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Lucia Castello Branco (org.)

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Nngu ém tem verdadeiramente autoridade para f.;., da loucura colocando­
se fora dela. Sendo "a linguagem a est rutura primeira e última da loucura"
(Michel Foucault), quem fala da loucura utiliza a linguagem e, ao fazê-lo, entra no
. espaço da competência da loucura. E, se só de dentro da loucura se pode falar da loucura,
então essa fala é louca, mas não necessariamente. É que, se nem todos os que usam a
linguagem serão loucos, todos os loucos usam a linguagem e é nela que são considerados
como loucos. Assim també_m é nela, na linguagem, que se manifesta essa enorme zona
de �biguidade entre a loucura e a não loucura, pelo que. será difícil saber se quem fala
da loucura é louco ou não.
Assim se destrói qualquer possível ou impossível sombra de autoridade.
Por isso eu, que toda a minha vida me coloquei transgressivamente dentro da
linguagem, me sinto simultaneamente sem autoridade para falar da loucura (como
presumível não louco) mas também apto e competente para o fazer (como efetivo louco
da linguagem).
"Poesia é loucura da forma./ Eu suspenso das coisas, plasticidade da forma./ A
seriedade da forma não é nada do que parece./ É loucura, excess9, perdição/ a condição
não muda."
Isto escrevi eu quanto tinha 20 anos, e a condiçã<_:> não mudou. Hoje, aos 66...
antes se tornou mais evidente, nas provas provadas da minha linguagem escrita, por
vezes revestida de seriedade, mas onde "o desatino mantém a mesma relação com a razão
que o ofuscamento com o brilho do dia." (Michel Foucault).
No entanto deve ser desde já esclarecido que esse desatino ofuscante da
linguagem é, para mim, a minha razão de não loucura. É que a loucura não se escreve,
a loucura é-se na linguagem, "Nesse delírio, que é ao mesmo tempo do corpo e da
alma, da gramática e da fisiologia, é que começam e terminam todos os ciclos da
loucura." (Michel Foucault)
E, já que a loucura não se escreve, escrever é que é uma loucura, um desatino que
se paga caro! Razão tinham os ignorantes jornalistas que em 1915 taxaram de loucos os
poetas do O,pheu, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros e Angelo

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de Lima, este eficazmente encerrado por toda a vida num hospital psiquiátrico! Mas
quem fala em desatino, fala muito mais em tino, e este, rigorosamente, ninguém sabe o
que seja. No des, na negação, é que está a questão da recusa, da transgressão, da
marginalidade, talvez apenas formas metafóricas da loucura. Mas nesta palavra des-a­
tino, destaca-se a partícula "a" que a salva de ser, fatalmente, destino.
Por isso não me considero nem psicótico nem psicólogo, nem psicotriádico nem
psiquiatra, nem psicopsico nem psiconada. ·Por isso não me freudo, nem me lacano,
nem me foucaulto, etc., etc .. EU me EU, e eu me dano, evidentemente! - Eu curto a
vida, texto X texto, tal como o moço/a que escreveu edonisticamente, numa parede:

... tal como eu que _fotografei essa inscrição!


Eu que· há mais de. 45 ano.s .pratico como minha a linguagem das transgressões
escriturais, nos in-limites do dito-escrito. Por isso eu só posso escrever para este prefácio/
profax um texto de eros-dição, nunca de erudição, porque todos os textos dizem e são
de eros. Eles são a re-invenção da criação, sendo esta a manifestação fenomenal da
diferença entre o ser e o não ser.
Mas como quem inventa a diferença inventa ao mesmo tempo a norma em relação
à qual ela se diferencia, onde estará a diferença entre o poeta e o louco?
"Sabemos que talvez a mais nítida fronteira que se estabelece entre o poeta e o
psicótico consiste no fato de o poeta poder, na maioria das vezes, fazer-se sujeito em meio
à linguagem que o cerca e o assola, enquanto o psicótico permanece, de certo modo,
irremediavelménte assujeitado a esse mundo de palavras que parece falar através dele." Isto
diz-nos Lucia Castello Branco no texto que introduz este livro e penso que tem razão.
Uma vez assim colocada a questão, algumas perguntas subsistem, tais como: -
Se poeta e psicótico são assim diferentes, quais as diferenças das suas diferenças? -

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Quais as normas que um e outro transgridem? - Serão as normas da linguagem que o
poeta domina e transgride nas suas criações as mesmas que o psicótico desconhece e por
isso não cumpre? - Ou, transgredir é pura e simplesmente desconhecer? - E, o que é
conhecer? - Será conhecer saber que se não pode conhecer, mas que se pode sempré
escrever de um outro modo? - Mas a escrita de um outro modo não é a escrita da poesia?
Esse outro será certamente diferente, senão não seria outro. Mas se esse outro, em
vez de ser diferente é in-diferente, então ess-e é o louco. Isto porque "Não se lê com as
palavras dos outros" (Henri Meschonnic) nem principalmente se escreve com as palavras
dos outros (palavras que nos são indiferentes), já que as palavras não existem numa relação
biunívoca significante/ significado, mas a relação é espectral, através de um halo variável e
oscilante que as envolve, oculta e revela, na sua máxima capacidade de ser palavras. Palavras
que o poeta re-inventa, contr�la e assim faz suas. Por isso "Onde há obra não há loucura"
(Michel Foucault) e onde há invenção não há o outro (o demónio?) mas sim presença, já
que a obra está e é ESTA, por mais transgressiva que seja. Obra feita de letras. Letras que
são o veículo da presentificação que é o ato de escrever.
Quem trabalha com letras e faz as suas letras aparecerem numa superfície onde
nada existia anula o outro negativo, inviabilizando-o.
"LETRA - É FILH D HOM" escreveu Arthur Bispo do Rosário, talvez numa
tentativa desesperada de encontrar as suas letras para escrever as palavras de que precisava:

"EU PRECISO DESTAS


PALAVRAS. ESCRITA"

Ou então, numa presentificação de possível epistemologia fluida do texto poético:

escrever sim, mas antes o reverso. do eu. transformação. um complexeu


que se diz em retextos e retratos. atos de de-mostrar o que se vê sóvendo. errância
}úrica e lídica. este texto não é. ou lú(i)e(d)ica lír(ud)ica canção. mas sim. este
texto não é. o texto termina aqui. também o tempespaço é outro. erro. só o
tempo continua no espaçagoraqui. só o que termina aqui começalém. também
o espaço continua a invadir o que foi texto. as palavras e as letras agora invisíveis.
erro - erro de transmissão.
aqui termina o texto aqui termina aqui termina o fim. aqui termina o
texto. o nome do texto. o texto do texto. o que termina aqui. princípio.
não é possível nomear (erro) numerar o texto porque termina aqui o

título. o nome. a referência. a biografia.

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não é possível que o texto diga alguma coisa. diga o que diz. diga o seu
nome. diga o que não é. o que não. o que. o. o que é possível.
para lá o texto termina. o que não pode ser dito tem que ser dito. o que
não podemos dizer é o que dizemos. erro. não há erro científico. aqui é o fim
do nome do texto. do texto sem nome. do nome sem texto. do nome. do texto
sem fim. transfigura do erro. abdução. sem.
aqui não há texto. aqui não há o que há. não há o que não há. aqui não
há aqui. o texto termina ali. erro de ótica. o texto é cego (homero) o texto não
vê que não é texto. não vê que não é aqui que há texto. não vê aqui o texto que
termina aqui. fim.
post-scriptum - era uma vez um texto que terminou antes do fim. o
que não era texto continuou a não ser texto. mas o que era texto além do fim
transformou-se num texto que termina aqui. não: o fim virá depois. NÓS.

NÓS, pronome pessoal ou substantivo plural?


Outra presentificação é de F. Marques, nascido em 1931 no Funchal (Ilha da
Madeira), linotipista de profissão, que uma vez me procurou dizendo que na sua vida
tinha "derrubado 12 sumidades psiquiátricas e que era escritor!", trazia um livro de
poemas para eu ler e opinar, mas ele sabia "que a inteligência da sexualidade burguesa
me impediria de apreciar toda a profundidade ..."
Um desses poemas, incontestavelmente originais, era o seguinte:

vim = transformação
nunca = pai
só = marginalizado
não = cultura
NADA= VIDA

vim do nada
nunca tive nada
só brincava com o nada
não tive acesso a nada

é por isso que gosto tanto do NADA

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Para se ler este poema é obviamente necessário descodificá-lo de acordo com a
chave que o autor fornece. Assim um segundo nível de leitura, mais profundo, revela­
nos o seguinte:

transformação da vida
pai tive vida
marginalizado brincava com a vida
cultura tive acesso à vida

é por isso que gosto tanto da VIDA

As duas faces contraditórias deste poema, urna obscura e outra luminosa,


sinalizam o percurso existencial deste homem que pela cultura = escrita "derrubou
12 sumidades psiquiátricas" durante alguns internamentos· por que passou. É que F.
Marques era um excelente profissional de composicão gráfica e compunha os seus
poemas e textos filosóficos sobre o socialismo e sexualidade, diretamente na própria
máquina de compor, uma "linotipe". Mas com a evolução tecnológica não conseguiu
adaptar-se à composição informática, já que a obsoleta máquina onde produzia os
poemas foi desativada e ele foi deslocado para o departamento comercial da mesma
empresa, onde há anos trabalhava. Entrou então em profunda depressão e voltou a
precisar de acompanhamento psiquiátrico, embora sem internamento. Até que um
dia começou a mandar-me textos e mais textos escritos à mão, numa caligrafia
irregular, com erros de ortografia que antes nunca cometia e assinados com o
pseudônimo Ilhéu Brincalhão. Mas os textos não eram os mesmos, manifestando um
baixíssimo controle da escrita, quer nas articulações morfológicas, quer nas sintáticas
e, por conseguinte, semânticas. Eram escombros de textos, às vezes mesmo delirantes
com raros lampejos de intuição poética, mas sobretudo de abjeção em relação a
tudo, a todos e em relação a si próprio. Nada restava do anterior controle estruturante
da linguagem. O Ilhéu Brincalhão era de fato mais que um pseudônimo. Era a face
oculta, estilhaçada, negativa do psicótico Francisco Marques. Era o outro, demónio
ou deus (?) que o estava consumindo.
Em outra ocasião fui abordado por um jovem taciturno que me pediu auxílio
porque queria aprender a "vestir Deus". Passada a minha primeira perplexidade, respondi­
lhe que não possuía as medidas de Deus e o jovem afastou-se sem dizer palavra.
A leitura pode ser esta: o jovem queria ocultar, vestindo-o, o seu outro outro que lhe
aparecia como um deus insuportável, negativo, ou seja, um demónio. O vestuário exercia

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para de a função da escrita, isto é, qualquer coisa que recobre quer a nudez, sentida como
demoníaca, do próprio corpo, quer o branco angustiante do papel (vide Mallarmé).
Por outro lado, a minha resposta revela apenas a interiorização cultural da
concepção judaico-cristã de Deus, como um ser maior e desmaterial, para o qual não há
nome nem medida .

. . . . . .. . . . .. . . . . . .. . .. . . . . . .. . .. . . . . . . . .. . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . . . . . . . . . .. . . . . . . .. . . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . .. .. . . . . . . . .. . .. . . . . . . . . . .

Escritas/ escritos.

Neste texto limitei-me a alinhar alguns fatos, experiências, idéias, procurando


uma sintonia leiga com os textos, as experiências e as interpretações profissionais que
integram o livro a que a sua organizadora deu o título instigante de COISA DE LOUCO.
O amável pedido deste prefácio, que muito agradeço, não sei bem a que atribuí-lo,
se apenas à amizade, se ao reconhecimento tácito de algumas qualidades no meu trabalho
de escritor que certamente resultam de uma permanente e premente experimentação com
os materiais físicos e psíquicos da escrita, de que não é ausente uma concepção do mundo
como texto e um desejo de metamorfose do eu nessa mesma escrita. Manifestações estas
que para mim nada têm de loucas nem de não loucas, pois são uma terceira coisa· que é o
próprio meio de criar as minhas palavras e de sadi�ente sobreviver na fruição do poético,
isto é, no prazer das transformações sígnicas que são a própria vida.
Seja como for, muitas dessas transformações tomam a forma de perguntas para
as quais não temos respostas, como é o caso da loucura, porque ela própria ilude as
respostas e se metamorfoseia culturalmente nos tempos e espaços históricos. O que
ontem era consensualmente loucura será que hoje ainda o é? E amanhã?
Mas, felizmente, penso que também há respostas para as quais não têmos
perguntas. Uma dessas respostas é a capacidade de invenção criativa a que chamamos
poesia e/ou arte.
Era Picasso que dizia, ao cabo de uma vida de pesquisa e experimentação, qualquer
coisa como isto: EU NÃO PROCURO ' MAS ENCONTRO.

E.M. de Melo e Castro


São Paulo, Maio de 1998

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ste livro é resultado de uma pesquisa intitulada "A Devoração da Imagem:
o poético e o psicótico". Realizada durante quatro anos (1991 a 1995)
com o auxilio financeiro do CNPq, nela estiveram envolvidos, durante
o ano de 1991, três bolsistas de iniciação científica, alunos da Faculdade
de Letras e do Departamento de Psicologia da UFMG, e um bolsista de aperfeiçoamento,
psiquiatra e psicanalista.
Durante o ano de 1993, mais duas bolsistas de iniciação científica, também alunas
da Faculdade de Letras da UFMG, estiveram indiretamente ligadas à pesquisa, com seus
projetos individuais que, de fato, constituíam-se em desdobramentos de meu projeto
inicial sobre os tangenciamentos entre o poético e o psicótico.
E, hoje, quando já me encontro desenvolvendo uma terceira pesquisa através do
auxílio do CNPq ("Escritura e seus devaneios"), esta também um desdobramento da
primeira, outras duas ex-bolsistas de iniciação científica, alunas do Mestrado em Literatura
Brasileira da FALE/UFMG, trabalham em um projeto - "Quasi Modo: um livro
enlouquecido" - que se fundamenta nas hipóteses lançadas (e, acredito, confirmadas)
por essa pesquisa inicial. Essas alunas, Cynthia Barra e Cinara Araújo Soares, dirigem
atualmente uma Oficina de Letras no Hospital-Dia do Instituto Raul Soares, de Belo
Horizonte, e buscam, através dessa atividade, examinar, na fronteira da Literatura e da
Psicanálise, as relações entre escritura e loucura.
No primeiro ano da pesquisa sobre o poético e o psicótico, realizamos um
trabalho efetivamente conjunto, em que criamos, a partir de "entrevistas" semanais

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com pacientes psicóticos do Instituto Raul Soares e de um trabalho de oficina literária
por mim realizado na Clínica Central Psíquica, de Belo Horizonte, algumas formas de
abordagem do processo de escritura com pacientes psicóticos.
A hipótese fundamental que norteou nosso trabalho consisti a, não em demonstrar
o quanto havia de "loucura" na poesia, ou o quanto havia de "poesia" na loucura, mas,
antes, em investigar que fenômenos de linguagem eram operados na psicose e de que
maneira (e até que ponto) esses fenômenos tangenciavam aqueles que se operavam
também na poesia. Durante toda essa investigação, estava claro para nós que o fato de
os efeitos de linguagem muitas vezes se aproximarem não significava que o fator que
impulsionava esses efeitos e, sobretudo, a maneira como eles se realizavam seria
necessariamente análoga. Ao contrário: sabemos que talvez a mais nítida fronteira que
se estabelece entre o poeta e o psicótico consiste no fato de o poeta poder, na maioria
das vezes, fazer-se sujeito em meio à linguagem que o cerca e que o assola, enquanto o
psicótico permanece, de certo modo, irremediavelmente assujeitado a esse mundo de
palavras que parece falar através dele.
Nosso trabalho, que inicialmente se restringia a uma investiga ção teórica destituída
da pretensão de produzir efeitos sobre a clínica psicanalítica com psicóticos, acabou por
ampliar-se além de seus objetivos, através das atividades de Oficina de Letras que fomos
desenvolvendo, e, afinal, foi amplamet;tte disseminado em Belo Horizonte, sobretudo
através da atuação do bolsista de aperfeiçoamento, Musso Garcia Greco.
Através dos subsídios teóricos oferecidos por essa pesquisa, o bolsita conduziu a
implantação das primeiras Oficinas de Arte em Belo Horizonte, no Centro de Convivência
Arthur Bispo do Rosário, do Instituto Raul Soares. Esse trabalho teve seus desdobramentos,
inspirando a criação de espaços de Oficina de Arte em outras instituições públicas de Belo
Horizonte e de outras cidades do estado de Minas Gerais.
As chamadas oficinas terapêuticas fazem parte das estratégias antimanicomiais
de reabilitação social de pacientes psiquiátricos. Essas oficinas vêem na Arte um recurso
para inserção do doente mental na sociedade, através da possibilidade que a Arte oferece
de funcionar como fonte inesgotável de construção de novas linguagens. O trabalho
com a Literatura, em particular, parece ter produzido resultados efetivamente
importantes, não só por se situar no registro da Arte - e, portanto, no registro da
construção de novas linguagens -, mas sobretudo por se constituir através de
procedimentos que operam diretamente com a letra, com o escrito, elementos
fundamentais na estrutura psicótica.
Hoje, quando vemos várias instituições desenvolvendo experiências similares,
quando vemos uma série de exposições locais de Letras e Artes em que a loucura e a

...

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criação exibem seus territórios limítrofes, quando rec<?nhecemos, em algumas produções,
exercícios que criamos no início desta pesquisa como uma forma de fazer o escrito
acontecer e circular, constatamos, com satisfação, que é possível e fundamental que o
trabalho teórico do pesquisador extrapole os limites da universidade e comece a interferir,
de maneira direta, em manifestações culturais da comunidade.
Tudo isso, somado à riqueza do material que produzimos e coletamos durante a
pesquisa, levou-me a organizar este Coisa de Louco, livro que pretende se apresentar não
só sob a forma de palavras, mas também, quem sabe, sob a forma da coisa que a palavra
é: coisa de louco. Por esse motivo, e porque a beleza e a contundência do trabalho
artístico de Arthur Bispo do Rosário são impactantes, fragmentos de sua obra, exposta
no Museu de Arte da Pampulha, em 1990, e fotografada por Tânía Anaya, disseminam­
se pelo livro como emblemas, assinaturas, cicatrizes.
Assim, organizado em quatro partes ("desvario, sim, mas tem seu método''), este
Coisa de Louco se divide em "Ensaios", "Escritos", "Objectotens" e "Entrevista".
Na primeira parte, "Ensaios", que se subdivide em "As Palavras da Loucura" e
"A Loucura das Palavras", temos os textos produzidos por mim e pelos bolsistas,
acrescidos de um texto cedido por uma aluna do Doutorado em Literatura Comparada,
Maria Angélica Melendi de Biasizzo, a artista plástica Pitti. Esse texto, em que o olhar
da artista se inscreve sobre as obras de Bispo, foi produzido como trabalho final de uma
disciplina por mim ministrada no Curso de Pós-Graduação em Letras, em 1 995, em que
procuramos justamente examinar as relações entre escritura e loucura.
Na segunda parte, "Escritos", reuni produções de pacientes psicóticos, compondo­
as, às vezes, com poemas de escritores conhecidos do público leitor, como na página
que se intitula "O Escritor", em que um texto da poetisa portuguesa Ana Hatherly se
coloca lado a lado ao escrito de um psicótico, dele se aproximando de maneira evidente
em sua concepção gráfica.
A terceira parte, intitulada "Objectotens", consiste de um ensaio fotográfico de
Renato Athayde, a partir da obra de Teresa, artista da cidade, andarilha das ruas dos
bairros Gutierrez, B�oca e Prado. Como se percebe, os trabalhos de Bispo e de Teresa
aproximam-se, por essa tendência à escritura, do ponto de letra, da palavra em sua face
coisal. Coisa de poeta, coisa de louco.
A quarta parte, "Em Idioleto Manoelês Archaico", consiste de uma entrevista
com Manoel de Barros, em que o poeta se detém em questões relativas aos limites
entre a poesia e os territórios do inominável: a loucura, o misticismo, o erotismo, a
materialidade da palavra. Essa entrevista, realizada por mim e por Luís Henrique Barbosa,

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é parte final . da dissertação de mestrado desse aluno, intitulada "Palavras do Chão: um
olhar sobre a linguagem adâmica em Manoel de Barros". Pode-se dizer que o trabalho
de Luís constitui-se numa primeira elaboração acadêmica dos resultados desta pesquisa.
Coisa de louco: a palavra. Coisa de louco: escrever a loucura. Escrever a loucura
que a palavra é: coisa de louco, poesia. Este livro pretende não só refletir sobre estes
limites, como também exibi-los, sem tantas mediações, aos olhos do leitor.
"A imagem é peremptória", diz Barthes. A loucura e a poesia são também
peremptórias. Àquele que acolhe a loucura (e também a poesia) talvez não reste outro
lugar que o de "secretário do alienado", como sugeria Lacan. Organizar, arquivar,
expor, interferir sem ferir. Este Coisa de Louco pretende efetuar esse gesto: escrever a
loucura e a poesia, e não exatamente sobre a loucura e a poesia. Escrever a loucura e a
poesia em seus tangenciamentos, mas sobretudo em sua peremptoriedade, em sua
alteridade radical.

Lucia Castello Branco

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I - Ensaios ............................................................................................................................ 17

1 . A Loucura das Palavras 19

Então a vida é isto .................................................................................. 21


Palavra em ponto de P ........................................................................... 33
Epifaniar, vociferir, vociferar ................................................................. 49
De uma escrita que não seria a da impostura ......................................... 59
Loucuraturas ........................................................................................... 71
Suz/o/suz ................................................................................................ 83
Fragmentos sobre as infinitas possibilidades do esquecimento 95

2. As Palavras da Loucura 115

Lacan com Gil 117


Em Nome do pai, em nome do filho 131
Pensa-se-lhe que es-me amatur Dei ........................................................ 141 ·
·n a elasticidade da palavra ...................................................................... 151
O real do gozo e a concrctude da palavra ............................................. 159
Quasi modo .. ..... .. .. ....... .............. .... .............. .......................................... 163

I I - Escritos 167

O escritor ................................................................................................ 168


Ônibus, carrinho, formiguinha, elefante ................................................ 169
A vida é bela .......................................................................................... 170
Paranóia - masturbação - controle emocional ....................................... 171
Miolos/ calvo/ couro/crânio/cabeça ........................................................ 172

III - Objectotens ............................................................................................................ ..... 173

IV - Entrevista .................................................................................................. .................. 1 82

"Em Idioleto Manoclês Archaico" ........ .................................................. 183

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passagem pela terra" .

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! - Ensaios
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Escrever é tornar sua a linguagem.


(Michel Schneider)

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1. ALoucuradasPalavras

Tinha nas mãos uma porção de excremento


humano, que tentava moldar numa sup eifície de
poema; mas a angústia, de modo imerecido, fazia-o
saber que a loucura era a mente estar com
o poema, e o corpo ausente.
(Maria Gabriela Llansol)

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Lucia Castello Branco

Como as indumentárias femininas,


que escondem depressões tenazes, a beleza se
manifesta como o rosto admirável da perda,
ela a metamorfoseia para fazê-la viver.
0 ulia I<risteva)
Já que não podemos extrair bele�a da vida,
busquemos ao menos extrair beleza de não poder
extrair beleza da vida.
(Bernardo Soares)

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b"uscar uma articulação entre a literatura e a morte para
se pensar, na verdade, sobre a conjugação teórica que
reside na base dessa proposta - a literatura e a psicanálise -, não há como fugir
de uma incômoda suspeita de lugar-comum. Afinal, os que trabalham com a
literatura (e os que trabalham com a psicanálise) sabem com que freqüência (e
com que densidade) a morte habita esses universos.
O que quero dizer é que a morte é um lugar já velho conhecido daqueles
que transitam nos universos do literário, embora, paradoxalmente, esse lugar
continue se apresentando nos textos, nas leituras que produzimos, como um lugar
absurdamente estranho, estranhamente incomum.
Afinal, a escrita e a morte possµem estreitas relações: as palavras, ao se
erigirem no lugar do que se perdeu, antes exibem essa perda que a obturam,
dizendo-nos, ao se colocarem ali, naquele texto, que exatamente ali alguma coisa
(precisamente a coisa) se perdeu.
Se isso se dá com qualquer escrita, com qualquer texto e, de maneira
especial, com o texto literário, o que dizer então de um texto que se debruça
exatamente sobre o tema da morte e do luto para nos falar em detalhes desse
intratável, dessa singularidade absoluta em que consiste a dor da perda?
Aqueles que trabalham com a literatura· sabem que bons sentimentos
(ou sentimentos louváveis) não são suficientes para se fazerem bons textos. Sabe­
se também que a literatura e a realidade mantêm estranhas relações: aliás, é
sobretudo de uma reversão dessa suposta realidade que a literatura se alimenta.
O que dizer, portanto, de um texto literário ou, mais precisamente, de um
texto poético que se constrói explicitamente a partir da mais concreta, da mais
dura e da mais real das realidades?
Refiro-me a textos que não só se es crevem a partir da morte, como
também pretendem descrever, em sua matéria bruta, a própria morte: elegias,
epitáfios, textos funerários que não escamoteiam a perda, mas, ao contrário,
exibem-na, fazendo-a fulgurar no esplendor de uma beleza estranha. É dessa
absurda matéria bruta que se constrói, por exemplo, essa inabordável elegia
rupestre de Sebastião Nunes:

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Levi Araújo Nunes nasceu no Serro, MG, de onde fugiu
aos 1 5 anos, depois de uma briga a tiros na qual feriu
(ou matou) alguém, se mjnha avó Antoninha nao
estava delirando. Participou de duas ou três badernas
militares, por idealismo, gosto de aventura e falta do
que fazer. Me ensinou que preguiça e
irresponsabilidade sao grandes virtudes, mas exigem
coragem e astúcia. Sempre quis que eu escrevesse
como Guerra Junqueiro, o único poeta que admirava.
Casou-se um dia antes da morte de minha avó
Etelvina e, com as 4 vacas da herança, abriu uma
venda em Bocaiúva, MG, onde se asilou para sempre.

(Elegia rupestre para Levi Araújo, o menor dos Nunes)

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duas e meia da tarde. 1 O de junho d� 1 984 .
mãos secas. pés juntos. algodoais no nariz . .
véu negro sobre o rosto: tímido noivo de verm es.
rotineira terra roxa sobre o cadáver de cera.
--
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vai em bora levi e seus 40 quilos de osso.
vai embora o enfisema: missão cumprida.
vão em_bora pescarias. cigarros de palha. tosses.
revólver na cintura. carteados. o olho de cobra.

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o coveiro sua e pragueja: antes ele do que eu.
foi tudo muito rápido. silencioso. sem queixas.
1 metro e 58 e nunca confessou nada. nem a padre.
nunca pediu nada. nunca aceitou nada. nem de deus.

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tão pequeno para um orgulho tão grande.
feroz como todos os pequenos. duro como diamante.
até que finalmente tudo passou - e nada.
que diferença faz? séculos ou mitos ou segundos:
grandes ilusões rastejam entre lagartixas.

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e então é verdade: então a vida não passa disto:
um sopro: um cisco no olho: um sopro: e nada.

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Escrito a partir de um fato concreto da mais banal das realidades cotidianas
- a morte do pai -, como indica a explícita nota introdutória do poema (que
funciona como uma inscrição da memória do sujeito no texto), "Enfisema
Pulmonar" oferece-nos o olhar do filho perplexo diante da morte do pai. E o que
vê o filho? O filho vê os olhos do morto, que são os olhos do pai morto, que aqui
são os olhos de uma foto congelada em 3 por 4 e em preto e branco a nos dizer
que a vida não passa disso.
A tarja preta, signo explícito do luto e da morte, com sua moldura preta,
ora circunscreve a foto (mas não toda a foto, apenas meia foto), ora é vazada por
uma imagem absurdamente branca, desbotada, que também assinala a morte, ora
é rompida pelo branco da página que literalmente atravessa a foto e faz o olhar do
morto saltar mais nitidamente aos olhos do leitor, também ele a essas alturas
"morto" por essa imagem que não assinala outra coisa senão a ausência, a lacuna,
o silêncio e o nada absolutos.
Como se não bastasse essa enunciação imagética, o texto escrito vai nos
falar explicitamente, reiteradamente, obsessi�amente, desses olhos do morto, desse
corpo de um pai morto que agora vai embora com seu "véu negro sobre o rosto",
com "seus 40 quilos de osso". Vai embora mas não vai. Porque na literatura essa
morte é irremediavelmente de outra ordem. E o que fica do morto é curiosamente
o branco que o negro das tarjas, do véu negro e da rotineira terra roxa fazem
sobressair. E o branco do morto é ainda a morte, mas uma morte de outra espécie,
porque recoberta (embora nunca escamoteada, nunca suturada) pelo véu da beleza:
"algodoais no nariz".
Violência branca, que é também o branco da página, que é também o branco
de uma tarja branca· que empalidece o resto de rosto do pai na foto 3 por 4, que é
também a branca incisão que reparte esse rosto em várias cisões e que faz repetir o
olhar do morto, essa violência se cristaliza exatamente no cisco no olho (do pai? do
filho? do leitor?) que aponta decisivamente para o nada:" um sopro: um cisco no
olho: um sopro: e nada".
E os algodoais no nariz permanecem. E falam-nos· dessas terras das Minas
do pai e do filho - e de suas brancas plantações -, mas falam-nos também e ao
mesmo tempo dessas narinas de um morto que não respira mais. E aí o sopro que
já não sopra, e aí o enfisema pulmonar: "missão cumprida".
Ares, sopros, pulmões, enfisema: "tumor originado pela infiltração do
ar ou formação de um gás nos tecidos". O ar e a falta de ar. Essa falta do ar, que
é também a falta de Eros, a falta de vida (lembremo-nos, com Lacan, da

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"erogeneidade respiratória"), Sebastião Nunes vai encenar com seu olho-voz de
filho, ao olhar o olho-não-voz do pai de algodoais no nariz. E assim uma
respiração sincopada, espasmódica, interrompida, atravessa todo o poema : "duas
e meia da tarde. 1 0 de junho de 1984./ mãos secas. pés juntos. algodoais no
nariz." Aqui jaz o morto, diz-nos o poema. Aqui jaz o corpo do morto. Haverá
algo mais real do que um corpo? Haverá algo mais absurdamente real do que
um corpo morto?
O poema não responde. Porque os mortos não falam. O poema-cadáver
de cera sabe que o luto é menos esse buraco negro e sem fundo que uma superfície
branca e de poucas palavras, atravessada por um rosto-superfície de cera, ele
também atravessado por uma tarja-superfície preta. Afinal, "foi tudo muito rápido.
silencioso. sem queixas". Afinal, "finalmente tudo passou - e nada".
Na visão desse mundo monotonamente branco e sem queixas, desse
1
mundo "que se torna pobre e vazio" , como assinala Freud acerca do luto, fulgura,
inabordável, a beleza, esse último anteparo ante o horror do Re�l, como diria
Lacan. Nessa encenação exemplar do luto, o poema de Tião Nunes marca sua
diferença com relação à palavra do melancólico, esse prisioneiro de um luto
patológico, dessa perda irreparável de um objeto amoroso, sem que lhe seja
permitido saber exatamente o que perdeu nesse objeto de amor2.
Por isso é possível, ao poeta, falar dos "algodoais no nariz", evocando a
irrefutável beleza da "rotineira terra roxa sobre o cadáver de cera". Por isso lhe é
possível mimetizar esteticamente os ritmos e as intermitências de um pulmão
que morre, infiltrado por um enfisema. Por isso lhe é possível concluir, com
certa aceitação inquestionável, que então a vida não passa de um cisco no olho.
Assim, discretamente adornado pelo véu da beleza, a elegia rupestre enterra o
pai: missão cumprida.
Entretanto, ao trazer para a página branca de novo o rosto do pai, através
de uma fotografia em 3 por 4 que mais assinala a morte que a escamoteia, pode-se
dizer que o poema de Tião Nunes de certa forma desenterra o pai e insiste em
exibir sua presença mortífera aos olhos do leitor. Dessa maneira, ao encenar o
luto nessa superficie branca - e preta - da página, como poeta que sabe dos
símbolos (mas também da assimbolia), Tião Nunes termina por mimetizar, no
tom de sua elegia rupestre, a palavra do deprimido, tal como a define Kristeva:

1
FREUD. Luto e melancolia, p. 278.
2
Ibidem, p. 277.

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Lembre-se da palavra do deprimido: repetitiva e monótona. Na impos­
sibilidade de encadear, a frase se interrompe , esgota-se , pára. Mesmo os
sintagmas não chegam a se formular. Um ritmo repetitivo, uma melodia
monótona vêm dominar as seqüências lógicas quebradas e transformá-las
. recorrentes , enervantes.3
em litantas

Repetitiva e monótona. Espasmódica, interrompida, esvaziada de sentido:


"então a vida não passa disto". Nesse momento, a elegia rupestre marca também
o seu parentesco com a palavra do deprimido e, ao fazê-lo, fala-nos também do
tangenciamento entre o luto e a melancolia, como assinalou Freud. Porque o pai
morto, embora enterrado sob o peso da terra roxa e dos vermes, retorna como
um fantasma, como uma aparição, e seus olhos de morto estão aí para nos dizer
também que essa morte existe, que essa morte insiste, e especularmente se reproduz
nos olhos do filho que, com seu olhar funéreo, vê apenas o cisco, o sopro e o nada
a que a vida se resume.
Um olhar distinto, mas curiosamente semelhante, é o olhar do psicótico,
esse morto em vida que não cansa de assinalar, na superfície de seus olhos de
cadáver, que a vida não passa disso. Semelhante ainda é a palavra do psicótico
que� em sua melancolia, em sua trajetória radical de sujeito permanentemente em
luto, termina por soçobrar no branco da assimbolia.
Assim foi a palavra do profeta Elias, louco de "loucura artificial", que foi um
dia "ligado por um satélite" e que então se iniciou em sua linguagem de galáxias:
''Minha história se confunde com a história do mundo. Meus olhos são olhos de um
morto." E assim repetitiva e monótona foi a não-palavra de uma mulher que, num
sábado qualquer de uma manhã no Hospital Raul Soares, atravessou o pátio das loucas
com sua cara de cera, seus olhos de vidro e suas narinas entupidas de casca de laranja.
''Estou morta", ela parece dizer. "Olha como meus olhos são olhos de morta".
A diferença parece residir exatamente no como se, nesse salto para o
simbólico que o poema efetua e que o psicótico, em sua assimbolia, não consegue
realizar. Ambos, no entanto, embora de maneiras distintas, parecem estar
irremediavelmente atados à "coisa finda" :

O deprimido não fala de nada, não tem nada do que falar: aglutinado à Coisa
(Ru), ele não tem objetos. Esta C� isa total e não-significável é insignificante:
é um Nada, o seu Nada, a Morte.

3
KRISTEVA. Sol negro; depressão e melancolia, p. 39.
4
Ibidem, p. 53.

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...

O poeta, contudo, sabe - com sua foto 3 por 4 encenando a morte - que
o que ali jaz não é o corpo do pai morto, mas um signo desse corpo que encena,
reitera, exibe a morte, e justamente nesse gesto faz dela outra coisa, coisa literária.
E nisso constrói a beleza, a sua beleza singular. Para o louco, para o melancólico,
não há anteparos: "meus olhos são olhos de um morto". Das narinas do louco
não nascem algodoais.
Ambos, no entanto, no luto ou na melancolia, sabem de certa forma
desse horror, sabem desse sopro intermitente e angustiante que a palavra sempre
é, essa casca frágil a recobrir tenuemente o vazio inaugural a que o sujeito afinal se
reduz: "um sopro: um· cisco no olho: um sopro: e nada."

Referências Bibliográijcas

BRANCO, Lucia Castello. A devoração da imagem; o poético e o psicótico. Projeto de pesquisa


aprovado pelo CNPq em 1991. (Em andamento) ..
FREUD, Sigmund. À: história do movimento psicanalítico: artigos ·sobre metapsicologia e outros
trabalhos. Trad. Themira de Oliveira Brito, Paulo Henriques Brito e Christiano Monteiro
Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1 974. P. 271-291: Luto e melancolia. (Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 14).
--""""· O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. Trad. José Octavio de Aguiar
Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1 969. P. 1 5-1 08: Notas psicanalíticas sobre um relato
autobiográfico de um caso de paranóia. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, 12).
KRISTEVA, Julia. Sol negro; luto e melancolia. Trad. Carlota Gome�. Rio de Janeiro: Rocco,
1 989.
LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Inês Oseki-Depré. São Paulo: Perspectiva, 1 978. P. 275-31 1:
Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano.
NUNES, Sebastião. Antologia ma111al11ca e poesia inédita. Sabará: Edições Dubolso, 1 979. P.
56-61. V. 2. Enfisema Pulmonar.

....
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PAIAVRA EM IDNID DE P
Lucia Castello Branco

Quero pintar uma tela branca. Como se faz?


É a coisa mais difícil do mundo. A nudez.
O número zero. Como atingi-los? Só chegando,
suponho, ao núcleo último da pessoa.
(Clarice Lispector)

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uma vez uma mulher que levou anos querendo
escrever uma história começando co'm "era uma
vez". EmJugar disso, escreveu coisas muito diferentes, coisas que começavam
com gritos de aleluia, ou com gritos de ave de rapina, e que terminavam no sopro:
''Eu ... eu... não. Não posso acabar. Eu acho que..." 1 É que essa mulher, a história
dessa mulher, já começava pelo meio: "Minha vida começa pelo meio como eu
sempre começo pelo meio, aí vai o meio. Depois o princípio aparecerá ou não". 2 A
perplexidade não impediu que essa mulher construísse um nome e terminasse por
oferecer a seus leitores, como resultado de uma extraordinária alquimia, esse texto
impossível do branco sobre o branco, que soa como um "delírio psicótico
sublimado''.3 Esse texto, que hoje reconhecemos ao menor som, ao menor sopro,
reduz-se então a um traço, a um ponto, a um nome próprio: Cl�ce Lispector.
Todo o problema, parece-me (e assim parece parecer também a Clarice), é
que no princípio era o verbo. E o sujeito é desde sempre no meio. Como fazer, então,
com que, em meio a essa história que começa sempre pelo meio, algo da ordem de um
princípio, de um começo, possa advir? Essa questão, a que se reduz toda trajetória
poética, não passa, afinal, da questão do sujeito no simbólico. E como é somente a
partir do p·onto que a significação se completa, talvez pudéssemos inventar aqui um
começo justamente pelo ponto, quem sabe não o ponto final, mas o ponto de fuga -
um ponto imaginário no infinito, para o qual convergem todas as linhas mestras4 -
ou o ponto de furo: "furo feito com agulha em qualquer tecido", diz o Aurélio. 5 E
imediatamente a imagem de um outro surpreendente artista brasileiro, dessa vez um
louco assumido, se sobrepõe: Arthur Bispo do Rosário.
Arthur Bispo do Rosário, interno da Colônia Juliano Moreira, onde passou
grande parte de sua vida até morrer, dedicou-se, sob as ordens de Deus, a sua
reconstrução do mundo, através de um trabalho em artes plásticas em que se faz

1
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 162.
2
LISPECTOR, citada por BORELLI. Clarice Lispector; esboço para um possível
retrato, p. 15.
3
FOUQUE. Editora francesa lançará toda a obra de Clarice. Folha de São Paulo,
p. 6-10.
4 GUILLEN, citado por PORTUGAL.
5
FERREIRA. Peq11e110 dicio11ário brasileiro da lí11g11a port11g11esa.

◄1

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evidente o extenuante exercício com o significante, com a grafia e com a letra:
com a escrita em seu ponto de furo. Afinal, Bispo não fazia mais que bordar
pequenas imagens e palavras, ou pequenas imagens recobertas por linhas e
palavras, coisas ordinárias do mundo cotidiano que ele renomeava, redefinia,
relançava a ponto de dicionário. Sobre uma telha recoberta de linha azul,
escrevia: "telha - cobre vossa moradia". Sobre um pedaço de muro coberto
de cacos de vidro, escreveu: "Assim eu devo construir o muro que fica no
fundo da minha casa".
Se a casa do louco, porém, não tem muros, se não há muro da linguagem
que o defenda da enxurrada de significantes que o assola, que espécie de muro é
esse que Bispo constrói, ao renomear tão singularmente o universo?
Não muito longe daqui, não muito longe de Bispo, uma outra mulher, a
portuguesa Maria Gabriela LLansol, surpreende-nos com uma alquimia da mesma
ordem e, numa conversa imaginária da narradora com seu cão, escreve:
Principio a recorrer às palavras que anunciam a realidade.
- Por que brincas? Por que não brincas? Por que brincas sozinha?
- Por necessidade de te conhecer. De conhecer-te - respondo.
- Entraste no reino onde sou cão. Pesa a palavra.
- Eu peso.
- Desenha a palavra.
- Eu desenho.
- Pensa a palavra.
- Eu penso.
- Então entraste no reino onde eu sou cão - concluiu ele. 6

Entrar no mundo onde o cão é cão reduz-se, afinal, a toda a tentativa de


Llansol com sua escrita, em que uma "rapariga que teme a impostura da língua"
busca atingir uma linguagem sem impostura, um mundo sem metáforas onde as
coisas são o que são e a palavra não é mais que a pele, a delicada película que as
recobre: "Pode a linguagem sair de si mesma?", a Narradora indaga em outro de
seus livros. 7 A Autora parece crer que sim: ''Veja bem," - ela me diz - "a língua
é uma impostura. Mas é possível, em algum momento, atingir a linguagem, a
língua sein impostura. É isso o que o meu texto quer. Quando me perguntam se

6
LLANSOL. Amar 11m ,ão.
7
LLANSOL Da rebe ao rer, p. 12.

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escrevo ficção, tenho vontade de rir. Ficção? Personagens que acordam, dormem,
comem? Não, não tenho nada a ver com isso.· Para mim, não há metáforas. Uma
coisa é ou não é. Não existe o como se. O que escrevo é uma só narrativa, que
vou partindo, aos pedaços".8
É, de fato, aos pedaços que a narrativa de Llansol se apresenta ao leitor:
fragmentária, singular, franqueando os limites entre a memória e a ficção,
estilhaçando o sujeito, essa escrita, começada pelo meio (como a de Clarice),
atravessada pelo meio (como a de Clarice), busca sempre a coisa que o signo já
não é, como se possível fosse, busca o além da linguagem, o impronunciável,
o Real.
Só assim, a partir da redução da narrativa ao ponto poético da palavra, e da
redução da palavra a seu ponto de letra, a seu ponto de p, pode-se renomear as
coisas, acreditando, quem sabe, que os nomes de fato não são nomes, mas as coisas
mesmas, em sua singularidade, em sua corporeidade, em sua matéria bruta:
Nomeio-lhe
a tília, a erva cidreira, a lucialima, o pessegueiro de jardim, o loureirô, a
sementeira das plantas aromáticas de Provença, o linho, a salsa, os coentros,
a arruda, meio da terra formada por bancos de pedras circulares - o alecrim,
a sálvia, as chagas, o rosmaninho.9

MIOLOS / CALVO / COURO / CRÂNIO / CABEÇA /


REMELA/ AZUES /PRETOS / AVISTA / OLHOS /
PESTANAS /ESPIRA / A RESPIRAÇÃO / NARIZ /
ROSTO / TESTA / SOMBRANCELHAS / NUCA /
LARINGE / PESCOÇO / TRONCO f OMBROS /
VEIA / DA FACE / ARCA / ANGINA / DO PEITO /
COSTELAS / CIRCULAÇÃO / PULMÃO / ABDOME /
FIGADO / RINS/ VERMES / LUBRIGAS /
INTESTINO / UMBIGO / BIXIGA / URINARIO /
MEMBRO / SEXUAIS / POTENCIA / BACIA /
ESPERMO / COTOVELOS / CANHOTO- MUSCULA
TURA / ANTES / BRAÇOS / PULSO / PAI.MAS
DA MAO / POLEGARES / MIDIM / DEDOS /
CORRE / CAMINHAR / BATATA / CANELA
DAS / PERNAS / ARTICULAÇÃO / ROTAS /
TORNOZELOS/ JOELHO / COXA /
METATACIANOS / OSSOS / FIBRA / UNHAS /
PES / AGUA / NECESSIDADE DE BEBER /
JOANETE / CAJ.CANHARES

8
LLANSOL, citada por BRANCO. Encontro com escritoras portugu esa s, 1993 .
9
Ibidem.

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Desse processo "coisa!" da redução da palavra a seu ponto de materialidade,
à própria materialidade da letra, os poetas e os psicóticos parecem saber bem. É
Manoel de Barros, poeta contemporâneo sul-matogrossense, quem nos diz: "Faço
confiança nesses fazeres de ir descascando as palavras. E como chegar ao caroço,
ao lírio seminal de cada uma? Como encontrar as funções todas de uma palavra?10
E é também Manoel de Barros quem opera essa redução da palavra a seu caroço,
quando, poeticamente, declara:
- E martelo
grama de castela, móbile
estrela, bridão
lua e cambão
vulva e pilão, elisa
valise, nurse
pulvis e aldrabas, que são?

- Palabras.11

Não é preciso procurarmos muito no mundo do louco para constatarmos


que esse processo lhe é familiar. Basta uma rápida leitura dos textos bordados de
Arthur Bispo do Rosário, por exemplo, para que essa primazia do significante e,
mais ainda, essa redução da palavra a seu ponto de letra saltem aos olhos de quem
lê, como saltam, da superfície branca dos panôs, os seus altos- relevos.
"Miolos/ calvo/ couro/ crânio/ cabeça/ remela/ azues/ pretos/ avista/
olhos/ pestanas/ espira/ a respiração/ nariz/ rosto/ testas/ sobrancelhas/ laringe/
pescoço/ tronco/ ombros/ veia/ da face/ arca/ angina do/ peito", ele escreve em
um dos panôs, em que se alinham muitos outros nomes, pedaços de um corpo
fragmentado, e que termina com o nítido movimento de redução da palavra à
letra, seguido de uma peremptória assertiva acerca de sua louca verdade e da função
fundamental da escrita em sua obra: " No peito traz águia e nome/ nomes proprio
com Aracy/ Aracajú/ Arthur/ Argélia/ A (...) Eu preciso destas palavras. Escrita"12
E num outro panô, em que se listam nomes próprios - nomes de pessoas,
cidades e instituições -, novamente essa verdade se revela, não sem antes ter-se

10
BARROS. Uma palavra amanhece entre aves, p. 342.
11 BARROS. Desarticulados para viola de cocho p. 174.
,
12
Todas as anotações de textos de Arthur Bispo do Rosário fo� colhidas de sua
obra que esteve exposta no Museu de Arte de Belo Horizonte, cm julho/agosto
de 1990.

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dado a trituração da palavra a seu ponto de estilhaço, a seu ponto de poeira, a seu
ponto ·de p: "Antonio Azevedo - Atendente Nucleo Ulisse Viana Centro
psiquiatrico Jacarepagua) Arundo Brum - Nuclo Ulisse Viana Administrador
centro psiquia - adalberto da Silva - atendente nuclo Ulisse Viana - Alipio
Pessoa - Medico Psiquiatra LETRA - é filh D HOM - ".
Letra é filho do homem. Ou será o homem o filho da letra? De qualquer
forma, sabemos, com Lacan, que a letra é ainda mais elementar que o significante,
uma vez que ela se reporta ao escrito e ao que há de mais fundamental no escrito,
em sua redução ao puro traço, à pura inscrição, à sulcagem da superfície/ corpo
sobre a qual se escreve e se inscreve um sujeito. Além disso, é a letra que faz. a
borda, o litoral, como nos ensina Lacan em "Lituraterra". 13
E o que borda a letra? A letra borda justamente o furo, justamente o
7buraco que suporta toda e qualquer construção simbólica, todo e qualquer signo.
_..),
Em certa medida, a letra funcionaria, portanto, como uma sutura do buraco, ao
mesmo tempo que, ao suturá-lo, marca uma inscrição, um traço, como "um
grampo no próprio lugar em que o afastamento se produziu".14 É a letra, portanto,
o ponto que marca a diferença entre a palavra e a coisa, ou, no dizer de Serge
Léclaire, a diferença erógena propriamente dita: o espaço erógeno e o espaço das
palavras não são da mesma ordem.15
Sabemos, entretanto, que, para o psicótico, essa diferença fundamental
não se dá, não havendo na psicose uma clivagem garantida entre o espaço literal e
o corpo. A letra assume, assim, no processo da psicose, um caráter menos de
sutura que de marca do furo - ponto de furo por onde toda a significação escoa -,
mas também ponto de fuga - ponto imaginário para o qual convergem todas as
linhas mestras, todas as significações.
No que se refere à priorização da letra como ponto de furo e ponto de
fuga, escritores como Clarice Lispector, Manoel de Barros e Maria Gabriela Llansol
têm algo a dizer. Esta última chega mesmo a marcar sua narrativa pela inserção de
um traço horizontal na página ("o lugar do leitor", "o lugar da palavra que falta",
ela diz no texto), como a querer apontar para a presença de um corpo, o seu
corpo, no branco da página: " Eu faço aquele traço como para querer mostrar, de
uma maneira muito concreta, que eu sinto mesmo que o traço irrompe, que tudo

13 LACAN. Lituraterra, p. 17-31.


1-4 LÉCLAIRE. As palavras do psicótico, p. 136.
5
1 Ibidem, p. 125-144.

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está ligado a tudo e que sem o tudo anterior não existe o tudo seguinte ... A meu
ver, aquele traço desloca-me em uma direção em que eu vou ser tocada fisicâmente ...
Porque o traço é um traço físico..."
Se a história, contudo, já começa pelo meio, se o sujeito já desde sempre
é imerso nesse mundo do simbólico que o antecede, como fazer do traço algo que
remeta ao todo, ou ao tudo, senão reduzindo-o a um pedaço, a uma parte, a um
hífen talvez, que não faça mais que conjugar significantes, ou repartir as palavras
em sílabas até seu ponto máximo de escansão, como fez Arthur Bispo do Rosário?
Palavra em ponto de p: em ponto de letra, em ponto de ponto. Ponto: "o
que não tem dimensão algu ma", dizia Euclides. Ponto: "furo feito com agulha
enfiada em qualquer tecido", diz o Aurélio. E ainda: "pequena mancha
arredondada", "usado nas abreviaturas", "com que se encerra um período". Ou
mais: "grau de consistência que se dá ao açúcar em calda".
Palavra em ponto de p: em ponto de poético, em ponto de psicótico. O
descascamento da palavra até seu ponto de letra, o descascamento da palavra até
seu ponto de abreviatura, ou mancha, ou fim. O descascamento da palavra até sua
consistência insuportável de silêncio: "O osso da ostra/ A noite da ostra/ Eis um
material de poesia", diz Manoel de Barros. Ou: "Há quem receite a palavra ao
ponto de osso,/ de oco; ao ponto de ninguém e de nuvem./ Sou mais a palavra
com febre, decaída, fodida,/ na sarjeta./ Sou a palavra ao ponto de entulho./
Amo arrastar algumas no caco de vidro,/ envergá-las pro chão, corrompê-las -/
Até que padeçam de mim e me sujem de branco./ Sonho exercer com elas o
ofício de criado:/ usá-las com quem usa brincos". 16
A louca verdade assinalada por Arthur Bispo do Rosário em um de seus
escritos, todavia, talvez nos permita pensar também em uma outra direção para
essa letra que se escreve p: palavra em ponto de pai. Afinal, se "LETRA é filh
D HOM", o homem é o pai (e a expressão "filho do homem" não se refere ao
filho de Deus, ao pai por excelência?), aquele que não só é possuído pela palavra
("As palavras querem me ser", dirá Manoel de Barros), mas que de certa forma a
possui, em seu gesto demiúrgico de renomear o mundo, de "errar a língua", de
perverter a linguagem", de "injetar insanidade nos verbos para que transmitam
aos nomes seus delírios". 1 7

16
BARROS. Matéria, p. 194; VI, p. 204.
17 BARROS. Com o poeta Manoel de Barros, p. 312.

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LU C:af\
1

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Sabemos, porém, que o pai do simbólico é, desde sempre, um pai morto.
E é o mesmo Manoel de Barros quem nos dirá desse pai do simbólico, desse pai
que morre em seu gesto de nomeação, em seu gesto de linguagem, de poesia:
''Ningu ém é pai de um poema sem morrer". Ninguém é pai de uma palavra sem
morrer, podemos acrescentar. Mas, se na psicose essa morte do pai não se dá,
uma vez que o pai não se inclui, forcluído, como se pode pensar nesse gesto de
nomeação, de renomeação do universo que o psicótico efetua? E, se considerarmos
que todo gesto de escrita é um gesto parricida, que espécie de escrita é essa, a de
Arthur Bispo do Rosário, que, se não mata o pai, termina por reinventá-lo, o pai,
onipresente, onipotente, ordenador, terrível, senhor?
22 dezembro 1938 - meia noite acompanhado por 7 -anjos em nuvens -
especiais forma esteira mim deixaram na casa dos fundo murrado rua são
clemente - 301 - botafog - entre as ruas das palmeiras e matriz/ eu com
lança nas mão nesta nuves espirita malisimo não penetrara

Não é difícil detectarmos nesse fragmento a presença do pai, encarnada em


sua figura maior, a figura de Deus. E o pai aqui não é apenas o Outro, o grande
Outro, senhor das palavras e da verdade, mas também aquele que se diz seu emissário,
aquele que suporta as palavras de Deus em seu corpo: o próprio sujeito dessa enunciação.
De fato, o que veremos mais adiante em outro panô é que Bispo se coloca como o
oitavo anjo, o oitavo filho de Deus: "eu exceto vossa nicencia filho enxhugo em nuves
especiais formas bordada um metro proximo eu filho VIII". Esse filho tomado pai é
dotado de uma força descomunal capaz de fazê-lo lutar contra os maus espíritos: "eu
com lança nas mão nesta nuves espírito malisim9 não penetrara".
Essa metamorfose do filho em pai não é, de fato, incomum na psicose.
Basta uma rápida leitura das memórias de Schreber para vermos que aí também
essa questão sé coloca: ser mulher de Deus, em certa medida, equivale a ser Deus,
pois sua emasculação termina por lhe garantir, como um Deus, como um
demiurgo, a criação do homem, de uma raça de homens imortais. 18 Ou, como
podemos ler nas palavras transcritas de um outro psicótico brasileiro:
"conseguindo filtrar em mim e penetrar em mim e eu ser ciclopes mediante
macumba ordem e feitiços próprios ... a morrer mas que é realmente a pessoa
Deus. Sou a pessoa Deus." 19

18 A esse respeito, ver: QUINET. Clínka da psüose.


19
BRANCO. A devorarão da imagem: o poético e o psicótico.

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Se na psicose, contudo, o que se dá é justamente a forclusão do Nome-do­
Pai, como se pode entender essa súbita passagem do filho ao pai que esses textos
testemunham? Em outras palavras, se o significante "ser pai" não se inscreveu,
que espécie de pai é esse que se põe a renomear, a reescrever o mundo?
Talvez pudéssemos, então, retornar ao ponto de p da palavra, buscando,
justamente nesse ponto, essa absurda convergência. E se admitirmos, como o fazem
o poeta e o psicótico, que cada palavra possui o seu ponto de enlouquecimento
(poesia é "quando as palavras enlouquecem", dirá Manoel de Barros), seu ponto de
furo, que é também ponto de fuga, poderemos entender esse ponto de pai como o
pai também reduzido a um traço, a uma inscrição, a uma letra. E aí, nesse lugar do
litoral que a letra demarca, o pai abre passagem para uma outra ordem: a ordem
materna, a ordem do indizível, do inominável, do Real.
Ora, todo signo, além de ser ccqualquer coisa que está no lugar de qualquer
outra coisa para alguém'',2º é aquilo que é. Todo processo de linguagem consiste
numa espécie de tentativa de "esquecimento" dessa capacidade do signo de exibir
sua coisidade sígnica para que ele possa, provisoriamente, tomar o lugar de outra
coisa e significar. Isso não quer dizer, de maneira alguma, que o signo seja a
coisa, mas, antes, que o signo possua, em si mesmo, sua face coisal, que residirá
exatamente em seu ponto de materialidade - o significante. Mas, para além do
significante (ou para aquém dele), o signo estanca em seu ponto de irredutibilidade:
podemos dizer muito de um signo, mas não podemos dizer tudo dele. Toda
tentativa de esgotamento (de significado) de um signo termina por desembocar
na tautologia: "uma rosa é uma rosa".
Podemos, então, pensar nesse ponto de irredutibilidade do signo, seu ponto
de insignificância (ponto: "o que não tem dimensão alguma"), como seu ponto de
letra, como o ponto de p da palavra. Para esse ponto de furo, onde toda significação
escoa (como no "umbigo do sonho"), convergem também todas as significações
possíveis (e impossíveis), todas as linhas mestras, como no ponto de fuga.
Talvez por essa via se possa entender por que, justamente na linguagem
do psicótico - esse sujeito a quem falta a inscrição do Nome-do-Pai -, a voz do
pai se faz tão presente, tão onipresente, tão maior. E por que esse sujeito, a quem
falta o significante-mestre S1 que o represente, termina por produzir, em seu
não-discurso, uma pluralização de significantes-mestres 21 , palavras em estado de

20
PEIRCE, CP 2.228.
21 MILLER, citado por QUINET, p. 73.

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dicionário: "adeus/ adem/ adaptadas/ adulto/ adicionar/ adula/ advogado/
adequada/ adjacências/ A", escreve Arthur Bispo do Rosário, e a redução da palavra
a seu ponto de letra é aí evidente.
E o que ocorre com o pai quando é também reduzido a seu ponto de p?
A leitura de Freud, em Totem e Tabu, talvez nos ofereça uma direção. Ali se lê que
tanto o totem propriamente dito quanto a figura de Deus são representantes
(signos, portanto) do pai, mas entre essas duas representações reside uma diferença:
"embora o totem possa ser a primeira forma de representante paterno, o deu_s
será urna forma posterior, na qual o pai reconquistou sua aparência humana": 22
Ora, em certá medida, pode-se dizer que a mãe é também o primeiro
representante paterno, já que é ela quem suporta os primeiros traços residuais da
ordem do simbólico, a ser definitivamente instaurada (ou não) a partir do Édipo.
A mãe, então, poderia talvez ser considerada como esse primeiro signo (um signo
icônico, certamente), como esse animal totêmico que· precisa ser sacrificado para
que algo, em seu lugar, se erija: a palavra.
Ocorre que, se essa morte do totem se dá na psicose; não se pode dizer o
mesmo com relação à inscrição de um Nome-do-Pai que venha ocupar esse lugar.
Não é à toa, portanto, que a imagem reiterada na psicose é sobretudo a imagem
da morte (ou do morto) a quem o sujeito se vê agarrado: "Sou um cadáver leproso
que carrega um cadáver leproso", dirá Schreber", 23 "Cada louco é guiado por um
cadáver. O louco só fica bom quando se livra desse morto", adverte Bispo. 24 O
psicótico, como assinala Julia Kristeva, é irremediavelmente atado à "coisa finda". 25
Esse, pode-se dizer, é o ponto a que o pai se reduz na psicose: ao ponto de
furo, ao ponto de letra, ao ponto do impronunciável, do Real do corpo da mãe:
ponto de p. E não é à toa também que a questão do feminino se faz fundamental
na psicose : o que é "o empuxo à mulher" senão essa tentativa de, construindo A
Mulher, fazer com a letra não o furo, mas o bordado, a _sutura? Nesse sentido,
podemos dizer, com Quinet, que A Mulher na psicose pode funcionar como um
dos Nomes-do-Pai, pode vir a suprir esta função do significante forcluído. 26

22FREU D . Tolet11 e lab11, p. 176.


23
SCHREBER, citado por QUINET, p. 24.
24
ROSÁRIO, citado por MORAIS. A reconstrução do universo segundo Arthur
Bispo do Rosário, p. 18.
25
KRJSTEVA. Sol negro; depressão e melancolia, p. 53.
26
QUINET.Clí11ica da psicose, p. 26.

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Essa face-mãe para a qual o ponto de letra abre o signo, contudo, é
também sua face de língua materna feita de sopros, gemidos e balbucios, feita
de estilhaços de letras e de palavras, feita de puro som, desses "pequenos
caminhos" em que "os significantes se põem a falar, a cantar sozinhos",27 como
dirá Lacan acerca da psicose.
E não será também esse o ponto da poesia? Ponto em que as palavras se
exibem em sua materialidade sonora, ou em sua materialidade plástica? Poesia,
dirá Manoel de Barros, em seu "Glossário de transnominações em que não se
explicam algumas delas (nenhumas) - ou menos", é -s.f. (substantivo feminino)
que, além de outras coisas, "designa também a armação de objetos lúdicos/ com
emprego de palavras imagens cores sons/ etc. - geralmente f�itos por crianças
pessoas esquisitas loucos e bêbados".28
E não será essa "armação de objetos lúdicos" que Bispo nos propõe com
seus objetos-dejetos, seus pedaços de coisa mumificados, suas palavras bordadas
sobre roupas de ver Deus? Com a palavra na boca Bispo se alimentava, já que, a
mando de Nossa Senhora, era obrigado a jejuar para purificar-se e tornar-se
transparente.29
É também algo da ·ordem dessa transparência que busca Maria Gabriela
Llansol com sua escrita: "Há um esforço para tornar límpidos o seu corpo, a sua
maneira de viver, os seus dias, mesmo os sentimentos mais complexos e depois é
que se pode escrever... Há vários níveis de escrita, mas este é muito específico e
tem a ver com limpidez ..."
Transparência, limpidez, descascamento da palavra até seu ponto de osso,
até seu ponto de letra: "Cada coisa tem o instante em que ela é. Quero apossar­
me do é da coisa", dirá Clarice.30 Do é da coisa, da coisa que o signo é, sabem os
poetas e os psicóticos, essas "pessoas esquisitas". E, se para os primeiros, a letra
pode funcionar como bordadura (embora sua dimensão de furo esteja desde sempre
lá), é possível que, para os segundos, possa ser aberta uma via lateral, ali mesmo
onde a literalidade é uma exigência.

27
LACAN. O se111i11ário; as psicoses, p. 331.
28
BARROS. Poesia, s.f., p. 215.
29
ROSÁRIO, citado por MORAIS, op. cit., p. 1 1 .
30
LISPECTOR. Agua viva, p. 9.

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Assim, talvez, a palavta do psicótico, que é ao pé da letra (ao p da letra),
possa também inventar um pai como aquele que escreve. E se, do p ao pai, há um
caminho em dobro a percorrer (pois que são necessárias mais duas letras onde
havia apenas uma), do grande Outro ao Autor .o caminho já está de certa forma
traçado, embora seja preciso reconstruí-lo, retraçá-lo num rearranjo de letras. E
onde se perde uma (um duplo o, um duplo furo, pode-se pensar), uma outra vem
tomar o seu lugar: precisamente, o a.31

31
Aproprio-me, aqui, de um jogo de palavras feito por GREEN, no artigo
· "Transcription d'O rigine Inconnue". No11velle Rev11e de P.ry,hana!Jse, n. 16, p.
27-63, em que se assinala a relação anagrarnática entre autre e auteur, em francês.
Valho-me da "imperfeição" do anagrama em português para introduzir aí o
objeto a, que, se não pode ser assim destacado na dimensão da psicose, pode
ser tomado aqui na dimensão da obra para o autor.

r-

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Referências B'ibliográficas

BARROS, Manoel de. Gram(itica expositiva do chão; poesia quase toda. 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1992.
BORELLI, Olga. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato. _Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1981.
BRANCO, Lucia Castello. Transcrição de fita gravada com o paciente psicótico L.R., em 1991.
Material inédito da pesquisa intitulada A devoração da imagem: o poético e o psicótico",
aprovada pelo CNPq, 1991.
___. Arth11r Bispo do Rosário; registros dé minha passagem pela Terra. (Anotações colhidas
da obra do artista, exposta no Museu de Arte de Belo Horizonte, jul./ ago. 1990).
___ . Encontro com escritoras portuguesas. Boletim do CESP. Belo Horizonte: UFMG,
v.14, n. 16, p. 103-114. jul./dez. 1993.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno dicionário brasileiro da líng11a port11g11esa.
1 1 .ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [s.d.].
FOUQUE, Antoinette. Editora francesa lançará toda a obra de Clarice. Folha de São Pa11lo, São
Paulo, 28 de mar. 1993. Caderno Mais, p. 6-10. (Entrevista a Betty Milan).
FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos. Trad. Órizon Carneiro Muniz. Rio de
Janeiro: Imago, 1 974. P.13-194: Totem e tabu. (Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 13).
GREEN, André. Transcription d'Origine Inconnue; l'écriture du psychanalyste: critique
du témoignage. Nouvelle revue de psychana(yse; écrire fa psychanalyse, Paris, n. 1 6, P·
27-63, 1977.
KRISTEVA, Julia. Sol 11egro; depressão e melancolia. Trad. Carlota Gomes. Rio de Janeiro:
Rocco, 1989.
LACAN, Jacques. Lituraterra. Che vuoi. Porto Alegre, Cooperativa Cultural Jacques Lacan,
V. 1, O. 1, p. 17-31, 1986.

___. O Se111i11ório; as psicoses. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. V.3.
LECLAIRE, Serge. As palavras do psicótico. lo: KATZ, Chain S. (org.). Psicose; uma leitura
psicanalítica. 2. ed. São Paulo: Escuta, 1991.

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LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida; Pulsações. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1978.
___. Agua viva. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
LLANSOL, Maria Gabriela. Amar.um cão. Colares: Colares Editora, 1990.
___. Da sebe ao ser. Lisboa: Rolim, 1 988.
MORAIS, Frederico (curador) Arthur Bispo do Rosário; registros de minha passagem pela
Terra. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1990. 27 p. (Catálogo de Exposição, jul./ago. 1 990.
Museu de Arte de Belo Horizonte) .
PEIRCE, Charles S. Collected papers. HARTSHORNE, Charles e WEISS, Paul (orgs.).
Cambridge, Ms.: Harvard University Press, 1935-1958. 8 v. (Na tradição dos estudos de
Peirce, a citação a essa obra se faz com a sigla CP, seguida do número do volume e do
parágrafo, separados por ponto.)
PORTUGAL, Ana Maria. Onde era o ponto final. (Manuscrito inédito).
QUINET, Antonio. Clínica da psicose. Salvador: Fator, 1 990.

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EPIB VOCIFERIR,
_
VOCIFEERAR
- A letra do gozo em Joyce -
Lucia Castello Branco

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fosse possível imaginar uma estética do prazer
textual, cumpriria incluir nela a escritura em voz
alta. Essa escritura vocal (que não é absolutamente a fala) não é praticada, mas é
sem dúvida ela que Artaud recomendava e Sollers pede. Falemos dela como se
existisse.
Na Antigüidade, a retórica compreendia uma parte olvidada, censurada
pelos comentadores clássicos: a actio, conjunto de receitas próprias para permitirem
a exteriorização corporal do discurso: tratava-se de um teatro da expressão, o orador­
comediante exprimia sua indignação, sua compaixão, etc. A escritura em voz alta
não é expressiva; deixa a expressão ao fenotexto, ao código regular da comunicação;
por seu lado ela pertence ao genotexto, à significância; é transportada não pelas
inflexões dra�áticas, pelas entonações maliciosas, os acentos complacentes, mas
pelo grão da voz, que é um misto erótico de timbre e linguagem, e pode portanto
ser por sua vez, tal como a dicção, a matéria de uma arte: a arte de conduzir o
próprio corpo (daí sua importância nos textos extremo-orientais). Com respeito
aos sons da língua, a escritura em voz alta não é fonológica, mas ·fonética; seu
objetivo não é a clareza das mensagens, o teatro das emoções; o que ela procura
(numa perspectiva de gozo) são os incidentes pulsonais, a linguagem atapetada da
pele, um texto onde se possa ouvir o grão da garganta, a pátina das consoantes, a
voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda: a articulação
do corpo, da língua, não a do sentido, da linguagem. Uma certa arte da melodia
pode dar uma idéia desta escritura vocal; mas como a melodia está morta, é talvez
hoje no cinema que a encontraríamos mais facilmente. Basta com efeito que o cinema
tome de muito perto o som da fala (é em suma a definição generalizada do "grão"
da escritura) e faça ouvir na sua materialidade, na sua sensualidade, a respiração, o
embrechamento, a polpa dos lábios, toda uma presença do focinho humano (que a
voz, que a escritura sejam frescas, flexíveis, lubrificadas, finamente granulosas e
vibrantes como o focinho de um animal), para que consiga depo_rtar o significado
para muito longe e jogar, por assim dizer, o corpo anônimo do autor em minha
orelha: isso granula, isso acaricia, isso raspa, isso corta: isso goza".1

1
BARTHES. O prazer do texto, p. 85-86.

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Com essas palavras, Roland Barthes encerra O Prazer do Texto, livro em
que desenvolve, com base nas idéias de Lacan, o conceito de texto de gozo,
contrapondo-o �o de texto de prazer. Contrariamente ao texto de prazer, que
contenta, enche, dá euforia, que convida a uma prática confortável de leitura, o
texto de gozo é aquele que desconforta (causando, talvez, até um certo enfado),
aquele que põe em estado de perda o leitor, fazendo entrar em crise sua relação
com a linguagem. 2
Esse texto de gozo, essa escritura em voz alta em que podemos ouvir de
muito perto o grão da voz, vamos encontrá-la na obra de Joyce, que, no caminho
acelerado do esfacelamento da imagem visual para a apropriação da imagem
acústica, vai sempre desconfortar o leitor, lançá-lo nessa escuta da perda e da
deriva: da dimensão narrativa à dimensão da palavra, da dimensão da palavra à
dimensão do significante, da dimensão do significante à dimensão da letra. Esse
caminho progressivo, work in progress, podemos demarcar em sua trajetória de
escritor: do projeto de escrita que se explicita em Um retrato do artista quando
jovem, à desfiguração da língua materna, que se opera em Finnegans Wake, podemos
demarcar esse traço de voz, ora como uma presença melódica que oferece um
contorno à cena epifânica, ora como uma presença material que se escreve na
instância da letra, no grão da escritura.
Nos dois casos trata-se, evidentemente, de um trabalho de evacuação de
sentido, mas pode-se verificar a radicalidade que esse gesto de destruição da língua
(e de construção de uma outra língua) assume em Finnegans Wake. Não é por
acaso que essa obra constituiu o work in progress de Joyce: progressivamente, do
Retrato ao Finnegans, a inscrição da voz vai tomando corpo na cena da escritura.
Se no Retrato temos uma escritura sobre a voz, teremos, ein Finnegans
Wake, uma escritura da voz, e, embora esses dois procedimentos tratem de uma
mesma posição do sujeito em relação ao gozo e ao sintoma, não é dificil verificar
que as duas obras diferem radicalmente no que diz respeito à economia textual.
Enquanto na obra do jovem escritor teremos a elaboração de um projeto de escrita,
j á de certa forma iniciado pelas suspensões de sentido que se efetuam com a
introdução das cenas epifânicas na narrativa, no work in progress já não há lugar
para a cena propriamente dita, mas apenas para o trabalho extenuante da letra do
gozo: são fragmentos de vozes que ali se inscrevem em voz alta, são gritos, uivos,


' BARTHES. O p,az,, d, hxl,, p. 22.

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...

S2
vociferações, murmúrios, balbucios, que acariciam e ferem a orelha do leitor.
Vociferando, vocifeerando, vociferindo, esses pedaços de gozo nos introduzem
no feérico universo joyceano: em seu palco giratório de vozes, ''heróis mitológicos
e eventos da mais remota antigüidade ocupam os mesmos planos espaciais e
temporais que as personagens modernas e os acontecimentos contemporâneos."3
Sabemos, com S tephen-J oyce, que as epifanias constituem-se em
testemunhos de experiências extáticas, de manifestações espirituais vividas pela
personagem, que se relacionam a três princípios estéticos da doutrina de Santo
Tomás de Aquino: Integritas, Consonantia e Claritas. Este último, equacionado a
outro termo tomístico, Q11idditas, diz da face coisal da coisa, e corresponde à
epifania propriamente dita, como se lê em Stephen hero:
Claritas é q11idditas. Após a análise que descobre a segunda qualidade, a
mente faz a única síntese logicamente possível e descobre a terceira qualidade.
Este é o momento que eu chamo de epifania. Primeiro reconhecemos que
o objeto é uma coisa integral, em seguida reconhecemos que é uma estrutura
composta organizada, na verdade uma coisa; finalmente quando a relação
das partes é aprimorada, quando as partes estão ajustadas ao ponto
apropriado, reconhecemos que é aquela coisa que ela é. Sua alma, seu quê
próprio, salta para nós das vestes de sua aparência. A alma do objeto mais
comum, cuja estrutura está tão bem ajustada, parece-nos radiosa. O objeto
realiza sua epifania.4

Pode-se dizer, portanto, no registro neologístico de Joyce, que a narrativa


do jovem escritor desenvolve-se em torno desse epifaniar do objeto, que, desvestido
da vestimenta de sua aparência, revela-se, inteiro, aos olhos do herói (e do leitor).
Entretanto, nesse momento da escritura joyceana, a narrativa ainda se sustenta na
cena, através do arranjo, ora linear, ora abrupto, de imagens visuais. Aliás, o próprio
termo tomístico claritas remete-nos à dimensão do olhar. Trata-se, co'mo bem observa
Catherine Millot, do brilho quase alucinatório do Real, enquanto o termo epifania
está etimologicamente ligado ao nascer dos astros, ao aparecer da luz. 5 Basta
tomarmos ao acaso uma das epifanias utilizadas em Retrato para que se faça nítida
sua dimensão visual:

3 CAMPBELL, ROBISON. Introdução a um assunto estranho, p. 106.


4 JOYCE, citado por CHAYES. As epifanias de Joyce, p. 120-121.
5 MILLOT. Epifanias, p. 148.

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Indistintamente, sob a noite pesada de verão, através do silêncio da cidade
que passou dos sonhos ao sono sem sonho como um amante saciado
insensível a qualquer carícia (sic) o som das patas na estrada de Dublin.
Não tão indistintas agora à medida que se aproximam da ponte: e num
instante enquanto passam pelas janelas escuras o silêncio é cortado por um
alarme como uma seta. São agora ouvidas ao longe - patas que brilham
como diamantes cm meio à noite pesada, apressando-se para além dos
pântanos cinzentos e imóveis para que final de jornada - que coração -
levando que notícias?6

Mesmo quando se trata de uma experiência epifânica que se efetua na


dimensão da imagem acústica (o som das patas de um cavalo na estrada de Dublin),
é no registro da descrição (e, portanto, da figurabilidade) e da metáfora que essa
experiência se apresenta: "patas que brilham como diamantes em meio à noite
pesada". Entretanto, como observa Catherine Millot, já nesse momento o projeto
do jovem escritor não nos propõe o desvelamento da metáfora, a solução do enigma,
mas antes convida o leitor ao deslizamento incessante por esses resíduos metonímicos
que a compõem, por suas "balizas, marcos sem memória, restos obscuros de uma
conflagração muda".7 E nada se revela para além da presença da coisa em sua coisidade.
Mas, se nesse mo�ento de sua obra Joyce promove a evacuação do sentido através
dessas ilhotas epifânicas de non-sense, a escritura do Retrato ainda compõe uma
imagem visual, mesmo que ela se faça de traços, de trapos, de resíduos.
Como resultado da radicalização de seu gesto epifânico, a escritura de Joyce
terminará, em Finnegans Wake, reduzida à dimensão atômica da letra. E o que é
uma letra senão esse ponto irredutível da língua para onde confluem e de onde
ecoam todas as significações possíveis? Todas e nenhuma, já que o tudo da
significação equivale a seu esvaziamento. "Leiam as páginas de Finnegans Wake",
sugere-nos Lacan, "sem tentar compreender - aquilo se lê. Aquilo se lê (...), mas
isso se dá porque sente-se ali a presença do gozo daquele que escreveu".8 "O texto
que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele me deseja. Essa prova existe:
é a escritura. A escritura é isto: a ciência das fruições da linguagem, seu kamasutra
(desta. ciência, só há um tratado: a própria escritura)", diz-nos Barthes.9

6
JOYCE. Epifanias destacadas do &trato. ln: &trahmu de ]o_yít, p. 1 1 7.
7
JOYCE, citado por MILLOT, op. cit. p. 145.
8
LACAN. Joyce lc symptôme I, p. 25.
9
BARTHES. O prazer do texto, p. 11.

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E é também em Barthes (com Lacan) que verificaremos essa confluência
da letra com a escritura:
Durante muito tempo, a partir de um aforismo célebre do Evangelho, a Letra
(que mata) opôs-se ao Espírito (que vivifica). Dessa letra (que mata), nasceu em
nossa civilização um grande número de censuras assassinas (quantas mortes,
em nossa história, começando pela morte de nossa religião, por um sentido?),
que poderíamos agrupar sob o nome genérico de filologia (...)

Através de uma segunda inversão, no entanto, a modernidade volta à letra -


que já não é mais, evidentemente, a letra da filologia. Por um lado, ao retificar
o postulado da lingüística que, sujeitando toda linguagem à sua forma falada,
faz da letra simples transcrição do som, a filosofia (com Jacques Derrida,
autor de um livro que se intitula precisamente De la gra1111JJatologie) opõe à
palavra um ser da escritura: a letra, em sua materialidade gráfica, torna-se,
então, uma idelidade irredutível ligada às mais profundas experiências da
humanidade (como no Oriente, onde o grafismo detém um verdadeiro poder
de civilização). Por outro lado a psicanálise (em suas pesquisas mais recentes)
mostra que a letra (como traço gráfico, embora de origem sonora) é uma
grande encruzilhada de símbolos (...) A arte gráfica - se conseguíssemos
sacudir o jugo empirista de nossa sociedade, que reduz a linguagem a simples
instrumento de comunicação - deveria ser a arte maior, em que se transcende
a opinião fútil do figurativo e do abstrato: pois uma letra, ao mesmo tempo,
quer dizer e nada quer dizer, não imita, porém simboliza (...) 1º

O que significaria para Stephen-Joyce ser _"um homem de letras"? Sabemos


que Lacan designará como lugar da letra precisamente esse ponto de articulação
- do simbólico ao real. Desse lugar nos fala, insistentemente, a escritura de Joyce.
Sabemos também que a letra, embora traço gráfico (e, portanto, visual), é de origem
sonora. Entretanto o que resta por precisar, no seminário de 197 6, é exatamente em
que medida essa escritura joyceana, que se situa na esfer_a da significância (e não
exatamente do significado), distingue-se da forração, ou, nas palavras de Lacan, "a
partir de quando a significância, uma vez escrita, se distingue de simples efeitos de
fonação". 11 Parece que a questão de Lacan, nesse momento, reside justamente numa
indagação em torno das relações entre a letra e a voz, e não exatamente entre o
significante e sua constituição sonora.

11
BARTHES. O óbvio e o obt11so, p. 106-107.
12
LACAN. Le sinthome. 20 janvier 1976, p . 67.

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&a

Escrever -a voz, traçar a voz. Esse o projeto radical de Finnegans
f
!
Wake. Distintamente do Retrato, em que ainda se propunha uma
representação figurável da voz (nos limites da analogia, portanto), o work
in progress será atravessado pela língua em sua dimensão digital {o

marcado, o não marcado, o contínuo, o discreto, o grito, o silêncio).
Riverrun, Eva e Adão, Sir Tristão, violista d'amores. De repente, a queda: t
B
babaadalgharaghtakamminaarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhcftinaw.
O fragmento 1 de Finnegans Wake já envia o leitor para o universo sonoro �
de lalíngua, em que a ilegibilidade o obrigará, inevitavelmente, a uma outra f
leitura, a uma atenção certamente flutuante, próxima da escuta analítica: !:a
Estar com quem se ama e pensar em outra coisa: é assim tenho r
r
os meus melhores pensamentos, que invento melhor o que é o
necessário ao meu trabalho. O mesmo sucede com o texto: ele n
p roduz em mim o melhor prazer se consegue fazer-se ouvir �
o
indiretamente; se, lendo-o, sou arrastado a levantar muitas vezes n
a cabeça, a ouvir outra coisa. Não sou necessariamente cativado n
b
pelo texto de prazer; pode ser um ato ligeiro, complexo, tênue, r
o
quase aturdido: movimento brusco da cabeça, como o de um n
pássaro que não ouve nada daquilo que nós escutamos, que escuta
n
t
aquilo que· nós não ouvimos. 12 o
n
n
E é dessa escuta flutuante, ou dessa leitura difusa, que se extrairá e
r
o grão da voz, dessa voz que se situa na articulação entre o corpo e o r
discurso, mas que, transportada para a escritura, reduz-se a seu ponto o
n
mínimo, a seu grão, a sua letra. Não é por acaso que o fragmento 2- do n
t
Finnegans, que pretende conter uma breve descrição de Dublin (que u
o
seria de se esperar próxima à figurabilidade, mas que termina por se n
n
reduzir à pura inscrição da letra), faz referência a um estranho
optopphone, instrumento que, segundo Campbel e Robison, converte liu
imagens em sons. 13 Assinalado esse primeiro movimento, que de certa n
n
forma mimetiza o movimento que se observa no projeto do artista - t
r
da dimensão da cena epifânica à dimensão da voz -, o fragmento o
V
marcará ainda, com precisão, a inscrição dessa voz como letra, ao a
r
fazer referência à "mágica, mentira de Wheatstone" ("Weatsthone's
lio
u
12
BARTHES. O prazer do texto, p. 35.
n
a
13 CAMP
BELL, ROBISON. Introdução a um assunto estranho, p. 83. w.

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magic lyer''), ou seja, à sua invenção da telegrafia. E o que é o telégrafo senão esse
curioso aparelho que transforma letras em sons e sons em letras? O telégrafo
escreve através do ritmo, sua escrita reside numa representação digital do ritmo
(combinações de sons breves e longos, alternâncias de sons e pausas), exatamente
como a escrita de Finnegans Wake:
Então Esta é Dubilingue?
Halto! Cautela! Ecolândia!

Heis um caminho esquisito! Lembra, de rasto, a deslavada negravura que


bostumávamos manchar no borramuro de sua pensão intistinta.
Crostumavam? (Estou certo de que aquele chatigante matracava com sua
caixa de chocolates mujicais, Muco Michel, está escutando). Digo, restos da
desusada gravultura onde postumavam murchar os Ptolomens dos Incabus.
Gostumávamos? a harpa jubalar de um segundo existinto ounivente, Pero
farelo.) Isto é bem conhecido. Ferrolha-te a ele mesmo e vê o velho novo em
folha. Dbln. W. K. O. O. Ouve? Junto ao muro do ·mausolimo. Fimfim
fimfim. Um cortejo funébrio. Fumfum fumfum. É optofone que optofana.
Ouvê! A mágica mentira de Wheatstone. Eles lutharão por mil lírios. Eles
escutarão por mil heras. Eles retumbarão por mil luras. Seus daedos tangerão
a harpdiscórdia por mil liras.14

Essa escritura que se faz de j orros de som, de ritmos abruptos e


entrecortados, de vociferações cortantes, subitamente reduz-se ao atropelo sonoro
de uma·abreviatura - Bbln - ou ao silêncio de letras iniciais - W. K. O. O. Mas
o sujeito da escritura, também atropelado por essa desfiguração da língua, continua
a querer ouvir inteiro o segredo, o enigma do feminino: "Ah fala-me tudo de Ana
Lívia!nis Mas Ana Lívia Plurabelle é muitas. E seu segredo termina por se dissolver
em uma não qualquer Nuvolleta, em sua étoilette de boite, tristecida em tremeluzes.
Diferentemente da Molly Bloom do Ulisses, Ana Lívia Plurabelle ou Nuvolleta
reduzem-se, aqui, a seus nomes próprios, à melodia que seus nomes evoca, à
dimensão do traço. Mas é ainda o gozo feminino que esses nomes-vozes-letras
pretendem evocar: "a mulher, essa mulher - todas as mulheres? - uma voz as faz
gozar. Uma voz sem palavras - ou melhor - uma voz da qual apenas ela agarra
as palavras."16

14 JOYCE. Fragmento 2. ln: CAMPOS, CAMPOS. Pa11aro111a de Fim1ega11s


IJVake, p. 37.
15
JOYCE. Fragmento 7, op. cit. p. 55.
16
GODIN. Du symptôme à son épure: le sinthome. p. 169.

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Nesse processo de redução da voz ao ponto de letra, o enigma do feminino,
que na verdade equivale ao enigma do gozo, termina por resistir a qualquer
tentativa de decifração. O que se dá no work in progress não é mais a tentativa de
decifrá-lo, mas a alegria jubilatória de gozá-lo: gozá-lo na vocifeérica festa da letra.
E o curioso é que essa voz anterior (anterior ao nome e ao sentido, anterior à
imagem verbal) não se origina do interior (uma vez que toda interioridade é abolida
no work in progress) , mas do exterior: a voz vem sempre do Outro. E no
movimento que a reduz à marca, ao traço, ela termina por desembocar no paradoxo
da letra: é anterior e posterior, é traço originário e traço diferido, aponta para o
Real e para o Simbólico, enquanto assinala esse universo feminino, materno, mas
também se abre para a possibilidade de invenção de um nome próprio, o nome
próprio do Pai.
Nessa festa da linguagem, o nome do gozo é Joyce. Joy: alegria, júbilo,
regozijo. Essa euforia jubilatória que escutamos em Finnegans Wake encerra, em
sua vociferação, a ferida de Joyce: a carência da função paterna. No lugar dessa
falha, a escrita-sintoma se constrói, em sua dicção beatífica, sem desconhecer que
a beatitude, esse sentimento de felicidade insuportável, "implica um profundo e
incomparável conhecimento da infelicidade", como observa Clément Rosset.17
Reduzida ao ponto de letra, à letra da voz, a escritura joyceana termina
por se sustentar menos por s�a legibilidade que por sua escriptibilidade. Ler
Finnegans Wake não significa exatamente compreender Finnegans Wake, mas
colocar-se em estado de escuta e em estado de escrita: a letra pede sempre (e ainda)
para ser escrita. Como o sintoma, marca do gozo, a letra permanece irredutível.
Suportar esse gozo sem sucumbir implica escrevê-lo - na análise, ou na obra.
Joyce escreveu. E assim forjou um nome próprio, uma língua, uma pátria, um
Nome do Pai.
. "Escrevo para não ficar louco", dizia Bataille - o que queria dizer que
escrevia a loucura. 18 Joyce escreveu a loucura. Joyce escreveu a loucura que é
escrever a voz. Diante de sua louca escritura, permanecemos cegos, incapazes de
ler. Tanto melhor. Dessa maneira, podemos nos oferecer à escuta e à escrita a que
seu ponto de letra, irremediavelmente, nos conduz.

17 ROSSET. La fam majt11Tc, p. 41.


18
BATAIU.E, citado por BARTHES. O praZ!" do ttxto, p. 64.

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Referências Bibliográficas

AUBERT, Jacques (org.). Joyce avec Lacan. Paris: Navarin, 1987.


BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. P. 106-107: Erté
· ou ao pé da letra.
___. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, [s.d.].
CAMPBELL, ROBISON. Introdução a um assunto estranho. ln: CAMPOS, A. de, CAMPOS,
H. de. Panorama do Finnegans Wake. São Paulo: Perspectiva, 1 986.
CAMPOS, Augusto de, CAMPOS, Haroldo de. Panaroma do Finnegans Wake. São Paulo:
Perspectiva, 1 986.
CHAYES, Irene H. As epifanias de Joyce. ln: Refratura de Joyce. Letra Freudiana, Rio de Janeiro,
v. 12, n. 13, p. 120-121, [s.d.].
GODIN, Jean-Guy. Du symptôme à son épure: le sinthome. ln: AUBERT, Jacques (org.).
Joyce avec Lacan. Paris: Navarin, 1987. P. 159-1 82.
LETRA FREUDIANA: &fratura de Joyce. Rio de Janeiro, v. 12, n. 13, [s.d.].
MILLOT, Catherine. Epifanias. ln: Retratura de Joyce. Letra Freudiana, Rio de Janeiro, v. 12, n.
13, p. 144-150, [s.d.].
ROSSET, Clément. La force majeure. Paris: Minuit, [s.d.].

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- acerca da escritura de Maria Gabriela Llansol _;_
Lucia Castello Branco

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Kierkegaard suspende a recordação intensa por prudência, e desvia-me a cara
do seu ombro. Só então eu sei que Kierkegaard é o último crítico do livro
que escrevo, do qual -
A restante vida - ele jamais fará parte, porque
todos nós temos os nossos restos à mão,
e eu quero conhecer o verdadeiro lenço sobre o qual ela, Regina Olsen, chorou
a sua sepultura. Abro a caixa com percussões inconscientes do meu próprio
desejo de saber. 1

breve trecho do Diário 2, de Maria Ga­


briela Llansol, intitulado Finita,
escrito entre os anos de 1974 e 1977, remete-me, �em qµe a princípio eu perceba
por que, a um seminário de Lacan, quase contemporâneo a esse texto de Llansol
(de 1972-73), que assim se encerra:

( . . . ) Não foi por acaso que Kierkegaard descobriu a existência numa


aventurazinha de sedutor. É ao se castrar, ao renunciar ao amor, que · ele
pensa ter tido acesso a isso. Mas, talvez, depois de tudo, por que não, Regina,
também ela, existisse. Esse desejo. de um bem ao segundo grau, um bem que
não é causado por um a minúsculo, talvez fosse por in,termédio de Regina
que ele tinha a sua dimensão. 2 ·•

Como se não bastasse a referência ao "bem ao segundo grau" e ao "gozo


em Deus", assinaladas por Lacan nesse "Deus e o gozo d')\, Mulher", esse seu
seminário marca, teoricamente, questões que Llansol exibirá, em seu texto, com
a transparência do "cristal da língua" 3: a letra, o gozo, a escritura, o significante,
a voz, o feminino. · Tudo isso reunido, em Llansol, num texto que talvez não
possa ser adequadamente acolhido sob o rótulo de "literatura", mas que certamente
se alia (a sua maneira idiossincrática, singular) ao rol de textos. que Lacan
denominou de "lituraterra".

1
LLANSOL. Fi11it0'. diário 2, p. 90-91 .
2
LACAN. Deus e o gozo d'1t- Mulher, p. 1 03-1 04.
3
LACAN. Televisão, p. 79.

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Talvez seja por isso (mas certamente não apenas por isso) que produzo
aqui, já desde o título deste texto, um cruzamento entre as idéias de Lacan e a
escritura de Llansol: "De uma escrita que não seria a da impostura" faz-nos
escutar, é claro, "De um discurso que não seria o do semblante"4, e a superposição
da impostura ao semblante, embora não queira sugerir uma sinonímia entre os
termos, é proposital.
Sabemos que o semblante de que nos fala Lacan não é o mesmo que
impostura. O semblante, que é antes da ordem do faz-de-conta, ou do fingimento
poético a que se refere Fernando Pessoa (o poeta é aquele que "chega a fingir que
é dor a dor que deveras sente"), não se confunde com a noção de embuste, de
hipocrisia. 5 Mas talvez o que ainda não saibamos (o que ainda não pudemos
saber) é que a impostura de que nos fala Llansol também não é o mesmo que :
essa impostura de que nos falam os dicionários, mas refere-se tão-somente à
impostura inerente a qualquer processo lingüístico, pelo simples fato de que a
palavra não é a coisa. Nesse sentido, podemos dizer que não há escrita que não
seja a da impostura, da mesma maneira que "não há discurso que não seja do
faz-de-conta, do semblante." 6
Ao intitular seu seminário de 1971 de "De um discurso que não seria o
do semblante", porém, Lacan termina por abrir uma fresta, através do
condicional seria, para uma virtualidade do discurso, para uma possibilidade do
discurso. Como virtualidade, como possibilidade, é evidente que esse discurso
não é. De maneira análoga, eu gostaria de considerar o texto de Llansol: como
uma escrita que, não podendo ser a que não é a da impostura (uma vez que é
escrita), seria aquela que se abre para uma possibilidade, para uma virtualidade.
Seria aquela que não sen·a, afinal.
''Veja bem: a língu a é uma impostura" - ela me diz -, "tudo aquilo que
estamos aqui a falar é uma impostura. Mas é possível, em algum momento, atingir
a lingu agem, a língua sem impostura. É isso que o meu texto quer". 7 E os seus
textos, um a um, fazem ecoar essa verdade. Povoados, sempre, pela presença de
4ma rapariga que "teme a impostura da língua", esses textos convocam uma escrita

4
LACAN. Lt séHJinairt - Livre 18: d'un discours qui ne serait pas du semblant.
5
De acordo com a definição do termo em FERREIRA. Ptq,ttno dirionán"o
brasileiro da líng11a por/11g11ua.
6
LACAN. Televisão, p. 66.
7
LLANSOL citada por BRANCO. Enc ontro com escritoras portuguesas, 1993.

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(ou, mais propriamente, uma escritura) que, como afirma a narradora (ou a Autora,
já que essas instâncias se confundem em Llansol), levam-na a destituir-se da
literatura para passar "para a margem da língua", levando-a, em última instância,
a uma travessia da língu a:
tão profundamente me sensibilizou o texto que, depois de me ter esquecido
do que ia dizer, ou seja, escrever a seguir, sentei-me no banco verde de
jardim, junto de Prunus Triloba, a reflectir que me devia perder da
literatura para contar de que maneira atravessei a língua, desejando salvar­
me através dela. 8

A idéia de uma salvação através da língua (que pode ser lida, também, em
seu avesso: como uma perdição através da língua) atravessa toda a obra de Llansol.
E vem constituir um texto de estranha densidade poética que arrebata o leitor no
ponto mesmo em que o faz entrar em estado de perda, numa relação de crise com
a linguagem. 9 E é exatamente nesse ponto de perda, ou de crise da linguagem, que
a escritura de Llansol parece produzir um curioso entrecruzamento entre vida e
obra, diferente do que comumente se vê na Literatura - a obra como um reflexo,
um espelho da vida -, mas antes como o seu oposto: a vida como um texto,
como uma escritura. No sentido inverso a Clarice Lispector - que dizia: ''Não
quero ser autobiográfica. Quero ser bio" -, Maria Gabriela Llansol parece dizer:
''Não quero ser autobiográfica. Quero ser grafia".
Assim, da mesma maneira que seus diários refletem sobre as questões
da escrita e da lei_tura (na medida em que se constituem como uma espécie de
memória da escrita, uma vez que ela ali faz referência constante à escrita de sua
"ficção"), sua "ficção" também o faz. Analogamente, os estranhos personagens
("figuras", como ela os chama) que comparecem à cena de sua "ficção" - San
Juan de la Cruz, Copérnico, Bach, Fernando Pessoa, Camões, Hadewich,
Nietzsche, reunidos numa espécie de comunidade da escritura - também estão
presentes em seus diários:

Jodoigne, 1 de junho de 1979

(...) à noite:
penso em Giordano Bruno, em quem teria sido sua mãe. Onde vives ainda,
Giordano, em que dia? quem foi tua mãe? Se vier acolher-se entre nós, não a


8
� LLANSOL. O falcão 110 punho, p. 10-1 1 .
9
BARTHES. O prazer do texto.

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deixaremos só. Faremos com ela uma espécie de jogo, mas ela nunca suspeitará
de que maneira foste morto. Eu tinha vontade de cantar-vos louvores, pois
vos via chegar ao limiar do mundo; quem te pôs no limiar da chama, a prumo
da ch ama, homem inteiro? Sempre ela foi uma mulher três vezes radiante. 10

Tudo isso parece ser possível, a meu ver, devido ao caráter escriturai do
texto de Llansol. Diferentemente de uma escrita comum, ou mesmo de uma escrita
literária convencional (a que Barthes chamaria escrevência), Llansol produz, em
seu texto, uma escritura. Sabe-se que esse conceito, trabalhado tanto por Barthes
e Derrida quanto por Lacan (sobretudo em seu Seminário XVIII), estabelece sutis
nuanças com relação ao termo esm'ta. Embora não se possa dizer que o conceito
de escritura seja idêntico nesses três autores, há, entre ele_s, analogias que aqui
talvez possamos assinalar para elaborar um pouco mais o conceito, de maneira a
ler, sob essa ótica, o texto de Llansol.
Sabemos que, enquanto para Barthes a escritura se opõe à escrevencia, pois é
intransitiva, não visando à comunicação, como esta última, em Derrida a escritura
será mais enfatizada por seu caráter de diferência, em sua especificidade de traço não
anterior, mas também não posterior (ou exterior) à linguagem. Para Derrida, em sua
proposta de uma reversão dos fundamentos platônicos acerca da exterioridade da
escrita (com relação à memória, por exemplo), a escritura está desde sempre lá, uma vez
que "lá onde há linguagem há necessariamente uma forma de escrita."11
Uma construção análoga do conceito pode ser verificada em todo o
Seminário XVIII de Lacan, que, a dado momento, chega mesmo a indagar: "Será
,,
que se não existisse a escritura existiriam as palavras? 12 E é também Lacan quem
,,
afirmará que "a escritura é o gozo 13, eco que ouviremos, mais tarde, em Barthes:
"A escritura é isto: a ciência dos gozos da linguagem, seu Kamasutra." 14 Ao que
Derrida acrescenta: "A escritura sempre ameaçou, pois traz a questão do corpo
,,
como condição de constituição de seja lá o que for. 15

10
LLANSOL. O fakão no p11nho, p. 1 4.
11
SAFOUAN. O inconuienle e u11 mriba, p.23. A respeito do conceito de
euril11ra, ver BARTHES. O prazer do /ex/o. DERRIDA. A es,ri111ra e a
diferen;a.
12
LACAN. Le siminaire - livre 18: d'un discours qui ne serait pas du semblant.
13
LACAN. Le siminaire - Livre 18: d'un discours qui ne serait pas du semblant.
Leçon 8, 18 mai 1971, p. 1.
14
BARTHES. O prazer do texto, p. 1 1 .
15
DERRIDA, citado por CHNAIDERMAN. O hiato ronvexo, p. 32.

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Na "cena da escriturd', o texto de Llansol termina por apresentar, com
a peremptoriedade que a presença da escritura pode oferecer ao leitor, essa
dimensão corporal, material, d a escrita, não só naquilo que seu texto diz, mas
também na maneira como o faz. Ao dividir o texto d e maneira inusitada,
intervalando-o, irregularmente, com inesperado s espaços em branco, ao
promover mudanças de tipo de letra (de cursivo para o itálico e vice-versa), sem
qualquer intermediação que possa "prevenir" o leitor, e, sobretudo, ao sulcar a
página com um traço horizontal que interrompe a narrativa, suspende o sentido
e atravessa, literalmente, o texto, Llansol desenha, em sua materialidade, a grafia
da escritura:
Quando vivíamos juntos na mesma casa, era a visão profunda
das beguinas.
Quando se pensa, ou quando se diz (neste momento , uma
pétala amarela de forstythia , em forma de flor, caiu do interior do livro;
é a verdade ------------------ ) .
Vede Copérnico, de pé, na neve, esperando a sua viagem longa e perigosa.
Tudo é som. 16

E esse seu gesto escriturai parece aproximar-se de um "passado da . escrita",


dos tempos em que escrever era sulcar uma superfície sólida, como as paredes de
uma caverna ou, mais tarde, uma tabuleta de cera, substituída depois pelo
pergaminho e, posteriormente, pelo papel. Nesse trajeto, um percuso da grafia,
ou, mais propriamente, da letra, aí se desenha: do estilete à pena, da pena à caneta,
da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. É
exatamente esse percurso, esse passado da escrita, que o texto de Llansol parece
reconstituir, trazendo-nos de volta um tempo em que escrever era também arrancar
algo a uma superfície e em que ler um texto era comentá-lo:
Construo, para oferecer a Alice, um texto em relevo, que é uma cópia de
uma narrativa; levanto tal topografia sobre placas de argila, com a ajuda de
Engrácia, e já escrevi uma longa parte que, quando lhe entregar, transcreverei
aqui, com a pesada fragilidade de quem lê. Agora tenho de sair para ir à
igreja e só transcreverei o fim: "Sobre os rios que vão por Babilônia me achei
onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei"...

16 LLANSOL Finita: diário 2, p. 51.

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E ficou escrevendo pela noite adiante
até que da chegasse
ao ponto em que é dito quem estava exposta
"... me deixei invadir pelo imóvel silêncio
sem poder esquecer
a impostura e bruma
que cobrem a língua,
que me selaram a boca...".17

E não será exatamente essa a dimensão da escritura? A dimensão de wna


sulcagem, como assinala Freud em "Uma nota sobre o 'bloco mágico "' 18, a
dimensão de uma rasura, como assinala Lacan em "Lituraterra"19, a dimensão de
uma "litografia anterior às palavras: metafonética, não-lingüística, a-lógica,"20 como
assinala Derrida?
Talvez por isso a escritura de Llansol busque tão alucinadamente a
dimensão da voz. Afinal, como acentua Lacan no Seminário XVIII (e também
Derrida e Barthes em diversos de seus textos), é do "grão da voz" que a escritura
floresce e é em voz alta (este, também, um antigo procedimento de leitura) que a
escritura pede para ser lida. Ao que Llansol acrescenta: "Dobra a tua língua, articula.
Dobra a tua língua, articula". 21
O texto de Maria Gabriela Llansol, mais que outros textos literários e
talvez num sentido radicalmente inverso a eles - em direção à Liturate"a, não à
Literatura -, vem nos dizer, através dessa "dobradura da língu a" a que nos obriga,
que "nós nos encontramos na escrita onde mesmo o pretenso ideograma é wna
letra."22 E, ao dizê-lo, diz do que de voz há na letra, do que de corpo há na letra.
Aí, nesse litoral que a letra sulca, encontram-se o corpo do sujeito e o corpus
textual. E outra não será a dimensão que a própria autora garantirá ao traço
horizontal a que ela recorre em sua escritura-.

17
LLANSOL Ca,ua amante, p. 88.
18
FREUD. Uma nota sobre o "bloco mágico", p. 285-290.
19
LACAN. LI réminairt • livre 18: d'un discours qui ne serait pas du semblant.
Leçon 7, 12 mai 1971, p. 1-15 ('Llturatcrre'') .
� DERRIDA. Freud e a cena da escritura, p. 193.
21 LLANSOL O falcão no p,mho, p. 8.
22 LACAN. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, p. 223-259.

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Da mesma maneira que eu escrevo um texto único, mais do que um livro, é
que eu faço aquele traço como para querer mostrar, de uma maneira muito
concreta, que eu sinto mesmo que o traço irrompe, que tudo está ligado a
tudo e que sem o tudo anterior não existe o tudo seguinte... A meu ver,
aquele traço desloca-me em uma direção em que eu vou ser tocada
fisicamente ... Porque o traço é um traço físico...23

Corporalmente, fisicamente (femininamente, quem sabe), essa escritura


se escreve. E, ao escrever-se, inscreve ali um sujeito que, sabemos, já não se encontra
exatamente na vida, ou na obra, mas tão-somente_ no discurso, esse discurso que
não seria o do semblante. Ou na escritura, essa escrita que não seria a da impostura.
Por isso, o texto de Llansol vai rejeitar a metáfora: "Interrompo aqui o texto
porque desliza para a metáfora", diz ela em um de seus diários. 24 Ou ainda:
Quando me perguntam se escrevo ficção tenho vontade de rir. Ficção?
Personagens que acordam, dormem, comem? Não, não tenho nada a ver
com isso. Para mim, não há metáforas. Uma coisa é ou não é. Não existe o
como 1e. O que escrevo é uma só narrativa, uma só narrativa que vou partindo,
aos pedaços.25

Rejeitando a metáfora (mas recaindo na metáfora, já que esta reside na


base de qualquer processo lingüístico), essa escritura pretende estabelecer uma
relação de radicalidade com a verdade:
Um dos primeiros segredos a ser-lhe confiado foi que os textos vivos
transmigravam, cedo ou tarde, para folhas vegetais; que nos pecíolos, ou delicados
ângulos de intersecção dos ramos, alguém como Úrsula, ou a rapariga que temera
a impostura da língua, registava como recentemente abertas ao concebido, as
suposições verdadeiras. Por entre os fetos,
as manchas vazias da floresta e as sombras das
árvores,
viu avançar Úrsula com o vestido na mão e, ao seio, o país nu; o sentido da
visão era que ele já tinha sido apeado em Alcácer Quibir; e que com a sua
imagem invertida, Luis Comuns cairia na doce voragem das folhas,
e das suas línguas;

23
LLANSOL citada por BRANCO. Encontro com escritoras portuguesas, 1993.
24
LLANSOL. O Jakão no p,mho, p. 32.
25
LLANSOL citada por BRANCO, op. cit. , 1993.

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e que seria brandamente condenado a ouvir a infalível repercussão
dos textos,
ou o conjunto verdejante das folhagens. 26

A própria escritura, porém, duvida que essa verdade possa enunciar-se


assim tão plenamente, assim como se entre as palavras e as coisas não houvesse o
véu da linguagem, assim como se intersecção dos ramos pudesse proteger a rapariga
da impostura da língua. E é também em Causa Amante (essa narrativa em que a
causa é o desejo da escrita, que pretende afinal ser a coisa, natural como a folhagem)
que se indaga: " Teria eu construído a minha vida sobre um primeiro pensamento
verdadeiro?"27 Para logo depois conclui r: "Este é o jardim que o pensamento
permite" .28
Se "este é o jardim que o pensamento permite", pode ser que esse não seja
o jardim "de verdade", o jardim da experiência, mas tão só o jardim do pensamento,
o jardim de palavras, . o jardim do semblante. E se, como nos ensina Lacan, o
semblante não passa, afinal, do reftrente29 , é talvez de um discurso que não seria o
do referente que a escritura de Llansol nos fala.
E, se pensarmos no conceito de referência a partir de Ducrot, para quem
desde que haja um ato de fala, um dizer, há uma orientação necessária para
aquilo que não é o dizer. É esta orientação que podemos chamar "referência",
chamando "referente" ao mundo ou objeto que ela pretende descrever ou
transformar30 ,

veremos que o texto de Llansol, abrindo-se para a virtualidade que o condicional


seria lhe confere, localiza-se nesse litoral que a letra demarca e que a escritura
testemunha: para além do que se diz, vislumbra-se aquilo que não é o dizer. Por
isso essa escritura define-se, como sugere a narradora, como um "convite ao
silêncio."31 Ou como um convite a uma memória da escrita, a um tempo passado
de "litografia anterior às palavras: metafonética, não-lingüística, a-lógica", a uma
escrita que não seria a da impostura. E esta assim se narra:

26
LLANSOL. Ca11sa an,ante, p. 148.
27 Ibidem, p. 19.
28 Ibidem, p. 79.
29
LACAN. Le sé111inaire - livre 18: d'un discours qui ne serait pas du semblan t.
Leçon, 1, 13 janvier 1971, p. 8.
30 DUCROT. O referente, p. 419.
31 LLANSOL. Ca11sa an,ante, p. 163.

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era uma vez um animal chamado escrita, que devíamos,
obrigatoriamente, encontrar no caminho; dir-se-ia, em primeiro, a matriz de
todos os animais; em segundo, a matriz de plantas e, em
terceiro,
a matriz de todos os seres existentes.
Constituído por sinais fugazes, tinha milhares de paisagens,
e uma só face,
nem viva, nem imortal. Não obstante, o seu encontro com o tempo apaziguara
a velocidade aterradora do tempo,
esvaindo a arenosa substância da sua imagem.32

Esse animal-escrita, nem vivo, nem imortal, escreve-se, como nos mostra
Lacan, como uma "acomodação dos restos": Lituraterra. E dos restos, fragmentos,
lixo de sons e de palavras, parece saber bem a escritura de Llansol, que, não se
bastando com a batalha de corpos escritos em A Restante Vida33, ainda vem dizer,
em O Falcão no Punho: Sua mãe, Margarida, sabia como ele tinha sido preso pela
primeira palavra que pronunciara - lixo -, e a que ela tinha acrescentado, nos
tempos em que ainda o ensinara - lixo de escrita.34
Sulco, rasura, litura, littera, essa Lituraterra de Llansol, se é "acomodação
dos restos", certamente não é acomodação daquele que escreve e daquele que lê.
Felizmente, para nós, há o véu da beleza, último anteparo ante o horror do Real,
como diria Lacan, a recobrir a cicatriz dessa , escritura e a repetir, no momento em
que a tememos mais, que "a escrita e o medo são incompatíveis."35

32 LLANSOL. Ca111a amante, p. 160.


33 LLANSOL. A miante vida.
34
LLANSOL. O fakão no p,mho, p. 23.
35 LLANSOL. O fakão no p11nho, p. 13.

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Referências Bibliográficas

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BRANCO, Lucia Castello. Encontro com escritoras portuguesas. Boletim do CESP. Belo
Horizonte: UFMG, v. 14, n. 16, p. 103-114, jul./dez. 1993.
CHNAIDERMAN, Mirian. O hiato convexo. São Paulo: Brasiliense, [s. d.].
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971 . Freud e a cena da
escritura, p. 179-227.
DUCROT, O. O referente. ln: ENCICLOPÉDIA Finaudi. Linguagem e enunciação. Lisboa:
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1984. V. 2, p. 419.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno dicionário brasileiro da língua porft1guesa.
1 1 . ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [s. d.].
FREUD, Sigmund. O ego e o id; uma neurose demoníaca do século XVII e outros trabalhos.
Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. P. 285-290: Uma nota sobre o "bloco
mágico". (Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, 19).
LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Inês Oseki-Depré. São Paulo: Perspectiva, 1 978. P. 223-259: A
instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud.
___. O seminário - Livro 20: mais, ainda. Trad. M. D. Magno. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar,
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LLANSOL, Maria Gabriela. A restante vida. Porto: Afrontamento, 1 9 83.
___ . Causa amante. Lisboa: A Regra do Jogo, 1 984.
___. O falcão no punho: diário 1 . Lisboa: Rolim, 1985.
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SAFOUAN, Moustapha. O inconsciente e m, escriba. Campinas: Papiros, 1 987.

Sca n1 ned with C a m Sca nner


Lucia Castello Branco

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Aquele que opera com a sonoridade das palavras margeia, dessa
forma, um abismo. Aproxima-se da loucura, porque atua nessa ausência de
garantia, nesse ateísmo insuspeitado que sempre falta na linguagem comum.
Quando considera as palavras em si mesmas, quando. trabalha sua
materialidade, o poeta relega a segundo plano sua significação. Assume, então,
um risco dos mais elevados, porque, ao fazê-lo, invoca um nome, convoca
um pai que não responderá, que ficará surdo a sua prece atéia. 1

palavras de Gérard Pommier,


relativas ao poético e ao
trabalho do escritor com a palavra tomada em sua materialidade, convidam­ 1
nos a pensar, pela via da relação da palavra com a loucura, em ''Palavra e Sintoma".
É a partir dessa relação da palavra com a loucura (entendida em seu
sentido lato, e não exatamente como referente a uma estrutura peculiar, como a
psicose) que se fará, aqui, uma reflexão que tem como ponto de partida a seguinte
indagação:
A palavra literária é saúde ou doença, é cura ou loucura?
Ora, sabemos quanto essa questão tem ocupado a Psicanálise. Basta
citarmos como exemplo �alhos fundamentais , de Freud e Lacan: ''Escritores
criativos e devaneios" 2, em que Freud persegue a trilha da obra enquanto
sublimação, e o Seminário "Le Sinthome", de Lacan, que já não trata propriamente
de sublimação, mas de um certo savoir faire com a língua, fazendo-a percorrer,
como fez Joyce, o trajeto da letra ao lixo.3
Parece-me que, em uma dessas direções, a de Freud precisamente, � palavra
e o sintoma são tomados em sua dimensão metafórica, enquanto que, na segunda
direção, aquela percorrida por Lacan a partir do texto de Joyce, é sobretudo _da
dimensão metonímica da palavra (e do sintoma) que se trata.

1
POMMIER. A exceção ft111ini11tr. os impasses do gozo, p. 98.
2
FREUD. Escritores criativos e seus devaneios, p. 145-158.
3 LACAN. Le sinthome. ln: AUBERT. P. 49-67.

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É claro que essa divisão é meramente operacional, já que, em última
instância, é impossível pensarmos na dimensão metafórica da palavra enquanto
tal (sem considerarmos aí seus deslocamentos metonímicos) e vice-versa. O mesmo,
parece-me, pode ser dito com relação ao sintoma. Entretanto não é difícil
percebermos que, quando se trata da teoria da sublimação freudiana, é do eixo
metafórico da palavra e do sintoma que estamos falando: a obra em lugar do
sintoma, pode-se pensar. Já no Seminário de Lacan sobre Joyce, essa substituição
não se opera assim tão facilmente, o que talvez nos permitisse pensar na palavra e
no sintoma funcionando juntos, paralelamente.
Os depoimentos (e mesmo a obra) de diversos escritores, se não nos
respondem a essa indagação - se a palavra seria a doença ou a saúde -, oferecem­
nos algumas pistas para pensarmos em quanto a�u� e a escrita li!�rária têm
em comum. "Poesia é quando as palavras enlouquecem", dirá o poeta Manoel de
Barros. E tal afirmativa não se distancia frontalmente da de um outro poeta, que
sabemos ter sido psicótico. Refiro-me a Antonin Artaud, para quem a "Literatura"
propriamente dita interessava bem pouco, mas para quem a "escrita" era essencial,
já que queria exprimir uma coisa "que é o próprio grito da vida", que "é como o
lamento da realidade". A seu lado podemos colocar uma escritora brasileira, muito
louca e nadíssima psicótica - Clarice Lispector -, que queria também escrever o
grito, o sussurro, o sopro (Cf. Um Sopro de Vida) e que se dizia escritora porque
tinha nascido "incumbida". Se pensarmos também em depoimentos como o de
Murilo Rubião, que levou 21 anos escrevendo "O Convidado", e de Guimarães
Rosa, que parece ter declarado a Haroldo de Campos ter visto o diabo quando
escreveu Grande Sertão: Veredas, concluiremos que uma certa medida de loucura
parece ser comum (e, arrisco-me a dizer, necessária) àqueles que escrevem
Literatura. 4
Por outro lado, sabemos que, se pensarmos na Literatura apenas como
uma saída eficaz para o sintoma, não teríamos como explicar, por exemplo, a
série inumerável de suicídios de escritores, como assinala Attié, em "O Dito/O
Escrito'',5 ou como destaca Éric Laurent: "Se a satisfação sublimatória é tão perfeita,
por que o artista não é feliz? (...) Por que ele não se cura por si só?"6

4
Os fragmentos de Antonin Artaud, Oarice Lispector, Guimarães Rosa, Manuel
de Barros e Murilo Rubião, aqui citados, foram colhidos de depoimentos dos
autores, ou de suas obras.
5 ATTIÉ. Isso: despensa freudiana, p. 26-30.
6
LAURENT. R.t1111e d, la Psy,hana!Jst, p. 3-4.

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Estamos, então, novamente às voltas com a mesma questão: a palavra
literária é cura ou loucura? Para Deleuze, em Critique et Clinique, "La littérature
est une santé" .7 Mas basta lermos o sumário de seu livro e elencarmos os autores
com os quais Deleuze trabalha, para verificarmos quanto o seu conceito de saúde
já engloba a noção de loucura: são textos sobre Nietzsche, Lewis Carroll, Beckett,
Masoch e mesmo Louis Wolfson, o psicótico paradigmático (como Schreber,
para Freud) da Psicanálise na França.
O trajeto da literatura como saúde, para Deleuze, seria semelhante àquele
que Lacan verifica na "lituraterra" joyceana: da letra ao lixo. Para Deleuze, a
literatura "eficaz" é aquela que faz balbuciar, gaguejar a língua, aquela que faz do
escritor um "gago da língua". Nesse limite, a literatura não se faria mais de palavras
(pelo menos no sentido convencional do termo), mas de sopros ("mots-soufles",
como queria Artaud) ao limite do grito, ao limite do silêncio. Essa, para Deleuze,
seria verdadeiramente a palavra poética.
É, portanto, considerando esse caráter bifronte da palavra poética que,
sem deixar de ser palavra, abre-se para a não-palavra (para o sopro, o grito) que eu
gostaria de pensar na relação entre a palavra e o sintoma, talvez na direção de
Derrida, que, em A Farmácia de Platão, nos mostra o quanto a palavra é próxima
do pham1akon: é remédio e é veneno, ao mesmo tempo. 8
Para isso, analisamos alguns trechos de duas entrevistas que realizei em
1 992, com duas escritoras portuguesas: Hélia Correia e Maria Gabriela Llansol.
Acho que, nessas duas entrevistas, é possível localizar o processo de escrita de
cada uma dessas autoras. O que me parece é que, no caso de Hélia Correia, pode­
se pensar numa dimensão metafórica da relação palavra/ sintoma, enquanto que,
em Maria Gabriela Llansol, trata-se de uma relação metonímica, o que determina
um texto completamente diferente, "gago da língua", como diria Deleuze. No
primeiro caso, talvez se possa pensar em palavra e sintoma, enquanto, no segundo,
talvez se devesse pensar em algo como palavra é sintoma.9

7
DELEUZE. Critiqm et cli11iq11e.
8
DERRIDA. A farmácia de Platão.
9
Os depoimentos de Hélia Correia e Maria Gabriela Llansol foram extraídos de
entrevista concedida a BRANCO. Encontros com escritoras portuguesas, Boleti111
do CESP, p. 103-114.

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O que me fez procurar Hélia Correia não foi exatamente a beleza de seu
texto, o desenho melódico de sua ficção, mas uma declaração que ela teria dado a
uma jornalista. Diz a autora:
Perguntou-me outro dia um jovem estudante - interpretando a
minha indiferença pelos confortos e glórias do mercado como indiferença
pela publicação - por que motivos não guardava eu os manuscritos na gaveta.

As pobres criaturas iriam sufocar - respondi.

A partir dessa frase - "as pobres criaturas iriam sufocar'' -, dirigi-me à


casa de Hélia com algumas perguntas que se circunscreviam à relação do escritor
com sua obra e, mais especificamente, à gênese do trabalho literário. O curioso é
que, em minha memória, a frase havia sido registrada da seguinte maneira: "as
pobres criaturas iriam enlouquecer". Assim, toda a entrevista foi construída em
torno da relação literatura-loucura:
Quando eu era pequena achava que era louca e, como quase
não falava, as pessoas não percebiam. E pensava: elas não percebem é porque
não falo ( ... ).

Escrevo no limite da loucura. Começo a escrever quando já não


posso suportar as personagens. É como estou agora - agora estou quase a
chegar ao momento do insuportável. E vou ter que escrever. O que é muito
agradável é ainda o antes da fala: elas aparecem e eu as vejo estar, viver. Aqui,
em J anas, acontece muito: quando estou sozinha, a meter a mão na terra, me
vem aquele texto praticamente pronto. Ou, então, naquele momento pré­
sono, depois de apagar a luz, um momento para mim muito dificil em que,
de repente, vai-se perder. E nesse momento é o meu momento de criação. É
muito bom, eu prolongo o mais que posso essa situação porque é sonho,
alguma coisa muito larga, em que as pessoas existem ainda muito
sossegadamente.

Esse breve depoimento da autora já nos permite vislumbrar quanto a


obra, no caso de Hélia Correia, toma o lugar do sintoma: "escrevo no limite da
loucura". Curiosamente, esse limite é assinalado por um sintoma, ela me diz: "a
falta de ar, a crise de asma... " E é preciso escrever, tem-se que escrever. Para quê?
Para não sufocar ("as pobres criaturas iriam sufocar"), para não perder-se no·
ilimitado da loucura.
Não é à toa, portanto, que, após "concebido" o livro, a autora não queira
ma1s saber dele. Hélia Correia entrega, então, o texto para três amigos seus, que

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-
podem fazer o que quiserem com ele, menos acrescentar alguma coisa:
Estão prontos, têm a sua autonomia, não quero mais saber deles
(...) Esses três leitores têm autorização para cortar o livro - modificar, nada.
Não podem colocar ali alguma coisa que não estava, mas podem cortar o que
quiserem.

Essa estranha relação com a obra de alguma forma parece encontrar uma
de suas razões na maneira insuportável como essa obra é produzida: no limite da
loucura, na asfixia. Nesse sentido, é curioso que a autora aceite (e, parece-me,
deseje até) o corte, mas não permita outro tipo de alteração por parte de seus três
leitores eleitos.
Curiosamente, esse texto produzido no limite da loucura é assinalado
por um ritmo poético. Um ritmo da pulsão? O fato é que Hélia parece saber
desse ritmo e, mais que saber dele, Hélia parece obedecer a esse ritmo:
O que me comanda é a métrica. São decassílabos brancos. O
que às vezes me faz parar é uma esdrúxula com três sílabas ... É uma música,
é uma matriz musical. Não sou eu. a dona, porque, muito menos que o
significado, é uma matriz que me comanda, é o mecanismo a que chamava­
se, no passado, de inspiração ...

No processo escritura! de Hélia Correia, podemos detectar com clareza


esse trajeto metafórico da palavra que vem exatamente ocupar o lugar do sintoma:
em lugar da asfixia, uma matriz musical; em lugar da loucura, o texto. Nesse
sentido, par�ce-me que podemos falar aqui de uma "sublimação feliz" e até mesmo
de uma "função curativa" da ficção.
O que dizer de um outro tipo de gênese literária, contudo, de um outro
tipo de texto, que parece não se separar daquilo que o produz, que parece não se
destacar do sintoma, mas antes exibi-lo, trazê-lo à tona, não exatamente como um
corpus textual, mas como o próprio corpo do sujeito? Refiro-me aqui à escritura
de Maria Gabriela Llansol e ao curioso processo de construção de sua obra.
Essa escritora, para quem "não há metáforas", "não existe o como se,
uma coisa é ou não é", acaba por produzir um texto que, simbioticamente, parece
colar-se a sua vida. Ou acaba por produzir uma vida que, simbioticamente, parece
colar-se a seu texto? O fato é que a escritura de Maria Gabriela Llansol deve-se
muito mais à metonímia que à metáfora.
Evidentemente marcada por vários procedimentos textuais que ressaltam o
privilégio da letra (mudanças de tipo regular para itálicos), ou do branco da página

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(espaçamentos inesperados, linhas saltadas), ou da consistência poética de seu texto
(embora narrativo, esse texto escreve-se, muitas vezes, em fragmentos que lembram
versos, como na poesia), a escrita de Llansol é marcada sobretudo pelo desenho de wn
traço horizontal que se introduz na narrativa e que irrompe, deflagra outros sentidos,
ao mesmo tempo que interrompe o precário sentido que já vinha se contituindo para
o leitor. A respeito desse traço, que ela diz ser, em um de seus textos, o lugar da
"palavra que falta", o "lugar do leitor", Llansol declara, em entrevista:
Da mesma maneira que eu escrevo uin texto único, mais do que
um livro, é que eu faço aquele traço como para querer mostrar, de uma
maneira muito concreta, que eu sinto mesmo que o traço irrompe, que tudo
está ligado a tudo e que sem o tudo anterior não existe o tudo seguinte ... A
meu ver, aquele traço desloca-me em uma direção em que eu vou ser tocada
fisicamente ... Porque o traço é um traço físico ...

Físico, esse traço marca, então, através da relação metonímica que mantém
com o corpo da autora, sua introdução no papel, seu gesto de sulcagem nessa
superfície branca. E, em consonância com essa simbiose ilimitada - "tudo está
ligado a tudo" -, a autora produzirá um estranha escrita, em que o sentido é
praticamente evacuado para dar lugar a uma cena textual de onde saltam apenas
os significantes em cadeia, ou, muitas vezes, as palavras em sua dimensão de letra,
de grafia, de traço e de espaçamento. Por isso, é natural que a autora não defina
seu texto como ficção ou como memória (embora ela possua obras que se inscrevem
como ficção, ao lado de outras que se nomeiam diários), mas como uma narrativa:
Quando me perguntam se escrevo ficção, tenho vontade de rir.
Ficção? Personagens que acordam, dormem, comem? Não, não tenho nada a
ver com isso (...) O que escrevo é uma só narrativa, uma só narrativa que vou
partindo, aos pedaços ...

Ainda em consonância com essa visão de sua escrita, a autora declara


estar em busca de um texto não linear, que possa perseguir a concomitância dos
fenômenos, dos acontecimentos, dos fatos da vida: "Ali uma planta respira, ali
correm as crianças, ali um cão late. A minha escrita é isto: é o meu sopro". E, para
tal empreendimento, a autora acredita estar produzindo uma escrita da
transparência e da limpidez:

Há um esforço para tornar límpidos o seu corpo, a sua maneira de viver, os


seus dias, mesmo os sentimentos mais complexos e depois é que se pode
escrever ... Há vários níveis de escrita, mas este é muito específico e tem a ver
com a limpidez ...

Sca nned wit h CamSca nn er


Límpida ou não, é certamente de um outro rúvel de escrita que esse texto
de Llansol nos fala. E talvez esse rúvel se explique por uma certa posição do
sujeito em relação ao simbólico, que acabaria por produzir um texto também
marcado por uma uma certa posição da palavra poética (tomada em sua dimensão
de significante ou de letra) em relação à coisa.
Essa busca da limpidez, da transparência, bem como esse trabalho com a
materialidade da letra - o traço horizontal, as mudanças de tipo, os diferentes
espaçamentos - não fazem mais que refletir uma tentativa maior dó texto de
Llansol: a de se escrever numa "língua sem impostura". Há sempre, nas obras da
autora, uma "rapariga que teme a impostura da língua" (facilmente associada à
narradora, que por sua vez se associa à autora) e que procura uma língua sem
impostura, como assinala o trecho abaixo, de Causa Amante:
Com elas, estava a rapariga que temera a impostura da língua e que se tinha
tornado tão pertinaz que Úrsula, humilhada, acreditava que a impostura da
língua existia. Por essa razão, sentia-se sem língua que a cobrisse, e debaixo
de um céu sem estrelas. 10

Ou, como assinala a própria autora, em entrevista:


Veja bem, a língua é uma impostura. Tudo aquilo que estamos aqui a falar é
uma impostura. Mas é possível, em algum momento, atingir a linguagem, a
língua sem impostura. É isso que o meu texto quer.

Curiosamente, esse texto que busca a impossível transparência de uma


língua sem impostura (de um discurso "que não seria o do semblante"?) é marcado
também por uma voz. Mas, diferentemente do que ocorre na escrita de Hélia
Correia, em que uma matriz musical se imprime, no texto de Llansol essa voz se
apresenta como não fonetizável, não articulável (daí, talvez, a dificuldade de ler o
seu texto em voz alta), mais marcada por sua dimensão de traço, de sulcagem, de
grito não vocalizável, que propriamente de um som musical.
Diferentemente do que se observa no texto de Hélia Correia, essa voz
não se localiza numa exterioridade (não é uma voz das criaturas, nem mesmo um

10
LLANSOL. Causa amante, p. 135.

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ritmo que se impõe), nem propriamente numa interioridade (não é a voz de
um eu íntimo, que poderia se fazer ouvir como um duplo da autora), mas
exatamente na borda, ou no litoral. Assim, lemos no início de Um beijo dado
mais tarde:
---- prendeu a cabra a um castanheiro que se via da janela mas estava
longe; a cabra não deixava de se ouvir e, mesmo depois do pôr-do-sol, balia;
disse que ia cortar-lhe o som, e dirigiu-se para ela com a mão direita e uma
faca; o pêlo agitou-se sem balir, e ficou a sangrar; mais nenhum ruído
atravessou o nosso sossego, mas uma segunda língua, com parte no céu-da­
boca, principiou a nascer-lhe, e foi ela a voz. 11

E podemos ouvir da própria autora, em entrevista:


A voz não está fora do texto. A voz não está dentro e nem fora
do texto ... Ao mesmo tempo é uma voz extremamente corpórea, é muito
objetal essa voz. E, quando ela fala, ela provém de um corpo real que sabe
perfeitamente qual é a sua experiência, o que viveu... Digam os que ela traz as
marcas de sua própria existência ...

A voz é corpórea, não vem do interior, nem do exterior, mas da borda.


Como o traço de Llansol, que se inscreve no texto corno marca do gesto da autora
no branco do papel. Nesse sentido, sua escrita aproxima-se, então, daquilo que
Deleuze chamou de balbucio, pois faz a língua dobrar-se sobre si mesma e gaguejar
e balbuciar e tropeçar nas letras e nos brancos de página, hiatos que se interpõem
entre aquele que escreve e aquele que lê.
Assim como o traço, a voz mantém com aquela que a escreve uma relação
metonímica. Por isso é corpórea e simultaneamente objetal. E por isso, também,
talvez seja apressado dizer que uma escrita como essa resulta de urna "sublimação
bem sucedida", pois o que se tem não é resultado de um processo metafórico - a
obra em lugar do sintoma -, mas de um deslizamento metonímico, em que a
obra se apresenta como o próprio sintoma.
Parece-me ser nessa direção que Lacan elabora a noção de sinthome, a
partir da obra de Joyce. E aí, nesse lugar do sinthome, a palavra parece não se
colocar mais como um signo - qualquer coisa que está no lugar de qualquer outra

11
LLANSOL. Un1 beijo dado n1ais tarde, p. 7.

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coisa para alguém -, nem mesmo �orno um significante - o que representa o
sujeito para um outro significante -, mas, quem sabe, como letra - esse ponto
de furo que faz a borda, o litoral entre o Simbólico e o Real.
Na direção de Lacan, podemos pensar no procedimento escriturai e na
escrita de Hélia Correia como processos literários, enquanto Llansol e seu texto
habitariam o universo da lituraterra. E nesse universo, parece-me, não cabe mais
traçar o percurso da sublimação, mas de enveredar cautelosamente pelos caminhos
sinuosos do sinthome. Aqueles que tomam por esse caminho parecem saber
(algumas vezes, dolorosamente) que a palavra poética é, ao mesmo tempo, remédio
e veneno e que, se a literatura pode vir a configurar alguma modalidade de cura
(ou de saúde, como observa Deleuze), ela não o fará sem ser atravessada pelo seu
avesso - a loucura.

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Referências Bibliográficas

A TTI É , Joseph. O dito, o escrito: o necessário, o impossível, o contingente. Isso: despensa


freudiana. Belo Horizonte: Secretaria do Estado da Cultura de Minas Gerais, p. 26-30. [s.d.].
BRANCO, Lucia Castello. Encontros com escritoras portuguesas. Boletim do CESP. Belo
Horizonte: UFMG, v. 14, n. 6, p. 1 03-1 14, jul./dez. 1993.
DEL'EUZE, Gilles. Critiq11e et clinique. Paris: Minuit, 1993.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991.
FREUD, _ Sigmund. Gradiva de Jensen e outros trabalhos. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Imago, 197 6. P. 145-158: Escritores criativos e seus devaneios. (Edição Standard Brasileira
das Obras de Sigmund Freu, 9).
LACAN, Jacques. Le sinthome . l n: AUBERT, Jacques (org.). Joyce avec Lacan. Paris: Navarin,
1987. p. 37-67.
LAURENT, Éric. Styles de vie. Rev11e de Psychanafyse. Critique de la sublimation. Paris: ECF-
ACF, p. 3-4,1993.
LLANSOL, Maria Gabriela. Causa amante. Lisboa: Rolim, 1 984.
___. Um beijo dado mais tarde. Lisboa: Rolim, 1991.
POMMIER, Gerard. A exceção feminina: os impasses do gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.

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SUS/0/SUZ
Musso Garcia Greco

SUZ/0/SUZ é um neologismo que o grupo catalão La Fura deis Baus utiliza para
nomear seu espetáculo de "Teatro Total", que é, segundo eles, a pan-utilização de recursos
plásticos, cênicos, musicais e sensoriais com finalidade de representação teatral. Para alguns
críticos, trata-se do ''Teatro da Violência", nome igualmente adequado para descrever o impacto
visual e emocional que acomete quem assiste às representações. Cumpre registrar que a
apresentação do grupo vem precedida (pelo menos em São Paulo o foi) por reportagens que
grifam o caráter insólito do espetáculo através de algumas frases: "Jogam água na platéia",
"Banham-se com sangue", "Comem carne crua", "Não usam palavras". O tema da peça é um
ritual de iniciação. Quem os conhece de Barcelona anuncia: "Estão cada vez mais loucos"...
Então, vamos por partes - atos, já que o assunto é teatro.

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O espetáculo
"No princípio era · O ritmo"

fluxo de espectadores vigilantes move-se sala adentro.


Não há cadeiras ou o que indique o lugar de cada
um. Tampouco se sabe de onde virão os atores. O lugar não é um teatro, é um
galpão pouco iluminado, de alto pé-direito. Há um pacto entre quem está ali e a
companhia teatral - quem entra sabe que haverá água, sangue e carne crua -,
mas o clima é de tensão. Luz apagada, platéia apreensiva. Barulho de latas. Susto.
Focos de luz iluminam "máquinas de barulho", distribuídas ao redor da sala.
Uma a uma vão sendo ativadas. Engenhocas rítmicas. Instrumentos de klein-tlec­
tlec, klein-tlec-tlec. Colheres. Roda de bicicleta. Chuveiro. Cleq-pqpq-cleq. Como
uma carroça cheia de panelas, em movimento. Sucata chacoalhada. Rtoq-scln­
rtoq-scln. Autônomas. Simultâneas. Orquestra e latas. Klein-tlec-tlec-pqpq-cleq­
pqpq-cleq-rtoq-scln-rtoq-scln-tun ... Batuque futurista: primitivo e pós-industrial.
Nesse espaço circulado por ruídos, os atores aterrissam. Surpreendem a platéia
descendo por cordas, do teto. De camisa, gravata e tanga, eles iniciam performances,
misturados à platéia. Um atira um pneu, após girá-lo com uma corrente. Em
outro ponto, ouve-se um barulho estrondoso: um ator vai abrindo caminho,
batendo um artefato metálico que ele segura por uma corrente. Ferro batido.
Gritos. Um barulho de serra elétrica! Os espectadores fogem. Abrem-se clareiras
onde estão os ameaçadores seres de tanga (tiram a camisa e a gravata). A platéia
pulsa, em compressão e expansão. O que se vê são fragmentos de cenas. Flashes.
Aparições. Movimento caótico. Des-organização. Início.

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Quando eles sobem em um tablado onde estão instrumentos musicais,
o público, taquicárdico e sem referência, recompõe-se. "Um show de rock é um
show de rock", pensa. São como os Titãs, aquele mesmo tipo de feiúra. Titãs
seminus; de bunda de fora, mas rockeiros... skinheads... heavy metaR Ledo
engano. É outra a coisa. Quase não há melodia. Não há palavras propriamente
articuladas. Há sílabas, gritos, grunhidos, sons em estado bruto. Ruídos e
onomatopéias. Toda a disparidade do som. Primado do ritmo e da fúria. Os
atores-músicos pulam, percutem, "sintetizam", "sampleiam". África-p11nk­
hardcore-ind11strial-rock.
Recomeça a subversão. Em andaimes sobre rodas, eles mudam a concepção
de palco. Caminham sobre a platéia, que tem que se reposicionar. São
representações de combate. Os espectadores são também figurantes. Como em
épicos bíblicos. Banhos de água e sangue para os guerreiros. A platéia, um Mar
Vermelho de gente abrindo passagem para os palcos móveis. Entregues à violência
de La Fura (doninha, em catalão), o espectador é taquicardia. Não há neutralidade
possível, há baldes sobre sua cabeça! Agua e sangue são aspergidos nele também.
Os guerreiros comem carne crua e atiram-na uns aos outros. O espectador no
meio da cena: olhos-pernas-coração. Como as vísceras que os atores devoram:
coração-pulmão-traquéia de carneiro. É a isso que estamos reduzidos, os
espectadores_-carneiros. A platéia move-se como um gado assustado. Devoram­
nos. A serra elétrica e a música desagregada já nos retalharam. O corpo disperso
da platéia arfa, desmembrado.
Indefesos, voltamo-nos para os pontos que a luz ilumina. Dois tanques de
vidro colocados em dois extremos da sala chamam a atenção. Dentro, mergulhados,
em posição fetal, dois homens, um em cada "aquário". Cada um, branco, glabro e
nu, representa um menino sendo iniciado, com violência, no mundo masculino.
Menino-indiferenciado-morto- feto-E.T. Ele é atacado várias vezes, a água se tinge.
Angústia e lirismo. A coreografia de uma agonia fetal. A música agora é um
rumor, sons que se repetem num ritmo aplainado. Um parto ritual.
O movimento seguinte é uma celebração. Os andaimes pas seiam
novamente pela sala. Agua, sangue, carne, fuga. Os "meninos" são levados a dois
andaimes mais altos, dispostos simetricamente. São pendurados, agredidos,
banhados, pintados, marcados, puxados. "Pencas" de terrível beleza. Fogo, tinta,
carnes, tripas, serragem, vento, farinha. E sangue. E água.
Os "atravessadores", supostos-saber-fazer-a-passagem ritual, tombam ao
chão. O homem, mais um homem, fruto do ato ritual, pode agora advir...

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A platéia, respingada e muda, se retira, sem saber se deve aplaudir. A
música acabou. Os atores limpam-se nos tanques, indiferentes à movimentação a
seu redor. Fim do ato.
Pura loucura. Poesia pura.

O teatro como um ato


"No princípio era o ato"

referência imediata para situar esse espetáculo de "teatro total"


(ou "físico" ou "da violência") é o "Teatro da Crueldade" de Artaud.
É preciso entender que "crueldade", para ele, tem o sentido de "vida", de "rigor",
de "submissão à necessidade", de "boa inspiração", de "sopro da vida": algo
analfabético que precede o texto. "É para os analfabetos que escrevo", anota Artaud
a respeito de sua proposta de uma letra enfim liberada, subordinada à distância
do ilegível, mas sem cair na anarquia improvisadora. Da linguagem da crueldade
ele informa uma nova escritura: a mais rigorosa, a mais imperiosa, a mais
regrada, a mais matemática, a mais formal. Artaud quer, podemos dizer com
Derrida, elaborar uma "rigorosa escritura do grito", um sistema codificado
das onomatopéias, das expressões e dos gestos, uma nova gramática, a gramática
da crueldade - podemos dizer "do Real" - formalizada matematicamente.
Derrida percebe que essa giossopoiese nos reconduz à beira do momento em
que a palavra ainda não nasceu, em que a articulação não mais é grito, mas

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ainda não é discurso, em que a repettçao é quase impossível: "a véspera da
origem das línguas ..."

,
É o ato de escrever que vai permear a procura de Artaud pela "arte total".
Não uma escrita qualquer, mas uma escrita quase mágica, crucial, dilacerada, onde
já não se distingue o que é letra do que é corpo do que é sofrimento do autor. Para
formular essa arte mestra, inicia pela poesia e a "revolta contra a poesia", passa
. pelo cinema, pelas cartas, pintura, ensaios, críticas, até chegar ao teatro, um teatro
que ele não quer subordinado à literatura: um mundo, segundo ele, novamente
"aberto ao perigo". O que o impele nessa busca vital do indizível é sua relação
muito particular com a linguagem. Um tipo de posição que podemos classificar,
psicanalíticamente, de psicótica.
A psiquiatria do seu tempo já lhe reconhecia a loucura, e esse diagnóstico
vem, ao longo dos anos, sendo ressignificado por tantos quantos se interessem
pelas questões da criação artística e dos limites da liberdade humana.
Aqui, ao valorizar esse diagnóstico estrutural, é o estatuto da obra de arte
no contexto específico da psicose que vamos privilegiar. O reconhecimento
artístico já foi outorgado a Artaud por alguns contemporâneos de peso e pela
posteridade. Sua obra faz laço com leitores intelectualizados que a comentam -
ainda que não "compreendam" ou dêem assentimento às idéias do autor -, faz
laço com artistas e diretores de teatro que reconhecem a ruptura do teatro ocidental
em antes e depois de Artaud - ainda que não encontrem forma de usar Artaud
que permaneça fiel a ele -, mas o absolutamente essencial para que isso aconteça
está, paradoxalmente, no que o torna indigerível para a cultura: a psicose. É
justamente a psicose, habitualmente considerada em termos de déficit, que vai
propiciar - por razões dramáticas, é importante lembrar -. o fundamental da
produção artística de Artaud.
Susan Sontag diz que não há maneira de aplicar Artaud, que nem mesmo
o próprio descobriu o modo, que as suas próprias produções teatrais estiveram
longe de chegar ao nível de suas idéias... Mas ele vem chamuscando, mudando,
inspirando, como nos dá mostras a peça SUZ/O/SUZ. E de onde vem a ins­
piração de Artaud? Derrida analisa a motivação delirante em Artaud a partir de
sua relação com o Outro, um outro gozador e perseguidor: ladrão da palavra. Sua
estratégia de evitamento desse roubo, desse "sopro da sua palavra para longe do
corpo" é a obstrução ao que quer que seja inspirado por essa Outra voz (a inspiração
poética, a religião, a metafísica, a estética, etc.). O teatro entra aí como sua suprema
e lancinante "metaforização" da liberdade, a solução reunificadora de sua mente e

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seu corpo, dilacerados numa luta contínua com a linguagem. Sontag frisa que
Artaud não estava simplesmente reproduzindo sua agonia interior, senão, mais
precisamente, dando uma visão sistematizada e positiva dela.
Localizando na cena ocidental clássica um teatro que se define por palavras,
portanto por interpretações, registro e tradução, derivação a partir de um texto
pré-estabelecido e prenhe de sentido, Artaud desperta a cena da crueldade, para
que a estrutura do furto não ofereça mais abrigo, e expulsa o Deus-autor do palco.
Cria um teatro insubmisso a esse Outro ladrão, Senhor que guarda a palavra e
que escreve o Texto/Tábua da Lei para escravizar os diretores e os autores. O
genial é que, lançado nessa dimensão a-significante, o teatro ocidental pode
realmente se "libertar", descolar-se da literatura e, para além do efeito de ilustração
de um texto, procurar novos caminhos criativos.
A insurreição de Artaud contra o livro de Deus, onde se escreve que "no
princípio era o Verbo", dá-se em ato, em um ato sublimado: o ato teatral. Um
ato, lembra-nos Lacan, "está ligado à determinação de um começo, e muito
especialmente ali onde há necessidade de fazer um precisamente porque não há".
Pensado a partir da psicose, esse "ato que determina um começo onde não há"
adquire sua dimensão maior: assegurar a própria existência do sujeito! "Eu sou
meu pai, minha mãe, meu filho e eu", brada Artaud, e o que ele questiona é seu
próprio engendramento, sua genealogia, seu nome. Daí a importância do ato:
poder fundar uma origem.
Ao livro/linguagem de Deus, Artaud opõe também um livro/ lalangue
antigo e desaparecido, "O" Livro, cuja escrita ele tenta transmitir, fazendo a ressalva
de que "só é válido (o ritmo de leitura) se tiver jorrado de uma vez só: buscando
sílaba por sílaba, nada mais vale; escrito aqui, nada mais diz e não tem mais valor
que a cinza; para que isso possa viver como escrita é preciso outro elemento que
está naquele livro que se perdeu":

---
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ratara ratara ratara
atara tatara rana

otara otara Katara


otara ratara kana

ortura ortura konara


kokona kokona _koma

kurbura kurbura kurbura


kurbata kurbata keyna

pesti anti pestantum putara


pest anti pestantum putra.

(Carta a Henri Parisot, 1945)

Escritos como esse, inanalisáveis, mostram o esforço do sujeito psicótico


para construir uma linguagem da qual se fará garantidor: um mundo como lalangue.
Se o ato de assinar, como aponta Pommier, é o que "eterniza o nome e autoriza a
existência de quem cometeu o ato", virá daí a necessidade da escrita (poemas,
cartas, manifestos) para Artaud e, principalmente, da publicação desses escritos?
A importância do ato de escrever sobre o inescrevível ( seu teatro, principalmente)
não evidencia o que Lacan notou em Joyce como "vontade de criar um nome"? O
próprio Artaud parece confirmar essa hipótese:
Quem sou eu?
De onde venho?
Sou Antonin Artaud
e basta eu dizê-lo
como só eu o sei dizer
e imediatamente
verão meu corpo atual
voar em pedaços
e se juntar
sob dois mil aspectos
notórios
em um novo corpo
no qual nunca mais
poderão me esquecer.

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A definição de ato, nesse contexto, transcende o ponto de vista já
conhecido acerca da função estabilizadora da passagem· ao ato na psicose - uma
ação agressiva, por exemplo, pode ocupar o lugar de ponto de detenção da psicose,
por meio de uma separação daquele que é considerado como perseguidor no
delírio -, dando lugar a novas considerações. Em Artaud, a ruptura com o Outro
não se dá pela agressão, mas pela crueldade. A Crueldade precisa ser entendida
como uma palavra de significação absoluta, como um neologismo em torno · do
qual Artaud constrói todo um corpo teórico, toda uma metodologia metafísica
de exercício da arte e da vida. Ele afirma_: "Tudo que age é uma crueldade." E é
nesse extremo do ato que o teatro (e seu duplo, o sujeito Artaud) pode renovar-se,
respirar, viver.

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De espectador a testemunha

Um golpe de teu dedo sobre o tambor descarrega todos os sentidos e começa


a nova harmonia ...
( Rimbaud, "Por uma razão")

no teatro como ato - ato entendido


na perspectiva lacaniana - implicá
considerar uma posição de suspensão do que está instituído e suportar o significante
restaurado enquanto puro não-sentido. Daí a indigência de qualquer tentativa de
leitura horizontal de uma obra como a apresentada, em que o espectador pudesse,
passivamente, esperar pelo fim, aguardando as revelações que lhe seriam feitas.
Artaud vai dizer que "no Teatro da Crueldade, o espectador está no meio, rodeado
pelo espetáculo". É um espectador subvertido, que já não pode, como no teatro
tradicional, ser "usufruidor", não pode constituir o seu espetáculo e atribuir-se o
seu objeto.
O mesmo se aplica à escuta de psicóticos ou à leitura de seus textos. Aqui
também não se trata de interpretar as imagens, de penetrar na fábula ou na pele
do personagem-autor, sob pena de reduzir a alteridade e a estranheza ininteligível
da psicose à familiaridade da neurose do observador; ou, em outras palavras: matar,
pela projeção, a singularidade do acontecimento do outro.
Ora, sabemos que, como diz um sábio chinês da última dinastia, "para
conhecermos o gosto de uma pêra, é preciso transformá-la, comendo-a". Daí que
o simples fato de chamar a loucura de psicose já é uma redução, que implica
tomar seus fenômenos pelo viés da linguagem, mais especificamente, pela marca

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indelével da forclusão do significante do Nome-do-Pai. Absorvida no conceito, a
loucura se reterritorializa e deixa de ser o epicentro de um terror. Pode ser agora
excluída ou tratada, abordada ou discriminada, ou seja, nomeada de alguma
maneira, o que é o destino inevitável das coisas neste mundo de Símbolos.
A palavra é esse agente transformador, que come a pêra para criar a pêra ou,
em termos lacanianos, inspirados em Hegel: a palavra é assassinato da coisa, e a criação
que lhe é correlativa é a ficção. No lugar vazio dessa anulação a partir da palavra,
cµam-se os objetos, nossos objetos que não têm outro estatuto de existência que sua
consistência lógica. Os objetos são, portanto, filhos das palavras; a coisa e a coísidade
da coisa (a perice da pêra, por exemplo) permanecem, para sempre, inomináveis...
Daí a ilusão de tomar o uso da linguagem como expressão, descrição,
informação ou comunicação, como um bom aparato de referir, de indicar os
objetos do mundo. "O uso essencial da linguagem", afirma Miller, "aponta para a
construção de um parapeito do defeito que está na raiz mesma desta linguagem".
A psicose seria, a partir desse ponto de vista, o terreno em que melhor
poderíamos conceber o que seria a nossa relação original com os significantes, e a
poética delirante de Artaud nos serviria de paradigma. Refogando a literatura, ele
acaba por se tornar emblematicamente literário, justamente porque põe a letra
no seu devido lugar (de resto) e explicita sua matéria de gozo.
Um teatro e uma escrita que denunciam a imperfeição das línguas: nada
mais poético. Nada mais louco. Talvez aí se possa perceber um ponto de
tangenciamento do discurso poético e do psicótico: em ambos, trata-se,
fundamentalmente, de designar uma ausência, a de uma língua suprema, como diria
Mallarmé ("das línguas imperfeitas, ainda que várias, falta a suprema") . Ainda que
Artaud faça de sua arte protesto contra um impedimento de dizer por parte do
Outro que lhe roubou o "livro total", e poetas como Mallarmé utilizem os versos
para reparar uma impossibilidade de dizer, o caráter artístico os aproxima enquanto
atos que mostram o impossível como real, a palavra como coisa, a letra como matéria.
A arte em estado bruto tem que ser louca. Tem que romper com as
sustentações simbólicas e imaginárias, e abrir-se ao perigo da coisa. SUZ/O/SUZ,
com água, sangue, carne e susto, obriga o espectador a depor as armas e testemunhar
o horizonte vertiginoso do seu próprio desaparecimento. Apresentando em vez
de representar, o que "rola"em SUZ/O/SUZ (esse significante que só remete a si
mesmo) é o puro ato, e o que resta é a roupa respingada, os dejetos da festa. Uma
pequena letra a, como diria Lacan.

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Referências Bibliográficas

ARTAUD, Antonin. Escritos. Porto Alegre: L & PM, 1980. (Coleção Rebeldes e Malditos,
v. 5).
DERRIDA, Jacques. O discurso e a escritura. São Paulo: Perspectiva, 1976.
/
KAUFMANN, Vicent. Artaud: Loucuras epistolares. ln: GROSRICHARD, Allan (org.).
LA psicosis en el texto. Buenos Aires: Ed. Manancial. 1989.
LACAN, Jacques. O seminário: El acto analítico. (Inédito).
___, O seminário: Joyce o sintoma. Lisboa: Escher S.A., 1987.
LAURENT, Eric. Estabilizaciones en las psicosis. Buenos Aires: Ed. Manancial, 1989.
MILLER, Jacques-Alain. La psicosis en e! texto de Lacan. ln: GROSRICHARD, Allan (org.).
LA psicosis en el texto. Buenos Aires: Ed. Manancial, 1989.
NETTO, J. Teixeira Coelho. A significação no teatro. ln: NETTO, J. Teixeira Coelho,
GUINSBURG, J. (orgs.). Semiologia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 1988.
GUINSBURG, J. O teatro no gesto. ln: NETTO, J. Teixeira Coelho, GUINSBURG, J. (orgs.).
Semiologia do. teatro. São Paulo: Perspectiva, 1988.
POMMIER, Gerárd. O desenlace de uma análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. Porto Alegre: L & PM, 1986. Abordando Artaud,
p. 15-57.

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__.......
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Maria Angélica Melendi

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Con un hisópo entintado marcó cada cosa
con su nombre: mesa) silla) reloj, puerta) pared,
cama) cacerola. Fue al corral y marcó los animales
y las plantas : vaca) chivo) puerco) gallina) yuca)
malanga) guineo. Poco a poco, estudiando las
infinitas posibilidades del olvido, se dio cuenta de
que podía llegar un día en que se reconócieran
las cosas por sus inscripciones, pero que no se
recordara su utilidad. Entonces fue más explícito. 1
García Márquez, 1 970

"CAPACHO SERVE PARA NOS DIAS


CHUVOSOS TIRAR A LAMA DA SOLA DO
CALÇADO NA ENTRADA" 2
Bispo do Rosário, 1970

1
GARCÍA MÁRQUEZ, 1 970, p. 213
2 MORAIS, 1990.

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Os Bordadores )-

Paro no cruzamento e, disfarçadamente, tento ver. Sentado contra a


pilastra do viaduto, o homem borda. A seu lado, alguns panos estão expostos. O
homem é jovem. Insensato, um sorriso vagueia na sua face. O bordado é uma
escrita. Um carro buzina atrás. Consigo ler: "JoôES ESTOU COM FOME". De hoje
em diante, sempre que atravessar o cruzamento, meus olhos procurarão o homem
e os escritos do homem.
Madalena Santos Reinbolt levava uma hora para enfiar as cento e quatro
agulhas com as quais bordava seus "quadros de lã". Astros. Pássaros. Bois,
carneiros, onças, elefantes, macacos. Homens e mulheres. "Ela escreveu o mundo
com figuras de lã." 3
Contaram-me que, num bairro da periferia de Belo Horizonte, uma
mulher borda palavras sobre pedaços de tecidos, que depois abandona nas árvores.
Algumas pessoas pegam as palavras e as levam para suas casas. .
Arthur Bispo do Rosário, internado num hospício do Rio de Janeiro,
bordou um mundo escrito.

A delicada arte do bordado�

Erano pizzi e ricami che rapressentavano di solito mappe


geografique; e stessi su cuscini o drappi d'arazzo, nostra madre li punteggiava
de spilli e bandierine, segnando il piano de batalha delle Guerre de Sucessione,
che conosceva a menadito. Oppure ricamava cannoni, con le varie traiettorie
che partivano dalla bocca da fuoco, e le forcelle de tiro, e le angoli de
proiezione, perché era molto competente en balistica...4
1. Calvino

Quando pensamos em bordado, imaginamos técnicas femininas de tecido


e ornamentação. Nas tradições libertárias ocidentais, as mulheres bordam e tecem
bandeiras e mortalhas. O bordado supõe um longo tempo de elaboração. A espera
do guerreiro ou a esperança da liberdade. Penélope e a Rainha Mathilde, a guerra de
Tróia e a batalha de Hastings.

' FROTA. 1978, p. 79. �


4 CALVINO, 1965. p. 21 . ��

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Um homem, porém, está bordando numa cela, e o brilhante tecido do
mundo se delineia sobre um fundo de sofrimento humano. A trabalhosa tarefa
também supõe uma espera. Um encontro marcado. Abrem-se e fecham-se ciclos.
Arthur Bispo do Rosário está reconstruindo o mundo para apresentá-lo ante um
Deus que esqueceu o convívio com os homens.

A vida de um homem infame}

Artur Bispo do Rosário, 27, indigente, solteiro, brasileiro,


naturalidade desconhecida, sem parentes, sem profissão, alfabetizado,
antecedentes policiais. Esquizofrenia paranóide.
Parcialmente orientado em todas as esferas. Contato muito
superficial com a real_i dade. Vive num mundo particular, onde se julga
"iluminado". Tem diversos delírios místicos e de grandeza e se crê enviado
de Deus. Está na Terra para "cumprir sua missão". Recusa qualquer
medicamento.
Do Prontuário Médico nº 01662. Colônia Juliano Moreira. 5

Como nas /ettres de cachet, que Foucault recolhe em Le désordre des familles,
esse pequeno texto do Prontuário Médico da Colônia Juliano Moreira constitui­
se como uma espécie de dramaturgia do real. Essas poucas palavras determinaram
uma vida e quiçá, através delas, um destino foi decidido. 6 Mas, diferentemente
daqueles homens obscuros que, ao se confrontarem com o poder, deixaram um
vestígio puramente verbal no breve fulgor de um texto outro, Arthur Bispo do
Rosário fabricou seu próprio texto. A infâmia que espreitava aquele ser extraviado,
aquele pobre visionário atrás das poucas palavras do prontuário médico da Colônia,
transformou-se em fama. Quando se abriram os portões e ele se recusou a sair,
um inventário do mundo outro se desfraldou ante os olhares maravilhados. Foi
então que as pessoas se preocuparam em reconstruir a sua biografia: soube-se que
tinha estado na Armada Brasileira e que era boxeador. "O mito do gênio forte,
violento e louco."7

5
MORAIS, 1990, p. s/ n.
6 FOUCAULT, 1969. p. 99.
7 PEDROSA, 1994, p. 39.

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Passava os dias fazendo navios)-

Esquizofrenia es el término que design a cierto tipo de reacciones


psicobiológicas, más o menos similares, producidas ante situaciones vitales
que para e! individuo es demasiado difícil de encarar (...) es uma forma de
adaptación que s·e caracteriza por e! retraimiento hacia un estado autístico,
acompaiiado de preocupación provocada por falsas percepciones. 8
La paranoia es un transtorno mental crónico de desarrollo
insidioso, y se caracteriza por falsas percepciones persistentes, inalterables,
sistematizadas y lógicamente razonadas.9
Noyes y Kolb

Arthur Bispo do Rosário foi internado pela primeira vez em 1939. Depois,
em 1 944 e 1 948. Em 1964, foi internado definitivamente num quarto-forte ·do
Pavilhão Ulisses Vianna, onde eram encerrados os loucos furiosos. Quando lhe
abriram a porta, na década de 80, não quis sair. Lentamente, foi invadindo outras
celas e o corredor. Junto à Bíblia e ao Novo Testamento, o Guia da Marinha Armada
de Domingos Heitor Soares, e os fragmentos de um mundo recriado.

Um interno disse dele: "Passava os dias fazendo navios".

O catálogo do mundo)-

De los diversos géneros literários, e! catálogo y la enciclopedia son los que


más me placen. No adolecen por cierto de vanidad. San anónimos como las catedrales de piedra
y como los generosos jardines. to
Borges

Trancado numa cela, um homem borda. E dessa forma dá início ao texto


tecido e bordado da criação do mundo.

8
NOYES Y KOLB, 1964, p. 415, 416.
9
NOYES Y KOLB, 1 964, p. 475.
10 BORGES, citado por FERNANDEZ FERRER, p. 81.

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I ) no princípio foi a palavra, a palavra furada, bordada, bordejada, aderindo
às coisas, nomeando (no princípio era o verbo), saindo do próprio invólucro da
pessoa: sua roupa, seus lençóis, sua (segunda) pele,
li ) depois foi a minuciosa reconstrução e re-acomodação dos objetos do
mundo, e dentre eles:
ILI ) as novas vestiduras,

li.II ) a cama-ninho, a cama-nave, a cama-túmulo e finalmente:


li.III ) tudo e Rosângela Maria; Rainha de Tudo.
I ) Desfia do fio da veste que veste e reveste as coisas do fio da roupas. Do
rude fio do algodão azul das uniformes roupas da Colônia, borda e reborda nos lençóis:
1 º: o mundo largo e seus países
2º: as vastas regiões do Brasil
3º: o roteiro do bonde do Rio de Janeiro: Botafogo, Urca, Flamengo,
Glória, Catete, Centro
4º: a planta da Colônia, a imagem do mundo de dentro
5º: o catálogo dos navios (novo e louco Homero )
6º: o ringue de boxe
7°: os brinquedos e as brincadeiras das crianças
8°: as partes do corpo do homem
9º: as doenças e seus sintomas
10º: a visão de Cristo com seus sete anjos azuis.
II ) enrola e encapa as coisas do mundo:

1 ° o Batedor de Feijão
2º a Escada
3º o Bujão de Oxigênio
4º a Rede
5º o Bilboquê
6º a Tesoura
7º o Cabide
8º a Chave de porca

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9 º o Mata-borrão
10 º a Grelha
11 º o Martelo
12º a Colher
13º os Postes com os Nomes das Ruas...
E quando o fio não basta, constrói a cal e canto a borda do muro dos
fundos de uma casa que nunca habitará:

COMO É QUE EU DEVO FAZER UM MURO NO FUNDO


DA MINHA CASA

e põe na porta um

CAPACHO SERVE PARA NOS DIAS CHUVOSOS TIRAR


A LAMA DA SOLA DO CALÇADO NA ENTRADA

Logo, porém, retoma o fio da voz e da escrita e começa a bordar novamente


o enxoval para o encontro definitivo:
A saber:

II:I ) o "manto do reconhecimento", uma veste que o identificaria na


presença de Deus. Sobre a pele, os nomes de todos os eleitos que o acompanhariam
na viagem. Do lado de fora, o percurso doloroso de sua vida. Vestir o manto era
perder -se no seio da existência para reencontrar-se em Deus.
II:II) as fardas dos "sembrantes" com o relato da visão de Jesus Cristo e as
senhas para entrar no espaço sagrado,

II:III ) Só então constrói a cama.


Berço, ninho, nave, navio, túmulo. Coberta de véus e de fitas, pronta
para o encontro amoroso e para a viagem final. Delicado casulo bordado de fios
coloridos e tecidos sutis. Símbolo do ciclo da vida através do sono, do amor e da
morte. Alusão metonímica ao corpo restaurado e purificado pela graça divina.
Uma cama em que nunca repousará.
Os textos de fundação prontos, as roupas e o navio a postos, começará a
viagem.
E assim nasce uma frota inteira de barcos: torpedeiros, contratorpedeiros,

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fragatas, encouraçados, barcaças, caravelas, veleiros, caiaques, todos embandeirados
como em dia de festa.
E os cetros, e as faixas das misses, com notícias de todo o mundo, com a
simples e um pouco frívola constatação de um universo de beleza ideal e ingênua.
E as vitrines onde se agrupam objetos reais extraídos do mundo cotidiano
da Colônia. E é nessas assemblages singelas que se nos revela uma cosmogonia ao
mesmo tempo miserável e magnífica. Agregações simétricas de congas, de canecas,
de botões, de colheres, de botas de borracha. Garrafas de plástico cheias de papel
picado, de ferragens, de cadarços. Objetos-inventários, impregnados de uma
melancolia poética, de uma tristeza atemporal.
E, reinando sobre todas as coisas, a mais bela, Rosângela Maria, Rainha
de Tudo.

A arte do bordador)-

Quando se abriram as portas da cela e a obra de Bispo foi mostrada no


espaço sagrado do Museu, todos, entre comovidos e atônitos, nos fizemos a primeira
pergunta: isso é arte? O curador disse que sim, o Diretor do Museu, também, a
imprensa confirmou. Então surgiu a segunda questão: mas que arte é essa?
Antes da Renascença, objetos rituais de culto eram manipulados e tinham
sentido para toda a coletividade. O mesmo acontecia com os objetos cotidianos
de uso profano, cuja beleza se subordinava à noção básica de utilidade. Hoje, esses
mesmos objetos, institucionalizados nas brancas salas dos museus, são apropriados
como puros objetos de arte pela visão estetizante da modernidade.
De acordo com Octavio Paz 11, a interação profunda entre a contemplação
e o uso, tlnica justificativa para a existê ncia da obra de arte, perdeu-se
irremediavelmente. No período pré-moderno, o sentido de uma obra era plural:
os objetos de arte eram coisas que constituíam formas sensíveis, que, por sua vez,
eram símbolos. No nosso tempo, o museu acolhe como arte produções
diferenciadas, e os objetos, privados dos seus sentidos religiosos, litúrgicos,
ornamentais ou simplesmente utilitários, isolados em sítios neutros e assépticos,
apresentam-se à contemplação só como entes estéticos a-históricos.

11 PAZ, 1974, p. 36.

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Bispo não chamava de arte os objetos que fabricava. Como o nome da
exposição de 1990 denota, eram "registros". A tarefa que lhe foi designada era maior:
"Está na hora de você reconstruir o mundo" 12 disse a Voz. E ele dedicou-se com
afinco à catalogação do seu habitat, seu espaço particular, assim como também do
vasto mundo, muito além da Colônia e dos confins do Brasil. Nessa enciclopédia
singular, ele enumerou, sobre as faixas das misses, os nomes dos países, suas capitais,
suas cidades, os portos, a população, os produtos, as bandeiras. Nas "umas-feminino"
guardava pedaços de papel com os nomes dos 'visitantes ordenados alfabeticamente.
Bordou nos estandartes o catálogo dos barcos, das cidades, das ruas das cidades, e o
nome dos comandantes, dos atendentes, dos psiquiatras, dos enfermos, dos
enfermeiros. Na singela anatomia do Clóvis (um personagem e não uma pessoa), ao
enumerar as partes do corpo hwnano, os significantes se deslocam e as ações se
deslizam dolorosamente no meio da lista nominativa.
LÁBIOS LÍNGUA- VOZ• FALAR CANT / FRONTAL / SUPERCILIO /

CLAVICULAR/ ARTERIA / CORAÇÃO DA PRESSÃO/ O.SANGUE NAS VIRILHA/ AS

AMIGULAS /TOSSE/ VEIAS / CINTURA- TORAX / DE ESTRUTURA/ HEMATOMAS/


13
ASPECTO MASCULINO / GARGANTA GRITA"

Adriano Pedrosa afirma que a obra de Bispo anuncia um desejo de re­


encantar o mundo: "Uma re-encantação do mundo se dirige em direção oposta à
ciência e ao raciocínio iluminista. Reconstitui o mundo por meio de outros
paradigmas. Seu espírito fala por muitas vozês: Barthes, Bataille, Beuys, Borges e
Bispo são algumas delas." 14

A arte bruta"}-

A alma dos loucos não é louca15


Foucault

No final do século passado, a arte ocidental começou a assimilar um


conjunto de imagens provenientes de outras culturas. Assim, entraram no nosso
repertório iconográfico as esculturas africanas, os gravados japoneses, as terracotas

12
PEDROSA, 1994, p. 39.
13
BRANCO. Tranuri;ão dos textos de Arth11r Bispo do Rosário.
14
PEDROSA, 1994, p. 4.
15 FOUCAULT, 1987, p. 10.
2

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pré-colombianas, os ídolos da Polinésia. Rapidamente, toda uma série de objetos
migraram das salas dos museus antropológicos para as requintadas galerias de arte
parisienses. Da mesma maneira, esse interesse pelas imagens outras fez com que,
em algumas clínicas psiquiátricas, os médicos começassem a colecionar as
produções dos seus pacientes. No Hospital Psiquiátrico de Waldau, em Brera,
conservaram-se, junto aos dossiês dos pacientes, os escritos e desenhos que eles
produziam; além de outros trabalhos que se consideraram significativos. Na Clínica
Psiquiátrica de Heilderberg, o Dr. Hans Prinzhorn foi o primeiro a interpretar as
obras dos internos não como aberrações, senão como sistemas de expressão
autônoma, altamente elaborados, que traduzem e desenvolvem uma experiência
pessoal intransferível.
Jean Dubuffet foi quem forjou o termo de Arte Bruta para se referir a
essas produções. Os artistas brutos são seres excluídos da cultura dominante, alheios
ao sistema da arte erudita, "que extraem tudo (assuntos, _escolha de materiais a
aplicar na obra, meios de transposição, ritmos, processos de escrita, etc.) do fundo
de si próprios e não dos moldes da arte clássica ou da arte que está na moda" 16•
Marcel Thévoz 17 afirma que a arte bruta apresenta três traços essenciais:
os autores são mental ou socialmente marginalizados, os trabalhos são concebidos
e realizados fora do domínio das Belas Artes e, por fim, os assuntos, as técnicas,
os sistemas de figuração procedem de uma invenção particular.
Esses artistas trabalham· com grande dedicação as suas obras, sem a
preocupação de ter um público, ou de alcançar sucesso. Eles também existem do
lado de fora dos sanatórios. Mas inventam pretextos, sonhos ou guias espirituais
para justificar essa arte.
O artista bruto não se faz, nasce. Diferentemente dos artistas eruditos,
cujos trabalhos se modificam através do tempo, o artista bruto não tem
desenvolvimento. Em sua obra manifesta-se um amor pela narrativa, e a descrição
detalhada e as imagens são acompanhadas freqüentemente por versos ou
comentários que funcionam já como legenda, já como explicação. "A arte para
eles faz parte do fluxo da vida. É mais um respirar natural que uma atitude de
exceção." 18

16 PLAZA, 1993, p. 42.


17 •
THEVOZ, 1980, p. 12.
18
FROTA, 1978, p. 6.

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[NGE.LO ·
Ltll!ES R

,..............

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Nota Monique Plaza, contudo, que a obra do artista bruto não tem nenhuma
possibilidade de ser mostrada nos lugares culturais de exposição ou publicação, pois
esse artista não tem o poder "nem sequer de os interpelar, de os combater de os
provocar do exterior, visto que continua prisioneiro dos abisrnosni9• Só os teóricos
da arte bruta são capazes de mostrá-los através de sua inserção no mundo erudito.
Sabemos que, na sua exclusão, o autor "bruto" não tem nenhuma intencionalidade
desse tipo: isolado em seu próprio mundo, seu único interesse é fazer.
O trabalho de Bispo, divulgado pelo crítico carioca Frederico de Morais,
apresenta os mesmos problemas de leitura que os textos brutos. Nenhuma das
obras tem título, data ou instruções de montagem. O curador é quem decide o
modo como se mostram as obras. Às vezes, ele organiza objetos similares em
conjunto, à maneira das instalações de Allan McCollurn ou Tony Craig, corno
tem feito com os objetos mumificados. Adriano Pedrosa faz notar que já foram
expostas "corno obra"2º peças que Bispo utilizava para proteger seus objetos,
patchworks de sacos plásticos surpreendentemente similares a certos trabalhos de
Jac Leirner. Muitas vezes, o curador tem-se aproximado da obra mais preocupado
em reforçar as semelhanças formais do trabalho de Bispo com as tendências da
arte contemporânea, que em explicitar os sentidos gerados por essas obras, seja
no seu próprio mundo, seja no da arte erudita.
Quando, dentro de uma cela de hospício, sentiu o chamado da Voz, foi
do fundo das suas próprias ruínas que começou a reconstruir o mundo com suas
próprias mãos. Bispo não sabia que estava produzindo arte. Estava recriando o
mundo e, para isso, desfiou o uniforme azul de doente mental e bordou com essa
linha o Ie�çol que o cobria durante o sono.

19
PLAZA, 1993, p. 43.
20 PEDROSA, 1994, p. 41.

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O marinheiro louco'}-

Cada louco é guiado por um cadáver. O louco só fica bom quando se


livra desse morto.21
Arthur Bispo do Rosário, em depoimento a Hugo Denizart, 1983

( ...) um homem que desde muito tempo estava possesso de demônios,


e não andava vestido, nem habitava em qualquer casa, mas nos sepulcros.22
Lucas, 8, v:27

Deus não sabia nada sobre os homens vivos ( ...) Ele precisava apenas
manter comunicação com cadáveres23
Schreber

Como o possuído do Evangelho de Lucas, que é liberado através da palavra


de Cristo, Artur Bispo do Rosário estava habitado por um outro, até o momento
em que teve uma visão de Jesus, que, acompanhado de sete anjos azuis sob uma
aura luminosa, incumbiu-o da imensa tarefa de reconstruir o mundo.
( ...) o possuído é um homem nu (sem roupas, sem marcas que separem o
dentro do seu corpo do fora, as partes do todo. Um homem com repressão
duvidosa? ), que vive nas tumbas (rejeitando a diferença vida-morte, natureza­
cultura, rejeitando o lar, a farru1ia, o contrato social? ) 24

De acordo com a autora, esse episódio é "o único lugar do Evangelho


onde se propõe uma teoria em ato da literatura, paralelamente a (ou como) uma
liberação do demoníaco".25 Estendendo esse conceito de Kristeva, podemos pensar
numa teoria em ato da arte que, no caso de Bispo, agiu de fato como libertadora
do demoníaco. A Visão de Cristo libertou Arthur Bispo do Rosário do cadáver
que o acompanhava e destinou-o à criação.

21 MORAIS, 1990.
22 KRISTEVA, 1985, 124.
23 FREUD, 1952, p. 32.
24
KRISTEVA, 1985 , p. 271.
25 KRJSTEVA, 1985, p. 270.

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A partir de finais do s'éculo passado, as teorias de Lombroso sobre as
íntimas relações entre loucura e gênio têm alimentado toda uma série de soluções
fáceis na mitificação dos processos criativos. A construção do mito Bispo tem
explorado a imagem do artista criando desde os abismos da loucura, quando na
realidade estava trabalhando contra a loucura.
Para Foucault:
... a loucura é ruptura absoluta da obra: ela constitui o momento constitutivo
de uma abolição que fundamenta no tempo a verdade da obra; ela esboça a
margem exterior desta, a linha de desabamento, o perfil contra o vazio. (...)
ali onde há obra não há loucura; e no entanto a loucura é contemporânea da
obra, dado que ela inaugura o tempo da sua verdade.26

Do alto de sua sabedoria louca, Bispo constitui um mundo a partir da língua,


das práticas culturais e dos objetos da cultura. Nesse universo, a. natureza foi
aniquilada. Deus não sabia dos homens vivos, não sabia do fazer humano, e o que
tem que ser apresentado é o fazer humano por excelência: a língua. A articulação da
linguagem delirante manifesta-se . sempre através de uma pletora de palavras.
. .

Ele sabe muito bem que sua alma foi atingida, e que no corpo permanecem
as marcas da lembrança. Marcas do corpo que se espalham e proliferam nos panos,
nas vestiduras, no manto da apresentação, nas faixas de Miss.
Um corpo escrito, nomeado:

.. '---��
'ff
.Ili

26
FOUCAULT, 1987, p. 530.

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ARMANDO PINTO FERNANDES-CAPITAO TENENTE MEDICO- HOSPITAL

CENTRAL DE MARINHA ILHA DIQUE RIO DE JANEIRO) ARAUJO MACIAL-SUB

OFICIAL ENFERMEIRO HOSPITAL CENTRAL DE MARINHA DIQUE RIO- ATILIO DA SILVA­

COPEIRO NUCLO ULISSE VIANN A JACAREPAGUA CENTRO PSIQUIATRICO ANTONIO

MEQUIDES ATENDENTE NUCLO ULISSE VIANNA CENTRO PSIQUIATRICO )ACAREPAGUA

10 PAVILHÕES 800 DOENTES ANTONIO o [s1c} COUTO- PEDREIRO ESTRADA DE

CANTAGALO ILHA GOBERNADOR ABIDEMES DE VASCONCELOS ILHA DO GOBERNADOR

POVOADO PEQUENO PRAIA ESTRADAS DE ITACULUMIR- CANTAGALO FINDA EM FLECHEIRA­

ARTHUR CABRAL- MARUJO TERCEIRA <;LASSE ILHA VILLEGAIGNON CORPO MARINHEIROS)

AMERICO DE JESUS- MARUJO MUSICO TERCEIRA CLASSE CORPO DE MARINHEIROS ILHA

VILLEGAIGNON 1731 - TRNSFERIDOS TO NAVAL - ARLINDO DE JESUS - TROCADOR AVIAçAO


EXERCIOR ONBUS DA LIGH- RUA DO REZENDES 54- HOSPITAL LIOYD SUL AMERICA

PERNA FICOU osso) ALAO ABATE C�RUGIAO HOSPITAL LIOYD SUL AMERICA RUA

REZENDES 54-ANTONIO AZEVEDO- ATENDENTE NUCLEO ULISSE VIANNA CENTRO

PSIQUIATRICO )ACAREPAGUA) ARUNDO BRUM NUCLO ULISSE VIANNA ADMINISTRADOR

ENTRO PSIQUIA- ADALBERTO DA SILVA ATENDENTE NUCLEO ULISSE VIANNA- AilPIO

PESSOA- MEDICO PSIQUIATRA

LETRA - É FILH D' HoM 27

27
ROSARIO citado por BRANCO. Em nome do Pai, ,,,, nome do Filho.

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À criação divina, Bispo opõe sua criação: a letra, objeto concreto, nome,
marca na pele e no corpo.
Ao contrário de Magritte, Bispo reafirma a concretude do signo, contra
o esquecimento e a confusão. É como se o significante não pudesse se desgrudar
- literalmente - do significado, como se o nome que cada objeto tem bordado
em si e sobre si pudesse apagar-se ou migrar para um outro objeto, se não existisse
tão forte e funda amarra.
Parece-nos possível ler a obra de Bispo como uma reflexão sobre a natureza
da linguagem e as armadilhas do esquecimento, como um intento de reificação
das palavras irredentas, como a objetivação de um pensamento fortemente
amarrado nas estruturas íntimas da mente.

A palavra bordada).

E o mundo se reconstrói através de fios e de palavras. Atrávés da presença


material da palavra bordada, específica na sua unicidade plástica, transformada
em objeto, res e verbum ao mesmo tempo. Essa palavra rei.ftcada se impõe opaca,
desejando significar, até o limite, a totalidade dos significados.28
Texto que se pretende ordenado pela Voz e dirigido a Ela, o texto de
Bispo se "encarna" por meio de gestos feitos por maõs de carne e osso e significa
muito além da simples significação, pois põe em evidência o resíduo, o resto de
significação que habita a letra e nela prolifera.
No bordado faz-se perceptível a materialidade espaço-temporal da língua.
As letras, signos arbitrários, decodificáveis, transparentes, tornam-se opacas,
concretas. A legibilidade é solapada porque se percebe finalmente que não é possível
representar tudo, dizer tudo.
Um fio passa pdo olho da agulha e amarra firmemente as palavras e as
frases. A escrita não flui com a fluência líquida da tinta. A escrita se faz através de
furos e nós. A escrita despe o corpo para se inscrever, a partir dele, no corpo
outro do objeto-relíquia. Fragmento ao mesmo tempo do corpo destruído e da
escrita materializada.

28
LYOTARD, 1991, p. 15.

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Epílogo}

No estandarte onde refaz sua sofrida anatomia, o homem borda:


EU PRECISO DESTAS
PALAVRAS. ESCRITA
Talvez devêssemos fazer como Frederico de Morais, que transcreve:
EU PRECISO DESTAS PALAVRAS ESCRITAS.29
Talvez o S do plural não coubesse no espaço da tela, ou talvez o fio acabara,
ou talvez os dedos doessem e os olhos lacrimejassem. Mas prefiro lembrar assim
do grito final, da voz final, do chamàdo.
EU PRECISO DESTAS
PALAVRAS. ESCRITA

Post-scriptum}

No verão europeu de 1995, as obras do marinheiro louco são expostas na


Bienal de Veneza. Na antiga mostra internacional, o Brasil está representado por
dois artistas: Nuno Ramos - um jovem paulista cuja -carreira partiu do pós­
expressionsmo dos anos 80, para chegar, hoje, a um trabalho neo-conceitual, no
qual textos de sua autoria acompanham fotografias e objetos, em instalações que
costumam discutir fatos cotidianos - e Arthur Bispo do Rosário.
Temos notícias de que a obra de Bispo fez grande sucesso e que foram
publicadas diversas matérias em jornais especializados internacionais. Foram
também agendadas algu mas mostras a correr o mundo. Imagino as manchetes
(Esquizofrênico representa Brasil na Bienal de Veneza)30 e vejo os teóricos da arte
bruta traduzindo, mais uma vez, esse material para o espectador. E reflito sobre a
necessidade dessas traduções. Porque me parecem desnecessárias, tamanha a
intensidade visível e visual que habita nos objetos do artista.

29
MORAIS, 1990.
30
Folha de S. Pau!IJ, 1995.

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Como será ver em Veneza as obras de Bispo?
Penso naquela frota embandeirada chegando, por fim, ao porto da cidade
inundada. Penso nos seus textos soçobrando, afundando (frágeis como são na sua
simples economia de nomes próprios e fios de algodão ordinário) , nas águas
paradas. Uma Babel contemporânea e atemporal, a confusão que carcome
lentamente os significados. A palavra bordada espelhando-se em estandartes
escarlates, em velhas bandeiras, em paramentos de igreja, em capas episcopais
(tantos bispos mortos nas pedras de Veneza), em gastas tapeçarias.
A cidade fantasma multiplica as leituras e desloca as imagens.
_
Como será ver, através dos reflexos dos muranos, as palavras azuis, tão
delicadamente bordadas?
Será possível ver, no meio do nevoeiro, que

... OS AN
JOS VÃO
ARRIANDO
A FORMOSA
FINA PLUMA
ESPUMA ESPONJA
POR ONDE SAHI O
VERBO ?31

31 BISPO. Virgens em manada. ln: PEDROSA, 1994. (fexto do estandarte)


.

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Referências Bibliográficas

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Emergenza. Catalogo dalla XLV Biennale di Veneza. Milano: Flash Art IntenationaI, Giacarlo
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FOUCAULT, Michel, História da loucura na idade clássica. Trad. José Teixeira Coelho Netto.
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___ . As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus
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FREUD, Sigmund. O caso Schreber,· artigos sobre técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro:
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KRISTEVA, Julia. Sol negro; depressão e melancolia. Trad. Carlota Gomes. Rio de Janeiro:
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MORAIS, Frederiço (curador). Arthur Bispo do Rosário; registros de minha passagem pela
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THÉVOZ, Michel. L' arl brut. Géneve: Edtions d' Art Albert Skira, 1980.

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2. As Palavras da loucura

"Por que se perdeu?", perguntou Joshua.


"Diz-me, Hõlderlin, como se diz, na tua língua,
distante como a palma da mão?"
· "Uuu", respondia-lhe.
"Repete, Hõlderlin, eu nunca sentira arrependimento
por partir, nem remorsos por ficar."
"I11. . ''
"Diz-me, Hõlderlin, a tua razão de partir não foi o
amor?"
"Ooo".
(Maria Gabriela Llansol)

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Mf19Q
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◄!
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IACAN CDM GTT,
- sobre a prática de oficinas literárias com psicóticos -

Lucia Castello Branco

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uma canção de Gilberto Gil cuja letra encerra, de maneira
magistral, uma certa noção de poesia e de metáfora, que
aqui poderia ser sugerida para se pensar num possível tangenciamento entre o
poético e o psicótico, sobretudo no que se refere ao privilégio conferido à imagem
por esses dois fenômenos de linguagem:

Metáfora
Uma lata existe para conter algo,
Mas quando o poeta diz lata
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo,


Mas quando o poeta diz meta
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso não se meta a exigir do poeta


Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo-nada cabe,
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta


Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora 1

1 GIL Metáfora. 1 990.

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A queixa que essa canção de Gil traz à tona, muitas vezes incômoda para
alguns analistas do texto literário, assinala a necessidade de um outro tipo de
leitura exigido pela poesia: uma leitura que, respeitando a literalidade que o poético,
em seu projeto impossível, pretende alcançar, possa também respeitar a iconicidade
(e, com ela, a indefinição de contornos) que esse poético prioriza.
O que quero dizer é que a poesia, mais ainda que a ficção, e de maneira
distinta da ficção, faz do signo sua matéria, seu elemento, e, ao fazê-lo de uma
certa forma, faz da linguagem pura materialidade, lançando-se nesse contin1111m
discursivo em que os signos encenam, de maneira evidente, sua dupla qualidade:
a de estarem no lugar de outra coisa e, no entanto, serem também eles próprios.
Assim, a lata, que pode metaforizar o incontível e o incabível, é, também e
sobretudo, lata, em seu grau absoluto de coisa-signo que é.2
Esse tipo de manifestação discursiva, à primeira vista então inabordável
aos olhos de um hermeneuta do texto literário, Gil nos convida a ler de outra
forma, respeitando sua literalidade, através de uma leitura não exatamente literal
(porque tautológica, inoperante) , mas quem sabe lateral, deslocada, metonímica,
que vagueie mais pela superfície do. texto que por suas profundezas, mais pelas
intermitências do discurso que pelos enganosos caminhos da suturação e da
saturação do sentido.
Além disso, a canção de Gilberto Gil ilumina uma outra noção de
metáfora, entendida aqui não só como processo de substituição de significações
por uma relação analógica entre os termos, mas também como processo de
contrução de outra coisa (outra significação, portanto), através da reiteração da
coisa mesma que o signo é.
A metáfora pode, portanto, ao ser vista de fora, apontar para um processo
de substituição por analogia, enquanto que, ao ser vista de dentro, pode apontar
para si mesma, ou para a coisa em si mesma que se exibe como produto dessa
articulação analógica.
Assim, quando se diz que "Fulano é um leão", é evidente que se deu aí um
processo de substituição analógica, em que fulano e leão podem intercambiar-se
por algum traço em comum que possuem: a bravura, ou a vaidade, ou mesmo os

2
A respeito da materialidade e da imaterialidade do signo, ver PINTO. A imagem
(i)material.

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120
cabelos (os pêlos) revoltos. Entretanto, ao produzir esse cruzamento de
significações, o que a metáfora termina por privilegiar, por iluminar, é a própria
imagem do leão em sua coisidade, em sua leonice, com sua bravura, vaidade e
pêlos. Nesse momento, o leão (como a lata) é o leão absoluto, além de ser o signo
de bravura e vaidade, ou beleza, e por isso poder ser aproximado de Fulano.
A leitura da poesia, ensina-nos Gil, requer essa rara habilidade do leitor:
a de traduzir apenas lateralmente, obtusamente, sem abusar da interpretação.
Uma delicadeza análoga que se exige do crítico diante do poético talvez
deva exigir-se do analista diante da psicose, esse processo lingüístico imajante que,
seja pela fragmentação discursiva, seja pelas construções totalizadoras que
configuram a metáfora delirante, parece querer nos falar de um mesmo fenômeno:
a irrupção desse signo-coisa que, além de representar a coisa, busca apresentá-la,
fazer dela um presente, uma presença, lata absoluta, puramente lata.
É claro que uma mesma delicadeza é necessária para se lidar com o texto
de ficção (ou com neuróticos, no caso da psicanálise). Entretanto parece-me que,
diante destes, a Literatura e a Psicanálise não recuam com tanta freqüência, ou
com tanta impotência. Uma das razões para esse fato, a meu ver, reside no processo
de fratu,ra do simbólico, que não se efetua para o neurótico, ou no texto de ficção.
No entanto é essa fratura que se dá na poesia e na psicose, ainda que de maneira
contida e calculada, quando se trata · ao poeta, e de maneira incontrolável e delirante,
quando se trata do psicótico.
Em verdade, quando Lacan nos diz que, diante da psicose, cabe ao analista
a função de secretário; a de secretário do alienado,3 ele não parece estar falando de
uma acomodação da Psicanálise face à loucura, mas de uma uma certa maneira
de lidar- com ela, de escutá-la:

De fato, damo-nos conta, e não simplesmente a respeito de um caso tão


notável quanto aquele do presidente Schreber, mas, com respeito ao menos
importante desses sujeitos, de que se soubermos escutar, o delírio das psicoses
alucinatórias crônicas manifesta uma relação muito específica do sujeito em
relação ao conjunto do sistema da linguagem em suas diferentes ordens. Só o
doente pode testemunhar isso, e ele o testemunha com a maior energia.4

3
LACAN. As psicoses, p.235-243.
4 LACAN, op. cit.p. 237.

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É também de uma "relação muito específica do sujeito em relação ao
conjunto do sistema da linguagem" que nos fala Gil, ao tratar do gesto singularmente
metafórico do poeta e ao reivindicar, para a poesia, um outro tipo de leitura.
Esse outro conceito de metáfora que a canção de Gil constrói, essa outra
leitura do poético que a mesma canção sugere e, ainda, as estreitas relações que
tudo isso mantém com o fenômeno da psicose conduzem-me à articulação com
um trabalho de oficina literária que venho realizando, há um semestre, com
pacientes psicóticos de uma clínica de Psiquiatria e Psicanálise no Hospital Raul
Soares, em Belo Horizonte.
Esse trabalho, em que, de certa forma, atuo como secretária do alienado,
e em que procuro colocar em prática· hipóteses já teorizadas em pesquisa que
desenvolvo acerca do poético e do psicótico,5 tem-me permitido levantar, à luz da
Psicanálise e da Semiótica, algumas questões sobre a leitura da escrita e da fala
psicóticas e, mais especificamente, sobre a constituição discursiva da metáfora
delirante, em sua relação com o texto/fala fragmentados do psicótico em sua fase
de maior desagregação.

5
BRANCO. A devoração da imagem-. o poético e o psicótico.

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A primeira indagação que se coloca acerca da linguagem do psicótico, sob
o prisma da Semiótica, diz respeito à estranha habilidade desse sujeito que claudica
pelo simbólico para construir esse texto hipersimbólico, essa suprametáfora que
a metáfora delirante sempre é. Como é possível a esse sujeito, cuja linguagem
descarrilou sobre os . desfiladeiros do significante, construir um texto inteiro, com
princípio meio e fim, com uma lógica discursiva inquestionável que se sustenta,
inclusive, por uma estrutura épica?
Por outro lado, como articular esse texto · "bem-comportado" a outras
produções desse mesmo sujeito que parecem apenas falar da fratura da palavra, da
desarticulação da sintaxe e da fragmentação do discurso? E, diante de produtos
aparentemente tão distintos de um mesmo sujeito, que leitura é possível realizar?
Essas questões, que na verdade surgiram após um ano de trabalho com
pacientes psicóticos, ancoram-se numa questão maior que sustenta todo o trabalho
que venho desenvolvendo até aqui: que função pode ter a escrita, que função seria
a do escrito, quando se trata da produção de sujeitos falantes pata quem a palavra
não funciona do mesmo modo que para os demais?
É apostando no fato de que a palavra pode (e disso os psicóticos bem
sabem) e, sobretudo, no fato de que a palavra pode fazer poesia, fazer literatura
(e, portanto, produzir algum efeito da ordem do "laço social") para além da intenção
do falante, que esse trabalho de oficina literária se desenvolve.
É claro que não se trata aqui de uma visão ingênua do trabalho poético,
nem tampouco de uma · visão inconseqüente do fenômeno psicótico. Na verdade,
uma abordagem desse tipo não pretende, de maneira alguma, afirmar que o psicótico
faz poesia em seu delírio ou em sua alucinação. Entretanto, sendo a poesia produto
de um certo arranjo da linguagem e sendo a psicose produtora de certos efeitos de
linguagem, quem sabe se possa pensar em alguns pontos de tangência em que esses
curtos-circuitos linguageiros de ambos os processos possam vir a se tocar?
O fato é que, enquanto professora de literatura e escritora, não posso deixar
de reconhecer poesia na expressão de um psicótico que, convidado a falar de sua
impressão de uma gravura de Bosch, diz apenas: "As palavras morrem na minha
boca". Como também não é possível não ver a poesia nas palavras de um outro
paciente que rabisca no papel, como um grafita: "A vida é bela/ mas é das feras".
Se tudo isso sé produz espontaneamente (mecanicamente, pode-se dizer)
quando esse sujeito fala, e se isso naturalmente toca o poético, quem sabe um
trabalho de pesquisa e de produção do poético possa ser realizado com certa
"facilidade" com pacientes psicóticos? Quem sabe se possa perseguir a trilha

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tortuosa de Joyce (ou de Artaud), que fizeram um percurso análogo ao da cura
analítica, passando de letter a litter, da letra ao lixo?6
É claro que não é possível encontrar um James Joyce a cada experiência
de oficina literária. No entanto talvez não seja tão difícil buscar, como Joyce,
fazer um nome, ou fazer-se um nome, através da escrita. E talvez seja essa via, a
do nome, ou a de fazer um nome, uma das únicas vias viáveis para esse sujeito
que claudica pelo simbólico.

No primeiro encontro, M. tem os olhos baixos e sorri levemente com


seu sorriso de boneca glacial, sua voz também baixa e desaparecida, sob a mão
que esconde os lábios todas as vezes em que é convidada a falar. Diz que não tem
o que dizer, porque lhe faltam palavras, porque foi submetida a uma espécie de
encolhimento ou de recolhimento das palavra_s, em que tudo se tomou mínimo,
minúsculo, molecular. "Minimalista", penso, "talvez sej a o minimalismo a
tendência que dê conta desse seu encolhimento", arrisco. "Sim, minimalista", ela
repete. "Acho que sou minimalista". E, diante do que lhe ofereço, ela responde
não exatamente de maneira minimal, mas como a querer insinuar que a economia
(de linguagem, de adjetivação, de significações) é o seu recurso, a sua estratégia.
O exercício consistia na apresentação da gravura de uma janela, em tomo
da qual se faziam cinco perguntas: "(1) O que é? (2) Como é? (3) Para que serve?
(4) O que eu posso fazer com ela? (5) O que eu quero fazer com ela?". As perguntas,
que a princípio pretendiam apenas provocar respostas imediatas, tinham o objetivo
segundo de oferecer, a partir do arranjo das respostas, material para um pequeno
texto, primeira produção escrita de cada um dos três alunos (os três com diagnóstico
de psicose) que permaneceriam juntos até o final do semestre.

6
A esse respeito, ver: LACAN. Llt urate rra, e LACAN. Joyrt; o sin toma.

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Em resposta a essas perguntas, M. produz o seguinte texto:
Uma Janela

Espaço por onde entra e sai luz e o ar que


se respira.
Pressupõe a existência de uma parede, que guarda o interno, separando-o do
externo.
Um lugar por onde se vê o interior e o exterior.
Basta que a janela seja aberta.
Posso abri-la e fechá-la. Para abri-la é preciso suavidade, técnica, senão ela se
quebra e deixa initerruptamente o conteúdo se esvair.
Há muitos tipos de janela, novas e velhas, modernas, antigas, ricas e pobres.
O que eu quero fazer com ela é abri-la para deixar o sol entrar. Mas, como há
perigo do sol queimar os conteúdos do interior, por cautela é melhor abrir
uma pequena fresta. 7

Diante de uma descrição como essa, e da imagem pleonástica dos


"conteúdos do interior", que se repete algumas vezes ao longo do texto, é difícil
não ceder à tentação hermenêutica de ler nesse "esvair do conteúdo" o próprio
esvaziamento de significantes de que M. se queixa e, nessa parede que guarda o
interno, a tentativa de construção de um muro, quem sabe lllll arremedo de muro
da linguagem (um muro de arrimo da linguagem) que possa represar esse
escoamento de palavras.
E, de fato, os trabalhos futuros de M. terminariam por confirmar essa
interpretação. Entretanto, como o exercício em questão propõe uma outra coisa
- precisamente a construção de uma coisa literária -, talvez uma leitura outra,
buscando no texto seu elemento poético, possa nos fazer seguir em outra direção.
Essa descrição, aparentemente tão obj etiva e bem comportada, tão
destituída de poesia, traz em sua superfície ao menos um elemento dissonante,
estranho ao contexto descritivo em que se encontra: ''Basta que a janela seja aberta".
Essa frase, que pede uma subordinação, mas que elide a subordinada e interrompe
seu fluxo por um ponto, destaca-se do texto, produzindo um curioso efeito de
deslocamento - e de economia, própria do estilo de M. - que a faz soar como
uma frase oracular, misteriosa, indecifrável.

7 Primeira produção escrita de M., aluna da Oficina Literári;i da Central Psíquica,


de BH.

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Mais tarde, num segundo encontro da turma, levo como proposta de
exercício não mais a gravura da janela, mas o próprio significante, a partir do qual
derivamos anagramas, palavras do mesmo campo semântico, palavras que se
aproximam por homofonia, palavras que rimam, etc. A p artir da série de
significantes que conseguimos "extrair" de janela, proponho a construção de um
texto que nada acrescente ao que já está no papel, mas que elimine os excessos,
que bus_que "enxugar" o sentido ao seu ponto mínimo. M., minimalista que é,
apresenta o seu poema substantivo:
Janela

contemplação, espaço, visão, olhar, ventilação


casa, gente, trinco, fresta

Digo a ela que isso é um poema, ainda não tão bom, mas que tem ritmo,
fôlego, respiração, e ela me diz que isso é só isso e nada mais. Alguns meses mais
tarde, ela _mesma me falaria de seu diário todo escrito dessa forma, a partir desse
poema : um diário em versos mínimos. Meses depois, essa mesma aluna comporia,
a partir de um exercício dadaísta de colagem de palavras recolhidas de um saco
plástico, onde haviam sido colocadas as palavras, recortadas, de um poema de
Sônia Queiroz, esse poema de estranha beleza:
�,
Mina e meninos ,,-
Reinado de cores, bumbos
brilhos nas plumas, fitas
nas saias
foi sacudindo cabeças
que o rei pelos plásticos
dos braços
o Penacho acho
acho 8

8
O poema de Sônia Queiroz intitula-se ''Reinado", e se apresenta desta maneira,
no original: "acho brilho nas saias/sacudindo/plumas nas cabeças/dos meninos/
fitas, cores, pelos braços/e bumbos plásticos!/acho que o Penacho/foi o rei de
Mina. ln: CARVALHO, Roberto Barros de (org.) . Taq11icardias. Belo Horizonte,
Dubolso, 1985. p. 43.

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É verdade que, nesse caso, a técnica favorece: as palavras recortadas e
colocadas no saquinho já foram escolhidas e utilizadas esteticamente por um poeta,
compondo um outro poema. Entretanto o arranjo que M. dá a elas, embora não
usual, não é mero produto do acaso. Ao combinar mina e meninos e penacho
acho acho, M. respeita as leis de homofonia do significante e agrupa as palavras
com a delicadeza e a habilidade que só os poetas (e os psicóticos) parecem ter.

Ao contrário de M., o Profeta Elias, esse rapaz de 16 anos em seu primeiro


surto, não economiza palavras para descrever seu contato cibernético com seres
de outro planeta. Em sua narrativa eminentemente épica, ele diz que sua história
se confunde com a história do mundo, que foi "ligado por um satélite" através de
ondas que se conectam com sua fronte (que ele descreve como sendo o centro das
imagens) e que o enlouquecem com uma "loucura artificial".9
Esses seres de outro planeta não o deixam evacuar, nem urinar, controlam
todo o seu corpo e a sua mente e parecem querer, através dele, invadir a Terra.
Sua missão, como profeta Elias, deve ser, portanto, a de salvar o mundo do poder
desses homens bestas-feras, do poder de Satanás.
Em outro encontro alguns meses mais tarde, o Profeta Elias nega-se a
participar do exercício dadaísta (colagem de palavras) que lhe propomos, alegando,
desconfiado, saber bem o que queremos fazer com ele: "amor". O Profeta Elias,
portanto, não escreve. Mas traz, em sua fala, um texto pronto, bem construído,
desenvolvido, articulado: a metáfora delirante. Texto de inegável beleza, de
irrefutável p eremptoriedade, a metáfora desse paciente (como toda metáfora
delirante, parece-me) soa, de fato, como a voz do profeta: oracular, inquestionável,
fechada .

9
Esse paciente, G.M., por ele mesmo alcunhado de Profeta Elias em seu delírio,
não é aluno da Oficina Literária, mas interno do Hospital Raul Soares, onde
trabalhei em pesquisa de campo durante um semestre. Entrevistado duas ·vezes
por nosso grupo de trabalho, pcopusemos-lhe, no segundo encontro, o exercício
dadaísta que ele se recusou a fazer.

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Se exposto à escrita, o profeta talvez ci;iasse curiosas narrativas de ficção
científica, em que a religião e a tecnologia certamente comporiam um estranho
par. Entretanto, mesmo negando-se a escrever, Elias traz em sua fala efeitos de
escrita, efeitos de realidade e de verossimilhança que só as narrativas de escritor
sabem ter, mesmo quando se tratam de narrativas fantásticas ou surreais.
Diante desse tipo de produção, que convive lado a lado com o texto
fragmentado, com a partição de significantes, com o empilhamento de substantivos,
uma questão me oçorre: como se pode analisar, com base na Semiótica, essa
metáfora delirante? ·E como articular essa leitura aos pressupostos da Psicanálise?
Ora, sabemos que a metáfora, para Lacan, não pressupõe uma analogia
prévia entre os conceitos, mas desenvolve-se na direção da produção de uma
significação que não existia previamente, a partir de uma analogia (nem sempre
óbvia) entre os significantes. Do conceito tradicional de metáfora, Lacan retém
que "algo substitui outra coisa", mas que, nessa substituição, produz-se uma
significação que não existia anteriormente. 10
Ao sugerir que a metáfora delirante funciona como uma suplência, Lacan
desloca ainda um pouco mais o conceito: trata-se de alguma coisa que está no
lugar de outra coisa, não exatamente como uma substituição, uma tamponagem,
mas como um "a mais", um excesso, uma prótese.
O que isso pode nos dizer acerca da produção metafórica do psicótico?
Que o fato de ser uma metáfora não usual não implica uma disfunção em · sua
estrutura discursiva. �u seja: o fato de a metáfora delirante não poder funcionar
como tamponagem, como substituição do que falta, não significa que ela não
possa funcionar como produção de sentido (e, muitas vezes, de efeito poético) e
que esse sentido outro não possa funcionar de outra forma na cadeia discursiva. 1 1
Como a lata do poeta, sugerida por Gil, a metáfora delirante do psicótico,
por pretender ser a própria coisa absoluta, pode terminar por construir outra
coisa da ordem da coisa literária: sendo o que é, em sua coisidade, pode também
se construir na direção do que ainda não é, mesmo quando esse ainda não é
consiste no incabível, no inatingível.

10 BLEICHMAR. J,r/rod11ção ao estudo das perversões, p.56.


1 1 Sobre os processos metafórico e metonímico na psicose, ver: LACAN. As
psicoses. p.244-52.

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Para o que nos interessa aqui - a produção de textos literários -, a
metáfora delirante pode vir a constituir-se num texto de alto grau de poeticidade,
se preservada sua estrutura estranhamente analógica e oracular. E para o que nos
interessa em última instância - a função clínica desse tipo de trabalho com
pacientes psicóticos -, a transformação da metáfora delirante em texto, em escrito,
pode fazer do delirante um autor, contribuindo, assim, para a construção de um
nome, o nome próprio, que só a obra é capaz de conferir ao escritor.

Dizia um mestre Zen a seus discípulos: "Antes de me tornar esclarecido,


os rios eram rios e as montanhas eram montanhas. Quando comecei a tornar-me
esclarecido, os rios já não eram rios e as montanhas já não eram montanhas.
Agora, depois que me tornei esclarecido, os rios voltaram a ser rios e as montanhas
voltaram a ser montanhas". 12
Esse ensinamento, construído como um koan, espécie de problema que o
mestre Zen propõe . a seu discípulo (que, para "resolvê-lo", deve sair de sua lógica
racional, buscando alcançar uma "visão espiritual"), talvez possa aqci funcionar
como uma metáfora, nos moldes da metáfora de Gilberto Gil (ou da metáfora
delirante) para pensarmos na leitura lateral a que a escrita/ fala psicóticas, bem
como a construção poética, nos obrigam.
O esclarecimento, no que concerne a esses dois processos discursivos,
consiste em enxergar a coisa em sua coisidade, sem desconsiderar o estatuto de
outra coisa que a coisa-significante sempre é: os rios são rios e as montanhas,
montanhas, mas os rios também não são rios e as montanhas também não são
montanhas. Da mesma forma, a lata absoluta, que é absolutamente lata, é
também um signo que nos fala do incontível, do incabível e do inatingível.

12 PERRONE-MOISÉS. Fernando Pmoa; aquém do eu, além do outro. p.118.

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O psicótico, seja na fragmentação de sua linguagem, seja no discurso
suturador da metáfora delirante, fala-nos da coisa em sua mais absoluta
singularidade e, no entanto, fala-nos também de outra coisa, como qualquer sujeito
falante que opera com signos. Se conseguirmos, com ele, fazer da coisa que é
precisamente a coisa literária, talvez possamos abrir uma via secundária para esse
sujeito para quem faltou a via principal. 13
Afinal, se esse sujeito que tropeça nas palavras é capaz de nos dizer,
poeticamente: "não nasci para as letras/elas é que nasceram para mim", 14 talvez
ele mereça ser ouvido também de outra forma, uma forma que respeite a poesia
de sua poesia, sem violentar a coisidade de sua coisa singular. Assim, quem sabe,
não só para o delirante, mas também para aquele que acolhe o delírio, os rios
possam voltar a ser rios e as montanhas, montanhas, após o tortuoso trajeto no
qual foram outra coisa que não rios, outra coisa que não montanhas.

13 LACAN. As psicoses, p. 327.


14
"Maiúsculas", poema de um paciente psicótico, aluno da Central Psíquica, de
BH.

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Referências Bibliográficas

AUBERT, Jacques (org.) . Joyce avec Lacan. Paris: Navarin, 1987.


BLEICHMAR, Hugo. Introd11rão ao est11do das peroersõer, teoria do Édipo em Freud e Lacan.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.
BRANCO� Lucia Castello. A devora;ão da imagem: o poético e o psicótico. CNPq, 1991. (Projeto
de pesquisa aprovado para 1990-1993).
CAMPOS, Augusto de, CAMPOS, Haroldo de. James Joyce; panorama do Finnegans Wake.
São Paulo: Perspectiva, 1986.
GIL, Gilberto. Metáfora. ln: Um banda 11m. São Paulo: WEA, 1990.
GROSRICHARD, Alain, MÉLA, Charles. La psicosis en e/ texto. Buenos Aires: Manantial,
1990.
KRISTEVA, Julia. Loca verdad; verdad y verosimili tud dei texto psicótico. Madrid:
Fundamentos, 1 985.
LACAN, Jacques. Joyce, o sintoma. Lisboa: Escher, 1987.
____,. Lituraterra. ln: Che v11oi, Porto Alegre, Cooperativa Cultural Jacques Lacan, v.1, n.1,
p.17-32, i 986.
____,. O seminário; as psicoses.Trad. M. D. Magno Rio de Janeiro: Zahar, 1983. v. 3.
PERRONE-MOISES, Leyla. Fernando Pmotr, aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins
Fontes, 1982.
PINTO, Julio. A imagem (i)material: notas sobre a vídeo-poesia de Ernesto M. de Melq e
Castro. ln: Dilamos; estudos de língua e cultura portuguesa. Coimbra: Universidade Aberta,
v. 4, p. 137-148, maio 1993.
QUEIROZ, Sônia. Reinado. ln: CARVALHO, Roberto Barros de (org.). Taq11icardias. Belo
Horizonte: Dubolso, 1985.
SUZUKI, D.T. Introd11rão ao Zen-B11dismo. São Paulo: Pensamento. [ s.d.].
THEVOZ, Michcl. Le langage de la r11pt11re. Paris: PUF, 1 978.

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EM NOME DO PAI,
EM NOME DO FJIHO
Lucia Castello Branco

Eu vou passar revista corpos cabidos carbonizados e os mortos reverter vossos


corpos juntos vossos espiritos lados vos seja lagrimas sangri nome filho do
home a voz pai criador eu exceto vossa nicencia filho enchugo em nuves
especiaes formas bordada um metro proximo eu filho VIII (...) 1

O trecho aciipa, cuja autoria ainda desconhecemos, já de irúcio nos provoca


a sensação de estranhamento que os escritos da loucura são capazes de suscitar.
Sabemos, de antemão, que estamos diante de um texto "louco", seja pela conexão
pouco lógica que se estabelece entre os termos das frases, seja pelo caráter
substantivo da narrativa, seja pela ausência de conectivos e de pontuação.
Para o autor dessa narrativa, não foi suciente que ela se escrevesse como
um pigmento negro no branco da página, mas foi preciso que ela se inscrevesse
como pontos, trações, linhas de um bordado que se desenha sobre enormes
estandartes estendidos ao olhar do espectador. Este, alçado subitamente à categoria
de leitor, vê-se, então, obrigado a ler aquilo que não se lê. Ilegível, mas provocador,
esse texto não se oferece à decifração, mas, antes, à escrita.

1 Anotações dos estandartes de Artur Bispo do Rosário, por Lucia Castello Branco,
na ocasião da exposição do artista em Belo Horizonte, no Museu da Pampulha,
julho/agosto 1 990. Todas as demais citações de textos do autor referem-se à
mesma fonte.

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diante do texto que um dia foi escrito por Arthur Bispo do Rosário, "esquizofrênico
paranóide", interno na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, em 1939. Ali
Bispo passou quase to9a sua vida, ali compôs sua obra "reconstrução do mundo" e
ali veio a falecer, em 1 989. Preto, solteiro, de naturalidade desconhecida, sem parentes,
sem profissão, alfabetizado, com antecedentes policiais, ex-boxeur, ex-fuzileiro naval,
ex-funcionário da Light, ex-faxineiro, ex-seguraçança de políticos, Arthur Bispo do
Rosário acabou por se fazer um nome, uma instância autoral, através de uma obra
supreendente, que dialoga com a arte contemporânea, como a de Duchamp, que
faz ecoar o radicalismo das vanguardas do início do século, como o cubismo e o
dadaísmo, e que antecipa certos aspectos da nova escultura inglesa2•
Arthur Bispo do Rosário: um nome. Próprio? Sabemos que, para o
psicótico, o nome próprio não possui o estatuto de propriedade inalienável do
sujeito, como ocorre na neurose. Mas quando esse nome próprio passa a designar
uma instância autoral, como é o caso de Bispo, que estatuto poderíamos atribuir­
lhe? Não estaria esse nome então circunscrito, irremediavelmente, aos limites da
propriedade artística, em que ele termina por se inscrever através da produção
de uma obra? A obra inscreve o nome do autor, poderíamos pensar, numa releitura
de Foucault' . Mas o nome do sujeito, o nome próprio do sujeito, seria possível
inscrevê-lo na psicose?
"O nome próprio é mais que um signo ou um significante: ele é um
texto", assinala Francisco Martins4 • E esse texto, sabemos, é também a expressão
do desejo de um Outro. Seria de esperar que, na psicose, quando esse Outro
assumisse um caráter absoluto, o nome próprio do sujeito se impusesse como um
destino inexorável, uma lei inquestionável do grande Outro. Entretanto é a própria
estrutura da psicose que vai problematizar essa questão, já que essa estrutura vai
constituir-se exatamente pela forclusão de um significante da ordem do nome
próprio: o Nome-do-Pai.

2 MORAIS. A reconstrução do universo segundo Arthur Bispo do Rosário, p.17.


3 FOUCAULT.O q11e i 11m a11tod
4 MARTINS. O nome próprio, p. 1 1 .

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Se o Nome-do-Pai é forcluído e se, em conseqüência, não se constitui
propriamente como sujeito, que estatuto possuiria esse nome próprio na psicose,
se não é, afinal, o próprio sujeito que ele designa? "Eu, Antonin Artaud, sou meu
filho, meu pai, minha mãe e eu mesmo"S, declara Artaud acerca de sua louca
verdade. Como ler, a partir dessa declaração, o nome próprio - Antonin Artaud
- que aí se inscreve?
Um enigma da mesma ordem nos propõe Arthur Bispo do Rosário
nesse pequeno trecho aqui citado, em que o pai e o filho se alternam, mudam
de lugar, e terminamos por não saber extamente quem fala, quem diz eu
nessa cena da linguagem. Eu, o filho VIII? Eu, a voz pai criador? Eu, exceto
vossa nicência? Seria preciso, talvez, que a esse trecho se acrescentasse um
outro, em outro estandarte, quando Bispo parece fazer o relato pormenorizado
de seu delírio.
22 dezembro de 1938 - meia noite acompanhado por 7 - anjo_s em nuvens
- especiais forma esteira mim deixaram na casa dos fundo murrado rua são
clemente - 301 - Botafog - entre as ruas das palmeiras em matriz/ eu com
lança nas mão nesta nuves espírito nalisimo não penetrara

Esse trecho, contudo, também não resolve o enigma, antes torna-o


mais complexo. Porque, se aqui eu é o filho que, acompanhado por sete anjos,
pode nomear-se o filho VIII, eu também é o pai que, com sua lança na mão,
lutará contra os espíritos malíssimos. De fato, essa oscilação do eu, que parece
transitar de um si mesmo a um outro, da primeira à terceira pessoa, não faz
mais que refletir o percurso claudicante de um sujeito-objeto em sua errância
pelo simbólico.
Por mais rápido, porém, que seja o olhar que circula por entre os
estandartes, objetos mumificados e fardões .militares, ícones do universo do
artista, ele certamente atentará para esse nome próprio que termina por se
escrever em sua obra. Arthur, o rei, o cavaleiro, com sua lança na mão, defende,
dos espíritos malíssimos, a cidade, os companheiros, a humanidade, e compõe o

5
ARTAUD, citado por MARTINS, op. cit. p. 1 1 2.

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seu texto épico, em que se encenam lutas e assaltos. Bispo e Rosário: dois
significantes que parecem ancorar o destino místico daquele que, um dia, foi
assinalado por Deus para essa missão heróica de reconstrução do mundo. Mas
também significantes que, apesar do próprio autor, para além de suas intenções
manifestas, terminam por circular em sua obra: o bispo no xadrez e nas peças
do xadrez, o rosário em Rosângela, a terapeuta, a misse, a mulher, a "mais
linda", "diretora de tudo", segundo o artista.
Se, no entanto, é justamente o nome próprio aquele que "sugere o nível
da falta (...), marcando o sujeito como algo que pode faltar"6, é possível que, na
psicose, essa estrutura em que falta a falta, esse signo não se marque por sua função
volátil, evanescente, mas revele apenas sua "falsa aparência de sutura»7. Talvez
pudéssemos, então, pensar que, na psicose, o nome próprio ( ou os nomes próprios,
já que freqüentemente o psicótico "recebe" do Outro um outro nome, um
heterônimo), por sua relação radical com a escritura8, pos�a se constituir como
um dos pontos de amarração, ou de sustentação, desse sujeito que não possui o
significante mestre, o Nome-do-Pai.
Dessa maneira, o nome próprio ( o nome de batismo, ou mesmo o "nome
de guerra", aquele com que o sujeito atua em seu delírio) pode vir a funcionar
como uma suplência, não exatamente em substituição ao Nome-do-Pai, mas como
uma prótese que se coloca no lugar desse significante forcluído. Talvez por aí se
possa entender como o eu, esse shifter, esse pronome ( pré-nome próprio) venha
a ocupar, no delírio de Bispo, ora o lugar do filho, ora o lugar do pai. Afinal, na
Santíssima Trindade, pai e filho não fazem um? É verdade que falta aí um terceiro,
mas não é exatamente da falta do terceiro que a psicose nos fala?
O fato é que é impossível deixar de ver, na obra do a,rtista, esse nome
próprio - Arthur Bispo do Rosá�? - inscrito em seus objetos-dejetos, em seus
cetros de misse, em suas roupas de ver Deus. Como também é impossível não ver
que a escritura de Bispo, a "língua fundamental" em que se escreve seu texto louco,
compõe-se de uma profusão de nomes próprios. Do manto com que o artista
subiria aos céus, aos enormes estandartes em que Bispo escreveu sua reconstrução
do mundo, e à urna de sugestivo nome - "Feminino"-, em que uma fileira de

6
BECKER, MARISCAL. Nomiflação, letra e escirtura, p. 1.
7
Idem.
8
Lacan assinala, em seu seminário sobre a Identificação, a relação radical do nome
próprio com a escritura. Cf. BECKER, MARISCAL, op. cit. , P· 4.

....
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nomes de mulher se apresenta aos olhos do leitor, são os nomes próprios, em sua
intradutibilidade, em sua singularidade, que compõem essa língua do Outro:
Armando pinto fernandes-Capitão Tenente Medico-Hospital Central da
Marinha Ilha Dique Rio de Janeiro) Araujo Maciel - sub oficial enfermeiro
hospital central da marinha dique rio Atilio da Silva - copeiro nuclo ulisse
viana J acarepagua

E mesmo quando o que se desenha aos olhos do espectador não são


exatamente os nomes próprios, mas nomes comuns, enfileirados, empilhados,
inscritos em ordem alfabética, enumerando partes do corpo ou coisas comuns à
vida diária, é como nomes próprios que esses substantivos comums se comportam,
pois é em seu estado de dicionário de verbete (e, portanto, de significante
vazio, ou até mesmo de letra, como se percebe em alguns trechos dos escritos do
autor) que eles se apresentam:
ADEUS/ADEM/ADAPTADAS/ADULTO/ADICIONAR/ADULA/
ADVOGADO/ ADEQUADA/ADJACEN CIAS/A/ AÇUCAR/
AÇUCAREI RO/ACHO/ACONTECE/ AÇORES/ACIDENTE/
ACONQUISTA/ACÉ FALO/ACENDE/ACADEMIA/ACRE/AÇÕES/
AÇUDE/ AÇO/ACEITE

E, ainda, quando nos deparamos com o texto "em prosa" do autor, com
o relato de seu delírio, não é difícil verificarmos que o estranhamento que esse
texto provoca provém exatamente de sua qualidade substantiva, pelo excesso de
nomes próprios que aí se empilham, ou pelo entulhamerito de substantivos comuns
destacados em sua singularidade (funcionando como nomes próprios, talvez) e
pela quase ausência de verbo� e conectivos:
Eu abrir aporta lado leste um jardim flores varas cores ao 7 metros de frente
um portão de 2 metros de altura de ferro lado esquerda com seus gradeado
todas de ponta lança um metro e vinte altura - 1 O espaços - uma polegada

E talvez pela via do nome próprio, ou do caráter substantivo dessa escrita


psicótica, seja possível entender a afirmativa de Lacan referente à existência de
wna significação massiva no delírio:

'j)t

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Que diz afinal de contas o sujeito, sobretudo num certo período de seu
delírio? Que há significação. Qual, ele não sabe, mas ela vem no primeiro
plano, ela se impõe, e para ele ela é perfeitamente compreensível. 9

Sabemos, entretanto, que essa singificação permanece, para o sujeito,


inexprimível, incomunicável. O próprio doente, segundo Lacan, "sublinha que
a palavra tem um peso e m si mesma. Antes de ser redutível a uma outra
significação, ela significa em si mesma alguma coisa de inefável, é uma significação
que remete antes de mais nada à significação enquanto tal" 1 º. Ora, não será
justamente essa a propriedade dos nomes próprios? Remeterem à significação
enquanto tal e, por isso, assinalarem o inefável, o volátil, o evanescente do sujeito
e a intradutibilidade do nome?
Arthur Bispo do Rosário termina por escrever, em sua língua fundamental
de nomes próprios, algo da ordem do impronunciável, do inominável: o nome
próprio do sujeito, em sua radicalidade de expressão do desejo do Outro. E o
Outro lhe ordena que permaneça trancado a sete chaves, durante sete anos, para
reordenar o mundo. Ou reescrever o mundo?
Como Punes, o personagem de Borges em "Punes, o Memoriosom 1, Bispo
reordena o mundo ao reescrevê-lo em sua alteridade radical. Porque tudo é
diferente, tudo é singular, Bispo só pode escrever a diferença, a singularidade. Por
isso sua língua só comporta nomes próprios, essa classse especial de palavras que
assinala de maneira flagrante o indizível do signo, a intangibilidade da Coisa, a
irrepresentabilidade do Real.
Esse o destino daqueles para quem falta o significante primordial. Pela
forclusão do Nome-do-Pai, significante que enfeixa os demais, o sujeito é submetido
à significação massiva dos significantes um a um, portadores um a um de uma
significação única e fundamental, como os nomes próprios.
Não parece ser por acaso, portanto, a freqüência com que os delírios místicos
ocorrem na psicose. Como signo último e maior da intradutibilidade dos nomes
próprios, o nome de Deus vem ocupar, então, o lugar do impronunciável, do Real,
além de introduzir o desejo do Outro, em sua radicalidade:

9 LACAN. Se111i11ário 3, . 30-3 1 .


p
1 0 Ibidem, p. 43.
1 1 BORGES. Punes, o memorioso.

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Segundo Lacan, o primeiro nome que introduz o desejo do Outro é
Elohim, o Deus que no Êxodo fala na brasa ardente; ele nos diz que é necessário
concebê-lo como corpo que se traduz pela voz. 1 2
É o que nos diz também Arthur Bispo do Rosário. E m nome do Pai, o
filho tranca-se durante sete anos para reordenar o universo. Em nome do Pai, o
filho, com lança na mão, ao lado de sua legião de Anjos, defende o mundo dos
espíritos malíssimos. Em nome do Pai, o filho escreve. O filho escreve o nome do
filho, que é também nome do pai: Arthur Bispo do Rosário. Escrever o nome do
filho talvez seja, então, a única forma de escrever também em nome do filho,
através da obra. Mas se a obra se faz sob as ordens do Outro, a obra se escreve
também, e sobretudo, em nome do pai.
Esse o impasse em que a psicose se lança: sem Nome-do-Pai que o sustente
razoavelmente no simbólico, o psicótico, no entanto, escreve em nome do pai.
E o que escreve reduz-se, afinal, à impossível tentativa de escrever o nome próprio
do pai, de inscrevê-lo tardiamente, quem sabe, como suplência. Mas, se o nome
do pai é o intraduzível - Babel -, escrevê-lo em sua irredutibilidade de nome
próprio significará, dolorosamente, para aquele que o escreve ( e para aqueles que
o lêem): confusão. 1 3

12
BECKER, MARISCAL. Nominação, letra t escritura, p. 4.
13
A esse respeito, ver a discussão de Derrida acerca do mito bíblico de Babel, em
que o autor assinala que a tradução desse nome próprio intraduzível é,
literalmente, confusão Cf. DERRIDA. L'oreille de 1'011tre, p. 135-137.

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Referências Bibliográficas

BECKER, Paulo, MARISCAL, Diana. Nominação, letra e escritura. Comunicação apresentada na


Jornada da Letra Freudiana: do Sintoma ao Sinthoma. Rio de Janeiro, nov.1993. (Manuscrito
inédito).
BORGES, Jorge Luís. Funes, o memorioso. ln: Ficções. Lisboa: Livros do Brasil, [s.d.].
DERRIDA, Jacques. L'oreille de l'outre,. Québec: VLB Éditeur, 1982.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor� Trad. António Fernando Cascais e Edmundo Cordeiro.
Lisboa: Vega, 1969.
LACAN, Jacques. O seminário; as psicoses. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: l.ahar, 1985. V. 3.
MARTINS, Francisco. O nome próprio; da gênese do eu ao reconhecimento do outro. Brasília:
Editora UNB, 1984 .
MORAIS, Frederico (curador). Arthur Bispo do Rosário; registros de minha passagem pela Terra.
Belo Horizonte: Mazza Edições, 1990. 27p. (Catálogo de Exposição, jul./ago. 1990, Museu de
Arte de Belo Horizonte).

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IHEQUEÉSME
DEI
Musso Garcia Greco

Miserável homem que eu sou!


Quem me livrará o corpo desta morte?
(Paulo, Romanos, 7:24)

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borda do mundo, a voz não tem eco. Incomunicável,
o a-sujeito aí colocado tenta decifrar o ruidoso silêncio
da coisa indizível. Esse ser bordejante, o louco, órfão que é da significação fálica,
sabe, com absoluta certeza, já que foi fulminado por algo da ordem do Real, que
o mundo não é o mesmo, que carece de significado. Diante do fulgor do Real, que
aparece para ele sem intermediação simbólica, o psicótico claudica ou sucumbe,
sem apelação. É a morte em vida de que nos fala Schreber, o Senatsprasident de
Dresden, que publicou o livro Memória de um Doente dos Nervos, em 1 903.
Impossibilitado de responder de uma posição simbólica, já que o Nome-do-Pai
invocado não tem inscrição para ele, o psicótico se vê lançado no vazio da
significação, e o espelho em que se mira, longe de lhe oferecer uma imagem
apaziguadora de integridade, perde a prata refletora e tem o cristal esfacelado em
fragmentos mortíferos. Des-inteiro, derretido, pulverizado, o sujeito é aí carcaça
náufraga à mercê das vagas do significante, pobre-diabo atrelado a um corpo morto,
imagem que retiro da Eneida de Virgílio, quando descreve as ações do tirano
Mezêncio, no trato com seus prisioneiros de guerra:

Que língua pode descrever tais barbaridades,


Ou enumerar os massacres da espada implacável dele.
Não foi bastante que os bons, os inocentes sangrassem;
Ainda pior, ele amarrou os mortos aos vivos;
Estes, membro a membro, rosto a rosto, ele fixou;
Ó crime monstruoso! Crime sem precedente.
Os vivos, sufocados com fedor, miseráveis deitados lá;
E, neste abraço repugnante, aos poucos, morreram!

Essa as sustadora prática de castigo, a que parece se referir Paulo,


metaforicamente, na Bíblia, remete de imediato à descrição magistral que Schreber
faz de si na fase inicial de seu delírio, que ele chamou de "o tempo sagrado":

Sou um cadáver leproso que carrega um cadáver leproso.

Uma frase pungente que alude à situação de um homem abominado, já


que excluído do mundo dos vivos, ou seja, do universo simbólico. Um homem
ligado mortalmente a um . duplo imaginário e pagando com o corpo por um crime
que não cometeu: o crime aqui não é outro que não o da morte simbólica do Pai,

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condição fundamental para a introdução, através da metáfora, da Lei simbólica
que permite aos seres participar da partilha dos sexos e da comunicação.
Schreber é, para a Psicanálise, o paradigma da Psicose, fato que se confirma
na citação de outro psicótico famoso, Arthur Bispo do Rosário, desta vez não um
juiz europeu, mas um louco pobre e brasileiro, descoberto por um crítico de arte na
Colônia Juliano Moreira e alçado à condição de artista em razão de sua obra:
Cada louco é guiado por um cadáver. O louco só fica bom quando se livra
desse morto.

A idéia de uma condenação macabra aparece aqui com a mesma nitidez


colocada na frase de Schreber. Se a função simbólica constitui um universo no
interior do qual tudo que é humano pode ordenar_.se, habilitando o homem a atribuir
significação a seus significantes e, portanto, à sua existência, Bispo nos testemunha
- a desolação de quem está preso ao reino das trevas, destino inevitável de quem não
atravessou a epopéia edipiana. Nesse reino desreinado, Schreber, sem suportes
imaginários que o mantenham, vê seu mundo desmoronar-se e ser invadido por um
gozo sem fim, fato que muda tudo que ele conhecia como ordem natural e dá aos
seres vivos a condição de "imagens de homens atamancados às três pancadas",
"imagens humanas feitas às pressas", "almas assassinadas". Bispo, tal qual seu ilustre
colega de estrutura psíquica, tem uma descrição lúgubre desse mundo em estado de
nada, desse apocalipse a que ele assiste:
Eu vou passar revista corpos
homens caídos carbonizados
E os mortos reverter vossos corpos
juntos vos seja vossos espíritos lados
Vos seja lágrimas sagrinome
Filh d'Home

O mesmo horror e perplexidade está presente nessa fala de um jovem


psicótico de 17 anos, em seu primeiro surto, que constata assim sua morte e o
crepúsculo do mundo:
A profecia... A Besta do Apocalipse está no mundo ... eu estou sem memória,
quem está falando aqui é um espírito. Estou horrível espiritualmente. Eu sou
Elias.

Esse momento de eclipse fatal e perda de referência encontra-se relatado


também nos "Escritos autobiográficos" de outro psicótico sem fama, que chamarei
M.C. e de quem transcrevo o seguinte trecho:

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A cabeça, o espírito, possivelmente desligara-se do corpo, havia ficado. (...)
Castelos outrora ful gurantes, repentinamente estouram-se comprimidos pelo
vapor que carrega um ideal... desmanteladamente rola por águ as abaixo, o
sonho de um pobre ...

Relatos como esses, tão singulares, de pessoas que pass aram pela
experiência de aniquilamento e desorganização psíquicas fazem Lacan dizer que
o psicótico é alguém que fala uma outra língua e apontar na psicose· a inexistência
do discurso como tal. Ilustro essa observação com outro escrito de M.C., numa
fase posterior de seu processo psicótico, em que ele, atormentado pelo que nomeou
,,
como "Tortura do Silêncio (título de um filme de Hitchcock, onde um padre,
interpretado por Montgomery Clift, preso ao segredo da confissão, não pode
revelar o autor de um crime do qual é acusado), só utiliza a palavra, bem retirado
do campo do Grande Outro, marcando-a com neologismos:
O Senhor não vai
Min é afilhado
Paraninfado
Supõe-se ser-me
Artista e Escritor
De Preciosos Roteiros
Bancário Nacional
De Holliwod USA
Quer Inundar Brazlüydesvis
Apresenta e Sugere-vos
A Tortura do Silêncio

Arthur Rank Film


Padre Santo Ávila Filme
Anchieta Dicypulaes

Aproximo sua maneira de exprimir-se à de certas línguas do extremo


Oriente em que, por convenção de polidez, há uma diversificação de formas
verbais segundo o nível do sujeito e do interlocutor, e estas variam segundo se
fale a um superior, a um igual ou a um inferior. O falante apaga-se e prodiga as
expres sões impessoais, contentando-se, para não sublinhar indiscretamente a
relação das posições, com formas indiferenciadas quanto à pessoa. Por ser alguém
tão identificado com seu eu, esse psicótico (como todos), com a sinceridade que
lhe é peculiar, só pode expressar assim seu pensamento, de forma não-pessoal:
afinal, ele se dá conta de que um Outro fala nele dele! "Pensa-se-lhe que és-me

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amatur Dei", diz ele, passiva e impessoal.mente, quando pesquiso sua relação
com uma provável divindade hollywoodiana. Haveria um modo mais coerente
de se referir ao domínio apaixonado do Grande Outro? Em "pensa-se-lhe", há
uma indeterminação do sujeito que cria um distanciamento, e um objeto indireto
ectópico, não solicitado pelo verbo, mas que o atravessa; a tradução (impossível)
poderia ser: algo é pensado em Ele. No "és-me", pode estar caracterizada uma
voz imposta que se refere ao eu, onde se distingue algo da função conativa,
apelativa, com a força da expressão centrada no tu, como nas propagandas
publicitárias. Pensa-se, diz ele, on pense, diria, se francês fosse: alguém pensa e ele
é o porta-voz. O complemento, na passiva, amatur Dei, amado de Deus, dá o
tom erotomaníaco, já que a fórmula da erotomania, paixão amorosa delirante tão
bem postulada por Clérambault, é "o outro me ama".
Perdoem-me a evocação tão pouco erudita, mas, para ilustrar essa
submissão apaixonada e terrível ao outro, ao "Dono" do tesouro dos significantes,
citarei Sílvio Santos. Refiro-me a um quadro de seu programa dominical, onde o
Sr. Sorriso propõe um de seus jogos diabólicos a um freguês do Baú da Felicidade,
que consiste em não pronunciar as palavras "é", "não", e"porque", ou coisa que o
valha, para ganhar um prêmio ou se estrepar, deleitando sadicamente a platéia e o
apresentador. Penso em M.C. assujeitado a um jogo assim em seu delírio
cinematográfico, como se seu Deus Silviosantosiano, poderoso e gozador, lhe
impusesse o silêncio eterno de sujeito. Aqui, de forma gritante, evidencia-se o
drama psicótico: se a Linguagem está de tal forma organizada que permite a cada
locutor apropriar-se da língua toda, designando-se como e11, ao psicótico falta o
operador-chave desse sistema e ele só entra no jogo como objeto do Outro da
Linguagem, sempre um pouco de banda em relação ao significante. Decorre daí
ser o psicótico, de maneira mais drástica que o poeta, o psicanalista e aquele pobre­
coitado lá do programa do Sílvio Santos, alguém que sabe que o Significante
domina a existência dos seres e sabe, principalmente - e a que preço! - · , como a
falta de um significante altera a vida do ser falante...
Ó sina tão diversa da do neurótico tem o psicótico! Para aquele, a presença
do objeto face ao sujeito tem valor de enigma, traz angústia e não o terror que
percebemos nas falas citadas. Frente a isso, o sujeito, como o herói de Tebas, tem o
recurso da decifração, tem o fantasma como resposta e tentativa de tradução do
desejo deste Outro que não existe. Pode, nessa luta contra a linguagem, conquistar
capitanias no Grande Outro, recortar seu território sob a forma do estilo e mesmo
marcar sua singularidade, sua grife, nesse universo descontínuo. Se poeta, como
Manoel de Barros, pode até se oferecer como objeto à linguagem e dizer. "as palavras

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querem me ser". São dele esses versos, compostos de imagens aparentemente díspares,
numa "desescrita" de palavras de alguém que busca se acercar da "coisa que não faz
nome para explicar", das margens do Real:
- E martelo
grama de castela, móbile
estrela, bridão
lua e cambão
vulva e pilão, elisa
valise, nurse
pulvis e aldrabas, que são?

- Palabras.

O Poético e o Psicótico mostram aqui seu ponto de aproximação, já


que o gesto de tentar dizer o indizível é semelhante e, afinal de contas, o Real é
o Real para todos. Mas enquanto que para o louco se trata de uma devastação,
onde ele é tomado e possuído pela Linguagem, para o poeta o envolvimento é
erótico e voluntário, como nos demonstra Manoel de Barros, falando de seu
processo de cr�ação:
De repente uma palavra me reconhece, me chama, me oferece. Eu babo
nela. Me alimento.

Esse estado de paixão pela palavra no cio só pode terminar em loucura.


Na loucura poética de quem se deixa comandar subterraneamente pelas palavras,
rastreando seu serpenteàr arisco e deixando-se desviar das normas da gramática
para chegar ao mais perto possível do som do silêncio.
Para um psicanalista, os dizeres do poeta e do louco vêm objetivar certas
estruturas supostas corretas em teoria, no que se refere ao funcionamento do
Inconsciente. Lacan observa, estudando Schreber, que "ali está alguém que penetrou,
de maneira mais profunda do que é dado ao comum dos mortais, no próprio
mecanismo do sistema do Inconsciente". Freud também nunca viu nada que se
parecesse tanto com sua teoria da Libido quanto a teoria dos raios divinos de Schreber.
Bispo e Manoel de Barros estão aí a ilustrar o que se costuma chamar, teoricamente,
de coisificação das palavras ... os deuses absolutistas dos psicóticos sustentam a teoria
de um Grande Outro... as palavras desavergonhadas que adentram os poemas não
estão muito próximas da idéia lacaniana de uma primazia do significante?
Tomemos novamente a fala do poeta, parente do psicótico no que tange
ao enlouquecer das palavras, para jogar um pouco de luz no beco escuro da loucura:

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Arquissemas, aprendi de um filólogo, cujo nome não me lembro agora, são
palavras logradas dos nossos armazenamentos ancestrais, e que ao fim norteiam
o sentido de nossa escrita. Arqui, derivado do grego arcbó1, é aquele que
comanda. Essas palavras-chaves portanto orientam nossos descaminhos.
Orientam nossa obra a fim de que não fujamos de nós mesmos no escrever.

A única palavra citadina legítima que consta de meus arquissemas é parede.


(...) As outras dez ou doze palavras que são meus arquissemas vêm de minha
infância. São elas: árvore, sapo, lesma, antro, musgo, boca, rã,· água, pedra,
caracol. Acho que são as palavras que me comandam subterraneamente.

A Metáfora Paterna, que organiza as significações, falta ao psicótico, mas


isso não o impede· de tentar buscar um sentido para a descompensação do mundo,
que ele experimenta. O que o poeta chamou de arquissema nos serve aqui para
indicar uma possibilidade de estabilização na Psicose. Refiro-me, evidentemente,
à Metáfora Delirante, via a que nem todos os psicóticos chegam, mas que aparece,
por exemplo, no segundo período do delírio de Schreber - metáfora: "ser mulher
de Deus" -, como uma palavra-chave que lhe permite suprir o furo simbólico
correspondente à foclusão do Nome-do-Pai e estabilizá-lo. O sujeito se produz aí
como o objeto que falta no universo do discurso. Dando consistência a esse Outro
enlouquecido que o subjuga, ele pode livrar-se do "corpo desta morte", ter seu
"arquissema" para interpretar o mundo e tornar possível a relação com o
semelhante e com a realidade.
Metaforizando a paixão, traça-se para Schreber o destino de procriar com
Deus, assim como para Bispo fica selada a sina de missionário da reconstrução do
mundo.M.C. ainda des-caminha n a trilha nebulosa do seu Grande Diretor
hitchcockiano ... Nosso jovem profeta Elias, tomara que encontre em seu nome
bíblico "A Explicação" para seu tormento ... Que um Deus esteja com eles!

......

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Referências Bibliográficas

BARROS, Manoel de. Entrevista (por carta) concedida à Revista Bric-à-Brac, entre agosto de 88
e janeiro de 89, Brasília.
BENVENISTE, Émile. Princípios de /ingiiística geral. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1 976.
BRANCO, Lucia Castello. Palavra em estado de larva. ln: BRANCO, Lucia Castello,
BRANDAO, Ruth Silviano. Literatemzr, as bordas do corpo literário. São Paulo: AnnaBlume,
1995.
CHAMPLIN, Russel. O Novo Testamento interpretado. vol. 3.[s.n.t.].
COTTET, Sérge. Diagnóstico diferencial; neurose e psicose. ln: Clínica lacaniana; n.3. São
Paulo: Biblioteca Freudiana do Brasil, 1989.
FREUD, Sigm und. O caso Schreber; artigos sobre técnica e outros trabalhos. Trad. José Octavio
de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1 969. P.1 5-108: Notas psicanalíticas sobre um
relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoidu). (Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 12).
LACAN, Jacques, O seminário. Livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 988.
QUINET, Antônio. Clínica das psicoses. Salvador: Fator Editora, 1990.

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DAEIASIICIDADEDA
PAIAVRA
Ivan Cupertino

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1S2

psicose cose as palavras num devaneio fértil e irmana as mentes


in(sanas) num caminhar vertical rumo a um mesmo ponto
de chegada e partida: a coisa antes de ser significada. Antes de ser arte ardente
como febre.
A partir do uso da palavra, pode-se estabelecer um parâmetro para se
classsificar o ser humano como neurótico ou não. Essa classificação dependerá da
distância a que o sujeito se encontra do parâmetro.
Os sujeitos neuróticos estão fadados (ou não?) à memória do que não é,
nunca foi e· numa mais será, visto que se agarram à palavra para expressar seu
pensar. Existe no fundo de cada um uma angústia já estabelecida que direciona as
relações com a significância mundana.
Essa angústia é de fundamental importância no que diz respeito ao lugar
no mundo. Se existe a angústia e esta é reconhecida e aceita, a palavra é o elo. Se
isso não acontece, não existe o buraco, a falta. Isso gera um contínuo errar à
procura de um gancho que formará o elo.
Os seres angustiados funcionam como engrenagens de rodas dentadas, ou
seja, um dente encaixa-se num espaço vazio, dá o atrito e gera a dinâmica, o
desequilibrio. Esse desequilibrio é fundamental para que, na busca do impossível
equilibrio, o ser tropece, caminhe e ancore suas angústias em palavras supostamente
redondas, perfeitas.
Quando falta a roda dentada, não existe atrito suficiente para possibilitar a
ancoragem em significados e significantes. O ser desliza inseguro na pista de signos
que encontra a sua disposição, não sendo capaz de juntar dois e dois e encontrar
uma significância. Parece, talvez, um corpo caindo em queda livre, ou descendo
uma montanha de gelo. Na sua queda, incorpora os signos que vai encontrando
pelo caminho. O que acontece é que inexiste a capacidade de estabelecer uma ordem
significável com esses signos encontrados. Essa incapacidade gera um diálogo
impossível com aqueles sujeitos que conseguem operar com esses signos e significados.
Deslocando o foco das observações para o cenário onde a palavra é
personagem principal, flagaremos cenas alucinantes, quedas livres de perder o
fôlego ou pulsares ritmados, em cadência. Ver de perto o que a palavra faz com os
seres, como os possui e os subjuga a sua vontade. Seres inocentes, ignorantes do
valor relativo de cada palavra.

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Nos trechos seguintes, uma tentativa de flagrar o quadro-a-quadro das
cenas, num processo inverso de ancoragem. Soltar as amarras dos portos seguros
e querer uma aventura com a palavra. Vertiginar com estes dois seres que, fugindo
da (para a) ordem, (des) encontram novas fugas e novas palavras que palavram
coisas no imaginário de cada um. Palavras que vão se dizendo à medida que são
lidas. Independem de contexto.
Dizer que os autores dos textos são neuróticos ou psicóticos ajudaria em
quê? Nesse caso, tudo vira arte e tudo arde no delírio alucinado das palavras.
Vamos percorrer os textos para sentir-lhes a respiração, descobrir-lhes o
ritmo. Tentar traçar um fio comparativo entre os textos, buscar o processo, o
palavreado característico de cada um. No final, esboçar algumas idéias e reflexões
sobre a relação palavra / psicose.

riocorre,1/e, depois de Eva e Adão, do desvio da praia à dobra da baía, devolve­


nos por ""' co111111odi"s vic11s de recirc11/ação devo/ta a Howth Castle Ecercanias.
Sir Tristrão, violista d'a111ores, através o n,ar breve, não tinha ainda revoltado
de Norte Ar,nórica a este lado do áspero istn,o da E11ropa Menor para lo11cof/1over
ma g11e"a peni11solada: nen, ti11han, os talhões do ala/0111 sa1rye"ador pelo rio
Oco1111e sexagerado aos gorgetos de Lal{rens Comrty e11q11anto eles ia111 d11blando
os bebêbados todo o te111po: ne111 avoz de 11111acha111a bra11111gira 111ishe ,,,ishe a
11111 /a,1/auf t,1espatmísquio: 1re,11 ainda, en,bora logo 111ais veniessse, tinha 1lfll
11ovelho esai'1rido ""' velho e alq11ebrado isaac: nef/1 ainda, embora tudo seja
feério e,11 Vanessidade, tinha111 as sesters sósias se mmtecido co111 o 11nid110
nathandjoe. Nem ""' galão de papa111alte havia111 ]hem º" She11 recevado à
arcaluz e a11roras antes o barcoíris fora vissto cimclarco sobre a aql(aface. A queda
(ba ba badalgharagh ta ka111111i11 arron nk on 11 bron 11/01111e rro1111 /1101111th111111 Iro
vrrho1111a11111skaa11111oordne11th1m111k!) de 11111 ex venerável negacia11/e é recontada
cedo na ca111a e logo 11a ja111a por todos os recantares da cristã idade. A grande
q"eda do ova/to do f!mro aca"e/011 em tão pol(CO lapso o p.Jjschute de Fi11nega11,
011trora sólido ovarão, que a h"111ptyhaltesta dele pm111pta111e11te manda 11111a
teste1111111ha para oeste à cata de mas /1(1Jptyt111111tmhas: e o retrospicopo11toepo11so
delas repal(sa e111 pés 110 parq"e onde orat!ios
111ofa111 sobre o verde desde qf(e o pria111or ao diabli11 levo11 lívia. 1

1 JOYCE, citado por CAMPOS, CAMPOS. Panora111a do Fi1111ega11s Wake.

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- É o propósito é de matar vai... (com que objetivo?) mediante traio... fraqueza
de cabeça de (hum... e o objetivo, qual que ocê vê? Qual que é o objetivo disso?) É
só matar né ------ porém só nem conseguiram vitória que existe no céu
extremamente por mim tentando realmente dizer que foram à lua e desde que
foram é ------- a humanidade dara des que a humanidade dara contra
mim mediante a cor/e da cor escura realmente era para estar realmente
solucionado o problema a favor da cor clara e escura que não é o próprio Deus
está que está dando até na vista que não Deus para logo a seguir ------­
-- nesta luta humana contra mim no dispositivo pátria, igreja, religião
realmente a coisa é negativa me matar porque eu neceuito, através dos meus
feitos, mediante ser o ser do céu que não é espírito então e não lua nenhuma onde
diz a claridade mediante eu precisar o ser novo simplesmente auunto auim de
tratamento de cabeça... de braço... (ocê reuuscita e... e... de que maneira?) uai é
meio o poder das cores né desde que não existe lua. (Desde que... ?) DESDE QUE
NÁO EXISTE LUA. (ah... desde que...) se existe lua a humanidade estaria nos
céus né desde que existe lua astronauta na lua que foi né foi foi Deus escuro em
unidade de Belo Horizonte toda claridade celestial e tudo sem saída realmente e
apegado no tratamento de cabeça no propósito realmente de macumba e feitiços
próprios. (E essa... essa questão do claro / escuro que ocê tá falando, como é que
fica iuo, no tratamento psiquiátrico?) No tratamento psiquiátrico fica assim é
um propósito espectro contra mim escuro junto né? Fora e morto. É o que só
andar com escuro é par cor dara e cor cor dara é própria com escuro, devido não
ter chegado lá diante do meu destinamento nenhuma das três cores2 >
O que faz a distinção entre um texto e outro senão o respirar de cada um?
Existe um ritmo acelerado no segundo texto que não é perceptível no primeiro,
existe um dizer no primeiro que não está tão claro no segundo.
O que encontramos de comum e de característico em cada texto? Algo
que salta aos olhos é a incrível facilidade (ou dificuldade) com que os autores
lidam com a palavra, como se fossem seus senhores. Existe uma grande liberdade
na utilização da palavra e suas possíveis associações. As cenas acontecem em câmara

1
acelerada no que diz respeito às inter-relações de palavras, ou seja, o salto de uma
imagem à outra é feito de uma maneira ultraveloz, o que atropela , algumas vezes,
a velocidade de compreensão do espectador:

2
Entrevista com psicótico. Hospital Raul Soares, Belo Horizonte, nov. 1991.

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.. . que é constato do e"o preto é iuo é claro é a cor... é a cor dita branca né? é a
cor. .. e branco é a cor... é a cor realmente dita... realmente pano branco, leite
como me papel e logo a seguir mesmo claro ----- moreno... moreno diz.em
se não... é... da parte cor dara para logo a seguir negro escuro só.J

Esse trecho pode ser comparado à imagem da queda-livre; no percurso,


tudo o que é encontrado vai sendo associado, vai se incorporando ao discurso de
uma forma natural e espontânea.
O mais flagrante nesse ·segundo texto é a total liberdade conseguida pelo
autor. Tudo é possível e a palavra flutua, desliza sobre significâncias sem se prender
a nenhuma delas. É um processo de contínuo buscar e desencontrar para rebuscar.
Nesste processo, não se percebe a noção de limites, tudo funciona como se fosse
um delírio contínuo, a palavra sem rédeas e significando por si própria.
No texto de Joyce, a mesma liberdade de criação, mas com um outro
respirar, uma certa ordem, algumas referências e algumas pistas para a identificação:
rioco"ente, depois de Eva e Adão, do desvio da praia
Nem ainda, embora logo mais veniesse, tinha um novelho esailrido um velho e
alquebrado isaac"
A queda (. ..) de 11m ex venerável negaciante é recontada cedo na cama e logo na
fama por todos os recantadores da cristã idade

Nesses trechos, é clara a referência à Bíblia: Eva e Adão. ESAÚrido, Isaac,


Cristã Idade. Todo o texto se situa nos domínios da religiosidade.
No primeiro texto, o processo de palavreação é feito de uma maneira
diferente daquela do segundo texto. Aqui existem palavras que, num primeiro
momento, não fazem sentido: loucomover, bebêbados, uníduo, barcoíris,
rapausa. Poderíamos propor um sentido para essas palavras, uma vez que elas
não nos são de todo desconhecidas, mas não estaríamos propondo um sentido
para o texto. Captaremos um pouco de sua significância se seguirmos as pistas
deixadas pelo autor.
No segundo texto, todas as palavras são conhecidas, o sentido do texto e
a forma pela qual as palavras são usadas é que causam a idéia de estranhamento:

3
Entrevista com psicótico. Hospital Raul Soares, Bdo Horizonte, nov. 1991.

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. . . aconteceu foi assim, uai eu considere.. . eu senti santidade em São Panlo
tentaram tudo imediatamente contra mim veio (deu?) eu de volta para Belo
Horizonte e em Belo Horizonte sem saída quando viram que eu eslava era
mo"endo realmente desiludido e mesmo desgostoso e mesmo e mesmo de"olado
por São Paulo mediante dinheiro carteira profissional trabalhista e mesmo polícia
e macumba e feitiros próprios com famílias próprias ------ parentesco
foi no logo culminando em Belo Horizonte que sim eu pra logo a seg11ir no pra
logo a seguir mesmo que seja matar e pronto portanto eu sou uma pessoa santa
desde que foi da parte da h11manidade pro levantamento. Que a trairão foi perfeita
portanto " 4
Existe um dizer latente e frágil nesse texto que escapa .mais ao leitor que
ao autor, pois este possui mais ancoragem que aquele.
Se partirmos dos dois textos para seus autores, poderíamos afirmar o que
a respeito de ambos? Dizer que são psicóticos poderia fechar a questão sem resolvê­
la. Se esse tipo de texto pode ser usado como medida classificatória de seu autor,
o que dizer da poética deslizante e gosmenta de Manoel de Barros, que não encontra
porto onde ancorar, estando à deriva num mar de palavras?
É claro que existe um certo "diálogo" entr� os dois textos. Não que eles
falem do mesmo assunto, mas sim que eles tratam assuntos diferentes da mesma
forma: o instrumento utilizado para fabricar o s textos, a palavra, é usado
analogamente pelos dois autores, ou seja, de uma forma absoluta. Eles alinhavam
palavras como quem segue uma receita. Isso se dá porque relativizar é algo que
não foi inscrito nesses dois autores. Tudo possui valor e estrutura de absoluto. A
palavra ainda é a Coisa e por isso ela se basta. As relações podem ser sempre novas
porque serão sempre absolutas.
É possível identificar, nos dois textos, dois processos semelhantes e
contrários do uso da palavra: uma técnica de esvaziamento e outra de esgotamento.
No primeiro processo, a palavra vai sendo esvaziada de seu sentido dito comum
até ficar oca. Simplesmente uma casca que encobre um silêncio. Dessa forma,
vazia a palavra, o autor fica livre para fazer associações as mais inusitadas,
onde o que conta não é o que está escondido dentro da palavra, mas a própria
palavra enquanto objeto, enquanto mercadoria de troca. Por ser absoluta, ela
não precisa de contexto:

• Entrevista com psicótico. Hospital Raul Soares, Bdo Horizonte, nov. 1991.

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... quando viram que eu estava era mo"endo realmente desiludido e mesmo
desgostoso e mesmo derrotado por São Paulo mediante dinheiro ,arteira profiuional
trabalhista e mesmo polída e macumba feitiços próprios ,om famílias próprias.. /

No esgotamento, o procedimento é inverso, ou seja, a palavra é_ um


recipiente onde vão-se acrescentando significados até chegar ao transbordamento.
Ela, a palavra, mantém o significado que possuía antes e passa a . ter o significado
dos outros elementos que lhe são acrescentados, assumindo uma multissignificação,
nunca. esgotando completamente a su� capacidade de significar e assumir
significados, independentemente do contexto:
riocõ"enle, loucomover, peninsolada, sexagerado, avoz, uma,hama, novelho,
.
czrrn
• arco, pnmoamor 116
/.

A convergência dos dois processos está no fato de que o resultado é


semelhante: ao final do esvaziamento a palavra é tão absoluta que qualquer significado
lhe cabe; o mesmo se dando no esgotamento: qualquer significado pode ser tirado
dessa palavra. Nos dois textos, a palavra funciona como um objeto que é usado
pelos autores de forma arbitrária, uma coisa à disposição dos usuários.
Através desses dois exemplos, verifica-se a elasticidade da palavra, mesmo
quando usada por um psicótico ou por um neurótico. A partir do uso, a palavra gera
um texto: comúnica. Nessa rota, a palavra passa a ser o elemento gerador de significados,
signos e significâncias. Tudo dependendo da maior ou menor condição de ancoragem
daquele que a utiliza.

Referência Bibliográfica

CAMPOS, Augusto de, CAMPOS, Haroldo de. Panaroma do Finnegans Wake. São Paulo:
Perspectiva, 1986.

6
JOYCE, citado p or CAMPOS, CAMPOS. Panaroma do Finntgans Wake.

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Branca Eliane Bittencourt
Myriam Dorotéa Saliba Silva

As palavras morrem na minha boca,


eu perdi o câmbio de letra que eu tinha
na cuca. Tem hora que a morte cai no
prato, aí a pessoa tem que decifrar a
comida dele.
(Paciente psicótico)

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das ob servações acerca d e um material que reúne produções de psicóticos,


poetas e crianças, podemos afirmar que a experiência da imagem é anterior à
da palavra, estando, pois, o ícone muito mais próximo da coisa do que a palavra
que a representa. E é essa busca pela aderência das coisas nas palavras, ou, até
mesmo, n a s p róprias i magens que fará da linguagem uma expressão
particularizada e singular desses sujeitos que operam uma subversão do código
convencional, negando o plano da representação simbólica, em função da
apresentação das coisas pelas palavras.
O que é que confere ao traço do desenho ou da palavra esse efeito mágico
de ser coisa não sendo? O mundo humano é povoado de palavras e o nascimento
de qualquer indivíduo já determina que este esteja fatalmente capturado pela ordem
do simbólico.
Para o psicótico, que não possui a inscrição do Nome-do-Pai - significante
que cumpre o papel de romper a dualidade especular do bebê com a mãe,
inscrevendo nele a falta -, não resta escolha alguma. Capturado pelo campo da
palavra, mas desancorado do registro fálico (ordenador do simbólico e
normatizador do desejo), o psicótico opera com o simbólico de maneira singular.
Sua falta está fundada no gozo e cumpre o projeto impossível de dizer o indizível,
de nomear o inominável.
Se o psicótico está, porém, emaranhado nessa rede simbólica pela fatalidade
de sua trajetória, o mesmo não se dá com a criança e o poeta.
O poeta, além de buscar deliberadamente um efeito imagético e sonoro
para seus textos, desdobra-se no esforço pela subversão da linguagem, explorando
ao máximo a materialidade da· palavra. O esforço do poeta dá-se em direção à
captura de algo que precede a ordenação simbólica do Real, que está além da
palavra, nos domínios do não dito.
Nas crianças, o processo é, naturalmente, menos consciente e menos
"construído". Para elas, até os 6 ou 7 anos de idade, existe ainda uma possibilidade
de acesso a essa experiência do indizível, da palavra-coisa. Freud já afirmava em
Totem e tabu, de 1913, a existência de uma certa analogia entre o inconsciente, a
vida mental das crianças e a dos selvagens no que tange ao tratamento da palavra
como coisa. E é também Freud quem vai dizer que o pensar em figuras está mais

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próximo dos processos inconscientes do que o pensar em palavras. Não é por
acaso, portanto, que as produções gráficas infantis (de crianças na fase pré-escolar)
assemelham-se muito às psicóticas.
O momento da alfabetização, da aquisição "formal" do simbólico,
coincide; na criança, como o desaparecimento de sua produção icônica. Parece
que a escola vem, de algum modo, reforçar a castração, uma vez que o processo de
aquisição do código lingüístico atribui definitivamente à palavra o papel de
representar a coisa, fazendo com que se perca o efeito mágico de apresentá-la,
fazendo, da palavra, a coisa mesma.
A escolarização torna-se, portanto, o momento máximo da ordem paterna,
a ordenação simbólica definitiva que afastará a criança do registro do gozo, mas a
fará ganhar em desejo, funcionando como um divisor de águas em relação à
utilização da linguagem: da icônica para a simbólica.
Assim, a apropriação icônica das palavras e a própria representação dos
desenhos e imagens constituem-se num eixo comum para os poetas, os loucos e as
crianças, cada qual dentro de sua própria singularidade em abordar o gozo. Esse
espaço do gozo, anterior à castração e à ordenação do simbólico pelo Nome-do­
Pai, em que tem primazia aquilo que não pode ser dito ou nomeado, é impossível
de ser representado confortavelmente na ordem das palavras.
Talvez seja a reminiscência (mais ou menos distante) dessa experiência do
gozo que funda a utilização singular da palavra por esses sujeitos, aproximando as
palavras das coisas, dos objetos e das sensações que pertencem a uma outra
dimensão: a da expressão do indizível, do que restou em nosso inconsciente, que
fala muito mais através de imagens do que de palavras.
Poeta, s. m. e f.
Indivíduo que enxerga semente germinar
e engole céu.
Espécie de vazadouro para contradições.
Sabiá com trevas
Sujeito inviável: aberto aos desentendimentos
como um rosto.
(Manoel de Barros)

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Referência bibliográfica

FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos. Trad. Orizon Carneiro Muniz. Rio de
Janeiro: Imago, 1974. P. 13-1 94: Totem e tabu. (Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 13).

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QUASI MODO
Cinara de. Araújo Soares
�,
JII- Cynthia Barra

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)t

� .

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conceito complexo: poética. Um outro con­
ceito complexo: psicose. Redes conceituais
de mil fios, mil pontos, entremeados. Um corte, um recorte, um atalho: a palavra.
Um desvio, portanto.
Querer articular poética e psicose foi um dos nossos primeiros desvios..
Lugar a partir de onde gostaríamos de falar. Qual seria a ponta da meada? A
materialidade da palavra. Nada do além, ou do aquém, da palavra. Mas a própria
palavra, a pele da palavra: ela. Quisemos tocar a pele da palavra. E tentar desdobrar.
Como?
Trabalho de pesquisa, trabalho teórico e estético. Trabalho ético. Uma
oficina de letras e palavras em instituição psiquiátrica. Uma porta de entrada?
Uma saída? Nada disso. Uma apresentação possível, uma aproximação desejável
à experiência viva com palavras. E sujeitos. Um percurso, portanto.
Em maio de 1 995 iniciamos, no Hospital Dia do Instituto Raul Soares,
com um grupo de cerca de dez pessoas, a oficina. Em junho do mesmo ano
tivemos a aprovação, pelo CNPq, da pesquisa "Uma investigação acerca da
produção de textos com psicóticos: perseguindo a trilha da escritura". Foi-nos
permitido, assim, encontrar um ponto comum, um limite entre o poético, o
escrito e o sujeito. O ofício de escrever mostrou, com o tempo, algo que já
parecia estar lá: a escrita de cada um.1
Relatos. Retratos. Ruídos.
Uma vez, Edgar Allan Poe, o poema O Corvo e a surpresa vinda do
aparelho de som do Moacir: a gravação de uma voz quase inaudível, gutural e
aterradora servindo de trilha sonora para as produções daquele dia:
...Vivos íuvos de corvos
não têm mais estridentes sons
mas o solitário corvo que em
sua cova voa às meias-noites
sim ele ainda vocifera por aí
nínguém jamais viu esse corvo ...
(MAF)

'
• 1
Todas as citações foram retiradas de textos de pacientes da Oficina de Lctns do
Instituto Raul Soares.

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Outra vez, o teatro do absurdo. E o texto da Margareth:
P�rdidos na ilha
la um barco no mar e se afundou
e ficaram dois naufracos perdidos
numa ilha .
O naufraco - Bom dia. Naufraca , somos
dois perdidos numa ilha de cocos e
marezias
A naufraca - De coco eu gosto, mas
esqueci no barco meu fio dental .
O naufraco - O que é mais importante,
não consigo entender, se é o coco,
o fio dental, ou nossa condição de
perdidos numa ilha?
A naufraca - Se passar um avião, eu
peço uma carona, com acenos de
perdida e vou dizer adeus .
O naufraco - Não consigo entender
a senhorita, se é tão confusa e
vai dizer adeus a si própria, e
os cocos, como vão ficar?
A naufraca - Os cocos ficarão sempre
iguais e duros, como rochas que
não se transformam.

Ainda outra vez, o Márcio :


MARACUTAIA
BATEU NA MINHA CARA
OU MELHOR BATER.AO NA MINHA CARA
OBA É CHANSE PRA EU
MAIS TÓ CORRENDO ATÉ NA
ESCRITA
A ESCRITA FOI UM ACIDENTE OU
UM ESTUDO
TICHAU ACABOU O GIRAMUNDO

E tantas outras vezes, o trabalho na oficina se repetindo, encontros semanais,


acúmulo de textos, exercício de escrita. Irrupções. Diferente de outras oficinas, um
trabalho que provavelmente não será vendido, não renderá em ,ash, mas tem sido sorvido
no momento das leituras. E tantas outras vezes há o trabalho ali, há o que a gente chama
de tocar a pele da palavra, tocar a pele dela. E isso nos leva à elaboração do que agora nos
parece mais fecundo: ela, não mais a palavra e sim a letra. Ou, talvez, ela como esse

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indizível que, habitando a língua, trapaceia o código, desafia a impostura, cria em nós o
espaço claro e escuro daquilo que estamos sempre a escrever.

QUASI MODO
... O amor como em apostásias
apráxias são áporas em
indúcias distopia incognoscível
indígeste incômodo iniódimo
em torpor e quasí modo icós
id dispéptico á inglúvias
em anomalia infensa
ao melôme le misantropo.
Oh! loco adunabilidade
inópia exórdia exígua exícia
exícidio ou como exornar
e exornar em ateses em
em ero e exagitada e a execrar
o metirendo em solércias
e argúcias do metopápago
meduseu meante e meandro
a serpear a voce...
� ... Um zurzio zini como
sibilar zim brem enoute delustre
e delir e deludir ludibriar

y
� pois plésio é o decrépito
que flui o tempo ludro
e a aluitre nóxia que nuta
novamente como o amor
corno amor... (MAF)

y
y
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Il-EscritIB
W'
w
inter/in/venções
direito de ser traduzido, copiado, reproduzido,
deformado e apropriado em todas as línguas
e modos de expressão
a poesia deve ser feita por todos
como dizia Polonius : "desvario, sim, mas tem
seu método"
(Uilcon Pereira)

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"Escrita automática" de um sujeito em delírio.
À esquerda: texto de paciente psicótico.
À direita: trecho do livro de Ana Hatherly, O Escritor. 1

1
HATHERLY, Ana. O escritor. Lisboa: Moraes Editores, 1975.

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''Escrita icônica".
Trechos de escritos de criança com diagnóstico de psicose.

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"Grafita".
Texto de paciente com diagnóstico de psicose.

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"ESCRITA AUTOMÁTICA"
DE UM SUJEITO EM DELÍRIO

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I DADE c� I T I C A - Lb ANos · - L I GADO - QUE s �A� A ~CAetçA - D I V t sÃo ôVE "- "- AS -
, •
D I V I S ÃO DE CO NVE "- S A • D Í V I SÃO DE NUMERO S - E S �l JENT.M A CABEÇA - : E S TOURA DA
B� I ADA - M�S I CA - DANÇA - D I VE�SÃO - FAZE NDA - ZONA CO�P 6�EA - ZONA GE N I TAL -
MCDQ DE ').MA� O O U T !W - SATANÁS - O CONCE I T O DO e!W. E DO t11\U - O CONCE I T O ro
CÜJO E no E R � ADO ,: :: s T U r<Al'C. P A � A S E R H L I Z - HA!!IALHM NA(!l' 1 L O •�l! E G O S T ,\l,t O S
r_ AriALHA"- E M C I MA DAQU I L O ? ! T �AeALHO MA _ 1UAL - Tl'C.AeAL HO COMO T C � P I A - ..
/\' TÊ : � AP I /\ É_ l\i 's . J uc f/\Z(MOS - O:l"I U 4 Ti\ÇÃO PMtA J O VC N S P E "-O I DOS CH s í n; f S
i\ TE l'C.AP I A V OCA C I CíJflL
, - A TC �t. P I A O R I E 'H ,\ Ç I 0�.1\L - RE L I G l t.C - Ci\ S 1 . MC iJTO -

,,e:r:o PO ! 1/\U - tJ.EOO no D E S C O r�1-1CC l l"IQ - tA CPO 'UE ? . ! :.IEDO S I MPLES 1AC taE P 01'.-
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S E J H U l,\,\ílO - i: h r �c: rH,'. � A SOL I D?:;J - LE � SEtl �=
U T R O - C � f ft C �T�R 5 E�� 5
P E l-: T 1 !.' . •.1{ c;.;u
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e : ·� :' � I !'\ - -I O R A R I O rM'.. . T RJ\ �/>.LH.'\� -l-1C �AI U O f'

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EU PRECISO DESTAS
PALAVRAS. ESCRITA

MIOLOS / CALVO / COURO / CRÂNIO / CABEÇA /


REMELA / AZUES /PRETOS / AVISTA / OLHOS /
PESTANAS /ESPIRA / A RESPIRAÇÃO / NARIZ /
ROSTO / TESTA / SOMBRANCELHAS / NUCA /
LARINGE / PESCOÇO / TRONCO f OMBROS /
VEIA / DA FACE / ARCA / ANGINA / .DO PEITO /
COSTELAS / CIRCULAÇÃO / PULMÃO / ABDOME /
FfGADO / RINS/ VERMES / LUBRIGAS /
INTESTINO / UMBIGO / BIXIGA / URINARIO /
MEMBRO / SEXUAIS / POTENCIA / BACIA /
ESPERMO / COTOVELOS / CANHOTO- MUSCULA
TURA / ANTES / BRAÇOS / PULSO / PALMAS
DA MAO / POLEGARES / MIDIM / DEDOS /
CORRE / CAMINHAR / BATATA / CANELA
DAS / PERNAS / ARTICULAÇÃO / ROTAS /.
TORNOZELOS/ JOELHO / COXA /
METATACIANOS / OSSOS / FIBRA / UNHAS /
PES / AGUA / NECESSIDADE DE BEBER /
JOANETE / CALCANHARES

Arthur Bispo do Rosário

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ill - Objectotens

OBJECTOTEM
TETO
TETO
TOTEM
TACTO
ACTO
ACTO
TOTEM
TACTO
ACTO
ACTO
TOTEM
TACTO
ACTO
ACTO
TOTEM

(Ernesto M. de Melo e Castro)

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parentando 60 anos, negra, delirante, não sabemos se é esse o seu nome.
O que sabemos é de seus trabalhos e ímpetos de agressividade e gritaria,
a fala desconexa, os gemidos. Com certeza, muitos seres invisíveis a nós, "pobres normais",
já levaram suas porretadas.
Sua produção é, basicamente, em torno de palavras, frases, imagens e formas
que se relacionam. O que me parece mais interessante é, sobretudo, seu comportamento:
uma espécie de performance que culmina numa instalação de bordados. Penso assim
porque quase sempre encontro seus objetos, como placas, avisos ou sinalizações em
pontos estratégicos, mas inusitados. Uma vez, não tendo como amarrá-los, usou varetas
e gravetos para escorá-los numa parede. Eram folhas de livros escritas com carvão,
batom e giz de cera. No mesmo dia, diversas árvores dos outros lados do quarteirão
tiveram papé�s similares espetados em seus galhos - e não era Natal.
Suponho que o importante para ela seria estar sempre buscando comunicar-se,
sinalizando, delimitando espaços, respaldada por sua própria história de dores e de
"pureti" (porrete?). Seus espaços recortados e suas intalações protetoras e protegidas
pareciam ser seu único objetivo de vida, pelo menos naquele período. Mas em poucos
momentos de conversa, apesar de bastante arredia, D. Teresa declarava acreditar produzir
coisas belas, já que "as pessoa sempre panha tudo".
Há tempos não tenho notícias suas. Ela sumiu, e os bairros Gutierrez, Barroca
e Prado voltaram a ser apenas o que sempre foram.

t T,xto prod,,zjdo por Rmoto Athoyd,, º"'º' do ,11,oio fotográfiro sobe, o obrn d, T,ns,.

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As p alavras
querem me ser
(Manoel de Barros)

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Fmldioleto MancrlêsArchaico

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" e s po s tas p are L u c i a Cas t e l lo Br anco
e L u í s Hen r i q u e �a rbo s a ,

j,� . .e. � íl�


1 . P' e rgun t a - Ao comen t a r s o b re a s u a " Es t é t i c a d a Ordina­
r i edade " , voca a f i rmou q u e o que p r e t e n d e é " redi m i r 81
pÕb res co i 11 &1 do c hão " A pob r e z a s e r i a e n t ão um tema que
promo veri a um d i ; l o Qo en tre • s u e po e s i a e os t e x to s b Íb l i •o s .
P' o d e r i amos afi rma). q u e a l ;111 d e s s a apro x i m a i ão ,- h a v e r.i a
t a■b:11 um a p ro x i m i dade en t r e 1 u a poes i a e o s te x to s ■f■ ti•o s ,
um a v e z que a■b o s que r e■ nos dar • e x p e ri�n • i • d e o b j e tos
i n a ti n g{be i ■ p e �a l inguage■ U e u s e as coi sas 7

{ ftespo s t a - P'enso que trago e111 ■i111 um a pob ✓z a an c a s l .r a l que


•a eleve para as • o i s es ras t e i ras , U i s s e u•• vez : SÓ as
•oi�es ras tçiras 111e e e l e s la11 , P' ro c e d e que a pob r e z a �
b Íb l i • • • p rocede que o o rd i n á rio é s ag r��o - e a d e s g randaza
,· d e Ueus , Coa o e an to do Sol e das Aves o nosso F r an• is •o
f e r t i l i z a v a • s u a f�. Ago r a , �es co111p arando : q u e ro f e r ti l i zar
os 111aus • •" los •o• as po b r es c o i s as do c háo , Se"do q ue não
sou eu que c ri s t i a" i zo as · o e d i n ariedad es , mas � ■ i n h a l i-(uaoe■ •

2 , P' a rgun t ■ - Há •• s ua po e s i a a en •ena;ão- d a b u s c a d e u111■


ling u■oe• adêmi• ■ • que e s t e j a m a i s p r;xi ■ e �s e a i s a■ , { a trevê■
d � s t ■ b u s c ■ que o u tros �le111entos suroiião , �orno a in f�n • i s , •
sin taxe t o r t a do povo , a expe riên c i a das co i s a s . P' o d e r t a111os
dizer que a sua po e s i a surge e■ fun1ão d e s s a i n t e r■s s d pel■
o rige• d a l Ínoua 7

z. ftespo s t a -. u.. c e r to fas tio d a e s e r i \ a 111es■al p e n so que 111e


e■purra p ar a o o ri undo , Se■pra achei da i mpo r t ân c i a a nat;n • i •
d a s p a l a v r a s , P' e n s o q u e s ó co111 a d e a arru■a;ão s in \ ;ti• • ••
consegue a t ingir o c r i an ; e .. e n lo d■ i d i o111 a . · Eu q u e r i a c h a g a r
ao bo rrão d a e ad a p a l av r a , ao a p r i m e i ro s v ag i do s d a l a ■ . thagar
aos ■oaxci s , ao• p r iM e i ro s s u s a u r ro s d a fo r• • . Use i por v a z e s ,
n e s s e � " t e n to , a s i n t a x e to r l e d a s c ri an 1 as , d o s b ; b e d o s ■
�o • louco s . I s so pod e r i a que111 s ab e ■e l e v a r · • u• t e � to
adg•ico . Ta■bé■ o e n c: o s laMen to M a u " ª " e t u r e z a as d u a •
co i s a s . Ah , t e r a vo z de u .. l .:i g a r to e s cure c i do

.....

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abra u111a es colha p elo a■or
un i l a te r a l 7 H; o a•o r pela n a t u r e z a , po r Deus , p e l a 111a t�ri a ,
■ a s n u n c a u■ a•or s e x u al 7

3 �po s ta - Heu ' e spi ri to é 111ui to c a rnal . Meu irorpo ro1a n as


P al avras . ! isso e tão l i t e rá r i o ! �ão sei quase separar o
p o e t a do ho•e•. O c ri ador da c r i a tura. Os do i s faze• b a g u n ; a
e• • i n h a v i d a . A t : •0111e to erros por i s s o . Minha concup i s aêniria
' quan to hu111ana e re t6r i c a , ao mes■o te■po .

-l l" e rgun t e - l"o:f o u t ro l a do , pirrceb e - s e , em s u a o b r a-, u■a d i c ; ão


e v i de n t em e n t e a r6 l i c a I são ninhos f e b r i s de epi fania s , �ese rtos
i n tum e s c e n t e s , bic hos que tre111em n a popa ,go s to de i r por
r e e n t r ân c i a s , b a i xando em racbad uras de pare d e s , vag{n ulas
que passe• sobre as pobres coi sas do chão , e t c . Co■o vo • �
e n tenda e s s e ero tismo 7 Seria uma espacie d e pan-ero tis1110 ,
d e ero t i s■o das co i s a s , da n a tur e z a , do deseje , do l i xo , do
c h ão 7 Ou s e r i a o aro t is•o que reside na ba se da prÓp ria
p a l av ra , d a l i ng uage• mas•• 7

4 "aspo s t e -(,.. p alavra que vai •e de svelando . Eu fico só • veire.


De repen t e e s tou mais p e r to de mi■ do que esta cadei ra . e • qus
' ,..
• e s e n to , A p a l a v ra ■e leva para a_s p a 1 xoes_ a os hos_p i \ a i' a .
Me � e fo rm a e ■e re f a z . A v i d a da gen te se torna o texto . \ E s t á
chei rando a Heid'gge r . J Verif ico no ■ e i a de tudo �ue e l a , •
palavra, : • a i s e r : t i w a �o que e u � Tenho a t � um Joema que
co•e;a d e s t e j�i to 1

U•a palavra abriu o roupãp pr a ■ h -


Vi tudo d e l a :
1\ escova a l t a , fo fa e de pelos e s t uro■
A doce p e v i d e .
�t e e t s
-"r., .. ,.
A p a l a v r a m e vai reve l endo . Un d i a me ltllll consp1cuo. Ho
o u t ro d i a v e 1111 e reo .

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i , P' e rgun ta - Mui to s , ao r a l a rem da i n f l u ê n c i a d e s u a po e s i a ,
f a z e• u111a co111paração e n t r e vo e; e í e rn ando P' e s s o a . N �o s e p o d e
l e r o Guardados d e Ãau as s e • p e n s a r em Alb e r to C a J • r a , o po e t a
que ra111e te todo conhec i • e n to ao s s e n t i do s . Mas , s e podemos
ap ro'dmar s u a o b ra d a d e Calrro , n eo d e ve111os a f e s tc:C·l a dos
o u t ro s h e t e rÔn imus ? Es t e s p a r e c e • s e i n d a o a r c o n s lan teme� te
sobre o s u j e i t o l f rico - 111es•o QUe s e j a com a r i n a l i dade de
co n s t a t a r s u a vacuidade - e n qu an to s u a po e s i a p a r e c e e x c l u í - l o ,
tratá-lo co1110 u• a t e rc e i r a p e s so a .

5 , ftespo s t e - Se111p re a c • e i Q U e o m e l ho r é s e r o O u t ro . Dessa


fo r111a tenho 111 a i s co raoe• p a r a e x e r w e r 111eu n a rc i s i smo , O melhor
d e ■i• sou E l e s - podez i a d i z e r f e rna ndo � e s s o e . D so� que
raio co111 as le tras vem só d e p e r c e p çÕes sens o r i a i s - e nunca -
de •eus es t u d amen to s . O q u e r e s t a de c e reb r a � em meu s e s c r i to s
é apen as um� v i o i l ân c i a p r a n ão c a i r n a ten ta1 ão d e m e achar
•enos tolo que o s o u t ro s ,

6 . �erguft t a - O que s a l t a aos o l ho s , n a l e i t u r a dos s e us poema,


não_ é p ro p r i am e n t e o mundo do .!!:! , do s u j e i to co111 as sues
q u e s t tÕes e x i s t e n c i a i s , p e s s o a i s , s ub j e t i v es , m a s o mundo do
�il• do ob j t to , ou d a co i s a p ropriam e n t e d i t e . N e s s e sen t i do
pode-se d i z e r que a s u e p�esia s e d i n t an c i a d e u111a c e r t a
tradi ção l fri c a , ao d e s l o c a r o fo co d o ,!Uje i to p a ra o
gbje to7 P' o r o u t ro l ado não é do t:on c r e l i s 1110 que se treta • • •
En tão , que t i po de r e l a 1 ão o b j e tal ( o u c o i s al ) é essa que
s e p e rcebe em s u a p�e s i a 7

6 , ftespo s t a - P'o e s i a é u■ luoer aon d e a g e n t e a i n d a pode


fazer que o absurdo sej a umâ s en s a t e z , S e m p r e s e falou da
human i z aç ão das �c i s a s , e d a co i s i f i c a9 eo d o s homens . Quando
e s c re vo 1 u■ 111 u ro aft c i ão , human i z e i o 111 u ro . Ali á s , que111
hu111an i z o u o 111 u ro foi a p a l avra aR c i �o . fs s e o b j e ta é meu s u j e i ta
po i s . r ala d e den tro d e l e . Deslo q u e i o foco . Uesloquei o
p a l an q u e . O a r t i s t a � u111 e r ro d a an t u r e z e , f�tá s u j e i to
a essas 111 e t a111o rro s e s . Aa s i 11 , não é a b s u rdo o b s e r v a r e i111po r t ân1,,'A
de uma co i s a p e l as di11en sÕes q u e e l e n7Ío te111. Não sei s e
conseoui m e d e s e x p l i c a r co• • l a re z a .

......
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71 P' 11 rgun ta - S 11 gundo L e y l a l'errone Moysés , " a runçiio
me teli ngu Í s t i c 11 acen tuo u- s e n as ob ras po é t i c as , a l inguagem
P D � t i c a p a s s o u a' s e r o p r6p rio tema d a poesia. Como resu l tado
d 11 s s a re f l e xão o s u j e i to po:t i co é' o p rime i ro e desmasc11rar-se­
ausên c i 11 " • Vo c e c o n c o r d a com e s s a 11 � i rmaçáo 7
co�o f a l t a II

D apagamenlo do s u j e i to em sua o b r a s e d ; em fun ç ao da me ta­


po e • i a p r a t i c a d a po r vo c e 7

7 . Respo s t a - Co nco rdo . Mas o meu apagamen to me exibe 11ntes


- q u e me ap a g a . Ma 11 x i b o a t ravés de f i c a r sob as c i n z a s . Sou
sempre uma po s e fal s a t i rude no e s c u ro . Me exibo de cos tas .
P're tendo que o e s c u ro m e i l ur" i n e . I s so não é um ep ngam ento .
t. um re�u i n t 11 . fu fãco o n ade apare c e r . Uma frese an ti" t �1 i c a
i g u a l e s s e 1 m e afag a , a l i v i a meus con f l i to s Ai que tenta
i•pudênci a ! Um n arc i s i smo do ave s so .

B . P' e rgun t a - Vaca a f i rm a que poe s i a e a loucura das p al a vras ,


que , p a r e s e f a z e r poes i a , é preciso desprender a lingua
mo l e s a r o i d i o m a . Na sua o p i n i ão es t a r i am o s ps i a Ó t icos
p rÔ x i m�s1 ao s p o e t a s , uma v e z que os l o u co s , ao s e rem asso l ados
p a l a l i nguágem, t e rm i n am por pr ati c a r ( ainda que invo l u n t a r i a­
•ente � um desvio n o ve rbo semelhan�� ao que os po e t as
( •o n s c i e n te o u i n ao n s c i e n te s l o p e r em 7

B . Respo s t a - Sim , po e s i a p r a m�m a a loucura das . palavras ,


� o dell rio verbal , a rasson;n , i a d a s le tras e o ilogismo .
/•
S empre achei que a t r ás d a vo z dos p o e tas mo ram c r i an,as ,
b;b e do s , p a i c�tico s . i a m e l e s a l i n g uagem s e r i a � esmal .
l'ra v e r o m un d o com po e s i a bo to 11111u o l ho to r to � não -
.,. , Eu
en tendo o p e r a r s em e co n s c ienc i a e s t e t i c e . }l'4li quero
d e s e n t e n d e r-me com c l a r e z a . P' re f i ro e s c re v e r o d e s anormà l .

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9. P' e raun te - Sua poes i a , ap e s a r de e s tar fundada nas • po'b res
co i s a s do chao " , nps res to s , �os d e j e t o s , nos i n u tens{l i o s ,
e n um a c e r t a fami l i a ri dade com o mundo dos louco s , b ;b ados ,
pessoas esqu i s i t a s , cons lroe um e i m a g em ab s o l u t amen te �t radiante,
solar, 111 a t u t i n a , imersa � a a l eyr i a e a t é -num o o zo d a a l e o ri a • • .
C:0111 p vo ce exp l i c a isso 7 · E s s_a un i v e rso , e s e u ver, é um un i verso
!luminado 7 Ue qual que r fo rm a , com sua d i c ç ão aleo re, s ua poes a
s e afas t a também de uma c e r t a 1 (r i c a so turn a , m e l an c o l i c a ,
. � /
ftno a s t i ad a . P'ara vo c e como s e d a asse p ro c esso 7

9. R1,spo s t� - O que c o n s tró i a radi;"n c i a d e um v e rso nem é a


presenqe do sol o u d a l u z , nem e a p resen t a de uma a l m a alegre , ­
• rad i•n c i a de uma ve rso vem d a s radiân c i as l e t r a i s . P'ode-se
dar aleo r i a ao e s g o to . Esc revo po r oão ser lo quen te. E po rque
n as c i cóm um ins t i n to li n o u{s tico apurado . Tenho m a n c h as na
alma da so f rim e n to s e de so l . Como todo mundo . Mas nao sãõ
as idéi as nem o s s e n timen to s que fazem um a obra d e a r t e . I s so
; s ab i do . Acho que o s pinoos d� sol e/; i n h a po e s i a vem do
o u ri que a i n d a b ri n c a d a - •i•. S e i de todas as espu rcfc i a s do
•undo , m as do que y o s to •esmo : d e c i rc o .

10, P' e rgun t a - " Descobri que todos o s c ami nhos l e vam à
.
ionoranc
,. i a . " � d i z Manoel de B a r ros�em Au to - r e t rato f a l ado.
Não st a t r a v é s des s e verso · •es a t ravés de sua o b r • • veri fi ca-se
o que pode r i a s e r pen s ado como uma"po , t i c a d a d e s a p re n d i z aoem " .
íale um p o u c o sobre e s s a s u a traj e t� ri�, J é que ao· p ropor a
des�p rend i z aoem vocf també� p ropõe um o u t ro t i p o de ap rendiz aoem
( e o r ande p a r te de s u a m e t a l i ng u i s t i c a e s t� a! p a ra mo s t rar
qua isso d a fato o c o r re . )

À� , R e apo s t a - Oco rre que falo em d e s ap rend e r pra c h e o a r ao deorau


d a infan c i a . Lé onde os sen t i do s se m i s turam e os r e i n o s da
n a t ure z a s�o p ro m í s c uo s . L á onde s e chegê • • ao des reg ra•en to
dos. s e n t i d o s - como p e d i a Nimb aud . Ag� r a e u i n ven t e i um idio l e to
p a r a expr e s s a r melho r e s s fts pro m i s c u i i a d e s . V o u e a c r e v a r am
i d io l e to m a�oel�s a r c � a i co ( l d i o l e to � o idi oma que o s idio tas
u a 11111 para f a l a r co• a s p a redes e as moscas . ) O p rt� 11110 l i v ro que
e s to u a e ■ c rever deve s a i r coa o •eu lo t e l d e s ab e r . Uas cul t uras
e ap ren d i •en lo� sedi•en tedo s e• m i m , deve d e s ab ro c h a r o d e s ab a r
lo t a l . f.h u m aJbh> absurdo •
. ..

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1 1 , r e rgun t a - ro r f i m , s a t i s íaq e u m �o uquinho a n o s a a
c u rios- i d a d e r a l c a n q a d a a iyn o rí!'c a , como s e d a ri o d i .;'1 000
eom Guimarães Ro s a , no p ro x i mo l i v ro 7

1 1 . Hespo s t a - A oo ra p r ec i so d e d a r um tempo . Heli toda a obra


do H·o s a e e l a me an u l o u . rropunh a-� a d i z e r r r ases m i n • a s sobre
o r an tonal e f r a s e s � m a� e i r a do Ho s e s o b r e o s e r t;o m i n e i ro .
Has a l ing uaoem do Ho s a tomou con ta. tscrevi 6 e ap Í tulos e vi
q u e era ludo Ro s a . fui anul ado i n t e i r amen te . U homem tem um
f e i ti;o • • • �m e s tado ro s a l e u n ;o p o d i a &on tinu ar . Has o u e i os
6 c apí tulo s • Casp i té ! �ssim não d :. Vai s e r g;n io pra l á .
!a e o tempo nê'o me c e s s a r oue r i a_ e i n d a e s c re v e r outro li vro de
poemas n aq u e l e i d io l e t o rr:;o e l ê s a r c • aieo de que falei a t rás .
5 e ri am t r � s poemas . T r ês s u j e i to s . Eu sou "Eles três . Um é o
C a t rt�Ve { ho , uma � e s s o a - tras t e . t l e me d i s s e : O abandono m e
p ro t e q e . · ou t ro á ,aras t e u , um an d a r i l ho e s c re vedo r . Ele m e d i s s e :
Não p r e c i s o do fim p a r a c h e g a r . f o ter•e i ro é um vaq ue i ro
me t a f Ís i co . fsse ainda n eo me d i s s e n a d a , s e n �o que: 0 sapo
não tem v a l i m e n to an i m a l nen hum : ; apenas uma s emel•an ; a .
r iquei b o i ando .

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Este livro é uma edição cultural,
fora do mercado e sem objetivo de lucro,.
com tiragem de 500 exemplares.
Formato d� 21. x 26 cm, em papel offset de 90g.
Texto principal em Garamond (13/16)
e títulos em Timpani condensado.
linpressã� e acabamento: Mazza Edições.

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