho que reflete a ausência que em nós habita.
O morto não causou nenhum prazer. Ele não podia. Estava morto.
Mas, no seu vazio, as imagens perdidas puderam ser vistas de novo.
Ele se tomou no espelho em que os moradores do vilarejo puderam
contemplar a sua beleza esquecida.
A psicanálise se nutre do mesmo evangelho. Na verdade, ela nada
mais é que um longo comentário sobre o mesmo texto sagrado:
“No princípio era a Palavra,
e a Palavra se fez carne...”
Tempo mítico...
Como acontece com as histórias de fadas, ele não pode ser
entendido literalmente. O “era uma vez, numa terra distante" é uma

53
forma metafórica de se falar sobre aquilo que está sendo dito no meu
corpo, agora. O corpo não tem nem passado e nem futuro. Memórias
são a forma que tem o corpo de falar sobre o seu vazio. E esperanças
são as suas maneiras de exprimir o desejo de recuperar o que ele ama
e que se perdeu. “Canto e canto o presente”, diz Álvaro de Campos, “e
também o passado e o futuro. Porque o presente é todo o passado e todo
o futuro” (PAC 145). E os espaços cósmicos são a face interior do nosso
corpo. Nas palavras de Cecília Meireles, referindo-se à sua avó, morta:
“Teu corpo era um espelho pensante do universo” (FP 144).
O universo inteiro mora dentro dos nossos corpos. A teologia de
Feuerbach se constrói sobre este fundamento. “No objeto que contem­
plamos tomamo-nos concepção daquilo que é exterior a ele mesmo.
Mesmo os objetos que estão mais longe do homem, porque eles são
objetos para ele, são revelações da natureza humana. Mesmo a Lua, o
sol, as estrelas, convidam o homem a conhecer-se a si mesmo (“Gnothi
seauton”) (£C 5).
Nas palavras de Ricoeur, “tudo o que é simbolizado é o corpo”.
“A unica Escritura é o próprio corpo humano; aquilo que acontece com
o corpo da pessoa ...é idêntico àquilo que acontece com o universo”
(LB 226). Os poemas míticos sobre as origens do mundo são sonhos
sobre as origens do corpo.
“No princípio dos nossos corpos está a palavra”.
“A palavra não mora no homem”, diz Martin Buber; “é o homem
que mora na palavra” (1T 39).
A estória mítica da criação começa com o universo e termina com
o corpo. Mas, como freqüentemente acontece com os sonhos, a-ordem
deve ser invertida. Não é o universo que contém o corpo; é o corpo que
contém o universo... O mundo mora no corpo; o universo é a face
visível do desejo mais profundo do corpo: o paraíso...
Dois temas que se opõem. O pensamento ocidental tem tocado
uma série de “variações” sobre eles...
Onde moramos? Qual é a nossa casa?
Alguns dizem que nosso lugar é na superfície do lago, onde os
reflexos são claros e distintos. É ali que deveriamos construir nossas
habitações.
Mas outras preferem o tema invertido. Somos seres das profun­
dezas, onde a luz é pouca e os olhos só veem a luz que se fratura através
das águas inquietas. Corpo, lago misterioso: dentro de suas águas nosso
nome dorme, esquecido...

54
É bem sabido que Lutero disse que a razão era uma prostituta.
Poucos sabem, entretanto, que esta era uma resposta a Erasmo, que
afirmara que o corpo é uma prostituta... Erasmo era um cidadão do
mundo das luzes. Lutero, ao contrário, sabia que, em meio aos reflexos
luminosos, Lúcifer, o enganador, é aquele que carrega a luz (do latim
lux, luz, e ferre, “portar, carregar”). A verdade mora na escuridão do
corpo onde uma palavra é ouvida. Não os olhos, mas os ouvidos. A
verdade é um “Poema que se fez carne", o corpo de Cristo, presente e
escondido em todo o universo, mesmo na menor folha de uma árvore.
Os moradores da aldeia nada podiam fazer; eles também estavam
mortos. Algo tinha de ser feito a eles: graça. E assim, no silêncio e na
impotência da morte, palavras começaram a se fazer ouvir. E eles
despertaram do seu sono.
Sonharam. E seus corpos foram possuídos por seus sonhos.
Começaram a contar histórias e chegaram mesmo a pensar que eram
histórias sobre o morto. Mas nos sonhos o corpo só fala sobre o seu
próprio vazio. As palavras se falaram das águas profundas onde se
achavam submersas. É isto que, em linguagem psicanalítica, tem o
nome de Inconsciente. “O inconsciente nada mais é que linguagem viva
que se fala contra as intenções conscientes do sujeito...” (JL 68).
Não se trata de algo que fazemos. É um “Desconhecido” que
faz...
Em linguagem teológica: não pelas obras, mas pela graça. Somos
todos femininos: somos a Virgem que é engravidada pela Palavra que
vem com o Vento.
Ouve-se uma palavra e o corpo reverbera. Mas este reverberar só
é possível se o corpo e a palavra forem a mesma coisa. “Somos feitos
de palavras”, diz Octávio Paz (AL 37).
Somos a Bela Adormecida: nossos corpos dormem esquecidos.
Não mais sabemos tocar a melodia que está gravada em nossa carne.
Os reflexos, dez mil - nós os conhecemos. Mas as funduras do lago
estão além da razão diurna. Ensinaram-nos que somos o que pensamos:
“Penso, logo existo”. Agora o tema se inverte: “Ali, onde penso, lá eu
não estou”.
Os poetas têm estado repetindo isto o tempo todo. Não é de se
espantar, portanto, que não sejam convidados para nossos jantares
acadêmicos. Quando os poetas falam, os outros convivas pensam que
eles estão bêbados.

55
“Como decifrar pictogramas de há dez mil anos
se nem sei decifrar
minha escrita interior?”
- pergunta Drummond.
“Interrogo signos dúbios
e suas variações calidoscópicas
a cada segundo de observação.
A verdade essencial
é o desconhecido que me habita
e a cada amanhecer me dá um soco” (C 29).
Nossa beleza jaz adormecida, como na história. Fernando Pessoa
tem um lindo poema, Eros e Psique, em que descreve a princesa
adormecida na torre do castelo, a vida vegetal crescendo ao seu redor,
folhas de hera cobrindo seu rosto como um véu. O príncipe, vindo de
longe, sem saber o seu destino, caminhando em meio á sua própria
ignorância do que está acontecendo, por caminhos escuros e misterio­
sos... Até que, finalmente,
“Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
A cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra a hera,
E vê que ele mesmo era
A princesa que dormia” (PFP 239).
Moramos no esquecimento.
Não sabemos orar como devíamos: não sabemos o nome do
nosso desejo mais profundo. Resta-nos suspirar suspiros que são pro­
fundos demais para palavras. Nosso corpo fala línguas que ele mesmo
desconhece...
Em tempos antigos, quando se escrevia sobre o couro, costuma­
va-se apagar um texto a fim de escrever um texto novo. As palavras
eram raspadas e a superfície do couro era alisada com o auxílio de
presas de elefante. Quando se percebia que nada do antigo texto restava,
fazia-se uma nova escrita. E a antiga estava perdida, para sempre... Eles
não sabiam, entretanto, que dentro do couro o texto antigo permanecia,
invisível. Hoje, graças a técnicas modernas, ele pode ser recuperado.
Estes eram os palimpsestos: couro sobre o qual muitos textos eram
escritos.
Nossos corpos: palimpsestos.
Há um texto superficial, visível a todos: a superfície da lagoa.

56
Mas no obscuro da carne há uma outra história que continua a
dizer-se, inaudivelmente. Por vezes ela emerge, usando máscaras,
falando línguas desconhecidas.
Sintomas físicos, fraturas na carne. Groddeck, um dos descobri­
dores da psicanálise, percebeu que doenças são mensagens estrangula­
das. Elas não são acidentes que acontecem ao corpo. São antes
ideogramos que o próprio corpo escreve, num esforço desesperado para
ser ouvido e compreendido.
Por vezes este texto emerge sob a forma de sonhos, imagens
cripticas que se fazem visíveis quando as luzes se apagam e o Ego,
habitante da luz, vai dormir.
Em outras ocasiões os peixes pulam fora d ’água mesmo durante
o dia, são vistos numa fração de segundo, mas logo desaparecem dentro
da lagoa...
Se, por um acaso, o corpo se lembra da Palavra esquecida que
mora dentro de sua carne como uma história de amor, ele descobre o
caminho que leva de volta a casa. É possuído pelos seus sonhos e
retoma da morte porque, como Blake uma vez sugeriu, “o Corpo Eterno
do Homem é a Imaginação” (PB 497). Somos ressuscitados pelo poder
daquilo que não existe.
A vida retoma com o morto, dádiva do mar:
batismo, mergulhando nas funduras das águas escuras.
E nos tomamos crianças de novo...
E a aldeia nunca mais foi a mesma...

57
Capítulo IV

O QUE REALMENTE
ACONTECEU

Se você descrever o mundo do jeito como ele é,


em suas palavras haverá muitas mentiras
e nenhuma verdade.

Tolstoi

Conhecimento é uma palavra polida para a imaginação morta


mas ainda não enterrada.

E.E. Cummings
o relatório de Gabriel Garcia Marques, tal como dele nos lembramos,
termina com a declaração lacônica de que “a aldeia nunca mais foi
a mesma”. Mas ele não nos fornece pistas que nos permitam imaginar
o que realmente aconteceu depois que a aldeia foi visitada pelo morto.
Parece que os moradores do vilarejo não tinham interesse algum em
documentar as suas experiências no tempo DM (depois do morto) pela
simples razão de que pescadores não compreendem a importância de
registros históricos. Bastava-lhes simplesmente viver o presente. Há
indicações, entretanto, de que a história se tomou uma espécie de
tradição oral que circulava de boca em boca por todo o país, atingindo
mesmo o estrangeiro. As reações diante dela eram as mais variadas,
indo da incredulidade ao encantamento. A aldeia se tomou um centro
de interesse turístico e muitos viajantes curiosos passaram a incluí-la
em seus itinerários. Os relatos de suas viagens são, praticamente, a
única fonte de informações de que dispomos. É claro que tais relatos
não possuem o rigor exigido pela objetividade das ciências históricas
e, por isto mesmo, devem ser tomados com uma pitada de sal. Mas,
sendo tais relatos a única coisa de que dispomos, não nos restam
alternativas e temos de partir do que elas dizem. Nossa situação se
parece com aquela de alguém que tem de juntar as peças de um
quebra-cabeças, dispondo apenas de fragmentos do todo. Os espaços
vazios têm de ser completados com construções da imaginação.
Todos os relatos são unânimes em sua descrição de um evento
que parece ter se tomado no centro da vida do vilarejo. Depois que o
sol se punha, todos os moradores da aldeia se reuniam na praia, em
volta do fogo, e contavam histórias sobre aquele dia magnífico. O que
mais chamava a atenção, entretanto, não era aquilo que diziam, mas
como o diziam. Algumas testemunhas dizem que era como se estives­
sem levemente embriagados. Levantou-se, inclusive, a hipótese de que
as histórias que contavam pudessem ter um efeito semelhante às drogas
alucinógenas. É possível. O fato é que o ato de contar a história
provocava mudanças nos seus corpos, dando a impressão de que
estavam “possuídos” por espíritos ou pelo Espírito. Mas eles não
ficavam falando sobre o homem morto o tempo todo. Era uma espécie
de um jogo que se jogava com palavras, semelhante àquele que Her
mann Hesse descreveu no seu livro O Jogo das contas de vidro. Alguém
propunha uma palavra inicial, que servia como tema, e que era seguida

60
por variações sem fim, à semelhança do estilo musical chamado
“variações sobre um tema dado”. Outros o comparavam à corrente de
poemas japoneses chamada renku, e que é composta de forma seme­
lhante. Imagens flutuavam livremente em tomo do tema central, numa
dança de associações livres. A sua conversa construía um mundo
encantado, e se é verdade que “os limites da linguagem denotam os
limites do mundo”, como o disse certa vez um conhecido filósofo,
podemos concluir que o mundo deles era, de fato, um mundo encanta­
do. Algumas testemunhas dizem que foi numa destas reuniões que
Guimarães Rosa repentinamente percebeu que “tudo é real porque tudo
é inventado”. Partindo de lembranças do passado, eles saltavam para
esperanças sobre o futuro: a memória se transformava em profecia. E
compuseram poemas sobre desertos que eram transformados em jar­
dins, leões que passaram a comer capim como os bois, crianças que
brincavam com serpentes, armas que eram transformadas em arados, e
adultos que ficavam leves e brincalhões como crianças. É verdade que
isto era poesia. Mas os moradores da vila levavam a poesia absoluta­
mente a sério, como se fosse verdade. Existem alguns relatos fantásti­
cos sobre pessoas que andaram sobre as águas, e sobre outras que
atravessaram abismos sobre pontes construídas com as cores do arco-
íris.
É relatado, também, que algumas mudanças extraordinárias pas­
saram a ser notadas em sua vida prática. Os seus hábitos econômicos,
por exemplo, se inverteram. Durante o tempo AM (antes do morto) as
suas atitudes para com o dinheiro eram dominadas pelo motivo da
economia. E por boas razões. Não percebendo nenhuma perspectiva de
mudança no vilarejo, a única coisa que desejavam era se mudar para
outro lugar. Mas, para isto, tinham de ter dinheiro. Assim, trabalhavam
duro, viviam vidas muito ascéticas, gastavam o que era estritamente
necessário para a sobrevivência e economizavam o que sobrava. Esta
combinação de trabalho intenso e asceticismo criou um estilo peculiar
de vida que chegou mesmo a se tomar objeto de um cuidadoso estudo
científico por Max Weber, um conhecido sociólogo que por ali andara
nos tempos AM. Um outro filósofo que visitara a aldeia ainda antes,
Karl Marx, chegara a conclusões semelhantes, e notou que este estilo
tinha, como resultado, a deformação dos sentidos do corpo. O corpo
deixava de ser um fim em si mesmo e era transformado num meio de
atividade de economizar, e todos os sentidos, que são órgãos de prazer,
eram reprimidos até o ponto de serem suprimidos (EP\ CMH). Depois
do grande evento, entretanto, ao invés de economizar eles começaram
a gastar. Esta nova atitude para com a vida era celebrada a intervalos
regulares por meio das festas extravagantes denominadaspo//afc/i, que
eram notáveis pela grande quantidade de comida e de presentes, e que

61
freqüentemente eram acompanhadas pela destruição da propriedade
dos anfitriões.
Tais festas curiosas, completamente incompreensíveis se enca­
radas do ponto de vista de uma psicologia inspirada no motivo da
economia, eram uma indicação segura de que os moradores da vila
haviam experimentado uma reorientação radical na sua percepção do
tempo. Ao economizar, o presente é esvaziado; ele se toma apenas num
meio para algo que virá no futuro; a vida é adiada. O ato de gastar, ao
contrário, só é possível se se não está ansioso acerca do futuro e se se
está comprometido com a vida no presente. Os poetas fizeram uso de
metáforas para descrever esta mudança, e disseram que era como se
cisternas que continham água se tivessem transformado em fontes de
águas transbordantes.
Também mudou a aparência de suas casas. Nos tempos AM
ninguém pensava em construir novas casas, e nem se preocupava em
conservar as velhas, que com freqüência se transformavam em ruínas.
Só se faziam os consertos essenciais quando as paredes rachavam e
saíam do prumo, com risco de cair, ou quando as goteiras eram demais.
Pintar as casas era coisa sobre que nem mesmo se falava, e depois de
muitos anos de abandono todas elas tinham a mesma cor de terra. Este
comportamento se explica com facilidade. Não é sábio construir novas
casas se se está planejando deixar o lugar. Os jardins, por sua vez, eram
plantados segundo critérios rigorosamente utilitários: neles só se en­
contravam plantas que serviam para comer. Flores não eram cultivadas,
e as únicas a serem vistas eram aquelas que cresciam, selvagens, no
meio dos campos. Ao invés de árvores, que levam muito tempo para
crescer, preferiam plantar abóboras. Mas nos tempos DM tudo mudou.
Parece que os moradores da vilazinha começaram a sentir que aquele
era um bom lugar para se viver e resolveram apostar e plantar nele “as
sementes da sua mais alta esperança”. Há relatos acerca de um homem
(posteriormente tido como profeta) que tomou todo o dinheiro que
havia economizado para a sua fuga daquele lugar sem esperança e
comprou um pedaço de terra, selando a transação com palavras que
refletiam seu novo estado de espírito: “Casas e campos e vinhas ainda
serão comprados neste lugar”. Este mesmo homem, numa outra oca­
sião, ordenou que os moradores do vilarejo se casassem e tivessem
filhos, que se multiplicassem e não diminuíssem, porque a eles “um
futuro e uma esperança haviam sido dados” (Jr 29,11). Muitas novas
casas foram construídas, as velhas foram reformadas e pintadas com
cores vivas, mesmo as mais pobres. Mulheres grávidas e nenezinhos
começaram a ser vistos, uma clara indicação de que tinha havido um
reavivamento nos prazeres do amor. Os viajantes também relatam que
os adultos gostavam muito de brincar, atividade esta totalmente despida
de interesse econômico, visto só produzir prazer. Era comum ver-se os

62
adultos misturados com as crianças em seus jogos, e o faziam, pelo que
parece, de um jeito completamente descontraído. Uma das atividades
preferidas, nas horas de lazer, era empinar papagaio, e quando se lhes
perguntava a respeito dessa preferência, respondiam que esta era a
atividade com a qual mais se sentiam identificados. Parece que viam
no papagaio uma metáfora deles mesmos. Afirmam alguns que foi
durante uma dessas visitas que um escritor, mais tarde famoso, teve a
inspiração para o título de seu livro “A insustentável leveza do ser”.
Todos os relatórios, não levando aqui em conta os pontos dife­
rentes, concordam em duas coisas. Primeira: não se podería negar que
“algo” havia acontecido, para mudar o vilarejo. Segunda: esse “algo"
tinha a ver com as experiências oníricas relacionadas com os jogos-de-
contar-histórias.
Mas existe outra tradição, segundo a qual a história teve um final
diferente. Gabriel Garcia Marques deve tê-lo ignorado, pois não faz
referência nenhuma a essa versão alternativa dos fatos. Os que se
dedicaram ao estudo desse assunto concordam por unanimidade em
identificar sua versão como pertencente à tradição oral mais antiga, e
existe mesmo a possibilidade de que ele fosse uma testemunha ocular.
A segunda versão deve ser bem posterior, e isso podería explicar o
completo silêncio de Marques.
Os documentos restantes dessa tradição (que, por motivos a
serem explicados mais tarde, ficaram conhecidos pelo nome de “Fonte
I") foram produzidos por um grupo de pessoas que se separaram dos
moradores do vilarejo e vieram a se organizar como uma ordem
monástica. Várias hipóteses foram levantadas para explicar este evento
obscuro. O que é certo é que o “milagre” não funcionou para todos.
Alguns, por razões desconhecidas, não foram tocados pela magia do
morto e, em conseqüência, não passaram pela experiência trans­
formadora. Eles ficaram de fora do círculo da “nova realidade”. Houve,
então, uma quebra de comunicação. Na medida que a linguagem
determina os limites do mundo, eles começaram a viver em mundos
diferentes, pois não falavam a mesma linguagem. Os dois grupos não
mais podiam conversar e se transformaram em estranhos pois, como
Peter Berger observa, “a realidade subjetiva do mundo está pendurada
no fino fio da conversa” (SC). Dois universos incomensuráveis passa­
ram a existir lado a lado. Assim, mesmo antes que a ordem monástica
existisse como instituição ela já existia como um fato lingüístico. A
linguagem une e separa. Aquilo que fazia sentido, para uns, não fazia
sentido algum, para os outros. Instaurara-se uma verdadeira Babel em
que os dois grupos falavam línguas estranhas. O que era sabedoria para
uns era loucura para outros, o que uns consideravam belo os outros
consideravam feio. Este curioso fenômeno foi objeto de reflexão para
vários pensadores, entre eles Nietzsche, Uexküll e Feuerbach. Para uma

63
lagarta não há nada mais lindo que coisas que se assemelhem a ela. No
mundo das lagartas até os deuses são lagartas. Mas as borboletas
obviamente dirão: Tolice...
O comportamento daqueles que haviam passado pela experiência
começou a causar embaraço, ao ponto do ridículo, àqueles que perma­
neceram fora do círculo encantado. Os jovens, por exemplo, não
podiam esconder a sua vergonha quando percebiam que os seus pais
haviam redescoberto as alegrias do amor. No seu mundo o sexo e a
velhice eram coisas que não se misturavam. E a vergonha ficava
insuportável quando as barrigas de suas mães cresciam, revelando que
estavam grávidas. Existe, inclusive, uma lenda acerca de um velho
casal: ela ficou grávida quando a gravidez havia se tomado impossível,
pela idade. Este evento provocou uma explosão de gargalhadas, que se
iniciou com a própria mulher. É claro que este riso tinha sentidos
diferentes. Para os de fora era riso perante o ridículo. Mas para os de
dentro era um transbordamento de alegria. E decidiram até preservar a
memória deste evento no nome do menino. Foi batizado com o nome
de Isaque, que significa “riso”. E a sua mãe, Sara, interpretou esta
escolha com as seguintes palavras: “Deus me deu boas razões para rir,
e todos os que ouvirem isto se rirão comigo” (Gn 21,6).
Os membros da ordem monástica achavam que tal riso era
evidência de que os outros haviam enlouquecido. Os moradores da
aldeia - assim argumentavam - tomaram-se cegos para a realidade,
regrediram a um estágio infantil do desenvolvimento psíquico, e o seu
comportamento era uma forma de psicose coletiva: tomavam os seus
sonhos como se fossem realidade. E como não queriam ser contagiados
pela mesma doença, decidiram-se a sair da aldeia. E foi assim que a
ordem veio a existir e os seus mosteiros foram construídos. Todos
concordaram em que o seu símbolo deveria ser uma lâmpada acesa,
como expressão do seu horror aos sonhos que aparecem quando as
luzes se apagam e dormimos. Deram-se o nome de “Iluminados” e
estabeleceram, como sua missão, educar a humanidade para a realida­
de. Esta é a razão por que os documentos por eles produzidos vieram
a ser denominados de “Fonte I”.
Os “Iluminados” afirmavam que a vida não pode ser baseada em
sonhos. Sonhos são perturbações dos nossos processos mentais e
resultam do pecado original que mora em nossos corpos. O corpo, um
dos seus filósofos afirmou, opera segundo as exigências do “princípio
do prazer” - e é dele que nascem os sonhos. Mas a realidade não foi
feita para produzir o prazer e é insensível aos nossos sonhos. O corpo
- os membros da ordem não se cansavam de repetir - é uma prostituta.
Ele não tem amor algum pela verdade. Ele se acredita possuidor de
poderes que fazem possível trazer à existência coisas que não existem.
E assim, a partir desta loucura, ele se põe a fazer amor com as invenções

64
da imaginação. Uma expressão desta loucura? A poesia. O poeta faz
amor com palavras, ignorando que palavras não têm realidade alguma.
Palavras não passam de reflexos dentro do espelho. A poesia, como o
brinquedo e o sonho, são, na verdade, deliciosas tolices. Mas nada mais
que isto. A poesia não dá conhecimento. Ela não nos diz como as coisas
são, na realidade. Não é um espelho em que se possa confiar. Não pode,
portanto, se constituir no fundamento de coisa alguma. As imagens com
que os poetas brincam são apenas expressões dos movimentos que
acontecem dentro do corpo, frutos da imaginação, que nada têm a ver
com o que acontece objetivamente no mundo de fora. E os membros
da ordem batizaram mesmo estas imagens emocionais de “qualidades
secundárias”, a fim de tomar claro que elas não podem ser tomadas
como materiais confiáveis na construção do mundo do conhecimento.
Não podem ser fundamento para coisa alguma.
Se o corpo não pode ser o “princípio”, ele também não pode ser
o “fim”. O corpo é algo a ser transcendido, deixado para traz. No lugar
da “prostituta”, a “imaculada percepção” de todas as coisas.
O corpo, por ser pesado e não ser dotado de asas, afoga-se
facilmente na água, e deve evitar não só as águas profundas como os
abismos das montanhas. Cuidado com as pedras instáveis! Não deve
se mover nunca, até estar absolutamente certo de que a próxima pedra
está firmemente assentada no chão, além de qualquer dúvida possível.
Em caso de dúvida, o melhor é ficar parado. O que explica a tendência
dos membros da ordem de engordar desmesuradamente, pois só anda­
vam quando não duvidavam. “Prosseguirei deixando de lado tudo
aquilo sobre que seja possível manter a mais ínfima parcela de dúvida,
como se tivesse descoberto que aquilo é absolutamente falso": assim
se expressava o mais famoso filósofo da ordem. “Arquimedes”, ele
continua, "para deslocar o globo terTestre do seu lugar e colocá-lo num
outro, exigia que um ponto apenas fosse fixo e imóvel; da mesma fonna
eu terei o direito de ter esperança se eu for feliz bastante ao ponto de
descobrir uma coisa apenas que seja certa e indubitável” (Af 77).
Esta forma de pensar produziu efeitos visíveis no estilo do andar.
Bastava observar a fonna de andar das pessoas para se perceber a que
grupo pertenciam. Os moradores da vila iam saltando e dançando,
como crianças, o que era uma expressão de como se sentiam por dentro:
criaturas leves, corpos alados. Os Iluminados, ao contrário, eram
solenes e graves, marchavam com passos firmes, vagarosamente, tes­
tando o chão antes de soltar o corpo. A diferença também podia ser
vista na sua forma de falar. Os moradores da aldeia faziam uso da poesia
e, com o auxílio das metáforas, saltavam sobre abismos imensos de
tempo e espaço: de maçãs a memórias de infância, de campos de trigo
a uma cabeleira loura, da limpeza de peixes na cozinha a rios profundos
de amor, de pão e vinho até a came e o sangue de uma pessoa querida,

65
ausente. Os membros da ordem, ao contrário, passavam de uma palavra
a outra somente depois de haver construído pontes sólidas com o
auxílio de provas e evidências. “Temos de prosseguir com cuidado”,
eles nunca se cansavam de dizer. Foi então que alguns perceberam a
estreita relação que existe entre formas de pensar e formas de andar.
Poesia é dança; prosa é marcha. Não é preciso dizer que aquilo que os
membros da ordem mais temiam eram os tropeços e os tombos - riscos
que se tem de correr se se quer dançar.
Os Iluminados queriam estabelecer um fundamento sólido e
firme. Duas linhas de pesquisa se desenvolveram. A primeira delas, de
inspiração histórica, se propunha a reconstituir os fatos reais da vida
do afogado. A outra, de inspiração hermenêutica, buscava as suas
ipsissima verba - as exatas palavras por ele faladas, e os sentidos que
estavam na sua cabeça ao pronunciá-las.
A primeira linha de investigação produziu uma fantástica massa
de estudos históricos que veio a ser conhecida como “a busca do
afogado histórico”. Este empreendimento é reconhecido como “a
maior façanha" da ordem.
Seu ponto de partida era histórico. O homem morto tinha de ter
vivido num tempo e lugar definidos. Tinha de ser possível, portanto,
pelo uso de métodos histórico-criticos, reconstruir a sua vida e o seu
caráter. O que desejavam - e isto sempre diziam em alemão, por soar
mais científico, wissenschaftlich - era determinar wie es eigentlich
gewesen ist - como a coisa realmente se deu. Queriam saber a verdade
sobre o homem morto a fim de, por um lado, salvá-lo da teia de sonhos
e fantasias em que os moradores da vila o haviam embaraçado por meio
de suas estórias e, por outro, salvar os aldeões de sua própria tolice.
A pesquisa se desenvolveu sobre a pressuposição tácita de que o
passado é o fundamento do presente e de que o presente é inteligível
somente como uma conseqüência do passado.
Esta posição científica, como se pode ver facilmente, está em
conflito com a teoria não articulada dos moradores da vila. Para eles o
começo do tempo não era o passado mas o presente. A maçã que como
não pode ser explicada por suas sementes. Ela é uma realidade em si
mesma. Não preciso conhecer a semente a fim de gozar a maçã. Uma
flor não é o esterco onde ela cresceu. Para eles, conhecer o afogado
morto era conhecer o benefício que ele lhes trazia, no presente. O
amante que deseja conhecer o passado da pessoa amada para, só depois,
se certificar do seu amor, na verdade não sabe o que é o amor. Eles
tinham, assim, uma maneira curiosa de compreender o tempo. Em
oposição à conhecida ordem cronológica dos eventos, na qual o passa­
do vem antes do presente, eles afirmavam que o passado vem a existir
como resultado de uma “reverberação” do presente. O passado que

66
mora no meu corpo é uma “variação" de um tema que se encontra vivo,
no presente. O passado é nada mais que o presente experimentado como
saudade. E eles explicavam suas histórias como uma ressurreição de
um passado morto, pelo poder da experiência presente de sonhar. “Mas
isto não é real”, contestavam os membros da ordem. “A sua realidade
é atestada pelo fato de que ele está presente em nós”, os moradores da
vila replicavam. A prova do pudim está em comê-lo...
É claro que isto não é verdade do tempo histórico. Os membros
da ordem, em cotiseqüência disto, e em hannonia com a sua filosofia,
proibiram que se contassem histórias para os seus filhos, pois que elas
são entidades do mundo dos sonhos. Ao invés de histórias, passaram a
ensinar-lhes a história...
Com a passagem do tempo muitos eruditos ficaram tão absorvi­
dos nos seus estudos do passado que o passado, em si mesmo, se tomou
na finalidade de suas vidas. E então uma curiosa variação no seu estilo
processional de andar pode ser observado, para o espanto de todos:
alguns começaram a andar para traz. Parece que foi diante deste
espetáculo grotesco que Nietzsche escreveu no seu diário, como nota
de viagem: “Pela investigação das origens podemos nos transfonnar
em caranguejos. O historiador olha para traz: eventualmente ele tam­
bém começa a crer ao contrário” (PN 470).
As suas investigações determinaram precisamente onde o afoga­
do havia vivido, numa cidadezinha no outro lado do mar. Ali eles
encontraram muitos documentos que vieram a ser usados na sua tarefa
de reconstrução histórica.
Mas aqui os pesquisadores se dividiram. Alguns se satisfizeram
com os testemunhos registrados nos documentos, e acreditavam que o
que diziam era verdadeiro. Afirmavam que tais documentos eram
narrativas dignas de crédito e que neles se encontravam descrições
literais de wie es eigentlich gewesen ist. Passaram a ser conhecidos por
sua constante repetição do slogan “está escrito”. “Está escrito”: este
fato significava que suas pesquisas haviam chegado ao fim. Haviam
encontrado o fundamento que procuravam. Um outro grupo, entretan­
to, era mais cético. Eles haviam desenvolvido a “arte da desconfiança"
e pensavam que a mesma coisa que havia ocorrido na sua vilazinha
podería ter ocorrido também no lugar onde o afogado havia vivido.
Suspeitavam que muito do que estava escrito era também um produto
de reverie. Sendo este o caso, nem mesmo aquelas escrituras eram
dignas de confiança; elas não podiam ser o firme fundamento que
procuravam. Assim, decidiram-se a cavar mais fundo, a fim de encon­
trar, além dos mitos, dos fragmentos poéticos e dos boatos, aquilo que
havia realmente acontecido. Partilhavam, com Paul Veyne, a opinião
de que os registros históricos são um produto de “intrigas”, pois que
estão inevitavelmente infectados com os desejos e sonhos dos que os

67
escreveram (CEH 44). Mesmo aquelas escrituras não eram espelhos
dignos de confiança. Mas os seus métodos crítico-históricos, assim
afirmavam, tinham formas de burlar esta rede de intrigas a fim de
chegar até à verdade dos fatos. Estes pesquisadores, que se denomi­
navam “científicos”, faziam troça aberta dos seus colegas, por causa
de sua ingenuidade: não percebiam que haviam simplesmente trocado
as histórias de uma vila pelas histórias de uma outra. Mas o fato é que,
quaisquer que fossem as suas diferenças metodológicas, todos eles
eram movidos pela mesma busca: procuravam os fundamentos histó­
ricos. Eram todos fundamentalistas.
Mas, como foi observado, havia uma outra linha de investigação
na busca do afogado histórico. Tudo o que tinham era um cadáver, e
eles sabiam que ele estava coberto de signos. Mas estes signos estavam
escritos numa linguagem que ninguém entendia, a linguagem do silên­
cio.
Os moradores do vilarejo contavam histórias sobre ele, e isto lhes
bastava. Se tais histórias os transformavam em criaturas aladas, que
outras provas deveriam exigir? Já fizemos referência ao seu principio
epistemológico fundamental: conhecer o morto é conhecer os seus
benefícios. O wie es eigentlich gewesen ist era, para eles, totalmente
destituído de sentido, face à sua experiência presente. O critério último
de verdade não era um evento histórico, um passado perdido, mas a
ressurreição dos mortos, no presente.
Os “Iluminados”, entretanto, argumentavam que tais histórias
não passavam de sonhos. Não podiam ser verdadeiras. Assim, pergun­
tavam-se sobre os reais sentidos que estavam gravados no corpo do
morto, naqueles signos incompreensíveis.
“Quais haviam sido as suas ipsissima verba - as palavras que
haviam saído de sua boca?
“Quando ele falava, o que é que queria dizer?”
As palavras não bastavam. Palavras são peixes escorregadios,
criaturas cobertas de névoa que invocam muitos sentidos diferentes ao
mesmo tempo. As palavras são como o morto: um enigma a ser
decifrado, trevas a serem iluminadas...
O objetivo da interpretação é trazer a luz onde se encontra a
escuridão, trocar sentidos equívocos por sentidos unívocos, trans­
formar poesia em prosa.
As palavras não podiam ser o fundamento sólido que procura­
vam. Além da Babel de palavras, a compreensão científica que só se
atinge com o auxílio de “idéias claras e distintas”. Não as palavras, que
são filhas do corpo, mas as idéias, que são criaturas da mente pura.

68
Assim, com armadilhas e gaiolas em suas mãos, embrenharam-se
no passado, através do labirinto de palavras, a fim de capturar os
sentidos verdadeiros.
Trabalharam por muitos anos. A ciência exige pa-ciência. Final­
mente concluíram que haviam atingido o seu objetivo. Estavam prontos
a voltar ao vilarejo, para contar a verdade sobre o afogado.
O sol acabara de se pôr, quando chegaram.
As primeiras estrelas já podiam ser vistas, e a lua cheia aparecia
sobre o horizonte. Os moradores da vila haviam se reunido na praia,
como era seu costume, suas faces iluminadas pela fogueira em tomo
da qual se assentavam. Contavam histórias e o universo inteiro se
enchia com a ausência do morto. As crianças ouviam as palavras dos
seus pais:
“Muito tempo atrás, quando esta aldeia estava morta, o mar nos
trouxe uma dádiva, o corpo de um homem morto..."
Mas repentinamente suas histórias foram interrompidas pelo
barulho e pelas vozes de pessoas que se aproximavam. Elas tinham
lâmpadas em suas máos direitas e pássaros engaiolados nas suas mãos
esquerdas...
“Encontramos a verdade, sabemos a verdade sobre o afogado”,
elas gritavam triunfantemente.
“Por favor, contem-nos suas histórias”, os moradores da vila
disseram aos recém-chegados.
Todos ficaram em silêncio e sorriam, quando os Iluminados
começaram a anunciar a verdade. Mas eles não contaram histórias.
Abriram livros grossos, tratados, comentários, confissões - os resulta­
dos cristalizados do seu trabalho.
Diz-se que, à medida que falavam, as estrelas começaram a ficar
embaçadas até que desapareceram, e nuvens escuras cobriram a lua. O
mar ficou silencioso de repente e a brisa quente se transformou num
vento frio.
Quando, finalmente, terminaram de contar a verdade da história
e da interpretação, os moradores da vila voltaram para as suas casas.
E, por mais que se esforçassem, não conseguiram se lembrar das
histórias que usavam contar. E todos eles dormiram sonos sem sonhos.
Quanto aos membros da ordem, depois de tantos anos de árdua
investigação cientifica, tiveram a primeira noite de sono tranqüilo,
também sem sonhos. Sua missão estava terminada. Finalmente haviam
dito a verdade.
E esta segunda versão da história termina dizendo que a aldeia
voltou a ser o que sempre tinha sido, antes de haver recebido a dádiva
do mar...

69
Capítulo V

PALAVRAS BOAS
DE SE COMER

O tentador se aproximou dele e lhe disse:


“Se tu és o Filho de Deus, ordena
que estas pedras se transformem em pães”.
Jesus respondeu: “Está escrito:
‘O homem não viverá só de pão,
mas de cada palavra que sai da boca de Deus’”.

(Mateus 4,2)

Eu fui ao anjo e lhe pedi que me desse o livrinho.


E ele me disse: “Toma-o e come-o”.

(Apocalipse 10,10)

Eu sonho com um poema


Cujas palavras sumarentas escorram
Como polpa de um fruto maduro em tua boca,
Um poema que te mate de amor,
Antes mesmo que tu lhe saibas o misterioso sentido:
Basta provares o seu gosto...

Mário Quintana
p alavras que ressuscitam os mortos: as duas histórias sobre o vilarejo
são variações sobre este leitmotiv. Palavras de um tipo especial, que
têm o poder de penetrar na carne, fazer amor com ela e engravidá-la.
Palavras que são feitas com a mesma substância que o corpo, e que não
são reflexos impotentes dentro do espelho...
Este é o único assunto de que trata a teologia. Teologia é um
“jogo de contas de vidro” cujo tema é o casamento da Palavra com a
came, um poema sem fim sobre o mistério da encarnação. As palavras
e a came fazem amor, e assim nasce o corpo...
Palavra e came,
sem separação,
sem confusão,
e, não obstante,
um único corpo.
A história bíblica se diz acontecida há muito tempo, numa terra
distante. Mas já sabemos que as histórias têm poder porque nelas o
tempo passado e o espaço distante são metáforas do aqui e do agora.
Elas nunca aconteceram para que possam acontecer sempre, em todos
os lugares. A madrasta da Branca de Neve sou eu, a Bela Adormecida
sou eu. Édipo sou eu, Narciso sou eu. Histórias não são janelas. Elas
são espelhos. A história da encarnação é a minha própria história, meu
passado esquecido, meu futuro escondido. Cristologia é antropologia.
O mistério de Deus é o mistério dos nossos próprios corpos.
Mas nós não a entendemos, e ficamos a perguntar, como a
menininha:
“Aconteceu mesmo?” Olhamos no espelho e pensamos que se
trata de uma janela. E assim nos equivocamos acerca do lugar onde a
Palavra e a came fazem amor...
Alguns acham que eles fazem amor sob a luz do sol de meio dia.
E se põem a procurar palavras luminosas, onde não há sombras.
“Quando soubermos com precisão, quando produzirmos a ciência deste
evento portentoso, então seremos ressuscitados”. Pensam que os olhos
são as entradas do corpo, e que é através deles que o corpo é engravi­
dado. O seu alvo supremo é a “visão beatífica de Deus”. E acendem as
luzes porque, sem elas, os olhos ficam impotentes.

72
Mas todos os amantes sabem que muita luz não faz bem ao amor.
O amor exige um pouco de obscuridade. Talvez porque a luz seja uma
criatura que só se move na superfície das coisas. Ela toca a coisa e volta
como reflexo. A luz é impotente para penetrar. Mas o amor exige
profundidade, penetração, algo que a luz não pode fazer. O corpo, na
verdade, se esconde de muita luz. Ele tem medo da visibilidade com­
pleta. Quando o homem e a mulher perceberam que estavam nus
trataram de se proteger com as folhas da figueira. A came não faz amor
com a luz...
Talvez porque a primeira Palavra do corpo tenha nascido num
lugar onde não havia luz. Ela nasceu na boca. Na verdade, esta Palavra
já estava na boca muito antes que a boca pudesse dizer qualquer
palavra.
A boca é o lugar de comer antes de ser o lugar de falar. O comer
vem antes do falar. Nossa Palavra original é uma irmã gêmea da
comida. Quando Ludwig Feuerbach, um profissional das palavras,
disse que “somos o que comemos” (man ist was man isst), ele estava
indicando o lugar onde a Palavra e a came fazem amor. “Como,
portanto sou". O ato de comer vem antes do ato de falar. E a fala, através
de nossas vidas inteiras, é uma forma de comer.
Somos o que comemos... O recém-nascido, muito embora seja
apenas um infans - que em latim significa um corpo mudo, anterior ao
nascimento da palavra - já sabe o que o filósofo queria dizer. A criança
sabe a sabedoria do comer. É na boca faminta que a primeira “lição”
sem palavras sobre a vida é dada, uma lição que acontece antes de
qualquer palavra, e que será o princípio de todas as palavras. Todas as
palavras a serem escritas no futuro serão variações sobre o tema da
fome, ainda que pareçam totalmente esquecidas deste momento inau­
gural. Falamos porque temos fome. Creio que Fernando Pessoa, que
disse que “pensar é estar doente dos olhos", concordaria comigo
quando digo que “falar é estar doente do corpo, é estar com fome”.
Palavras são substitutos para a comida que não temos. Mallarmé, que
sonhava escrever um livro com uma palavra só, invejaria esta criança
que silenciosamente suga o seio de sua mãe. Ela está mergulhada num
poema sem palavras. Um intérprete de sonhos poderia lhe ter dito que
o que ele desejava era retomar à condição de criança a fim de testemu­
nhar o nascimento da primeira palavra.
A boca do infans já sabe a metafísica fundamental, a realidade
não é feita de “pensamento" e “matéria”, como nos foi ensinado. A
realidade é feita de “fome" e de um “obscuro objeto do desejo” que a
satisfará. Mesmo antes de haver tocado o seio da mãe a boca suga o
vazio, confiante de que tal objeto existe.

73
Fome e comida,
o vazio e a plenitude,
desejo e satisfação...
E Agostinho acrescentaria:
o coração inquieto e Deus...
A boca que suga sabe que a vida não é uma posse sua. Ela tem
de vir de fora. Dádiva. Graça. Seus movimentos rítmicos, sugando o
vazio - o primeiro poema - são uma oração, a oração original: “Venha
o seio...”
A boca aprende, então, uma segunda lição: que a vida e o prazer
estão unidos no mesmo lugar. O seio não é apenas uma rede de canais
por onde o leite sai. Não é só um meio para a vida. O seio é um fim em
si mesmo, um objeto de deleite. A criança suga o seio e goza a
felicidade...
Comer é viver;
comer é prazer.
Este é o nosso sonho original, a utopia original, o programa
original do “princípio do prazer”: a unidade entre a vida e o prazer.
Todos os outros sonhos, individuais e sociais, são variações sobre este
tema.
A boca aprende então uma terceira lição: o mundo externo está
dividido em coisas que são boas para serem comidas, e coisas que não
são boas para serem comidas: coisas para serem in corporadas e coisas
que devem ficar de fora: comida e nào-comida. O bom e o ruim, a ética
primordial do corpo.
Somos o que comemos. Alexander Schmemann, o teólogo orto­
doxo russo, diz o seguinte:
“Muito antes de Feuerbach a mesma definição do homem havia
sido dada pela Bíblia. Na história bíblica da criação o homem é
descrito como um ser faminto, e o mundo inteiro como a sua
comida. O homem tem de comer a fim de viver. Ele tem de
colocar o mundo inteiro dentro do seu corpo e transformá-lo em
si mesmo, em carne e sangue. Na verdade, ele é aquilo que come,
e o mundo inteiro é apresentado como um banquete para o
homem. E esta imagem do banquete permanece, através de toda
a Bíblia, como a imagem central da vida. É a imagem da vida na
sua criação e também no seu fim e realização: “que comais e
bebais na minha mesa no meu reino” (FLW 1).

74
A primeira Palavra aparece quando o paraíso é perdido, como
expressão de saudade e desejo. É um arco-íris que lançamos como
ponte sobre coisas etemamente separadas. Ela nomeia o vazio. Quando
a criança, depois de haver experimentado a felicidade original, sente o
retomo da fome, na ausência do seio, ela faz fantasias sobre este
obscuro objeto do seu desejo. O corpo coloca uma imagem no lugar da
comida. E assim a fome se toma suportável por causa desta palavra,
uma palavra boa para se comer.
Jesus diz ao Tentador que ele podia muito bem suportar o
sofrimento da fome porque possuía palavras-comida nas suas provi­
sões. E o anjo, no livro do Apocalipse, diz ao vidente que ele deveria
não ler, não entender, mas comer o pequeno livro. Palavras e comida
são feitas com a mesma substância. Elas nascem da mesma mãe, a
fome. E se é verdade que “no princípio era a Palavra”, é preciso que se
diga que esta palavra foi dita por causa da fome. Deus é fome, Deus é
amor: é a mesma coisa. Estas são formas metafóricas de apontar para
o mesmo objeto do desejo, que tem de se tomar um com o nosso corpo.
A palavra original nasceu na escuridão. Os olhos da criança
estavam fechados. A proximidade toma os olhos desnecessários. Se o
objeto está muito próximo dos olhos, a imagem fica borrada. Não se
beija com olhos abertos. Os olhos não são necessários neste momento
de felicidade. O símbolo original mora na escuridão.
Os símbolos nascidos dos olhos habitam na distância e na sepa­
ração.
Os símbolos nascidos da boca exprimem posse e união.
Não é por acidente que a experiência suprema do deleite que dois
corpos têm um no outro, o ato sexual, tenha também o nome de
“comer”.
Mas o paraíso foi perdido. Deixamos de ser a criança... E apren­
demos então uma outra lição: o mundo lá fora não é um seio. É inútil
chorar. Nenhuma mãe virá em nosso socorro. Nossa boca está aberta,
ela tem fome. Mas o mundo não presta para ser comido. Ele é duro,
cru, amargo, azedo... Mas, da mesma forma como aconteceu com o
recém-nascido, o corpo não esqueceu. “Aquilo que a memória ama é
eterno”, diz Adélia Prado. A Palavra original permanece escondida e
viva nas profundezas da carne. Como Freud o colocou, nosso programa
de vida original e inesquecível foi estabelecido pelo “princípio do
prazer” e estamos destinados a sonhar, etemamente, com o retomo de
nossa primeira experiência de comer, quando a fome e o seio estavam
misticamente unidos. O paraíso deve ser reencontrado, a boca deve
achar o lugar de onde transbordam a vida e o prazer. Se a realidade é

75
dura, crua, amarga e azeda, algo deve ser feito para que ela se trans­
forme em comida. Não basta que saibamos como as coisas são: elas
devem ser transformadas. Marx entendeu o problema e indicou a
solução: “os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias formas;
a questão, entretanto, é transformá-lo”.
A experiência do recém-nascido era mágica. Bastava um grito
para que o seio aparecesse, ex nihilo. Mas agora o seio nos foi roubado
e nenhum grito será capaz de repetir a mágica.
Mas nós descobrimos uma forma de sair deste dualismo que
etemamente separa o desejo do seu obscuro objeto. Misturamos o fogo
do desejo com a realidade e assim se inventou a cozinha. Cozinhar é a
operação alquímica por meio da qual o cru, pela magia do fogo, é
transformado em comida... Os cozinheiros tomam o lugar dos filóso­
fos...
Os membros da ordem monástica não sabiam coisa alguma sobre
a cozinha. Eles pensavam que o corpo é movido pelos olhos. E ficavam
dizendo “vejo, logo existo”. Eram cientistas e professores e moravam
nas salas de aula. Os moradores do vilarejo, ao contrário, sabiam que
“somos o que comemos”, e o seu Ser morava na cozinha. Eram
cozinheiros...
Assim, mesmo correndo o risco de quebrar as regras de etiqueta,
vou passar da sala de aulas para a cozinha, das palavras que são boas
para pensar para as palavras que são boas para comer...
A cozinha é um lugar de transformações. Ali nada tem a permis­
são de permanecer o mesmo. O fogo e os seus aliados estão em ação.
As coisas chegam cruas, como a natureza as produziu. E elas saem
diferentes, de acordo com as exigências do prazer. O duro deve ficar
macio. Cheiros e gostos que dormiam dentro são forçados a sair para
fora. Cozinhar é dar o beijo mágico que acorda os prazeres adormeci­
dos. Alquimia, metamorfose: cozinhar é ajuntar o que a natureza
separou. O espaço é abolido. Sal, alho, pimenta, açúcar, cravo, orégano,
cominho, canela, salsa, tarragão, páprica, manjericào, urucum, hortelã,
alecrim: todos eles são convidados, das terras distantes onde crescem,
a se juntar no festival da cozinha. O doce, o azedo, o amargo e o salgado
são forçados a se unir em combinações inexistentes. Tudo é uma
criação nova, tudo é feito de novo.
O fermento, este silencioso aliado do fogo, faz o seu trabalho sem
barulho. Bebidas de todos os tipos, que a natureza desconhece: vinho,
cerveja, rum, uísque, vodka, sakê, cada um de seu jeito, são líquidos
nos quais o espirito se encontra engarrafado. Aparecem novos gostos
e novos cheiros. E também novas cores e novas formas. Cozinhar é

76
uma arte plástica. Aquilo que é bom para ser comido também deve ser
bom de ser visto. Os olhos ganham uma nova potência. Ligados à boca
e ao nariz, tomam-se capazes de sentir o gosto. Os vermelhos, os
verdes, os amarelos, os marrons, os brancos, os roxos são organizados
em padrões caleidoscópicos. E a água, o óleo e o leite celebram alianças
com o fogo. Mesmo aquelas coisas que parecem ser servidas cruas não
são servidas nunca em sua nudez natural. Tomates, alface, rabanetes,
agrião, repolho, nicula, todos eles têm os seus gostos transformados
pelo gosto, pelo cheiro e pelo toque dos molhos. E as panelas, frigidei­
ras, facas, garfos, colheres, fomos e fogões são todos mediadores nesta
festa, cuja finalidade é a exuberância erótica do corpo. A cozinha
conhece a teologia agostiniana: ali a ordem do uti nunca se esquece de
que ela só existe para produzir o frui:
o propósito do trabalho é a alegria: os seis dias da criação se
realizam quando o paraíso é oferecido como uma dádiva para o
deleite de Deus e dos homens.
Mas a cozinha, sozinha, é morta. Ela necessita de uma alma: o
cozinheiro. O cozinheiro sabe que temos fome. Ele sabe que somos o
que comemos. Também os animais sabem disto. Mas eles não sabem
cozinhar. Desejam pouca coisa: contentam-se com o cru. Eles são seres
da natureza. O cozinheiro sabe que a nossa fome é infinita. A natureza
não nos basta. Nossa fome não é coisa do corpo; é coisa da alma. O
Tentador sugere que Jesus deveria resolver seu problema biológico.
Que ele fosse prático... Depois de quarenta dias de jejum o corpo
precisa de comida. Jesus responde que a sua fome nenhum pão poderia
satisfazer. Ele tinha fome de um pão ausente do qual a única evidência
que possuía era uma Palavra.
O cozinheiro também vive de palavras. Antes de fazer o seu
trabalho ele come palavras. O fogo está sempre aceso e as panelas estão
sempre fervendo na sua imaginação. Seus olhos vêm cores invisíveis,
seu nariz sente cheiros ausentes, sua boca sente o gosto de gostos
inexistentes. E o seu corpo é possuído pela comida que ele ainda não
preparou. Sua imaginação é uma cozinha e um banquete. Ele vive no
futuro. Ele é um ser escatológico. Se fôssemos escrever um livro com
o título de Crítica da razão culinária é certo que o primeiro capítulo
seria dedicado à fome. Mas a fome, sozinha, não bastaria, a menos que
o cozinheiro soubesse os nomes dos nossos desejos.
E ele diz estes nomes. Receitas. Ele dá nomes ao que queremos
comer. Comida gostosa... E então, pelo poder destas palavras, ele
chama, mistura, acrescenta, subtrai, assa, ferve, frita, cozinha. Antes

77
que a comida seja servida na mesa ela é comida nos seus sonhos... Pelo
poder do sonho “ele faz viver aquilo que nâo existe” (RR xi).
Os objetos que desejamos não se encontram prontos, na natureza.
Cozinhar é a arte de tomar real o que é irreal, de tomar presente o que
está ausente: uma metáfora eucaristica.
A cozinha é um espaço definido. Sabemos onde ela está. Mas a
sua alma não mora lá. Ela mora nos sonhos do cozinheiro. A cozinha
é um espaço utópico. Sim, ele deve conhecer... Ele deve conhecer os
poderes do fogo, as propriedades da água, o segredo das transformações
alquímicas, o ritmo do tempo. Se ele não conhecesse a realidade, como
poderia cozinhar? Suas comidas ficariam, para sempre, como sonhos,
dentro da sua cabeça. E não poderíam dar prazer ao corpo. O conheci­
mento da realidade é parte da “Razão Culinária". Mas este conheci­
mento não é um fim em si mesmo. Ele só existe para tomar os sonhos
reais. Zaratustra sabia os segredos da cozinha ao afirmar que
“A Grande Razão é o corpo. E um instrumento do meu corpo é
a minha pequena razão, meu pensamento - um pequeno
instrumento e um brinquedo da minha Grande Razão (PN 146).
O cozinheiro, um ser utópico. Ele trabalha naquele pequeno
espaço por amor a um outro tempo e um outro espaço: aqueles onde
mora o prazer. A cronologia é invertida. O futuro não é o resultado do
presente. É o presente que é engravidado pelo futuro.
Uma refeição é a alma do cozinheiro transformada em comida.
Da mesma forma como é possível interpretar os sonhos, é também
possível fazer uma psicanálise da comida. Cada refeição é uma reve­
lação, os sonhos do cozinheiro oferecidos àqueles que comem: euca­
ristia. E se nos lembrarmos das palavras de Blake, que “o Corpo Eterno
do Homem é a Imaginação”, poderemos concluir que é o corpo do
cozinheiro que é comido. “Comei e bebei, isto é o meu corpo, isto é o
meu sangue”: antropofagia.
Mas algo mais é comido com a comida. Os cozinheiros, via de
regra, não comem o que cozinham. Eles apenas provam. Porque eles
não cozinham para si mesmos; cozinham para outros. A comida é, de
fato, gostosa. Mas os cozinheiros estão à procura de uma alegria maior.
Eles comem algo diferente. Eles comem a alegria que vêem no rosto
dos outros. Naquela alegria se encontra uma declaração de amor
silenciosa. Quando os convidados dizem “Como está gostoso!” eles
estão também dizendo: “Que deliciosos são os sonhos que moram no
corpo do cozinheiro!” O cozinheiro come com os seus olhos...
A comida está sendo preparada no fogão. Pensamentos incomuns
estão sendo cozidos na cabeça. A mente é uma grande cozinha. Pensar

78
é cozinhar: transformar idéias cruas pelo poder do fogo. E aqueles
pensamentos que são pensados na cozinha são diferentes daqueles que
são pensados na sala de aulas. Na sala de aulas os olhos determinam a
etiqueta a ser obedecida. Todas as idéias devem ser claras e distintas.
Os olhos deixam o mundo intocado, virgem, porque eles só funcionam
à distância. Na cozinha se ensina uma metafísica diferente: o mundo
não está ali para ser objeto de contemplação: o mundo deve ser comido;
o cru deve se transformar num banquete. “A grande tristeza da vida
humana, tristeza que começa na infância e continua até a morte, é que
ver e comer são duas operações diferentes. Para ser real é preciso ser
corporal. E ser corporal é ser comido” (LB 169).
O cru só é realidade na ausência do corpo humano, enquanto não
foi tocado pela vara mágica do desejo. No momento em que o corpo se
estabelece como o centro do universo, o cru passa a ser apenas maté­
ria-prima, pura possibilidade, a natureza no seu estado adormecido,
ainda imprópria para ser comida e in corporada, incapaz de fazer amor,
Bela Adormecida, uma entidade desconhecida e estranha. Houve ape­
nas um lugar onde os fogões não eram necessários e a natureza podia
ser comida como ela era: o paraíso. Mas no paraíso também não havia
altares. Altares, como é bem sabido, são lugares onde o fogo queimava
a carne. E Deus se deleitava no “cheiro tranqüilizante das ofertas
queimadas” (Gn 8,20-21). Uma curiosa idéia gosta de brincar comigo:
que Abel ofereceu o cozido e Caim ofereceu o cru...
Os filósofos antigos se perguntavam sobre os “fundamentos” da
realidade, a substância real das coisas, escondida sob o jogo sem fim
das aparências. E alguns chegaram à conclusão de que, em última
instância, a água, a terra, o fogo e o ar eram tudo que existia. Estes eram
os elementos reais. Posso imaginar um filósofo, rigoroso sobre a sua
metafísica, e que, havendo sido convidado para um banquete, cumpri­
mentasse a anfitriã ao se despedir: “A água, o ar, o fogo estavam,
realmente, deliciosos...” Imagino que ele nunca foi convidado de novo.
Ele era uma criatura de sala de aulas que nada sabia sobre a metafísica
da cozinha. Para ele a realidade era o cru. Ele buscava aquilo que existia
no início, antes que a cozinha tivesse realizado suas transformações.
Mas a realidade (tanto o cozinheiro quanto Hegel sabiam disto...) é
aquilo que se encontra no fim. Esta é a sabedoria do corpo, a sabedoria
do desejo: este mundo está destinado a se transformar numa refeição.
E a cozinha é apenas um pequeno lugar sagrado, um altar, onde esta
liturgia é celebrada e esta escatologia é realizada.
O que faz a diferença é que na cozinha um outro elemento, mais
fundamental que a terra, o fogo, o ar e a água, é acrescentado, o
elemento que é a origem de todos os outros: a fome, o desejo. Num

79
outro lugar dissemos que o corpo é uma fina teia de carne tecida em
tomo de um vazio. Ao cozinhar o vazio se toma ativo: fogo. Ele queima
e transforma. E a natureza fica diferente do que ela originalmente era:
fica humana, uma extensão do corpo.
Para que isto aconteça a cozinha tem de ser um lugar de destrui­
ção. As facas são afiadas para cortar. O fogo é aceso para ferver e
queimar. Se é verdade que o ato de cozinhar ajunta aquilo que a
natureza separou, é verdade também que ela separa aquilo que a
natureza ajuntou. O cru deve deixar de existir se uma outra coisa vai
aparecer. É preciso morrer para ressuscitar. O batismo - morrer afoga­
do - vem antes da criação de uma nova vida. Enquanto a sopa ferve na
panela algo está deixando de ser como era a fim de existir sob uma nova
forma: transubstanciação. O homem tinha de estar morto para poder
ser “comido” pelos moradores da vila. “A minha came é, na verdade,
comida, e o meu sangue, bebida. Se não comerdes a minha came e não
beberdes o meu sangue não tereis vida” (João 6,55-56).
Cozinha,
alquimia,
o fogo do fogão e o fogo do desejo transformam o cru numa nova
substância,
e o corpo,
na escuridão onde mora o gosto,
reencontra a felicidade perdida.
Uma nova variação do tema do paraíso,
a criança que suga o seio materno:
a vida e o prazer sendo oferecidos no mesmo lugar...
Dieticistas nada sabem sobre este milagre. Os dieticistas são os
inimigos mortais dos cozinheiros. Para eles a comida é apenas um meio
para a vida. Participei de uma refeição que foi introduzida por uma
longa preleçào feita pelo dieticista que a planejou. Ele falou sobre os
fundamentos da refeição, os elementos fundamentais que ali se encon­
travam, e ele explicou todas as necessidades do corpo para continuar
vivo. Para ele esta era a essência da refeição. E o gosto era apenas um
acidente que se acrescentava, como o açúcar que se mistura com o
remédio amargo. Para o dieticista o corpo pertence á ordem médica. O
cozinheiro, ao contrário, sabe que o corpo pertence à ordem do amor...
Somos o que comemos. Mas não podemos viver só de pão. Os nossos
corpos desejam provar a exuberância erótica da vida...
Cozinhar é um ritual litúrgico. Nele se repete a nossa verdade
original, nossa eterna busca da felicidade: o “princípio do prazer” toma
o “princípio da realidade” nas suas mãos, queima-o no altar, e o seu

80
cheiro e o seu gosto fazem amor com o nosso corpo. Ao invés de
dualismo, dialética. O cru e o fogo não ficam em quartos separados.
São ajuntados num mesmo lugar e uma nova realidade vem a existir.
Sempre que se acende o fogo no fogão o mito sobre nossas origens e
destino é repetido.
O cru é transubstanciado.
Nós somos transubstanciados.
Quando se come, com este ato o poder da cozinha entra também
em nossos corpos. Os discípulos de Emaús relataram que, enquanto
comiam, sentiram um fogo que os queimava por dentro. Os seus olhos
se abriram, e eles conheceram. A visão e o conhecimento são dádivas
do comer. O corpo é ressuscitado através da comida. Esta é a magia do
fogo: ele invoca nossas potências adormecidas de amor, que jazem
escondidas sob as cinzas do esquecimento. A comida entra onde a nossa
exuberância erótica existe em silêncio.
Comer é mais que alimentar-se: tem a ver com a memória.
“Comei e bebei, em memória...” Mas não é do tempo cronológico que
nos lembramos. O passado se foi, para sempre; é um tempo que não
mais existe. Tempo da morte, impotente... Nós nos lembramos somente
daquilo que existe, esquecido, no presente. A lembrança é o acordar
daquilo que dormia, a ressurreição do que estava enterrado. Feuerbach
disse que ao conhecer um objeto nós nos conhecemos e nós mesmos.
Como Narciso, colocamos nas coisas a nossa própria imagem. O objeto
é presença sensível daquilo que está vivo em nós, como ausência. O
gosto da comida é o nosso próprio gosto. O prazer que sentimos em
comer é o prazer que jaz adormecido em nossos próprios corpos. A
comida é o beijo que faz acordar a nossa “Alegria Adormecida”.
O ato de comer nos ensina as lições básicas do amor.
Amar é comer.
O comer existe na dialética do amor e o seu obscuro objeto. Esta
é a primeira lição, aprendida no seio da mãe. A alegria acontece quando
o amor e o seu objeto se encontram. Alegria é re-encontro.
Amar é comer.
Amar é dar-se para ser comido.
Cada comida é um afrodisíaco.
Não se faz amor se não há fome.
A variedade infinita dos nossos prazeres de comer desperta em
nós a variedade infinita da fome. “Bem-aventurados os que têm fome.”
Somente os que têm fome têm o poder para fazer amor. Esta é a magia

81
realizada pela comida: ela erotiza os nossos corpos, acendendo o fogo
do desejo, e através dos nossos sonhos ficamos com mais fome ainda
do que tínhamos antes. Cada refeição é um aperitivo. O nosso desejo
não se satisfaz nunca. Se o nosso desejo se satisfizesse deixaríamos de
ser amantes...
Sábias são as línguas que usam o verbo “comer” para se referir
tanto aos prazeres da mesa quanto aos prazeres da cama. Porque estes
dois prazeres são a mesma coisa: pôr o outro dentro, sentir o seu gosto
bom, mostrar, nos olhos, o prazer que se está tendo; permitir-se ser
colocado dentro do outro, oferecer o cotpo como pão e vinho, gozar a
suprema felicidade de se ver refletido nos olhos do outro como algo
delicioso. Narciso...
Nas línguas latinas as palavras para “conhecimento” e “gosto”
vêm de uma mesma raiz. Sapere, em latim, significa tanto “saber"
quanto “sabor". No jeito antigo de falar se usava dizer: “Isto sabe bem".
Conhecer algo é sentir o seu gosto, algo que acontece na boca. As
coisas, em si mesmas, não podem ser conhecidas. Kant sabia disto,
muito embora ele não pudesse chegar até a cozinha, pois que ele não
confiava no corpo. A realidade não é o cru, as “coisas-em-si-mesmas”.
A realidade é o resultado de uma transformação alquímica realizada
pelo fogo, a comida que entra no corpo. A realidade acontece no
encontro entre a boca e a comida, entre o desejo e o seu obscuro objeto.
Como Buber sugeriu, a coisa não está nem aqui e nem ali: ela se
constitui “entre”. Mas, para isto que acontece “entre” não há nomes. O
prazer não pode ser descrito. Não pode ser colocado dentro de gaiolas
de palavras. Não sobrevive na sala de aulas. O fim da epistemologia...
Epistemologia é um discurso que cresce de um conhecimento que
existe na dor da distância, quando o sujeito e o objeto estão condenados
à separação, somente ligados pelos truques da luz. Mas quando os olhos
estão fechados e não podem ver, e a boca prova a comida, todas as
dúvidas se vão. “Como, portanto sou”. “Provai e vede que o Senhor é
bom” (Salmo 34,8): colocai o Senhor dentro da boca (Deus é comida
para ser comida!) e sabereis que o seu gosto é bom. De novo, uma
violência poética: é com a boca que se vê...
Explicações não são necessárias.
As explicações destruíram o prazer do meu sogro...
As explicações destroem o riso das piadas, a beleza da música, a
alegria do amor.
Depois de uma ex-plicação o que resta é o ex...
“Que é que você tem precisamente em mente?” Esta é a pergunta
clássica que se espera dos filósofos.

82
“Eu não sei o que eu tenho em mente, mas o meu corpo diz-me
precisamente que a comida que está na boca é gostosa...”
O prazer não tem razões. “As sem razões do amor..." dizia
Drummond. Die Rose ist ohne warum. Sie blühet weil sie bliihct... “A
rosa não tem porquês. Ela floresce porque floresce”.
A comida dá prazer magicamente, sem palavras, sem o auxílio
do entendimento, ex opere operato. Os teólogos medievais diziam que
era assim que os sacramentos operavam: pelo simples ato de comer. A
gente come e o corpo é ressuscitado. A alegria que estava lá, sob as
cinzas do esquecimento, renasce do seu túmulo. Um fogo queima por
dentro, o corpo é possuído. Como quando se bebe: até um certo ponto,
nós bebemos. Depois daquele ponto, nós é que somos bebidos. Somos
o que comemos.
O homem morto: o cru.
Mas ele foi cozido no fogo da imaginação dos moradores do
vilarejo.
E eles mesmos foram transformados, ao participar do festival
antropofágico.
O corpo é uma cozinha.
Sem o fogo que queima dentro,
o fogo da fome,
do desejo,
da imaginação, não pode haver a esperança da ressurreição.
Porque somos o que comemos.

83
Capítulo VI

POESIA E MAGIA

A poesia é o absolutamente real.


Este é o cerne da minha filosofia.
Quanto mais poético, mais verdadeiro.
Novalis

A poesia
é também uma irmã tão incompreensível da
magia.
Guimarães Rosa
(“)uero contar uma história: a “Festa de Babette”. Ela foi escrita por
^ I s a k Dinesen (Ladies Home Journal, junho de 1950) e foi trans­
formada num filme maravilhoso.
Uma vilazinha, perdida nas costas da Dinamarca, cercada por
uma grande solidão e por um grande mar. A religião era o centro de
sua vida. Um pastor severo conduzia a todos pelos caminhos que vão
aos céus, aquele em que todos os prazeres da terra têm de ser abando­
nados. As lições eram bem aprendidas e estavam escritas em todos os
lugares: nos seus olhos, nos seus sorrisos, nas suas roupas, na sua
comida. O pastor tinha duas filhas. Lindas! Muitos homens vinham de
longe para vê-las. E se apaixonavam... Mas era inútil. Uma vez foi um
jovem oficial do exército. Mas o pai disse “Não! Ela é a minha mão
direita no trabalho de Deus. Como deixá-la ir?” Depois, um cantor de
ópera, vindo de Paris, que desejava casar-se com a segunda. Mas o pai
de novo disse “Não! Ela é a minha mão esquerda no trabalho de Deus.
Como deixá-la ir?”
Muitos anos se passaram. E o tempo fez o seu trabalho. O pastor
morreu. As pessoas envelheceram, e também as duas irmãs. Mas o
vilarejo continuou o mesmo. Os mesmos olhos, as mesmas vozes, as
mesmas roupas, os mesmos sorrisos, a mesma comida. Não, algo
mudou. Ficaram amargos, mais do que já eram. E se respirava ressen­
timento no ar.
Era noite e chovia. O vento do mar soprava forte na rua vazia.
Uma sombra se move no escuro. Uma mulher. Estranha, de um outro
lugar... Ela bate à porta da vellia casa, onde as duas irmãs viviam.
“Quem poderia ser, a esta hora da noite?” uma delas pergunta. Entrea-
briram a porta. A mulher lhes entregou uma carta. Vinha da França.
Assinada pelo cantor. Houve uma revolução. O marido e o filho
daquela mulher haviam sido mortos. Sua própria vida estava em jogo.
Ela precisava se esconder em algum lugar. Ele se lembrara daquela
vilazinha. Será que as duas irmãs poderíam acolhê-la? Ela era uma boa
cozinheira...
“Mas nós somos pobres”, elas disseram. “Não podemos pagar-
lhe um salário!”
“Trabalharei de graça”, disse Babette. Este era o seu nome.

86
E Babette ficou. Aprendeu a cozinhar as coisas que aii se comia:
pào, peixe, leite e as suas possíveis combinações. E por quatorze anos
ela trabalhou fielmente.
Mas ela não havia se esquecido do seu pais. Havia um elo de
ligação, um elo quase impossível... Uma amiga, todo ano, lhe comprava
um bilhete de loteria...
Chegou o tempo para a celebração do centenário da morte do
velho pastor. A comunidade pensou numa refeição frugal, como teria
sido do seu agrado. No céu apenas coisas muito simples eram servidas.
E aconteceu que, num dia - Babette trabalhava na cozinha - o
correio chegou com uma carta para ela. As duas irmãs vieram trazê-la,
e ali ficaram, olhando, enquanto Babette abria o envelope. Depois de
alguns segundos ela lhes mostrou o que a carta trouxera: um cheque.
Ela havia ganho o grande prêmio. E numa fração de segundo as irmãs
compreenderam que haviam perdido Babette. Elas estavam sozinhas,
de novo...
“Eu nunca lhes pedi nada”, Babette falou. “Este será meu primei­
ro pedido. Quero que vocês me deixem preparar a celebração do
centenário da morte do seu pai...”
E como não se deve negar o primeiro e último pedido a alguém
que partiria em breve, elas concordaram.
Durante todos aqueles anos de comida celestial Babette não havia
se esquecido dos seus sonhos. Parece que durante todos aqueles qua­
torze anos ela continuou comendo um tipo de comida que não podia
ser encontrado na vila: uma comida ausente, só real nos seus sonhos.
Um fogo diferente tinha estado aceso dentro do seu corpo. E agora o
tempo havia chegado: os seus sonhos se transformariam em realidade.
As matérias-primas teriam de ser trazidas de longe.
E, para isto, ela viajou para uma cidade distante, para fazer suas
encomendas.
Agora, era possível: por acidente, por graça. Ela tinha dinheiro,
ela tinha poder... No passado ela tinha dito: “Assim são as coisas...”
Mas agora ela dizia: “Assim quero que sejam...” Seus sonhos podiam
ser transformados em realidade.
A vila inteira parou para ver, maravilhada, a procissão que
passava pelas ruas com as coisas que estavam vindo de terras desco­
nhecidas: caixas de todos os tipos, codomizes engaioladas, e até mesmo
uma enorme tartaruga... E todos ficaram sabendo que iriam comer
coisas que nunca haviam comido...

87
As irmãs ficaram assustadas. Será que esta refeição seria o oposto
de tudo aquilo em que acreditavam? Naquela noite uma delas teve um
pesadelo em que a tartaruga, com sua enorme cabeça oscilante, se
transfigurava em um símbolo fálico, e tiveram então a certeza: Babette
era uma feiticeira que preparava uma orgia diabólica na qual todos
perderíam as suas almas. As irmãs reuniram a comunidade e comuni­
caram o seu temor. Mas logo uma solução foi encontrada. Eles iriam
ao jantar e comeríam de tudo. Mas - assim juraram - não sentiríam o
gosto de coisa alguma. E assim enganariam o diabo...
O grande dia finalmente chegou. O fogo queimava na cozinha
como nunca havia queimado. Babette se movimentava como uma
feiticeira, sabendo o que fazia. Sua face brilhava, reluzindo ao fogo...
A mesa foi posta. Toalha de linho branco, talheres importados,
castiçais de prata, taças de cristal. Os convidados começaram a chegar.
Entre eles, uma surpresa: o oficial do exército dos outros tempos, agora
um general, que por acidente ali estava numa visita á velha tia. Ele era
o único a ignorar o juramento. E o banquete começou.
Os vinhos eram seguidos de todo tipo de comidas finas. O general
não escondia o seu espanto prazeroso. Os outros convivas respondiam
falando sobre a tempestade de neve que se aproximava ou recordando
as palavras do seu líder espiritual morto. Finalmente, o mais refinado
dos pratos: as codomizes...
“Impossível", disse o general. “Este prato é servido apenas num
restaurante de Paris. Lembro-me bem... Eu tinha sido convidado...
Quando este prato foi servido meu anfitrião, um general francês,
observou:
‘Já estive em duelos muitas vezes por mulheres bonitas. Mas
desde que eu conheci a mulher que inventou este prato, compreendí
que havia encontrado a mulher dos meus sonhos. Ela sabe a magia de
produzir a felicidade através da comida... Sim, é o mesmo prato. E até
me recordo do seu nome: caillesau sarcophage..'”
Mas, imperceptivelmente, enquanto comiam, uma metamorfose
ocorria. O prazer da comida era mais forte que as idéias que eles tinham
em suas cabeças. E vagarosamente, silenciosamente, “ex opere opera
to", uma transformação alquímica acontecia nos seus corpos. Seus
olhos, suas vozes, seus gestos: ficaram cheios de ternura e alegria, e a
beleza adormecida que vivia esquecida dentro deles acordou.
E retomaram à infância. Ao deixar a casa deram-se as mãos e
cantaram cantigas de muito tempo atrás...

88
As duas irmãs não podiam acreditar no milagre que acontecia
diante dos seus olhos. Correram para a cozinha, para agradecer, e para
dizer a Babette que sentiríam muito a sua falta.
“Sentir a minha falta? Mas eu não vou a lugar algum...”
“Mas agora você está rica!” disseram as irmãs.
“Não”, disse Babette. “Gastei tudo o que ganhei nesta festa. Na
verdade, o dinheiro que gastei seria o preço de uma refeição para treze
hóspedes, no restaurante onde eu cozinhava, em Paris...”
Pobre Babette... Por quatorze anos ela cozinhara apenas misturas
de peixe, farinha e leite. Ela vivera com os moradores da aldeia. E até
ficara parecida com eles. Havia uma diferença apenas, invisível: ela
não se esquecera. “Aquilo que a memória ama é eterno." No seu
silêncio moravam memórias de alegrias passadas que todos os outros
desconheciam. Seria inútil falar. “Nunca mostres o teu poema a um
náo-poeta”, diz um ditado Zen. Como a Gata Borralheira, no meio das
cinzas, ela sonhava sonhos que os outros não podiam sonhar. E eram
estes sonhos que, para ela, eram a realidade: velhas receitas, fórmulas
para a produção do prazer. Não vivemos somente de pão, mas de
palavras que preservam a memória de uma felicidade perdida. Babette
não desejava nada de novo ou de diferente. Ela desejava o velho... Na
verdade, é impossível desejar o novo. Como desejar algo que não se
conheceu antes? Para se desejar algo é preciso que se tenha tido, no
passado, a alegria da sua posse: o jardim, o rosto, a melodia, o cheiro...
O desejo cresce sobre o vazio da perda. O amor deseja repetir, recuperar
no futuro, um tempo perdido. Amor é uma “recherche du temps
perdu ”.
Por quatorze anos Babette comeu os seus sonhos misturados com
saudade. Até que um dia, por pura graça, o milagre aconteceu...
Mas os nossos sonhos são muito grandes. A cozinha é um
pequeno lugar, lugar por demais pequeno para a transformação do
universo inteiro em comida. Nossa grande tristeza é que não podemos
comer tudo o que vemos... A cozinha e o prazer que aí se cozinha são
apenas metáforas para uma grande transformação pelo fogo, a ressur­
reição dos mortos: apocalipse: este é o banquete que desejamos.
Babette podia ir até a cidade grande ali encomendar as coisas de que
necessitava, mesmo que tivessem de ser trazidas de países estrangeiros.
Mas qual é o lugar onde iremos fazer as nossas encomendas?
Somos o que comemos, é verdade. Mas esta não é a verdade
inteira. Somos também a comida que queremos comer e não podemos.
Somos seres famintos, etemamente. Esta é a razão por que a comida
era misturada com ervas amargas, na refeição pascal... E nós mistura

89
mos nosso alimento com palavras: sacramentos: algo está faltando.
Cada refeição não é mais que um aperitivo.
E o nosso corpo, esta pequena cozinha, se enche com comidas
que nunca serão preparadas nas cozinhas de fora: sonhos... O corpo é
uma cozinha utópica... Sonhos: aquilo que desejamos mas nunca
poderemos comer. E o corpo se toma no lugar fantástico onde uma
“orgia bacanal” é cozida no fogo do desejo.
Somos o que comemos.
Comemos o que não existe: sonhos.
Somos os sonhos que comemos.
Sonhos são boa comida...
Somos transformados pelos nossos sonhos.
Somos transformados pelo que não existe.
“Que somos nós sem o socorro daquilo que não existe?”
Um sonho não é um argumento rigoroso.
Um sonho não é uma declaração verdadeira sobre a realidade de
fora.
Não é uma explicação convincente e nem uma cadeia de idéias
claras e distintas.
Argumentos não têm gosto,
explicações não têm cheiro,
idéias claras e distintas não têm cores...
Os sonhos não são feitos com idéias.
Sonhos se fazem com imagens.
Imagens são a presença sensível do objeto perdido do desejo,
oferecida ao corpo. Elas invocam a sua exuberância erótica: cores,
odores, gostos, toques. E a carne faz amor com o ausente e experimenta
as suas delícias, escatologicamente.
Todos os amantes sabem o que quero dizer.
A raposa sorria ao ver os campos de trigo...
Os discípulos se lembravam de um rosto ao partir o pão e beber
o vinho...
O amante chora e sorri ao ver uma fotografia...
Em sua explicação da magia Malinowski diz que a pessoa,
recusando-se a aceitar a perda de um objeto de amor, coloca-o, pela
imaginação, dentro do próprio corpo. Por meio deste artifício tal objeto
de amor ganha vida, encama-se, toma posse da carne e do sangue (MSR
79-90). O corpo se transforma numa entidade escatológica, pois no seu
presente o futuro se toma vivo. O corpo junta aquilo que o tempo e o
espaço separaram: no inconsciente não há nem tempo e nem espaço.
Aquilo que estava morto e perdido volta de novo à vida.

90
Os poetas têm reconhecido desde sempre o seu parentesco com
os mágicos. “A poesia é metamorfose, transformação, operação alquí-
mica”, diz Octávio Paz, e “por esta razão ela vive muito próxima da
magia e da religião” {AL 137). E Guimarães Rosa, o mágico supremo
da literatura brasileira, vê o ato de escrever como um processo alquí-
mico e o escritor como um feiticeiro. “Para se ser um feiticeiro da
palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração humano, é
preciso provir do sertão”. E ele se refere à poesia como “uma irmã tão
incompreensível da magia” {LV 13,15).
O escândalo da psicanálise se deve ao seu parentesco com a
feitiçaria. Ela se inicia com o reconhecimento de que o sintoma, a ferida
aberta no corpo do paciente, não foi produzida por coisa alguma física.
O doente foi enfeitiçado por palavras, que agora tomaram posse do seu
corpo: demônios. Neurose e psicose são formas de feitiçaria, magia
negra. E a cura vem através de magia. “Palavras e magia foram, no
princípio, a mesma coisa”, diz Freud {GIP 450). O psicanalista ouve
em silêncio a fun de aprender os nomes que mantêm o corpo enfeiti­
çado. “Qual é o teu nome?”, ele pergunta. Porque sabe que quando os
seus nomes são ouvidos, os demônios fogem. Nas palavras de Fair-
baim, “o psicoterapista é o verdadeiro sucessor do exorcista. A sua
missão não é perdoar pecados mas expulsar demônios” {EPP 56).
Parafraseando Wittgenstein podemos dizer que o analista está envol­
vido numa “batalha contra o feitiço" que certas palavras lançaram sobre
nós.
Os poetas sabem o segredo da magia. Eles lidam com as palavras
como entidades mágicas. Emily Dickinson dá a melhor descrição que
conheço do poder mágico das palavras poéticas.
“Se eu leio um livro e ele faz o meu corpo tão frio que nenhum
fogo pode me aquecer, sei que aquilo é poesia. Se eu sinto, Fisicamente,
como se o topo da minha cabeça tivesse sido arrancado, eu sei que
aquilo é poesia. Estas são as únicas formas pelas quais eu identifico o
poético. Haverá alguma outra?” (FH x).
A poesia é a linguagem daquilo que não pode ser dito. Ela diz
sem dizer: metáforas... Aquilo que o poema diz não está presente nas
suas palavras. Na verdade, o poeta não sabe o que ele está dizendo.
Como as mãos vazias em concha: elas podem conter a água no seu
vazio, mas nada sabem sobre a água. Poesia é dizer sem dizer, parado­
xo.
Tudo isto está dito neste maravilhoso poema de Fernando Pessoa:
“Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto

91
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Como que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
Com que o teu canto
Vinha até nós.
Ouvi-te e ouvia-a
No mesmo tempo
E diferentes
Juntas a cantar.
E a melodia
Que não havia,
Se agora a lembro,
Faz-me chorar.
Foi tua voz
Encantamento
Que, sem querer,
Nesse momento
Vago acordou
Um ser qualquer
Alheio a nós
Que nos falou?
Não sei! Não cantes!
Deixa-me ouvir
Qual o silêncio
Que há a seguir
A tu cantares!
Ah, nada, nada!
Sio os pesares
De ter ouvido,
De ter querido
Ouvir para além
Do que é o sentido
Que uma voz tem.
Que anjo, ao ergueres
A tua voz,
Sem o saberes
Veio baixar
Sobre esta terra
Onde a alma erra
E com suas asas
Soprou as brasas
De ignoto lar?
Não cantes mais!
Quero o silêncio
Para dormir
Qualquer memória
Da voz ouvida,
Desentendida,
Que foi perdida
Por eu a ouvir...” (PFP 202)
Duas melodias...
Uma delas eu ouço: ela vem com tuas palavras, com a tua voz...
A outra, que não é a tua, vem nos interstícios das tuas palavras,
moram no teu silêncio. Ouvi as duas ao mesmo tempo. Mas não diziam
a mesma coisa: eram diferentes. E o que é extraordinário é que não foi
o teu cantar, mas a melodia que não havia que me fez chorar. Confesso
não saber o que ela diz. Tentei mesmo ir além do sentido da tua voz. O
nome do cantor da melodia que não estava lá? Não sei. Não sou eu.
Não és tu. Um Estranho, com certeza um Anjo que, vindo de um outro
mundo, “com suas asas soprou as brasas de ignoto lar”. “Vemos o que
já tínhamos visto”. “Parece que recordamos, voltamos a ouvir, regres­
samos... {AL 211). Deste exílio onde a alma erra voltamos ao nosso lar,
vemos de novo a nossa verdade, nossa origem, nosso destino.
A verdade aparece quando tropeçamos, quando a superfície
gelada do lago se racha e ouvimos uma outra voz: sonhamos...
Somos salvos pelo poder do sonho. Sonhar é o poder que ressus­
cita os mortos.
O afogado: uma palavra sem sentido, escrita em língua estranha,
silenciosa. Era ele o Anjo que soprou as brasas?
Também Babette nada tinha a dizer. Ela só preparou a refeição,
e quando comeram o feitiço foi quebrado: e brincaram como crianças.
O tempo perdido voltou...
Assim a Eucaristia: um espaço vazio e silencioso, perante o
Ausente, como o morto, dádiva do mar: e sonhamos...
Não é a presença que faz o milagre. O milagre acontece pelo
poder da ausência.

93
Deus é a ausência que salva. Como Riobaldo o disse, “Deus
existe mesmo quando não há” (G5I^49). E o nosso tema se faz de novo
ouvir:
“Que somos nós sem o poder do que não existe?”
Não é teologia.
A teologia deseja ser ciência, um discurso sem interstícios.
Ela deseja ter os seus pássaros em gaiolas.
Ao invés disto, Teo-poética,
gaiolas vazias,
palavras que nascem do vazio, que se dizem perante o vazio, o
mar profundo (nossos olhos olham para cima esperando a luz que
se fratura através das águas inquietas...), bosques fundos (se
tivermos paciência poderemos ouvir o canto do pássaro
encantado que mora lá e que, no entanto, jamais foi visto por
qualquer pessoa... catedral silenciosa onde nossos pensamentos
ficam leves e saltam sobre abismos...
Os exegetas e hermeneutas estào perdidos. O seu trabalho é
descobrir o sentido que uma voz tem. Eles ouvem, eles lêem e dizem:
“Este é o sentido das palavras!” Mas agora, a se dar crédito ao poeta,
“há uma outra voz” que mora nos “interstícios”, os silêncios do texto.
Será que exegetas e hermeneutas podem produzir uma ciência a
partir do vazio, daquilo que nâo é dito, do silêncio? Os moradores
fizeram isto: produziram um discurso a partir do vazio. Mas ele não era
ciência; era sonho... Nào, definitivamente, náo! Sobre exegetas e
hermeneutas pesa um interdito: eles nào podem “ouvir para além do
que é o sentido que uma voz tem”. Eles não têm permissão para falar
sobre “a melodia que nào havia”. Os membros da ordem ficaram a uma
distância crítica do afogado. “Será que este homem realmente canta
todas estas melodias?" O seu penoso trabalho científico, histórico e
hermenêutico tinha um propósito apenas: determinar, com precisào, o
sentido daquele texto em língua estranha. Nada mais. Nada menos.
Ciência. O sentido que o texto tinha. As vozes do silêncio não podem
ser objeto de conhecimento científico. Elas são os (não) objetos da
poesia...
“Que é que o autor tinha em mente?”
“Que é que ele desejava dizer?”
O escritor falhou. Quis dizer mas nào disse. Ao invés de idéias
claras e distintas, imagens obscuras, cobertas de névoa.

94
A exegese e a hermenêutica vêm em auxílio do poeta. Desejam
salvá-lo de sua perturbação lingüística. Elas trarão luz para a obscuri­
dade. O sentido será preservado e a confusão acabará.
Um texto novo e luminoso será produzido.
A poesia será transformada em prosa.
O Ego acenderá suas luzes nas cavernas do Id.
Poesia: uma única palavra grávida com sentidos imprevisíveis.
Nos seus interstícios moram palavras não ditas...
Prosa: muitas palavras para dizer um “único sentido, sólido e
estável”.
Poesia: uma única palavra se abre para horizontes infinitos.
Prosa: muitas palavras se afunilam para produzir um sentido
preciso e único.
Na poesia não se sabe aquilo sobre que se fala.
A prosa é o oposto: quem fala sabe sobre o que está falando.
Prosa é conhecimento.
E poesia, o que será?
“Um poema deveria ser palpável
e mudo
como um fruto redondo”,
diz Archibald McLeish.
“Um poema deveria ser sem palavras
como o vôo dos pássaros.
Um poema não deveria significar
mas ser...”
Com o que E.E. Cummings concorda:
“A poesia é ser e não fazer" (SNL 24).
“A imagem poética”, diz Bachelard, “não necessita de nenhum
conhecimento. Ela não é o eco de um passado. É antes o inverso: pela
explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos...” (DS
xx vi).
Um poema é como uma catedral gótica.
Qual é o seu sentido? Que é que o arquiteto tinha em mente?
Na verdade é possível se fazer um estudo psicológico, biográfico
e histórico, a fim de se encontrar respostas para estas perguntas. Foi o
que os membros da ordem fizeram.
Mas tais questões pouco têm a ver com o poder mágico da
catedral. Poderes mágicos nào moram no passado. Eles pertencem ao

95
presente, onde a vida está acontecendo. A catedral: seus espaços vastos
e silenciosos, a luz que se fratura através dos vidros iridescentes, a
escuridão que brinca com a dança das velas e dá movimento às pedras...
A catedral é como o homem morto: está cheia de palavras não faladas,
cheia de mundos inesperados... Nela vive um Estranho - não o arquiteto
e os seus sentidos - e quando o Estranho fala, ouve-se o repicar de sinos
longínquos dentro da alma: e o corpo se estremece... A catedral de
pedra: será ela uma metáfora de uma catedral que mora na alma? Ou
será o contrário? Não sei - e a memória de um lar ignoto começa a
brilhar. O meu conhecimento me falha naquele momento, não preciso
dele - estou possuído pelo Vento que sopra no Vazio.
“Que é que você queria dizer?”, o intérprete pergunta ao poeta.
E o poeta responde:
“Eu queria dizer o que disse.”
Não há formas de se melhorar um poema.
Nenhuma de suas palavras pode ser trocada por um sinônimo.
Como acontece com a catedral, sua obscuridade não pode ser
trocada pela luz, seu silêncio não pode ser trocado por palavras.
“O que eu disse era precisamente o que eu queria dizer pois foi
isto que eu vi”, diz o poeta. Eu vi a luz que se fraturava através das
águas inquietas. Sou um ser submarino. Meus olhos são, na verdade,
dois baços peixes nas funduras do mar, cercados de silêncio e escuri­
dão. E também ouvi a voz dos bosques belos, sombrios e fundos, que
me seduzia... Por favor, não esvazie ornara fim de ver melhor. Sou um
ser submarino, meus olhos são peixes... Se ornar se esvaziar, morrerei.
E não traga suas lanternas para dentro dos bosques, a fim de espantar
a noite que neles mora, pois se isto acontecer deixarão de cantar...
Os teólogos medievais, especialmente os místicos, sabiam muito
bem da natureza poética do Nome Sagrado. Scotus Erigena o comparou
às penas iridescentes do pavão: uma única pena, muitas cores que
brilham e se misturam. Cada palavra está cheia de vôos que escapam
ao nosso controle. Na prosa nós temos a palavra: pássaros engaiolados.
Na poesia os pássaros explodem a gaiola que os prendem, e voam
levando-nos em suas asas.
Mas é precisamente esta liberdade da palavra poética que horro­
riza o poder. O Grande Inquisidor condenou o Verbo à morte a fim de
manter suas muitas palavras na prisão. Os Inquisidores sempre conde­
nam a Palavra ao silêncio...
A teologia protestante nasceu quando o poder mágico-poético da
Palavra foi redescoberto e democratizado. Cada indivíduo deveria ler

96
as escrituras da mesma forma como se lê um poema, na solidão, sem
vozes intermediárias de interpretação. Os hermeneutas tinham de ficar
em silêncio para que a voz do Estranho pudesse ser ouvida: o testemu­
nho interno do Espírito Santo. Acreditava-se que as palavras esqueci
das escritas em nossa came e a Palavra, vinda do passado, haveríam de
se encontrar e fazer amor - e o milagre aconteceria. Se, por pura graça,
o Vento soprasse e a melodia que não estava lá fosse ouvida, os mortos
ressuscitariam.
Mas logo as exigências do poder perceberam que a liberdade do
Vento é perigosa, porque ele sopra onde quer e não onde nós queremos.
E foi assim que os pássaros selvagens foram colocados em gaiolas de
palavras:
imagens se transformaram em dogmas,
metáforas tomaram a forma de doutrinas,
a poesia foi re-escrita como “confissões”,
o silêncio grávido diante do Vazio se tomou exigências de
compreensão, e o mistério perturbador da catedral gótica deu lugar à
luminosidade do templo calvinista: uma sala de aulas. Mas numa sala
de aulas não há silêncio, exceto aquele que se exige para que a voz de
um outro seja ouvida, o sermão. Em oposição à liberdade selvagem da
palavra poética, o Protestantismo inaugurou um programa hermenêu­
tico que tem por objetivo preencher todos os espaços vazios onde a voz
do Estranho pode ser ouvida. Nas palavras de Lutero, a tarefa da
interpretação é determinar o unum, simplicem, solidum et constantem
sensum (LB 192), o “sentido único, simples, sólido e constante" da
escritura. O que está em jogo é “a redução do sentido a um único
sentido” (LB 214), a transformação da poesia em prosa: esta é a gênese
da teologia científica.
Uma vez terminada esta obra, uma vez preenchidos todos os
vazios com o conhecimento, descobrimos que a Palavra perdeu o seu
poder para ressuscitar os mortos.
O corpo não é movido por aquilo que é dito e conhecido mas por
aquilo que permanece mal dito e silencioso. A Palavra e a came fazem
amor nos interstícios, ali onde moram os nossos sonhos. Voltam-me as
palavras de Bachelard: “não se persuade senão sugerindo sonhos
fundamentais, senão restituindo aos pensamentos suas avenidas de
sonhos” (DS xxiv). Como A. Govinda o exprimiu, no seu estudo sobre
o misticismo tibetano, as pessoas se convertem “através daquilo que
existe entre as palavras e flui diretamente da presença do santo: o som
mântrico inaudível que emana do coração” (FTM 226).
Como aconteceu no vilarejo...

97
Capítulo VII

BELEZA E POLÍTICA

“Conseille, Ô mon rêve,


que faire?"

Mallarmé

“O que era uma luz interior


se transforma num fogo consumidor
que se derrama para fora.”

K. Marx
e Marx predisseram o fim da religião. Mas por razões opostas.
Freud conhecia os segredos do coração humano e tinha conheci­
mento do tamanho dos nossos desejos: são grandes demais. Tão gran­
des que, para serem realizados, teríamos de ser deuses. Mas não somos
deuses. Somos seres humanos e nossas mãos são fracas. Elas não têm
poder suficiente para criar os objetos dos nossos desejos. Somos
Babette, nos seus quatorze anos de saudade. O sonho do banquete
continuava vivo na sua memória. Mas a cozinha estava vazia. Não lhe
restavam alternativas: tinha de comer sopa de peixe. Esta modesta
refeição era tudo o que a realidade lhe permitia. Seu Paraíso estava
perdido, para sempre... Ali ela aprendia a dura lição do estoicismo
freudiano. Porque, numa paráfrase invertida de Marx, o que psicanálise
faz é “arrancar as flores imaginárias da corrente de sorte que aprenda­
mos a conviver com ela sem fantasias e consolos, pois não podemos
quebrá-la a fim de colher a flor viva”. A flor viva só vive na fantasia.
A realidade é a corrente, mestre que nos ensina a sabedoria de abando­
nar os desejos impossíveis. O cru permanecerá cru. Banquete algum
será servido. A religião, sonho do banquete impossível, está condenada
a desaparecer.
Marx falava também em nome da realidade (Palavra escorre­
gadia, esta, deveria ser sempre usada entre aspas. Todos pretendem
falar em seu nome...). Acontece que, para Marx, a realidade não era a
corrente, mas as mãos que fazem e quebram a corrente. A realidade
não é aquilo que herdamos do passado, o mundo objetivo no qual nos
descobrimos “lançados”, mas aquilo que as mãos podem fazer. Ele era
um otimista que acreditava que os corações, as cabeças e as mãos,
juntos, seriam capazes de roubar o Jardim das Delícias do céu dos
deuses onde as fantasias religiosas o haviam exilado, para plantá-lo,
jardim real, no nosso mundo. As correntes seriam quebradas. Não
teríamos mais necessidade de nenhuma “fantasia ou consolo” porque,
por meio da política, haveriamos de colher a flor viva. E assim,
reganharíamos o Paraíso. A felicidade voltaria. E a religião simples­
mente murcharia e secaria. Os que moram no Paraíso não precisam
sonhar com o Paraíso. Pois não é isto que é a religião? O “suspiro da
criatura oprimida” que erra, exilada, por este “vale de lágrimas”, longe,
muito longe de casa? (OR 42). Quando a pessoa amada está distante o
amante escreve cartas apaixonadas. Mas quando ela retoma, as cartas

100
se tomam desnecessárias. Ao invés das cartas, o abraço de amor... A
felicidade põe um fim em todas as fantasias transcendentes. Agora
somos Babette, depois de ser atingida pela graça e haver ganho na
loteria: o banquete sai dos sonhos e vira realidade. Ao invés de sonhar,
comer... O Paraíso chega, a religião se vai, pois juntos eles não podem
ficar. O que está em perfeito acordo com os textos sagrados: no Paraíso
não há altares, na Cidade Santa não há templos...
Marx, diferente de Freud, era otimista. A psicanálise acredita que
o nosso desejo é uma ferida que não pode ser curada. Nosso desejo tem
suas raízes numa tragédia além da história, onde nossas mãos não
podem ir. Coisa que se parece com o mito do pecado original: nossos
corpos nascem com um Vazio interior que nada pode preencher. Marx,
ao contrário, acreditava que nossa tragédia tinha nascido no tempo. Ela
é um acidente histórico e não uma necessidade metafísica. Se o nosso
desejo foi exilado do Paraíso é porque nós o exilamos. Somos culpados
deste ato e a nossa história passada é a historia desta tragédia. Mas
porque somos culpados existe experança. A mão que fez a ferida tem
poder para curá-la. A história é aquilo que fizemos por meio dos nossos
atos - a práxis - e tudo o que fizemos temos o poder para desfazer.
Práxis: o que fazemos. Esta é a chave para o Paraíso. Mas para
que o Paraíso retome os nossos desejos não podem ser maiores que o
poder de nossas mãos. Os sonhos nascem de mãos impotentes. Quando
as mãos são impotentes elas sonham... Desta forma o obscuro mistério
do coração se resolve no conhecimento claro e científico daquilo que
nossas mãos podem fazer. Os sonhos não precisam ser sonhados
(Adeus, socialistas utópicos!...) e nem interpretados (Adeus, psicaná­
lise!...) porque eles não são o lugar onde o nosso enigma se revela. Os
sonhos nada mais são que imagens invertidas da nossa impotência,
dentro de um espelho. Por que ficar olhando o espelho se o original nos
é diretamente acessível, através da investigação científica? Nas pala­
vras do próprio Marx, “todos os mistérios que fizeram a teoria desviar-
se na direção do misticismo encontram a sua solução racional na práxis
humana e na compreensão desta práxis (OR 71).
Assim, da mesma forma como a lógica matemática se constituiu
na chave para decifrar os mistérios do mundo físico, a lógica do poder
se transformou na chave para o conhecimento do mundo humano. Não
há mistérios: é o poder que nos faz agir e não o amor.
A descrição que Marx faz da política é correta. É assim que ela
acontece. É um fato que as razões do poder são mais fortes que as razões
do amor e, em última instância, são elas que dão as cartas. Como
Berdyaev o disse de forma poética, “o político e o sargento, o banqueiro

101
e o advogado, são mais fortes que o poeta e o filósofo, o profeta e o
santo” (SF 67).
Os políticos, na verdade, como seus irmãos gêmeos, os homens
de negócios, nunca falam sobre amor. Se o fazem, podemos estar certos
de que estão falando sobre alguma outra coisa. O amor não é nunca a
fonte e o objetivo do que fazem. O amor é sempre um meio para o
poder. A isca de amor tem sempre um anzol de aço escondido no seu
interior.
O fim da religião? Não. O advento de uma nova religião. O poder
se transforma no novo messias, na medida em que ele promete realizar,
pela força, aquilo que o outro messias, fraco, não podia realizar. Não é
mais necessário falar sobre o amor pois sabe-se que o poder irá produzir
aquilo com que o amor sonha. Os limites das mãos definem os limites
do coração. O coração é reduzido às mãos. Só desejamos aquilo que as
mãos podem produzir. Resolve-se, assim, o enigma do amor. Se o
mistério da religião é o mistério do desejo, e se o mistério do desejo se
revela como poder, o poder se transforma na nova religião. Coisa que
Camus percebeu com clareza ao dizer que “Marx foi o único a com­
preender que uma religião que não abraça a transcendência deve ser
chamada pelo nome de política” (R 196). Mas, como na parábola da
casa vazia (Lucas 11,24), o espaço vazio deixado por um demônio
solitário é logo tomado por sete demônios, piores que o primeiro. O
lugar do desejo é tomado pela ilusão do poder: a ilusão de que o poder
é capaz de produzir o que o coração deseja.
Os profetas denunciaram esta ilusão e lhe deram o nome de
idolatria. Um ídolo é um objeto feito pelas mãos do homem (práxis) ao
qual se atribui o poder para realizar os desejos do coração.
Os teólogos a denominaram de “justificação pelas obras”: a
tentativa de resolver o “Ser” pelo “Fazer”.
E as histórias míticas a descreveram como “possessão demonía­
ca". No capítulo 5 do evangelho de Lucas se conta de um homem
possuído pelo poder. Tão forte ele era que arrebentava todas as corren­
tes com que o amarravam. Mas tanto poder de nada lhe adiantava. Vivia
entre os mortos, entre os sepulcros, pelas montanhas, e se cortava com
pedras afiadas e uivava como animal, noites a dentro. O Diabo cumprira
o trato: dera poder mas tomara, como pagamento, a capacidade de
amar. Assim, sem memória de qualquer objeto de amor, sem qualquer
visão de beleza, sem desejo algum de prazer, o corpo se tomara moradia
do Demônio. A existência do Demônio é questão que mereceu a
atenção dos teólogos, não sendo poucos os que negaram. Prefiro ouvir
a sabedoria do Riobaldo que afirma que “o demônio não precisa de

102
existir para haver - a gente sabendo que ele nào existe, aí é que ele
toma conta de tudo" (GSK 49). Se nào o encontraram, acho que foi
porque não o procuraram no lugar certo. Ele gosta mesmoé da política,
palco preferido para suas aparições, pois não há nenhum outro lugar
onde o amor seja tão esquecido. Quem leu Maquiavel e Hobbes - ou
quem simplesmente lê os jornais - tem de, pelo menos, suspeitar.
Era isto que assombrava Santo Agostinho quando ele se pergun­
tava sobre a natureza do Estado:
“Bandos de ladrões: que são eles senão pequenos reinos? Pois o
bando é formado por homens; é governado pela autoridade de um
príncipe; é mantido coeso por um contrato social; e os produtos dos
saques são divididos segundo leis aceitas por todos. Se, pela inércia de
homens fracos, este mal cresce ao ponto de se apropriar de lugares,
estabelecer moradas, apossar-se de cidades e subjugar povos, ele passa
a ter o nome de reino, porque agora ele realmente o é, não por dele ter
sido eliminada a cobiça, mas porque a ela foi acrescentada a impuni­
dade” (CG 113).
Ao assim definir o bando de ladrões triunfante Agostinho afirma
que a essência do Estado é a impunidade que ele goza para perpetrar a
injustiça. Em outras palavras, no Estado o poder constitui a sua própria
razão, sem referência alguma ao amor. É curioso que Max Weber tenha
quase repetido as mesmas palavras do santo para definir o Estado. Diz
ele: “O Estado é uma comunidade humana que (com sucesso) reclama
para si o monopólio do uso legítimo do uso da força física sobre um
dado território.” É evidente que a palavra “legitimo”, neste contexto,
não significa subordinação a nenhuma norma superior de justiça, pois
o Estado se proclama como “a única fonte do direito de usar a violên­
cia” Dentro dos limites do Estado o poder é a razão última,
não se subordinando a nada. Como disse Trotsky, “todo Estado é
fundado sobre a força”.
Não é de se espantar, portanto, que Nietzsche o tivesse chamado
de “o mais frio de todos os monstros”. “Vejam como o Estado os engana
- os muitos - e como ele os devora, mastiga, rumina. ‘Sobre a terra
nada existe maior do que eu: eu sou o dedo legislador de Deus’ - assim
ruge o monstro. Não são apenas os de vista curta e orelhas compridas
que caem de joelhos. Também a vós, homens de inteligência, ele
segreda suas mentiras tenebrosas. Vós vos cansastes de lutar, e agora
o vosso cansaço também serve o novo ídolo. Com heróis e homens de
honra ele se cerca, o novo ídolo! Ele vos dará tudo se o adorardes, este
novo ídolo: e é assim que ele compra o esplendor das vossas virtudes
e o brilho orgulhoso do vosso olhar. E ele os usaria como uma isca para
apanhar os muitos... Na verdade, para isto se inventou um artifício

103
infernal, um cavalo da morte, fulgurando com as filigranas das honras
divinas. Na verdade, inventou-se um ‘morrer pelos muitos’, e que se
louva como vida: na verdade, um grande serviço a todos os pregadores
da morte. Estado é o lugar onde todos bebem veneno. Estado, ali onde
o vagaroso suicídio de todos é chamado de vida” (PN 162).
Nicolas Berdyaev tem uma visão parecida:
“O fenômeno sinistro e horrível da vida humana que hoje recebe
o nome de estado totalitário não é, com certeza, um fenômeno
temporário e acidental de uma ceita época. Ele é a revelação da
natureza verdadeira do estado. Aquilo que tem sido considerado
imoral para uma pessoa é considerado totalmente moral para o
estado. O estado tem feito sempre uso de meios maus -
espionagem, mentira, violência, assassinato. A este respeito as
diferenças têm sido apenas de grau. Tais métodos, sem dúvida
alguma, têm sido sempre justificados em função de um fim bom
e sublime que se tem em vista. Por causa da majestade do estado
e o prestigio da autoridade eles têm torturado homens, mulheres
e nações inteiras. O estado tem respeitado os direitos humanos
menos que qualquer pessoa. A política tem sido sempre uma
expressão da escravidão dos homens” (SF 140,142,143,149).
Não, não estou dizendo que a política é feita por homens maus.
Se assim fosse, bastaria trocar os maus pelos bons, e a política estaria
salva! Estou dizendo que o poder tem uma lógica toda sua, na qual não
penetram seja as razões da ordem da verdade, seja as razões da ordem
da beleza, seja as razões da ordem da bondade. Não são os homens que
jogam o jogo do poder; é o poder que joga com os homens.
O fim da religião não vem sozinho. O fim da religião é o fim do
sonhar. Pois religião é apenas isto: os objetos de amor de que não nos
esquecemos, e que continuam a visitar os nossos corpos sob a forma
de sonhos. Cada sonho é um testemunho de que o Paraíso ainda não
chegou. E se o Paraíso ainda não chegou, o Estado aparece em toda a
sua nudez: um ídolo de pés de barro, incapaz de cumprir suas promes­
sas. No mundo descrito por Orwell em 1984 sonhar era crime, e um
homem foi preso porque, ao dormir, falou o seu sonho. E, fazendo isto,
confessou que sua alma voava longe. Como o escravo na lavra de ouro,
cantado pela Cecília Meireles:
“o corpo naquelas águas,
a alma por longes terras...”
Um tempo em que os homens não mais serão capazes de sonhar...
Nietzsche predisse esta possibilidade com horror, e falou sobre um
tempo em que “o homem não mais disparará a flecha do seu desejo

104
para além do homem, e a corda do seu arco terá se esquecido de como
vibrar! O tempo está chegando quando o homem náo mais será capaz
de dará luz uma estrela!” (PN 129).
Karl Mannheim, um cientista social que sabia que a alma do
mundo humano é o sonho, vislumbrou também com grande tristeza a
aproximação deste dia. Estas são as suas palavras:
“É possível que no futuro - num mundo em que nada de novo
acontece” (como o vilarejo, antes da dádiva do mar; ou a aldeia, antes
da festa de Babette...), no qual tudo estará terminado e cada momento
será a repetição do passado - virá a existir uma condição em que o
pensamento será totalmente esvaziado de conteúdos utópicos. (Não
haverá cozinha. Tudo será comido cru...) Mas esta condição, na qual
todos os elementos transcendentes da realidade são eliminados, conduz
a um objetivismo que, em última análise, implica a dissolução da
vontade humana: os seres humanos serão transformados em coisas.
Estaríamos, assim, diante do maior paradoxo possível: o homem,
havendo atingido o mais alto grau de domínio racional da existência,
vê-se esvaziado de todos os ideais, e se transforma num joguete à mercê
dos impulsos. E assim, ao fim de um desenvolvimento longo, tortuoso
mas heróico, com o abandono das utopias o homem perde a vontade
de moldar a história e, com isto, a capacidade de compreendê-la” (IU
244). A política deixará de ser a arte de tomar presente o futuro e se
transformará na ciência da administração da ordem existente. Seremos
então, nas palavras de Elliot, um “povo oco”.
Mas este, precisamente, é o negócio do Demônio. No seu comen­
tário à Epístola aos Romanos Barth escreveu:
“Não é a ordem existente um reforço dos homens contra Deus,
uma proteção do curso normal deste mundo contra a grande
ambigüidade e uma defesa contra a pressuposição que a ameaça
por todos os lados? Não é a ordem humana simplesmente uma
conspiração dos Muitos contra o Único? Governantes! Quem são'
os governantes senão homens? O que são eles senão homens
hipocritamente envolvidos na tarefa de colocar as coisas em
ordem, a fim de se protegerem contra o enigma de suas próprias
existências? Os homens não têm direito algum de possuir direito
objetivo contra outros homens. Existirá, em algum lugar, uma
autoridade que não se baseie, em última instância, sobre a tirania?
(ER 478).
Os poetas estão entre os poucos que percebem a farça. Esta é a
razão por que o poder tem tentado sempre colocá-los a seu serviço. “Os
partidos políticos modernos”, diz Octávio Paz, “transformam o poeta

105
em propagandista e assim o degradam. O propagandista dissemina nas
‘massas* as concepções dos hierarcas. Sua tarefa consiste em transmitir
certas diretivas, de cima para baixo” (AL 50). Parece que esta foi uma
das razões para o suicídio de Maiakovski. O partido exigia que sua
poesia fosse usada para inculcar a ideologia, mas a sua alma estava
comprometida com a beleza. Compreende-se, portanto, que Guimarães
Rosa tivesse os políticos em tão baixa conta. Numa entrevista de janeiro
de 1965 ele diz: "Os políticos estão sempre falando em lógica, razão,
realidade e outras coisas do gênero e ao mesmo tempo vão praticando
os atos mais irracionais que se possa imaginar. Ao contrário dos
‘legítimos’ políticos, acredito no homem e lhe desejo um futuro. Sou
escritor e penso em eternidades. O político pensa apenas em minutos.
Eu penso na ressurreição do homem” (LV 10). Ele, escritor, sonha. O
político, mergulhado no momento, perdeu a capacidade de voar.
Mas esta acusação e denúncia apresenta uma fresta por onde se
escoa um pouco de luz. Talvez haja um tipo diferente de política. E
Guimarães Rosa considera mesmo a possibilidade de que, talvez, ele
mesmo esteja envolvido em fazer esta outra política. Uma política
estranha que pretende transformar o mundo através da renovação da
língua. Por oposição aos políticos profissionais que somente entendem
a linguagem do poder, os poetas acreditam no poder da linguagem e
sabem que é nela que começa o mundo. Sem se envergonhar da poética
sagrada Guimarães Rosa afirma: "Deus era a Palavra e a Palavra estava
com Deus. Este é um problema demasiado sério para ser largado nas
mãos de uns poucos ignorantes... Somente renovando a língua é que se
pode renovar o mundo. O que chamamos hoje linguagem corrente é
um monstro morto. A língua serve para expressar idéias, mas a lingua­
gem corrente expressa apenas clichês e não idéias; por isto está morta
e o que está morto não pode engendrar idéias” (LV 14).
O poeta segue a direção oposta àquela da política normal. A
política normal, a despeito da mascarada democrática e dos partidos
que pretendem deter o monopólio da fala do povo, começa sempre de
cima e deseja se impor sobre os indivíduos. Os ditadores falam sempre
em nome dos interesses do povo. Mas o poeta “opera de baixo para
cima: da linguagem de sua comunidade para a do poema. Em seguida,
a obra regressa às suas fontes e se toma objeto de comunhão” (AL 50).
A política normal se constrói pelo uso da violência (“legítima”!), seja
sob sua pornográfica exibição como cassetete e revólver, seja sob a
forma dissimulada de coerção psicológica, imagem e clichê. O poeta,
ao contrário, apenas fala, pois ele crê que é na linguagem que se
encontram as fontes da transformação do mundo. Para ele, como o disse
Octávio Paz, a poesia “é conhecimento, salvação, abandono. Operação

106
capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por
natureza...” (AL 15). A teoria política implícita na prática poética se
resume na curta afirmação de Eugen Rosenstock-Huessy: “A Regene­
ração da Linguagem não é um nome inadequado para o verdadeiro
processo da revolução” (OoR 739).
A idéia de uma política que nasça da poesia pode parecer nada
mais que uma extravagância romântica. Porque a política tem a ver com
multidões enquanto que a experiência poética é dolorosamente solitá­
ria. “As obras de arte são de uma solidão infinita", observa Rilke. Elas
não podem ser produzidas democraticamente. Comissões e grupos de
trabalho não escrevem nem poemas e nem sonatas. A beleza é algo que
cresce solitariamente dentro do corpo do artista, como uma gravidez.
Por oposição aos políticos, que não podem sobreviver sem os partidos
e o eleitorado, sendo, por exigência de sua condição, prisioneiros da
opinião pública, o artista vive num mundo cujo centro é o seu próprio
corpo. “O país estritamente ilimitado de cada artista é ele mesmo”, diz
E. E. Cummings. Pode ser que ele fale de universos e eternidades. Mas
a verdade é que ele está falando de entidades que moram na sua alma,
criaturas do seu desejo. Pois ele, poeta, nada mais é que um espelho
pensante do universo onde tudo cabe (FP 144). Por isto Álvaro de
Campos podia afirmar haver tirado todas as estrelas do seu bolso, pois
nele se refletiam todas as forças do universo.
Mas o artista sabe que isto é apenas um sonho. Ele é o único a
ver e a sentir: está rodeado por uma grande solidão. Por isto que a beleza
vem sempre misturada com uma gota de tristeza.
Enquanto escrevo ouço a sonata Hammerklavier, de Beethoven.
E, a despeito de sua esmagadora beleza, sinto a tristeza se movendo
dentro de mim. •
“A despeito de” ou “por causa de”?
Because lhe sky is blue it makes me cry (porque o céu é azul ele
me faz chorar) - palavras de uma das mais lindas canções dos Beatles.
Então é fácil não chorar: basta não olhar para o céu azul; basta desligar
o toca-discos e não mais ouvir a sonata...
Mas não há como escapar: se alguém deseja a alegria suprema
da beleza, deve estar preparado para chorar. A tristeza não é uma intrusa
no reino da beleza. Ela é antes o ar sem o qual a beleza morre. Os artistas
são sempre tristes. Vinícius de Moraes confessa que ele sempre tinha
vontade de chorar diante da beleza e Alberto Caeiro se diz “triste como
um pôr-de-sol".
A beleza é triste porque a beleza é nostalgia. A alma retoma ao
lar perdido. E a volta ao “nunca mais” é sempre triste. O pôr-de-sol, o

107
céu azul, a sonata: eles estão ali. Mas não os possuímos. Escorregadia
como o pôr-de-sol, o céu azul e a sonata, a beleza nos toca e logo nos
deixa, deixando no seu lugar o Vazio. Acho que os escritores sagrados
deviam estar tendo uma experiência de beleza quando compreenderam
que o nome de Deus não pode ser dito: porque ele se vai por entre os
dedos, como a água do rio, ou o vento que passa. Nome impossível,
que nada significa, a não ser a dor de uma mutilação...
E, no entanto, queremos tudo de novo. Queremos chorar. Haverá
algum prazer no choro? Freud sugeriu que a força fundamental que faz
alma e corpo se moverem é o “princípio do prazer”. Eu gostaria de
sugerir que talvez seja o “princípio da beleza”... Desejamos retomar ao
belo por causa da (triste) história de amor que ele conta. Este é o lugar
da nossa verdade: o perdido lar do nosso Ser...
“Oh! Deus! Que não haja tanta beleza!”, exclama Rafael Cansi-
nos-Assés, o poeta judeu-espanhol. A beleza nos faz lembrar que somos
exilados. O objeto da nossa nostalgia ou ainda não chegou ou já partiu.
Vivemos no intervalo da ausência. Somos seres utópicos, sem nenhum
lugar sólido onde pisar. A beleza arranca nossas raízes do sólido solo
do cotidiano, o “principio da realidade”, o lugar onde se desenrola a
política normal. Estamos soltos no ar... Drummond faz uma maravi­
lhosa descrição da presença de Cecília Meireles com palavras que
dizem precisamente o que estou tentando dizer, de sorte que ela aparece
não apenas como indivíduo, mas como uma metáfora da própria
condição poética:
“... Não me parecia criatura inquestionavelmente real; por mais
que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por
gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela
não estava onde nós a víamos, estava sem estar, para criar uma ilusão
fascinante, que nos compensasse de saber incapturável a sua natureza.
Distância, exílio e viagem transpareciam no sorriso benevolente com
que aceitava participar do jogo de boas maneiras da convivência, e era
um sorriso de tamanha beleza, iluminado por um verde tão exemplar
de olhos e uma voz de tão pura melodia, que mais confirmava, pela
eficácia do sortilégio, a irrealidade do indivíduo. Por onde erraria a
verdadeira Cecília, que, respondendo à indagação de um curioso,
admitiu ser seu principal defeito “uma certa ausência do mundo"! Do
mundo como teatro em que cada espectador se sente impelido a tomar
parte frenética no espetáculo, sim; não, porém, do mundo de essências,
em que a vida é mais intensa porque se desenvolve em estado puro,
sem atritos, liberta das contradições da existência. Estado em que a
sabedoria e a beleza se integram e se dissolvem na perfeição da paz”
{VRE 8).

108
A beleza é a marca que o amor deixa na matéria, in absentia
“arrumar o quarto
para o filho que já morreu” (Chico Buarque).
A aranha: lembro-me dela.
O seu corpo descansa na teia que ela teceu.
O corpo se sente seguro, e com boas razões: os fios da teia estão
Firmemente amarrados nos galhos da árvore. Ela podería ser um polí­
tico realista e competente.
Os artistas não têm esta sorte. É certo que constroem teias. Mas
elas não se amarram a nada que seja sólido. Suas teias, se prestarmos
bastante atenção, se parecem mais com asas que crescem do seu corpo.
Flutuam. São “nadadores num meio etemamente flutuante” (OoR 750).
A bejeza: cheia de amor
e vazia de poder.
As mãos do artista estão vazias.
A única coisa que ele possui: símbolos.
É com eles que se constrói a beleza.
Mas isto não basta - pela simples razão de que eles, os símbolos,
marcam o lugar da ausência.
“Símbolos? Estou farto de símbolos”, diz Álvaro de Campos.
Mas dizem-me que tudo é símbolo.
Que símbolos? Sonhos...
Não quero símbolos...
Queria - pobre figura de miséria e desamparo -
Que o namorado voltasse para a costureira... (PAC 68).
O poema é um pássaro sem asas que deseja voar,
uma flecha que chama pelo arco.
Assim são os nossos corpos - uma invocação de poder; a
vida é “vontade de poder” (Nietzsche).
Cada poema é uma encantação, uma prece, uma voz que pede ao
poder ausente que retome. O poeta espera que Aquele que faz viver a
beleza no seu coração haverá de trazer de volta o poder às suas mãos:
poder gracioso...
A tradição bíblica deu o nome de Messias a esta figura mítica. O
Messias é o símbolo deste evento miraculoso: a coincidência efêmera
entre o amor e o poder: quando o Leão, como na parábola de Zaratustra,
abre o caminho para o nascimento da Criança, e então desaparece (PN
139). Efêmero por ser graça. Não pode ser institucionalizado como
partido, estado ou igreja. Pássaro que não pode ser engaiolado, vento
que não pode ser engarrafado... Aparece sob a forma de "povo”... Pois,

109

1
a despeito do fato de não existir outra palavra que tenha sido mais
desgastada pelas mentiras políticas, o povo acontece quando o poema
se transforma em canção. E é isto que o poeta espera: que o seu poema
solitário se transforme em canção, objeto de comunhão. Coisa já sabida
de Santo Agostinho, que dizia que “povo é uma reunião de seres
racionais unidos por um acordo comum acerca dos objetos do seu
amor” (CG 706).
Os que sonham os mesmos sonhos.
É dos sonhos que vivem no coração do povo que nascem os
jardins. Não é um fazer; é um transbordamento de beleza. “Mundos
melhores não são feitos”, diz E. E. Cummings; “eles nascem” (SNL 31).
Estou assumindo, conscientemente, o risco de parecer tolo, e
repetir aquilo que já tem sido dito por profetas, artistas e poetas: Há
uma política que nasce da beleza. A beleza tem o poder de transformar
o mundo. Não conheço nenhuma obra poética em que isto tenha sido
dito de forma mais bela que O operário em construção, do Vinícius de
Moraes. É a história de uma metamorfose: de como o camelo se
transforma em leão, e aquele que só sabia dizer sim aprendeu a dizer
não. História de um operário, profecia e esperança do nascimento de
um povo...
“Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam das mãos.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão;
Não sabia, por exemplo,
Que a casa de um homem é um templo,
Um templo sem religião,
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria;
Quanto ao pão, ele comia...

110
Mas fosse comer um tijolo...
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui,
Adiante um apartamento,
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia,
à mesa, ao cortar o pão,
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem fazia,
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em tomo: gamela,
Banco, enxerga, caldeirão,
Vidro, parede, janela,
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia,
Era ele quem fazia,
Ele, um humilde operário,
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah! Homens de pensamento,
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara,
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.

111
O operário emocionado
Olhou sua própria mão,
Sua rude mão de operário,
De operário em construção,
E olhando bem para ela
Teve, um segundo, a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção,
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo,
Em largo e no coração.
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão.
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
De edifício em construção,
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não."
O poema é longo e não é possível reproduzi-lo todo. Mas este
pedaço é suficiente como aperitivo.
Sei que poemas não devem ser interpretados. Toda interpretação
é uma destruição do poder do discurso poético. Como se o poeta não
tivesse dito tudo o que queria dizer... Como se o que ele disse pudesse
ser dito de outra forma... Como se fosse possível iluminar o seu texto
por meio de palavras mais claras... A resposta adequada a um poema é
um outro poema: um poema incompleto, imagens soltas, associações
surpreendentes que vão surgindo dentro de nós ao ouvir a sua fala.
Dizer a outra fala. Não a do poeta. Mas a que se faz ouvir “nos
interstícios do brando encanto com que o poema vem até nós.” Não se
trata de dizer com luz aquilo que o poeta esculpiu com terra, ferro e
sangue. Pois é com estes materiais que a poesia é feita. Trata-se,

112
simplesmente, de ritmar a leitura, de fazer o olhar parar em certos
momentos, da mesma forma como os fiéis peregrinavam pelo espaço
sagrado, detendo-se diante das cenas que marcavam as estações da
paixão de Cristo.
Metamorfoses. Transformações. Tudo se inicia com o operário
mergulhado na sua práxis cega: suas mãos faziam, bem faziam, com­
petentemente, mas nem seus olhos viam, nem seus pensamentos enten­
diam. Seu mundo terminava no pão que ele comia...
Mas a cena se altera. Há um “de repente”, um "instante solitário”,
as mãos longe da pá, cimento e esquadria, interrupção da práxis, do
trabalho, um “parar de mundo”, um koan mudo, quando as palavras
costumeiras fazem silêncio. Nada para se fazer: só receber, comer... E,
neste vazio, uma voz estranha se faz ouvir... Todas as coisas continuam
as mesmas. Nada de novo se faz. E, no entanto, há uma nova luz. Tudo
se faz de novo. Os velhos objetos, cansados, ganham vida e começam
a falar coisas que nunca haviam falado. A razão não sabe explicar. Os
homens de pensamento ficam de fora, sem entender. Os místicos dão
o nome de iluminação - satori - a este evento: ver o que não se via e
que, no entanto, estivera sempre ali. “Ver a eternidade num grão de
areia” (Blake) ou ver beleza nas rudes mãos de operário: é a mesma
coisa. Além da pá, cimento, esquadria, além do pão que se comia, a
dimensão da poesia: um mundo novo nascia.
E a cena se altera uma vez mais. Ao lado do mundo novo que
nasce, um operário novo que cresce: ele emerge como poeta. E a sua
fala se altera. E um novo milagre acontece. “O que o operário dizia
outro operário escutava. Ao instante solitário segue-se o tempo de
comunhão.” Não só de pão viverá o homem mas de toda palavra..." É
isto que os homens de pensamento, nas universidades e nos partidos,
não poderíam nunca entender: que mesmo os famintos não sobrevivem
só de pão. Eles têm fome de beleza. Estranho isto, que a comunhão
nasça da solidão. É que a beleza não consegue crescer em meio ao ruído
das vozes dos muitos. Não pode ser produzida em democráticas reu­
niões seja de sindicatos, seja de partidos, seja de igrejas. Poetas e
profetas sempre ouviram os seus oráculos em silêncio, solitariamente.
A beleza é como os grandes rios que regam as florestas mas que têm
suas nascentes muito longe da vista, em fontes obscuras que jazem
escondidas nas alturas desabitadas das montanhas. Da solidão para a
comunhão, da fonte invisível para o caudal do grande rio: este é o
caminho da poesia. E a sua magia jaz precisamente nisto: que a voz
ouvida em solidão vai reverberando pelos desertos, pelas pedras, pelo
ar, chamando do seu sono a beleza que se encontrava adormecida em
cada um. E os cegos começam a ver, os surdos passam a ouvir, as
virgens e as estéreis geram filhos, os mortos ressuscitam: as metáforas

113
dos textos sagrados, que os homens de entendimento declararam ser
loucura, são a revelação da magia da poesia.
E daquele que não sabia falar, pois era mudo, cisterna onde os
poderosos depositavam suas águas paradas, começa a brotar uma água
fresca, vinda das profundezas da terra. O que só sabia dizer sim começa
a dizer não. Quem planta uma árvore diz não ao deserto. Quem procura
um amigo diz não á solidão. Quem revela o seu sonho de beleza diz
não aos pesadelos de morte. “Não”, que não é simples “não”, mas o
avesso de uma afirmação triunfante da vida. Os teólogos de outros
tempos (ah! que saudades eu tenho deles, tão distantes das banais
repetições dos clichês politicóides...) falavam sobre o opusproprium
Dei e opus alienum Dei. Há algo que Deus faz, algo estranho e
incompreensível, um não assustador... Mas aqueles que pensam que
esta coisa estranha é a revelação do coração de Deus se equivocam. A
verdade está do outro lado. A verdade é polifônica. O tema invertido
só pode ser compreendido como o reflexo especular do tema real, em
tomo do qual a fuga é construída. Como na parábola de Nietzsche: o
Leão diz o seu não terrível ao Dragão de escamas douradas apenas para
fazer lugar para a Criança, a afirmação irrestrita da vida, o cânon sem
fim que não se cansa de dizer sim. O operário-poeta diz a sua palavra,
e a polifonia começa...
Minha sugestão é insólita. Sei que dela vão se rir tanto políticos
da direita quanto da esquerda. Sugiro que existe uma política que nasce
da beleza; sugiro que há um guerreiro que nasce do poeta. Vão se rir
porque as duas, direita e esquerda, não sabem o que fazer com a beleza.
Beleza? “Sim”, responderão em uníssono, “mas somente no fim, depois
de resolvidas as questões fundamentais do poder. Beleza é sobremesa,
o supérfluo, prêmio de consolação, algo que só entra na política ao final,
como convidada de fora, que não pertence ao partido, sem direito a voz
ou voto, dispensável. Cada uma, a seu modo, entende que na política
só se admite o discurso do poder. As duas, cada uma a seu modo, tecem
variações sobre o tema enunciado por Maquiavel. Pouco importam a
verdade, a beleza e a bondade. Importa apenas o triunfo. Pouco importa
o “ser”. Importa apenas o “parecer ser”, pois o “parecer ser” é mais
eficaz que o “ser”. E assim nasce o discurso político como a “arte do
engano” que os partidos vão repetindo, sem se dar conta de que o salão
está vazio, pois são poucos os que acreditam. Seu equívoco? Não
conhecem a alma dos homens. Pensam que os homens são como eles,
e que os seus sonhos fundamentais se fazem só com pão e poder. Basta
prometer o poder, sob as suas múltiplas formas, que vão dos rituais
militares fascistas às liturgias democratóides esquerdistas. Basta pro­
meter o pão, seja sob a forma do iate do campeão de Fórmula I, seja
sob forma de aumentos salariais (o que faz o próprio Marx se revolver

114
no túmulo...). Não imaginam que exista um sonho mais profundo e
imortal na alma dos homens: o sonho de beleza”.
É isto que diferencia a política poética do realismo político. O
poeta está comprometido apenas com a visão de beleza - por vezes
trágica - que o possui, que ele sabe ser não o supérfluo mas o início da
política, pois a beleza é o mais profundo anseio do ser humano. É
verdade que ninguém pode viver sem o pão. Mas é verdade também
que o pão sozinho engorda corpos e almas.
A política depende da arte de se conseguir aliados - correligio­
nários, conspiradores - pessoas dispostas a travar as mesmas batalhas,
seja a batalha dos votos, seja a batalha das armas. E como é que se faz
isto? Por meio de que artifícios se faz com que o outro faça o que
desejo? Toda política começa com uma psicologia. Ela contém uma
teoria da alma, implica a escolha de caminhos para se chegar até as
raizes do comportamento do outro. Não é isto que todo político deseja,
ao se dirigir ao “povo”?
A psicologia da direita é talvez a mais óbvia, euclidiana, de
caminhos mais retos e curtos entre os pontos. Ela trabalha sobre o
pressuposto de que as duas máximas que governam o comportamento
humano são: procurar o prazer e fugir da dor. Skinneriana, comporta-
mentista. Mas tudo o que é muito óbvio é enganoso. A filosofia surgiu,
precisamente, como uma luta contra o feitiço do óbvio. Haverá coisa
mais óbvia do que o prazer? Será possível resistir ao seu chamado? Será
sábio resistir ao seu chamado? Assim se constrói a política da direita,
sobre a promessa “Tudo isto te darei...” (Mateus 4,9). É a promessa do
Diabo a Jesus, quando a sua privação era maior: fome, impotência,
solidão. É a promessa da Serpente ao homem: “É certo que não
morrereis. No dia em que dele comerdes sereis como deuses...” (Gn
3,5). É certo também que Jacó era um astuto conhecedor da psicologia
do prazer. Seu irmão mais velho, Esaú, era caçador viril, portador do
direito de primogenitura (a mais alta honra que um filho poderia
desejar). Mas Jacó era bom psicólogo. Sabia do ponto fraco do irmão.
Forte na caçada. Fraco como caça. Seu ponto fraco: o estômago. Não
conseguia resistir às razões da fome. Assim, preparou-lhe um guizado
suculento, vermelho e cheiroso. Voltando da caçada exausto e faminto,
só desejava comer. “Deixa-me comer deste guizado”, Esaú pediu ao
irmão. “Só se me venderes o teu direito de primogenitura”, ele respon­
deu. Esaú pensou: “Estou a ponto de morrer. De que me aproveitará o
direito de primogenitura?" E assim se consumou a transação. Assim
também pensava o operário: “Quanto ao pão ele comia. Mas fosse
comer um tijolo...” A direita sabe o quão forte é o desejo de prazer. E
foi assim que o patrão, no poema de Vinícius, tenta dobrar o operário,
para que, de adversário, se transformasse ao correligionário...

115
e o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região.
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
“Dar-te-ei todo este poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-a a quem bem quiser,
Deu-te tempo de lazer,
Dou-te tempo de mulher...
Portanto tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.”
Falhando a sedução do prazer ela tem de reserva a ameaça da dor.
Hobbes, no seu tratado sobre politica, admite que o medo é a única
coisa capaz de controlar a fera que mora nos homens. E é através do
medo que o Leviatã se impõe. Na vida política o prazer é apenas uma
pequena ilha cercada pelo ameaçador oceano de terror e que pode, a
qualquer momento, levá-lo com suas ondas. Assim, a política tem à sua
disposição, no fracasso das promessas de poder, o uso da violência,
legítima ou ilegítima.
A esquerda é, espiritualmente, diferente da direita. Falta-lhe o
sentido do pragmático. Na verdade, é difícil imaginar algo mais desti­
tuído do senso do prático que as esquerdas. Sua crônica e suicida
tendência para as divisões e as seitas é um testemunho disto. A razão,
me parece, é que as esquerdas têm um forte componente ético-religioso,
o que lhes toma impossível transigir. É preferível a vitória do demônio
que violentar a consciência. Haverá algo mais protestante que isto? O
que a coloca numa infinita distância política da direita que, pela sua
capacidade para alianças e acordos entre grupos discordantes, me faz
lembrar a solução pragmática do catolicismo, que sabe manter juntas,
no mesmo corpo, as mais distintas “ordens”, desde que haja um acordo
mínimo sobre o que constitui o interesse comum. O forte componente
moral das esquerdas as tomou especialistas na critica, hipertrofiou o
seu superego, desenvolveu uma hipersensibilidade para o pecado so­
cial. Diante de cada flor ela busca o esterco. Ela estremece diante do
deleite frente à beleza, por medo de que a estética enfraqueça o rigor
ético, tomando as pessoas românticas, insensíveis ao sofrimento. Em
resumo: poéticas. Em resumo, apoliticas. O que significaria uma cura
da azia crônica que, a seu ver, é o lugar onde nasce o revolucionário.

116
Pois é: minha proposta é insólita. Sugiro que existe uma política
que se inicia com a beleza. Podem rir-se. Não estou sozinho. Dizia
Neruda: “E nós, os poetas, inopinadamente, encabeçamos a rebelião da
alegria” (CqV 267). Sabe o poeta o que ninguém mais sabe: que se é
verdade que só se consegue convencer os outros ressuscitando neles os
sonhos fundamentais (Bachelard), é preciso compreender que nossos
sonhos fundamentais são sonhos de beleza. E a sua voz se faz então
como palavra de sedução que procura acordar nos outros a beleza que
neles jaz adormecida. Sêmen que se espalha ao vento, como um grito
solitário em busca de comunhão: “Quem tiver ouvidos para ouvir, que
ouça...” Sabe o poeta que a tarefa fundadora da política não é a tomada
do poder mas a geração de um povo. Mas um povo só vem a existir
quando indivíduos separados se descobrem participantes de um mesmo
sacramento de fraternidade, o sonho de beleza que todos cantam.
“Caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais,
somos irmãos...”
No seu livro Confesso que vivi, Neruda tem um lindo parágrafo
- entre muitos outros - onde ele fala sobre a relação entre a poesia e a
política. Diz ele:
“Minha poesia e minha vida têm transcorrido como um rio... Não
rejeitou nada do que pode trazer em seu caudal; aceitou a paixão,
desenvolveu o mistério e abriu caminho entre os corações do povo.
Coube a mim sofrer e lutar, amar e cantar; couberam-me na partilha do
mundo o triunfo e a derrota, provei o gosto do pão e do sangue. Que
mais quer um poeta? E todas as alternativas, desde o pranto até os
beijos, perduram em minha poesia, atuam nela porque vivi para minha
poesia e minha poesia sustentou minhas lutas. E dentre os muitos
prêmios alcancei, prêmios fugazes como mariposas de pólen fugidio,
alcancei um prêmio maior, um prêmio que muitos desdenham mas que
é na realidade inatingível para muitos. Cheguei através de uma dura
lição de estética e de busca, através dos labirintos da palavra escrita,
a ser poeta de meu povo. Meu prêmio é esse, não os livros e os poemas
traduzidos ou os livros escritos para descrever ou dissecar minhas
palavras. Meu prêmio é esse momento grave de minha vida quando no
fundo da mina de carvão de Lota, sob o sol a pino da salitreira abrasada,
do socavão a pique subiu um homem como se ascendesse do inferno,
com a cara transformada pelo trabalho terrível, com os olhos averme­
lhados pelo pó e, estendendo-me a mão calejada, essa mão que leva o
mapa do pampa em suas calosidades e suas rugas, disse-me com olhos
brilhantes: ‘Conhecia-te há muito tempo, irmão’. Este é o laurel de
minha poesia, o agulheiro no pampa terrível, de onde sai um traba­
lhador a quem o vento e a noite e as estrelas do Chile têm dito muitas
vezes: ‘Não estás sós; há um poeta que pensa em teu sofrimento”’ (CqV
173-174).

117
Se o político da direita se parece com o administrador da ordem
existente (não importa que nas portas dos palácios estejam os símbolos
da esquerda), e o político da esquerda se vê como o vingador que
anuncia do dia do Juízo, o político que mora no poeta parece-se mais
com o artista. O artista toma a pedra, o ferro, as tintas, os sons, fazendo
neles sensível o seu sonho sob a forma de obra de arte que é então
oferecida aos outros como objeto de deleite e fraternidade. Só que a
arte da política poética seria uma arte maior, pois que nela não se lida
com pedra, ou ferro, ou tinta ou sons, mas com a carne e o sangue. E
nem se pode fazer uso do cinzel, do fogo e dos pincéis para produzir o
belo. Dispõe-se apenas do mais diáfano de todos os instrumentos, a
palavra. E na palavra que os mundos começam. É na palavra que eles
são gerados. É pela palavra que eles nascem. Não, não são as mãos que
geram a palavra. É a palavra que transfigura as mãos, tomando-as uma
ferramenta da beleza.
Se me perguntarem se já vi semelhante política em operação eu
falaria de Gandhi, cujas ações políticas, totalmente vazias de poder
bruto, eram antes gestos poéticos que tinham por objetivo fazer o povo
acordar e sonhar. E falaria sobre Martin Luther King Jr., cuja política,
muito além dos triunfos práticos de sua resistência pacífica, estava
voltada para a tarefa gigantesca de ressuscitar um povo humilhado. 1
have a dream, ele dizia num dos seus últimos discursos. Eu tenho um
sonho... Luther King teve o poder para cantar os sonhos do seu povo.
Se o povo não sonha e não tem visões de beleza, ele não terá desejo de
lutar. E me lembro de Lutero dizendo, numa de suas “Conversas de
Mesa”, que a Reforma não estava sendo feita pelo poder de suas mãos
mas pelo poder da palavra. E num tom de brincadeira diz que, enquanto
ele e Mellanchton nada faziam, mas simplesmente tomavam cerveja, a
palavra ia voando livre, atravessando os campos e as aldeias...
O futuro mora na palavra poética que anuncia uma beleza ausen­
te.
Utopias: como as estrelas, não serão alcançadas nunca. Mas
como as noites seriam tristes sem elas. E como poderíam os marinheiros
encontrar o seu caminho? E que seria dos apaixonados? A se acreditar
numa lenda muito antiga é preciso seguir a luz de uma estrela inalcan-
çável se se quer chegar ao lugar onde nasceu o Messias... Emst Bloch
tem um denso parágrafo em que examina o conteúdo utópico da beleza.
Diz ele:
“Se é verdade que as coisas comumente são vistas como elas são,
não é, entretanto, um paradoxo absurdo colocar pelo menos uma
ênfase igual no fato de poderem elas ser diferentes do que são. É
por isto que a observação de Oscar Wilde de que um mapa do
mundo sem o pais da Utopia não merece nem sequer uma

118
olhadela, não produz choque algum, exceto o choque do
reconhecimento.
É verdade que as coisas, em si mesmas, apenas nos oferecem
linhas pontilhadas na direção desta terra; mas todos os
positivistas do mundo não conseguiríam apagá-la...
As grandes obras de arte não podem viver sem o toque criativo
da antecipação poética - a antevisão daquilo que, objetivamente,
ainda está latente no mundo. Nas grandes obras de arte a luz
imanente desta presença utópica brilha no horizonte. Numa obra
de arte a tristeza e a angústia nunca aparecem mergulhadas na
obscuridade; a alegria aparece no horizonte da manhã como um
pré-brilho... A “Ode à Alegria” de Schiller brilha muito além de
tudo o que havia sido experimentado até aquele momento, pois
que ela nomeia e invoca a alegria perfeita...” (P F 96-98).
Assim vive o guerreiro nascido da visão da beleza:
com um olho ele vê a escuridão e a dor,
mas com o outro ele vê a luz e a alegria.
O guerreiro é o corpo que ouviu a voz do poeta, foi possuido pela
beleza, e voa como uma flecha na direção do futuro por obra do arco
do poder. Nele se realizam as palavras de Marx: “O que era uma luz
interior se transforma num fogo consumidor que se derrama para fora"
(MHO 19).

E enquanto voa ele canta a canção de Zaratustra:


• “Despertai e ouvi,
vós que estais sós!
Do futuro nos chegam ventos com ruído de asas que batem
secretamente;
e boas-novas são anunciadas aos ouvidos sensíveis.
Vós que estais sós,
vós que estais em retirada,
vós sereis, um dia,
um povo.
De vós haverá de nascer um povo escolhido.
Na verdade, a terra haverá de se transformar num lugar de
regeneração.
E mesmo agora uma fragrância nova a circunda,
trazendo salvação
e uma nova esperança” {PN 189).

119
Capítulo VIII

PROFECIA

“Profetiza ao Vento, profetiza, ó homem,


e dize-lhe:
Estas são as palavras do Senhor Deus:
vem, ó Vento,
vem dos quatro cantos do mundo
e sopra sobre estes que foram mortos,
para que eles voltem a viver.”

Ezequiel 37,9

“São as palavras mais tranqüilas


que trazem a tempestade.
O pensamento que vem em pés de pombas
guia o mundo.”

Nietzsche

“E depois de construir um altar


para a Luz Invisível,
poderemos sobre ele colocar
as pequenas luzes
para as quais os nossos olhos mortais foram feitos.”

T.S. Eliot
amigo sorriu e observou que durante os últimos vinte anos eu
tenho estado dizendo sempre a mesma coisa. A sua voz era suave
e não havia nela nada que sugerisse uma crítica. Era como se ele
dissesse: “Finalmente o entendi. Ouvi a palavra não falada que mora
nos interstícios das suas dez mil palavras...”
Ele estava certo. Sinto que tento fazer com as palavras aquilo que
os músicos fazem com os sons: “Variações sobre um tema dado”. Não
quero mudar de assunto. Mallarmé é meu irmão: gostaria de poder
escrever um livro com uma única palavra. Nunca me esqueço do
aforisma de Kierkegaard: “Pureza de coração é desejar uma única
coisa". Ser capaz de dizer a palavra que dá nome ao meu desejo...
Antes de começar a jogar este jogo com as palavras tentei fazer
a mesma coisa com os sons. Eu queria ser um pianista, mas fracassei.
Depois de muita luta (inútil) descobri que me faltava o talento. Assim,
desisti. Mas acho que algo da alma de músico sobreviveu em mim.
Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, Britten, Ravel, todos eles se delei­
tavam em compor “variações sobre um tema dado. Bach chegou
mesmo a compor uma fuga - que a sua morte não permitiu que ele
terminasse, usando as letras do seu nome como tema. É possível que
ele, sabendo sem saber, tenha enunciado musicalmente uma profunda
verdade antropológica: a vida é um enorme esforço para transformar o
nosso nome - e tudo o que ele contém, em música.
Por oposição ao jogo da verdade científica, que despreza a
repetição, e que atinge o seu acorde final tão logo tenha conseguido se
dizer, a beleza quer se fazer ouvir vezes sem fim. É por isto que, ao
final da experiência de beleza, fica sempre um sentimento de nostalgia,
o desejo de que tudo aconteça de novo. A beleza é infinita; ela nunca
se satisfaz com a sua forma final. Cada experiência de beleza é o início
de um universo. O mesmo tema deve ser repetido, cada vez de uma
forma diferente. Cada repetição é uma ressurreição, um eterno retomo
de uma experiência passada que deve permanecer viva.
O mesmo poema,
a mesma música,
a mesma história...
E, no entanto, nunca é a mesma coisa. Pois, a cada repetição, a
beleza renasce nova e fresca como a água que borbulha na mina...

122
O êxtase da contemplação da verdade científica acontece uma
vez apenas. Não pode ser repetido. Cada repetição é um desapontamen­
to. A excitação da primeira vez se perde para sempre. Mas a beleza é
diferente. A cada repetição o corpo reverbera de novo. Acontece com
ele aquilo que se dizia acontecer com a Coluna de Memnon (o nome
de uma das gigantescas estátuas do faraó Amenofis III) que, ao ser
atingida pelos primeiros raios de sol pela manhã, produzia um som
musical. O êxtase do amor se nutre da esperança do retomo.
Será que a alma é um canon, uma fuga perpétua? Belo é o tema
que deseja ser repetido. Lembro-me de uma passagem de A insusten­
tável leveza do ser. “É assim mesmo que é composta a vida humana.
Ela é composta como uma partitura musical. O ser humano, guiado pelo
sentido da beleza, transpõe o acontecimento fortuito para fazer disso
um tema que, em seguida, fará parte da partitura de sua vida. Voltará
ao tema, repetindo-o, modificando-o, desenvolvendo-o e transpondo o,
como faz um compositor com os temas da sua sonata. O homem
inconscientemente compõe sua vida segundo as leis da beleza, mesmo
nos instantes do mais profundo desespero" (ILS 58).
Inconscientemente? Sim. Sem saber, sabemos.
A psicanálise é uma escuta musical. Ela deseja ouvir os fragmen­
tos do tema que se toca sempre como dez mil variações. É por isto que
não faz a menor diferença por onde se começa. Que os pensamentos
dancem como quiserem, que as imagens brinquem livremente umas
com as outras. Mais cedo ou mais tarde se ouvirá a "beleza adonnecida"
- ainda que trágica.
Alguns chegaram mesmo a pensar ser este o sentido do universo.
Kepler, inspirado pelo misticismo pitagórico, queria ouvir a música
silenciosa tocada pelo compositor divino, usando estrelas e planetas
como instrumentos. Se ele procurava as regularidades matemáticas dos
corpos celestiais era porque acreditava serem elas a chave para se abrir
o mundo da harmonia musical do cosmos. Foi por isto que ele deu o
título de De harmonice mundi à sua grande obra de astronomia. Ele
podia repetir com o poeta sagrado: “Sem fala ou linguagem ou som de
qualquer voz a sua música se ouve por toda a terra” (Salmo 19,3-4). É
só o coração que pode ouvir a divina fuga sem fim: nós a sabemos “de
cor” (do latim, cor, cordis, coração). Saber de cor é saber com o
coração. Os mistérios da memória moram nos mistérios do amor.
“Mesmo que o mundo exterior desaparecesse”, diz Hermann Hesse,
“cada um de nós seria capaz de recriá-lo, porque todas as montanhas e
rios, árvores e folhas, raízes e flores, todas as formas que habitam no
mundo estão pre-formadas em nós; elas procedem da alma, cuja
essência ignoramos e cuja existência é etema e se dá a nós, sobretudo

123
como vontade de amar e poder para criar - vontade e poder que anseiam
por se realizar” (PLP 141).
Outros ouviram este canon sem fim na própria estrutura do
organismo. “Cada organismo é uma melodia que se toca a si mesma”,
diz o biólogo Uexküll. Não parece palavra de cientista. Mais se parece
com metáfora poética. Mas haverá alguma razão para se negar à
metáfora poética o poder de revelar a verdade da vida? Pelo menos
Merleau-Ponty e Emst Cassirer concordariam, pois a música do orga­
nismo, sugerida por Uexküll, está lá citada em seus escritos (SB 159,
AFFS cap. II). “Borboletas, caracóis, cigarras, formigas, sabiás, es­
quilos, tamanduás: cada um deles é uma forma única de beleza. Os
seus corposfazem soar diferentesformas de beleza, invadindo espaços
e procurando reverberações. A sua hipótese é a de que em algum lugar,
lá fora, a sua beleza adormecida espera por seu beijo. E quando o
milagre acontece, quando algo responde ao seu chamado, um mundo
é criado à sua imagem e semelhança. Feuerbach dizia que se as plantas
tivessem olhos, gosto e capacidade de pensar, cada uma delas diria
que sua flo r é a mais bonita. A vida de uma efêmera (aqueles insetos
que voam ao crepúsculo e logo perdem suas asas, não vivendo mais
que dois ou três dias) é extraordinariamente curta se comparada com
a vida de outras criaturas de vida mais longa. Mas para a efêmera esta
vida tão curta é tão longa quanto a vida das outras. A folha em que
vive a lagarta é, para ela, um mundo, um espaço infinito ” (EC 8).
O mito de Narciso é uma versão poética do que estou sugerindo:
o mundo é o espelho em que nos contemplamos. O que concorda com
os mitos bíblicos da Criação, onde se diz que Deus criou o universo
como um espelho onde sua beleza pudesse ser refletida. A beleza que
vemos no mundo é a beleza que mora em nossos corpos. O mundo só
é belo porque somos belos. A beleza que vemos fora é um reflexo da
beleza que existe dentro. Feuerbach está certo: “No objeto que contem­
plamos nós nos conhecemos a nós mesmos” (EC 5). O universo é nosso
espelho, nós somos o espelho de Deus, somos o espelho do universo:
“Teu corpo era um espelho pensante do universo”, dizia Cecília Mei­
reles de sua avó morta (FP 144).
Como poderia Deus criar um Paraíso se este jardim de delicias
não estivesse já presente no seu corpo infinito, como sonho e desejo?
O jardim é a imagem visível da beleza divina. Lembro-me do poema
de Santo Agostinho, em suas Confissões:
“Perguntei à terra,
perguntei ao mar e profundezas,
entre os animais viventes às coisas que rastejam.
Perguntei aos ventos que sopram

124
aos céus, ao sol, à lua, ás estrelas,
e a todas as coisas que se encontram às portas da minha carne...
Minha pergunta era o olhar com que as olhava.
Sua resposta era a sua beleza...” (C 234).
E, no entanto, a beleza tem sido a grande ausente do discurso
teológico. Insensibilidade estética? Perda da memória do Paraíso?
Medo de narcisismo? Teremos, por acaso, separado a bondade da
beleza? Será isto que explica a redução da teologia à ética, seja sob a
forma da moral individual, seja sob a forma da teologia política?
Teologia como “análise da práxis”... Sem dúvida que o imperativo
divino é um antídoto eficaz contra a sedução do deleite... Agape contra
Eros? Mas o propósito do Agape não será precisamente o triunfo de
Eros? Que todo o universo seja amado por causa de sua beleza e não
a despeito de sua feiura? O artista ama a pedra sem forma por causa
da Pietá que mora adormecida dentro dela. Quando o Agape termina a
sua obra, Eros explode, triunfante! O ético não é um fim. È apenas um
meio. O propósito de todas as lutas heróicas por um mundo livre e justo
é a criação de um jardim. Berdyaev é um dos poucos teólogos a
compreender o sentido metafísico da beleza. Ele diz:
“A beleza é uma característica de uma condição superior de ser,
de um nível mais alto de existência, antes que uma fase separada
da existência. Podemos dizer que a beleza é não apenas uma
categoria estética como também uma categoria metafísica. Se o
homem recebe algo em si de maneira integral, isto é beleza.
Dizemos “um espírito belo, uma vida bela, uma ação bela etc.”
Não se trata apenas de um julgamento estético, mas de uma
valorização integral. Na vida tudo o que é harmonioso é beleza...
A beleza é o propósito final da vida humana e da vida do mundo.
O bom é sempre apenas um meio, um caminho, e ele surgiu como
conseqüência do conhecimento da oposição entre o bem e o mal.
Mas a beleza está além do conhecimento do bem e do mal. O
bem que jaz além da distinção entre o bem e o mal, quando o mal
é esquecido, é também beleza. Na beleza não pode existir a
distorção moral que caracteriza o mal. A beleza do mal é uma
ilusão e um engano. O Reino de Deus só pode ser pensado como
um reino de beleza. A transfiguração do mundo é um fenômeno
de beleza. E toda a beleza no mundo é ou uma lembrança do
paraíso ou uma profecia de um mundo tranfigurado {CE 319).
A salvação é a recuperação da polifonia da vida. Com o que
concordava Bonhoeffer. E é algo comovedor pensar que esta imagem
lhe veio quando sua morte já podia ser prevista, quando nada mais podia

125
ser feito, quando todas as esperanças éticas e políticas já tinham
acabado, quando ele se encontrava só, diante do abismo. Estas são as
suas palavras, numa carta de 20 de maio de 1944:
“Existe sempre o perigo de que um amor intenso destrua aquilo
a que eu poderia dar o nome de ‘polifonia’ da vida. O que quero
dizer é que Deus deseja que o amemos etemamente de todo o
coração sem que isto, entretanto, estrague ou diminua nossos
afetos terrestres, como uma espécie de ‘cantus firmus’ do qual
as outras melodias da vida são o contraponto. Quando o baixo
soa claro e firme, nada há que possa impedir o contraponto de se
desenvolver até os seus limites máximos. Ambos, o baixo e o
contraponto soam ‘sem confusão e, ao mesmo tempo, distintos',
nas palavras da fórmula de Calcedônia, como Cristo nas suas
naturezas divina e humana. Talvez que a importância da
polifonia na música se encontre no fato de que ela é um reflexo
musical da verdade Cristológica, sendo, por isto mesmo, uma
parte essencial da vida cristã. Somente uma polifonia deste tipo
pode dar inteireza à vida, e ao mesmo tempo nos assegurar de
que nada pode dar errado enquanto o cantus firmus continuar.
Por favor, não tenha medo da separação, se ela vier a ocorrer...
Coloque a sua fé no cantus firmus..." (PFG 131-132).
Gaston Bachelard, como já mencionamos, se refere aos “sonhos
fundamentais”, e diz que só existe uma forma de convencer: trazendo-
os de volta à memória (DS xxiv). Eu acredito que o Paraíso é o nosso
sonho fundamental e que, ao contemplá-lo, ouvimos o cantus firmus
que ele faz soar.
“Estas altas árvores
são umas harpas verdes
com cordas de chuva
que tange o vento.
Vêem os sons mais claros
da amendoeira amarela,
pontuados na palma
das fortes folhas virentes.
Os sons mais frágeis nascem
na fronde da acácia leve,
com frouxos cachos de flores
e folhinhas paralelas.
Os sons mais graves escorrem
das negras mangueiras antigas,

126
de grossos, torcidos galhos,
franjados de parasitas.
Os sons mais longínquos e vagos
vêm dos finos ciprestes:
chegam e apagam-se, nebulosos,
desenham-se e desaparecem... " (VRE41).
Nós nascemos em um jardim, existe um jardim dentro dos nossos
corpos, e estamos destinados por vocação divina a sermos jardineiros,
pois Deus, a se acreditar nos mitos, é também um jardineiro. Deus não
estava feliz no infinito sem forma. Sua obra se move dos espaços
ilimitados do universo para este pequeno e limitado espaço, onde a vida
faz amor com a beleza. No jardim seu trabalho se realiza. No jardim
ele encontra o prazer. Descansa. Toma-se, então, contemplação pura,
puro brinquedo, puro gozo. Nada mais há a ser feito. Nenhuma ética,
nenhum mandamento, nenhuma política: há apenas os frutos a serem
comidos.
Por oposição aos cientistas que buscam o que há de mais abstrato
e vazio, Deus faz existir o que há de mais concreto. É na forma concreta
onde resplandece a beleza que a universalidade divina se revela.
“No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de uma borboleta” (VRE 21).
O Paraíso é o mistério da criação e da Encarnação sob forma
sensual.
Sursum corda! Erguei as almas. Toda matéria é espírito!
“Ó! Terra, jardim suspenso...” (PAC 105-106).
O Paraíso são as entranhas de Deus, oferecidas não ao pensamen­
to (Deus não pediu o conselho dos teólogos e seus livros...) mas ao
corpo, para serem comidas. Uma teologia que entendesse este mistério
se definiría como “jardinagem poética”...
Os poetas têm sabido disto o tempo todo, não importando os
materiais usados para materializar os seus sonhos. “O Universo”, diz
Bachelard, ao comentar os desenhos de Chagall - "além de todas as

127
suas misérias, tem um destino de felicidade. Temos de reencontrar o
Paraíso” (DS 21).
Vocês se lembram que eu comparei o corpo a um palimpsesto.
O que está escrito em nossa carne, com caracteres invisíveis, é uma
memória e uma profecia do Paraíso.
O deserto é belo porque, em algum lugar, ele esconde um jardim.
Somos belos porque dentro de nós há um jardim que, vez por
outra, se deixa ver através dos nossos gestos.
O Paraíso é a suprema metáfora dos nossos corpos, um lugar de
puro deleite. Estas são as palavras do amante:
“Minha noiva é um jardim” (Cântico dos Cânticos 4,12).
E o profeta ecoa:
“Serás como um jardim regado” (Is 58,18).
Da mesma forma como o propósito de Deus, nos seis dias da
criação, era o plantio de um jardim, assim o propósito de tudo o que
fazemos, do brinquedo á política, é recuperar o jardim perdido. No
corpo da criança e no corpo do guerreiro mora o mesmo sonho. E a
menos que nos lembremos deste sonho estamos condenados à infelici­
dade. A psicanálise nada mais faz que repetir aquilo que os místicos e
os poetas têm estado dizendo o tempo todo. “É o ego humano que
carrega dentro de si a busca de um mundo que possa ser amado”, diz
Normam O. Brown. “Este projeto, nos níveis inconscientes do ego, guia
a consciência humana na sua busca sem fim de um objeto que possa
satisfazer o seu amor” (LAD 46). Mas, se preferirem, o verso de
Angelus Silésius:
“Se no teu centro um Paraíso
não puderes encontrar,
nào existe chance alguma de,
um dia,
nele entrar” (BAS 31).
Plantar um pequeno jardim é coisa fácil. Meu corpo é forte
bastante para fazer isto. Ao gozar as delícias do meu pequeno jardim
eu como um sacramento, um fragmento de um grande jardim. Mas meu
pequeno espaço nào é suficiente para satisfazer a minha fome de
alegria. Meu pequeno jardim é uma profecia. Somos infelizes porque
não podemos comer tudo o que vemos. É preciso que o universo inteiro
seja servido como um banquete messiânico. Mas esta tarefa é muito
grande para mim. A re-criaçâo do Paraíso exige os sonhos e o trabalho
de muitos, de um povo inteiro. E isto é política. Mesmo Marx, num
momento de inspiração poética, reconheceu que dentro do corpo de um

128
guerreiro deve existir a esperança de que a flor viva possa ser colhida.
Dentro do corpo do Leão, diz Zaratustra em sua parábola, vive uma
Criança, que deseja brincar. O propósito da guerra é o fim de todas as
guerras. O propósito do trabalho é o fim do trabalho: a luta se realiza
na beleza. Reencontramos a sabedoria do Antigo Testamento em contar
o tempo. Os Cristãos inverteram a ordem, e colocaram o dia do gozo
como um preparo para o trabalho. Descansar para produzir mais. Por
isto o domingo é o primeiro dia da semana. Mas no Ant igo Testamento
a ordem é outra: os seis dias de trabalho só existem para tomar possível
o dia de puro gozo, o sábado.
Mas o Diabo é também um esteta. “A beleza tem a sua própria
dialética”, diz Berdyaev, “e Dostoievski tem algo a dizer sobre o
assunto. Ele pensava que a beleza havería de salvar o mundo. Mas ele
diz também: ‘A beleza não é apenas uma coisa terrível e misteriosa.
Nela o diabo luta com Deus, e o campo de batalha é o coração humano’.
O diabo deseja usar a beleza para os seus próprios fins”(C £ 319 320).
A beleza mora no coração, que é o centro do corpo. O corpo é o
instrumento pelo qual ela se canta.
Um berimbau: uma única corda tensionada por um arco. O artista
varia a tensão do arco e bate na corda com um pedaço de metal. E assim
nasce a música. E o corpo dança...
Nosso corpo: um berimbau, uma corda tensionada por um arco.
A corda é a Vida, Eros.
O arco é a Morte, Tânatos.
Do casamento da Vida e da Morte nasce a beleza. Por isto que
ela, a beleza, está sempre misturada com uma pitada de tristeza. Mesmo
os jardins conhecem o inverno. Há um elemento trágico na beleza.
Aquilo que Wordsworth diz sobre a beleza do pôr-do-sol pode ser dito
de todas as obras de arte.
“As nuvens que se ajuntam à volta do sol poente
ganham suas cores tristes de um olho que
vigia a mortalidade dos homens, atentamente” (SNL 20).
O pôr-do-sol é belo por ser uma metáfora de nós mesmos. Somos
arco-íris logo antes da escuridão, cores brincantes antes da chegada da
noite. Mesmo a mais leve das sonatas de Mozart contém uma gota desta
tristeza: mais cedo ou mais tarde seu acorde final se fará ouvir. E haverá
silêncio e nostalgia depois do “acabou”.
A beleza é o triunfo da Vida contra a Morte. Ela é a melodia que
a vida toca diante do Abismo. “Beleza”, diz Rilke, “é o Terrível que
contemplamos e admiramos, sem ser por ele destruídos” (ED 3).

129
A beleza faz uso do Inimigo. Ela transforma a Morte numa
amiga. O arco nào arrebenta a corda. Ao contrário, é ela que faz possível
que a corda produza música. E o milagre acontece. De novo, nas
palavras de Rilke, o corpo é então capaz de “conter a Morte, a morte
inteira, suavemente, sem ficar amargo” (ED 24). E o cantus firmus se
ouve...
Mas o Adversário, o Demônio, o Testador, também se deleita em
tocar o berimbau. Mas ele não deseja que o cantusfirmus seja ouvido.
Ele deseja quebrar a corda.
O corpo humano se toma, então, no campo de batalha entre Deus
e o Diabo. Como se os dois fossem cúmplices do mesmo jogo. Deus
permite que o Testador tensione o arco até os seus limites máximos.
Deus aposta que Eros haverá de triunfar. Mas o Diabo aposta na Morte.
“E o tempo chegou quando Deus resolveu testar Abraão” (Gn
22 , 1).
“Abraão, Abraão, tenho estado ouvindo o seu cantus firm us, e
ele soa belo aos meus ouvidos. Na verdade, você tem todas as razões
para a alegria. Não é de causar surpresa que tal beleza cresça do seu
corpo. Você tem Isaque. Você é belo “por causa de” Isaque. Mas eu
fico pensando: Será que a mesma melodia continuará a ser ouvida se
Isaque morrer? Toma o seu filho, seu único filho, a quem você ama, e
oferece-o como sacrifício...” (Gn 22,2). E quando tais palavras foram
ouvidas, Deus tomou a forma de um Demônio aos olhos de Abraão. O
momento do teste havia chegado. Ele teria de continuar a tocar o cantus
firmus diante do Abismo. *
“E chegou o dia quando os membros da corte dos céus tomaram
seus lugares na presença do Senhor. E Satã, o Adversário, estava entre
eles. Então o senhor disse a Satã: ‘Você já viu o meu servo Jó? Já ouviu
sua melodia? Haverá algo mais belo, em todo o mundo?* Satã respon­
deu ao Senhor: ‘Na verdade sua música é linda. Por boas razões. Tu
lhe tens dado todas as coisas boas da vida. Mas, toma o arco da morte!
Tensiona a corda até os seus limites. Tu verás que ela é fraca. Arreben­
tará...’ E Jó foi submetido ao teste: mas mesmo sem o seu instrumento,
o seu cantus firmus se fez ouvir no deserto...”
“E Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, para ser testado
pelo Diabo” (Mt 4,1).
“Você crê que ser homem é uma coisa bela. Esta é a melodia que
ouço, cantada no seu corpo e sua alma. Mas o homem é berimbau, vida
esticada pela morte... Não é possível conter a morte em si, suavemente,
sem se tomar mau... Veja como você é frágil e fraco! A morte já lhe
fala através da fome. Silenciosa e calmamente ela espera o momento

130
de se apossar do que lhe pertence: o seu corpo. Você nào ouve o ruído
dos coveiros? E estes uivos? São os lobos... Não, nào é possível ver a
beleza quando a vida está cercada pela morte. E é isto que significa ser
humano. Não é melhor cantar um outro cantus firmus? Ao invés do
tema ‘homem’, por que não um tema imortal? ‘Deus’, por exemplo...
Ordena que estas pedras se transformem em pães... Aí você estará a
salvo do Abismo...”
E os nossos corpos fracos se encolhem amedrontados diante do
Abismo e oram: “E não nos faças passar pelo teste” (Mt 6,13).
Coisa terrível é encarar a Morte e, a despeito de tudo, continuar
a fazer soar o cantus firmus da beleza...
‘‘A mão do Senhor veio sobre mim, e ele me fez voar pelo Vento
e me colocou numa planície cheia de ossos. Ele me fez ir e vir
pelo meio deles... Eles cobriam a planície, eram incontáveis em
número e estavam muito secos” (Ezequiel 37,1-2).
Adeus à esperança de que os desertos sejam transformados em
jardins: os jardineiros estão mortos... Adeus à esperança de que o cantus
firmus continue a ser ouvido: as mãos dos músicos são ossos secos e
seus esqueletos não podem soprar as flautas...
‘‘E o Senhor Deus me disse: ‘Homem, poderão estes ossos viver
de novo?’ Eu respondí: ‘Somente tu o sabes...’ E ele me disse:
‘Profetiza sobre os ossos secos...’” (Ezequiel 37,3-4). “‘Profetiza
ao vento, profetiza, ó homem, e dize-lhe: Estas são as palavras
do Senhor Deus: Ó! Vento, vem dos quatro cantos da terra e sopra
sobre estes que foram mortos...’” (Ezequiel 37,9).
E se ouve então, no deserto da Morte, a canção do profeta. Ele
está no meio da multidão mas suas raízes nào nascem dela. Ele emerge
de acordo com leis mais largas. O futuro brutalmente fala por seu
intermédio (Rilke).
Um exilado que vive num tempo diferente. Como o disse Zara-
tustra, o seu ninho é construído na árvore do futuro onde, “em sua
solidão, as águias lhe trarão alimento nos seus bicos. E ele deseja viver
entre os homens como os ventos fortes, vizinhos das águias, vizinhos
da neve, vizinhos do sol... E, como o vento, ele deseja soprar sobre
eles” (PN 211).
O poeta canta suas canções para os vivos.
Quando, a despeito da Morte, ele continua a cantar, o poeta se
transforma em profeta. O profeta é o poeta que canta quando não há
ninguém para o ouvir. Porque ele acredita que, mesmo diante do triunfo
de Tânatos, Eros não morre nunca. Ele acredita que “o esplendor da

131
vida vive para sempre à espera de cada um de nós, em toda a sua
plenitude, mas oculto da visão, nas profundezas, invisível, longe. Ele
está lá, sem hostilidade, sem relutância, atento à nossa voz. Se o
chamarmos pela palavra certa, ele virá. Essa é a essência da magia que
não cria mas apenas chama de volta” (Citado por Skip Strickland, artigo
mimeografado, A theology and bried story o f clowningfrom rny pers­
pective).
Que palavra é esta que tem o poder de trazer os mortos de novo
à vida?
Não se trata de uma canção fúnebre. O profeta subverte o funeral.
O Diabo toca a marcha fúnebre com o berimbau de corda
arrebentada.
O profeta assobia uma canção de ninar.
O corpo ficou velho e o sangue da fertilidade há muito deixou de
visitar sua mulher. Mas ele faz um bercinho.
A cidade está sitiada pelos exércitos do inimigo. Mas ele toma
todas as suas economias e compra um pedaço de terra...
“A menina não morreu. Ela dorme” (Mt 9,24).
O profeta quebra a etiqueta da Morte. Ele não sabe dançar aos
seus ritmos...
Não fala como professor. Professores só caminham sobre coisas
sólidas. O profeta voa com o Vento. Professores carregam espelhos em
suas mãos (pois é lá que moram suas idéias claras e distintas). Mas se
os mortos vissem sua própria morte refletida nos espelhos, eles morre-
riam uma segunda morte. Pois quem poderia suportar a visão da própria
morte?
O profeta também não é um pintor. Ele não cobre os cadáveres
com as cores do arco-íris. Isto é o que fazem aqueles que se desespe­
raram da vida e do corpo, e que construíram lugares sagrados onde se
canta que morte é vida, que sepultura é eternidade, que o horrendo é
belo. Seus altares se espalham por todo o mundo, e as cores de suas
vestimentas sacerdotais são tão variadas quanto os cheiros dos seus
incensos. Há santuários em que os mortos são vestidos com as cores da
glória, brilhantes esqueletos com o nome de heróis. São os que foram
sacrificados nos altares do Estado, travestido com o doce nome de
pátria. Ali se ouve o ruflar dos tambores e os corpos dos vivos
estremecem de emoção. Outros altares se chamam igrejas e ali se
ouvem canções lúgubres que dizem que é preciso que o corpo morra
para que a alma viva. Mas o profeta foge destes lugares e prefere olhar

132
dentro dos abismos e contemplar a morte sem consolos coloridos, em
todo o seu horror e feiura.
No profeta mora a alma de uma criança. Ele proclama o advento
da criança. E, como se sabe, crianças não gostam de enterros. Velórios
não são um bom lugar para se brincar. Ao invés dos velórios, os jardins.
O profeta sabe que não estamos destinados nem ao inferno e nem aos
céus, mas ao Paraíso, uma terra transfigurada onde os corpos dançam
e riem. O horror do inferno é compreensível: a dor do fogo e dos gelos
eternos. Mas e o terror dos céus? “nem barca, nem gaivota: somente
sobre-humanas companhias...” dizia Cecília Meireles, tristemente (FP
132)... Com o que T.S. Eliot concorda, ao falar na necessidade de
sermos protegidos “contra os céus e o inferno, que a nossa carne não
pode suportar” (CPP 119). O profeta não fala sobre a imortalidade da
alma. Ele espera pela ressurreição do corpo.
O profeta não anuncia o imperativo divino. Ele não é um mestre
de moral. Ele sabe que é impossível ordenar às pedras que voem. Como,
então, ordenar que os mortos voltem a viver?
O profeta também não é um líder político. Ele se coloca no lugar
onde a política chega ao fim, quando nada mais pode ser feito, a não
ser esperar que o Vento sopre. Suas ações não são ações políticas. Não
aconselham meios para determinados fins. A palavra profética é a
inversão da política. Não é de se espantar que produza o riso (Mt 9,24).
O profeta invoca o Vento. Ele chama o selvagem, o indomável,
o pássaro que nenhuma gaiola pode conter, o mistério que nenhuma
palavra pode dizer. Suas gaiolas estão vazias, não há espadas em suas
mãos e nem sabedoria alguma em sua boca. Ele é tão vazio quanto o
homem morto, dádiva do mar. Ele fala e espera que o Vento venha para
ressuscitar os mortos.
No Mito de Sisifo Albert Camus diz que “existe apenas um
problema filosófico verdadeiro, o problema do suicídio. Julgar se a vida
é digna ou não de ser vivida significa responder à questão fundamental
da filosofia” (MS 3). Desejo sugerir que existe apenas um problema
teológico verdadeiro que é a ressurreição dos mortos.
A palavra que ressuscita os mortos: donde vem?
Como é ela?
O Pe. Antônio Vieira, num dos seus sermões, indicou com
lucidez e beleza inigualáveis o lugar onde esta palavra é gerada:
“Os discursos de quem não viu são discursos; os discursos de
quem viu são profecias. Os Antigos, quando queriam prognos­
ticar o futuro, sacrificavam os animais, consultavam-lhes as

133
entranhas, e conforme o que viam assim prognosticavam. Não
consultavam a cabeça, que é o assento do entendimento, senão
as entranhas, que é o lugar do amor; porque não prognostica
melhor quem melhor entende, senão quem mais ama. E este
costume era geral em toda a Europa antes da vinda de Cristo, e
os portugueses tinham uma grande singularidade nele entre os
outros gentios. Os outros consultavam as entranhas dos animais,
os portugueses consultavam as entranhas dos homens. A
superstição era falsa, mas a alegoria era muito verdadeira. Não
há lume de profecia mais certo no mundo que consultar as
entranhas dos homens. E de que homens? De todos? Não. Dos
sacrificados. Se quereis profetizar os futuros, consultai as
entranhas dos homens sacrificados: consultem-se as entranhas
dos que se sacrificaram e dos que se sacrificam; e o que elas
disserem, isto se tenha por profecia. Porém, consultar de quem
não se sacrificou, nem se sacrifica, nem há de se sacrificar, é não
querer profecias verdadeiras; é querer cegar o presente, e não
acertar o futuro” (ICB XVII).
A palavra do profeta não nasce da cabeça, pois a cabeça é
impotente para fazer amor com o corpo. Não se dirige à cabeça,
tampouco, pois ele sabe que na cabeça só moram palavras claras e
distintas. Mas no corpo só entram palavras que foram escritas com
sangue.
O profeta diz o que está escrito dentro dos corpos dos mortos:
sonhos que foram abortados, gestos inconclusos, asas que não puderam
voar, desejos que não puderam engravidar. No corpo dos sacrificados
o profeta encontra as palavras para os seus poemas, presenças de
ausências, feridas que indicam o “pedaço arrancado de mim”...
As palavras
“estão paralisadas, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.”
O profeta
“chega mais perto e contempla...”
Cada uma
“tem mil faces secretas sob a face neutra”
e lhe pergunta:
“Trouxeste a chave?” (R 77).
Ah! É preciso que se tenha uma chave pois elas não rolam junto
das outras que se distribuem a granel. Longe dos jornais, que procla­
mam as novidades sempre velhas do mundo, elas só se revelam aos
poucos que sabem a língua que se fala nas ausências.

134
A eucaristia: uma refeição: pão e vinho, metáforas que crescem
das entranhas de uma vitima. Por séculos esta história tem sido usada
para dizer com palavras claras os modos da presença de Cristo na
eucaristia. Mas a eucaristia não explica uma presença: ela anuncia a
ferida de uma Ausência. O nome sagrado aponta para um Vazio.
“Fazei isto em memória de mim...”
A vítima ainda está presente. Mas nela “tudo era uma ausência
que se demorava: uma despedida pronta a cumprir-se" (FP 145).
O Testador tensiona o arco de Tânatos até o seu limite último.
Mas a corda não se quebra: continua a fazer soar o “cantus firmus”...
Corpo e alma contêm a Morte, a morte inteira, docemente, sem se
tomarem amargos. A morte pode ser transfigurada. Diante do Abismo,
a memória do Paraíso e a profecia de um mundo ressuscitado. Memória
e esperança nascem do amor que mora nas entranhas da Vítima...
O profeta come as entranhas da Vítima. A dialética da palavra
profética é a dialética do comer: come-se a comida para, em seguida,
ser-se comido pela comida. O profeta é possuído pelo Vento que mora
no alimento, e começa a falar línguas até então desconhecidas.
Pentecostes.
A etiqueta da Morte é quebrada.
E é como se todos estivessem bêbedos...
O profeta se encontra no fim do mundo. A Morte o segue, ao
alcance de sua mão. Está diaqte do Abismo, como a aranha.
Mas, por isto mesmo, por se encontrar no fim de um mundo, ele
se encontra também no início de um outro, encarando o caos e as trevas
face a face. É preciso morrer e ser enterrado. É preciso descer até as
profundezas do mar.
“As águas me cercam até a alma,
o abismo me rodeia,
e as algas se enrolaram na minha cabeça” (Jonas 2,5).
Batismo: metáfora de uma vida que nasce das profundezas das
águas.
As palavras do profeta não enunciam um conhecimento, pois na
fundura das águas só nadam peixes escorregadios. O conhecimento só
acontece quando se anda em terra firme, com pássaros engaiolados nas
mãos. Mas o profeta flutua ao sabor do Vento. Está à mercê daquilo
que não pode prever. Nenhuma análise de conjuntura o ajudará. É
verdade que seus pés tocam o chão, apenas como ponto de apoio para
sua dança de palavras pelo mundo das Ausências. Como pcxleria ele
prever o vôo dos pássaros ou anunciar os caminhos do Vento? “O Vento

135
sopra onde quer; ouve-se o seu ruído, mas não se sabe nem donde vem
e nem para onde vai...” (João 3,6). As palavras do profeta não são
ciência mas invocações, orações: encantações mágicas, poemas... Se
ele apenas descrevesse o mundo tal como ele é, nas suas palavras não
havería nada mais que mentiras e nenhuma verdade (Tolstoi). E os
moradores do vilarejo conversariam apenas sobre um cadáver, nada
mais que um cadáver. E os mortos não ressuscitariam.
Suas palavras nada sabem sobre o imperativo categórico. A
Morte é o fim da ética: nada há a se fazer. A vida não retomará pelo
poder da obra. Nenhuma práxis operará o milagre. O homem ético se
aterroriza diante do Abismo, pois ali suas certezas morais de nada lhe
servem. O que ele deseja é dissolver o mistério a fim de resolver o
enigma da vida por meio da análise da práxis. Ele volta suas costas para
o Abismo e faz de contas que sua teia está amarrada no fundamento
sólido do dever. Seus navios não se aventuram por mares desco­
nhecidos. Permanecem ancorados em águas rasas, onde naufrágios são
impossíveis. Ele fecha os olhos ao Abismo de sua própria alma.
Mas o profeta toma a Morte como sua conselheira e “goza a
liberdade interior do desejo prático” (CPP 119). Como um mestre do
Tao ele sabe que, para que a coisa certa aconteça, é preciso resistir à
tentação do fazer.
O profeta não se dirige aos mortos. Ele invoca o Vento.
Ele nomeia aquilo que não sabe, sabendo que há um saber e um
fazer além dele mesmo.
Diante do Mistério, a graça.
Penetra nos bosques escuros, mergulha nas águas profundas...
Deus: o nome sem sentido para a beleza que mora em algum
lugar...
A única coisa que ele possui é uma ferida na carne: a dor do
Desejo: nostalgia. “Inquieto está o meu coração”, dizia Santo Agosti­
nho.
Dentro do Vazio um universo vagarosamente se toma visível:
sonhos. Aquilo que não é... E eles são belos: um Jardim. O mesmo
Jardim que mora nas entranhas da Vítima. E eles sopram com o Vento
e, no cemitério, a vida aparece. Uma flor no deserto. O segredo da
esperança messiânica. Paul Tillich, num dos seus sermões, conta a
seguinte história:
“No julgamento dos crimes de guerra em Nuremburg, apareceu
uma testemunha que havia vivido durante um certo tempo num cemi­
tério judeu. Este era o único lugar onde ele e muitos outros podiam

136
viver, escondidos depois de escapar das câmaras de gás. Durante este
tempo ele escreveu poesia e um dos seus poemas era a descrição de um
nascimento. Numa sepultura próxima, uma jovem mulher deu à luz um
menino. O velho coveiro de oitenta anos, enrolado numa toalha de
linho, ajudava. Quando o menino deu o seu primeiro grito, o velho
homem orou: “Grande Deus, finalmente nos enviaste o Messias! Pois
que outra criança, a não ser o próprio Messias, poderia nascer numa
sepultura?” (SF 65).
O nome deste evento misterioso é “Beleza”: quando a vida, suave
e frágil, doce e vazia de qualquer mal, nasce da sepultura.
O poeta que escreveu este poema era o profeta, diante do vale de
ossos secos. E, na medida em que seu poema era lido e ouvido, é certo
que os rostos dos mortos foram iluminados por memórias do Paraíso e
esperanças de um mundo transfigurado.
E então, depois de o rosto liaver sido atingido pelo sopro do
vento, retoma-se da beirada do abismo. Mas tudo ficou diferente.
Agora se sabe que o conhecimento e a inteligência nada mais são
que “uma sombra da Beleza” (VRE 26) e que “a cabeça são as entranhas
do coração” (PN 128).
E se sabe também que a ética e a política são a coreografia de um
corpo que dança a criação do Paraíso.
Diante do Abismo, o começo de um mundo, a visão de Beleza.
Tudo o mais que fazemos são “variações” sem fim sobre o mesmo tema
básico, sobre o mesmo cantusfirmus: estamos destinados à felicidade.
“E depois de construir um altar
para a Luz Invisível,
poderemos sobre ele colocar
as pequenas luzes
para as quais os nossos olhos mortais foram feitos” (CPP 114).

137
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Nunc adeamus bibliothecam,


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problema teológico. De onde procede
a palavra que ressuscita o morto?
Aqui temos o começo de uma respos­
ta - mas numa forma que se opõe a
qualquer redução a uma definição
clara.
Rubem Alves é um misto de poeta-
profeta, e como um bom guerreiro
“desafia” as palavras, como fazia o
nosso poeta maior Carlos Drummond
de Andrade: “o profeta / 'chega mais
perto e contempla / cada uma / tem
mil faces secretas sob a face neutra /
e lhe pergunta: / Trouxeste a cha­
ve?’” A chave da sabedoria, da eterni­
dade, da poesia, pois Rubem Alves é
um poeta por natureza. Possui um
oísíros, um bichinho butucador, que
não o deixa sossegar, fazendo-o per­
correr pelo maravilhoso mundo da
fantasia.
"0 profeta toma a Morte como conse­
lheira e goza a liberdade interior co­
mo desejo prático. (...) Penetra nos
bosques escuros, mergulha nas águas
profundas... Deus: o nome sem senti­
do para a beleza que mora em algum
lugar...” - isto é, dentro de nós mes­
mos.
0 poeta, o guerreiro, o profeta é um
livro para todos os gostos: para aque­
le que é amante da poesia, para aque­
le que crê em Deus, para aquele que
curte a filosofia, e principalmente pa
ra aquele que ama a vida em toda a
sua plenitude. Viaje, com Rubem Al
ves, nesta obra e descubra a poesia
que há em você.

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