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CULTURA
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Nngu ém tem verdadeiramente autoridade para f.;., da loucura colocando
se fora dela. Sendo "a linguagem a est rutura primeira e última da loucura"
(Michel Foucault), quem fala da loucura utiliza a linguagem e, ao fazê-lo, entra no
. espaço da competência da loucura. E, se só de dentro da loucura se pode falar da loucura,
então essa fala é louca, mas não necessariamente. É que, se nem todos os que usam a
linguagem serão loucos, todos os loucos usam a linguagem e é nela que são considerados
como loucos. Assim també_m é nela, na linguagem, que se manifesta essa enorme zona
de �biguidade entre a loucura e a não loucura, pelo que. será difícil saber se quem fala
da loucura é louco ou não.
Assim se destrói qualquer possível ou impossível sombra de autoridade.
Por isso eu, que toda a minha vida me coloquei transgressivamente dentro da
linguagem, me sinto simultaneamente sem autoridade para falar da loucura (como
presumível não louco) mas também apto e competente para o fazer (como efetivo louco
da linguagem).
"Poesia é loucura da forma./ Eu suspenso das coisas, plasticidade da forma./ A
seriedade da forma não é nada do que parece./ É loucura, excess9, perdição/ a condição
não muda."
Isto escrevi eu quanto tinha 20 anos, e a condiçã<_:> não mudou. Hoje, aos 66...
antes se tornou mais evidente, nas provas provadas da minha linguagem escrita, por
vezes revestida de seriedade, mas onde "o desatino mantém a mesma relação com a razão
que o ofuscamento com o brilho do dia." (Michel Foucault).
No entanto deve ser desde já esclarecido que esse desatino ofuscante da
linguagem é, para mim, a minha razão de não loucura. É que a loucura não se escreve,
a loucura é-se na linguagem, "Nesse delírio, que é ao mesmo tempo do corpo e da
alma, da gramática e da fisiologia, é que começam e terminam todos os ciclos da
loucura." (Michel Foucault)
E, já que a loucura não se escreve, escrever é que é uma loucura, um desatino que
se paga caro! Razão tinham os ignorantes jornalistas que em 1915 taxaram de loucos os
poetas do O,pheu, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros e Angelo
vim = transformação
nunca = pai
só = marginalizado
não = cultura
NADA= VIDA
vim do nada
nunca tive nada
só brincava com o nada
não tive acesso a nada
transformação da vida
pai tive vida
marginalizado brincava com a vida
cultura tive acesso à vida
. . . . . .. . . . .. . . . . . .. . .. . . . . . .. . .. . . . . . . . .. . . . .. . . .. . . .. . . . .. . . .. . . . . . . . . . .. . . . . . . .. . . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . .. .. . . . . . . . .. . .. . . . . . . . . . .
Escritas/ escritos.
...
I I - Escritos 167
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1
FREUD. Luto e melancolia, p. 278.
2
Ibidem, p. 277.
O deprimido não fala de nada, não tem nada do que falar: aglutinado à Coisa
(Ru), ele não tem objetos. Esta C� isa total e não-significável é insignificante:
é um Nada, o seu Nada, a Morte.
3
KRISTEVA. Sol negro; depressão e melancolia, p. 39.
4
Ibidem, p. 53.
O poeta, contudo, sabe - com sua foto 3 por 4 encenando a morte - que
o que ali jaz não é o corpo do pai morto, mas um signo desse corpo que encena,
reitera, exibe a morte, e justamente nesse gesto faz dela outra coisa, coisa literária.
E nisso constrói a beleza, a sua beleza singular. Para o louco, para o melancólico,
não há anteparos: "meus olhos são olhos de um morto". Das narinas do louco
não nascem algodoais.
Ambos, no entanto, no luto ou na melancolia, sabem de certa forma
desse horror, sabem desse sopro intermitente e angustiante que a palavra sempre
é, essa casca frágil a recobrir tenuemente o vazio inaugural a que o sujeito afinal se
reduz: "um sopro: um· cisco no olho: um sopro: e nada."
Referências Bibliográijcas
....
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PAIAVRA EM IDNID DE P
Lucia Castello Branco
1
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 162.
2
LISPECTOR, citada por BORELLI. Clarice Lispector; esboço para um possível
retrato, p. 15.
3
FOUQUE. Editora francesa lançará toda a obra de Clarice. Folha de São Paulo,
p. 6-10.
4 GUILLEN, citado por PORTUGAL.
5
FERREIRA. Peq11e110 dicio11ário brasileiro da lí11g11a port11g11esa.
◄1
6
LLANSOL. Amar 11m ,ão.
7
LLANSOL Da rebe ao rer, p. 12.
8
LLANSOL, citada por BRANCO. Encontro com escritoras portugu esa s, 1993 .
9
Ibidem.
- Palabras.11
10
BARROS. Uma palavra amanhece entre aves, p. 342.
11 BARROS. Desarticulados para viola de cocho p. 174.
,
12
Todas as anotações de textos de Arthur Bispo do Rosário fo� colhidas de sua
obra que esteve exposta no Museu de Arte de Belo Horizonte, cm julho/agosto
de 1990.
16
BARROS. Matéria, p. 194; VI, p. 204.
17 BARROS. Com o poeta Manoel de Barros, p. 312.
20
PEIRCE, CP 2.228.
21 MILLER, citado por QUINET, p. 73.
27
LACAN. O se111i11ário; as psicoses, p. 331.
28
BARROS. Poesia, s.f., p. 215.
29
ROSÁRIO, citado por MORAIS, op. cit., p. 1 1 .
30
LISPECTOR. Agua viva, p. 9.
31
Aproprio-me, aqui, de um jogo de palavras feito por GREEN, no artigo
· "Transcription d'O rigine Inconnue". No11velle Rev11e de P.ry,hana!Jse, n. 16, p.
27-63, em que se assinala a relação anagrarnática entre autre e auteur, em francês.
Valho-me da "imperfeição" do anagrama em português para introduzir aí o
objeto a, que, se não pode ser assim destacado na dimensão da psicose, pode
ser tomado aqui na dimensão da obra para o autor.
r-
BARROS, Manoel de. Gram(itica expositiva do chão; poesia quase toda. 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1992.
BORELLI, Olga. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato. _Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1981.
BRANCO, Lucia Castello. Transcrição de fita gravada com o paciente psicótico L.R., em 1991.
Material inédito da pesquisa intitulada A devoração da imagem: o poético e o psicótico",
aprovada pelo CNPq, 1991.
___. Arth11r Bispo do Rosário; registros dé minha passagem pela Terra. (Anotações colhidas
da obra do artista, exposta no Museu de Arte de Belo Horizonte, jul./ ago. 1990).
___ . Encontro com escritoras portuguesas. Boletim do CESP. Belo Horizonte: UFMG,
v.14, n. 16, p. 103-114. jul./dez. 1993.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno dicionário brasileiro da líng11a port11g11esa.
1 1 .ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [s.d.].
FOUQUE, Antoinette. Editora francesa lançará toda a obra de Clarice. Folha de São Pa11lo, São
Paulo, 28 de mar. 1993. Caderno Mais, p. 6-10. (Entrevista a Betty Milan).
FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos. Trad. Órizon Carneiro Muniz. Rio de
Janeiro: Imago, 1 974. P.13-194: Totem e tabu. (Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 13).
GREEN, André. Transcription d'Origine Inconnue; l'écriture du psychanalyste: critique
du témoignage. Nouvelle revue de psychana(yse; écrire fa psychanalyse, Paris, n. 1 6, P·
27-63, 1977.
KRISTEVA, Julia. Sol 11egro; depressão e melancolia. Trad. Carlota Gomes. Rio de Janeiro:
Rocco, 1989.
LACAN, Jacques. Lituraterra. Che vuoi. Porto Alegre, Cooperativa Cultural Jacques Lacan,
V. 1, O. 1, p. 17-31, 1986.
___. O Se111i11ório; as psicoses. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. V.3.
LECLAIRE, Serge. As palavras do psicótico. lo: KATZ, Chain S. (org.). Psicose; uma leitura
psicanalítica. 2. ed. São Paulo: Escuta, 1991.
1
BARTHES. O prazer do texto, p. 85-86.
�
' BARTHES. O p,az,, d, hxl,, p. 22.
S2
vociferações, murmúrios, balbucios, que acariciam e ferem a orelha do leitor.
Vociferando, vocifeerando, vociferindo, esses pedaços de gozo nos introduzem
no feérico universo joyceano: em seu palco giratório de vozes, ''heróis mitológicos
e eventos da mais remota antigüidade ocupam os mesmos planos espaciais e
temporais que as personagens modernas e os acontecimentos contemporâneos."3
Sabemos, com S tephen-J oyce, que as epifanias constituem-se em
testemunhos de experiências extáticas, de manifestações espirituais vividas pela
personagem, que se relacionam a três princípios estéticos da doutrina de Santo
Tomás de Aquino: Integritas, Consonantia e Claritas. Este último, equacionado a
outro termo tomístico, Q11idditas, diz da face coisal da coisa, e corresponde à
epifania propriamente dita, como se lê em Stephen hero:
Claritas é q11idditas. Após a análise que descobre a segunda qualidade, a
mente faz a única síntese logicamente possível e descobre a terceira qualidade.
Este é o momento que eu chamo de epifania. Primeiro reconhecemos que
o objeto é uma coisa integral, em seguida reconhecemos que é uma estrutura
composta organizada, na verdade uma coisa; finalmente quando a relação
das partes é aprimorada, quando as partes estão ajustadas ao ponto
apropriado, reconhecemos que é aquela coisa que ela é. Sua alma, seu quê
próprio, salta para nós das vestes de sua aparência. A alma do objeto mais
comum, cuja estrutura está tão bem ajustada, parece-nos radiosa. O objeto
realiza sua epifania.4
6
JOYCE. Epifanias destacadas do &trato. ln: &trahmu de ]o_yít, p. 1 1 7.
7
JOYCE, citado por MILLOT, op. cit. p. 145.
8
LACAN. Joyce lc symptôme I, p. 25.
9
BARTHES. O prazer do texto, p. 11.
11
BARTHES. O óbvio e o obt11so, p. 106-107.
12
LACAN. Le sinthome. 20 janvier 1976, p . 67.
1
LLANSOL. Fi11it0'. diário 2, p. 90-91 .
2
LACAN. Deus e o gozo d'1t- Mulher, p. 1 03-1 04.
3
LACAN. Televisão, p. 79.
4
LACAN. Lt séHJinairt - Livre 18: d'un discours qui ne serait pas du semblant.
5
De acordo com a definição do termo em FERREIRA. Ptq,ttno dirionán"o
brasileiro da líng11a por/11g11ua.
6
LACAN. Televisão, p. 66.
7
LLANSOL citada por BRANCO. Enc ontro com escritoras portuguesas, 1993.
A idéia de uma salvação através da língua (que pode ser lida, também, em
seu avesso: como uma perdição através da língua) atravessa toda a obra de Llansol.
E vem constituir um texto de estranha densidade poética que arrebata o leitor no
ponto mesmo em que o faz entrar em estado de perda, numa relação de crise com
a linguagem. 9 E é exatamente nesse ponto de perda, ou de crise da linguagem, que
a escritura de Llansol parece produzir um curioso entrecruzamento entre vida e
obra, diferente do que comumente se vê na Literatura - a obra como um reflexo,
um espelho da vida -, mas antes como o seu oposto: a vida como um texto,
como uma escritura. No sentido inverso a Clarice Lispector - que dizia: ''Não
quero ser autobiográfica. Quero ser bio" -, Maria Gabriela Llansol parece dizer:
''Não quero ser autobiográfica. Quero ser grafia".
Assim, da mesma maneira que seus diários refletem sobre as questões
da escrita e da lei_tura (na medida em que se constituem como uma espécie de
memória da escrita, uma vez que ela ali faz referência constante à escrita de sua
"ficção"), sua "ficção" também o faz. Analogamente, os estranhos personagens
("figuras", como ela os chama) que comparecem à cena de sua "ficção" - San
Juan de la Cruz, Copérnico, Bach, Fernando Pessoa, Camões, Hadewich,
Nietzsche, reunidos numa espécie de comunidade da escritura - também estão
presentes em seus diários:
(...) à noite:
penso em Giordano Bruno, em quem teria sido sua mãe. Onde vives ainda,
Giordano, em que dia? quem foi tua mãe? Se vier acolher-se entre nós, não a
�
8
� LLANSOL. O falcão 110 punho, p. 10-1 1 .
9
BARTHES. O prazer do texto.
Tudo isso parece ser possível, a meu ver, devido ao caráter escriturai do
texto de Llansol. Diferentemente de uma escrita comum, ou mesmo de uma escrita
literária convencional (a que Barthes chamaria escrevência), Llansol produz, em
seu texto, uma escritura. Sabe-se que esse conceito, trabalhado tanto por Barthes
e Derrida quanto por Lacan (sobretudo em seu Seminário XVIII), estabelece sutis
nuanças com relação ao termo esm'ta. Embora não se possa dizer que o conceito
de escritura seja idêntico nesses três autores, há, entre ele_s, analogias que aqui
talvez possamos assinalar para elaborar um pouco mais o conceito, de maneira a
ler, sob essa ótica, o texto de Llansol.
Sabemos que, enquanto para Barthes a escritura se opõe à escrevencia, pois é
intransitiva, não visando à comunicação, como esta última, em Derrida a escritura
será mais enfatizada por seu caráter de diferência, em sua especificidade de traço não
anterior, mas também não posterior (ou exterior) à linguagem. Para Derrida, em sua
proposta de uma reversão dos fundamentos platônicos acerca da exterioridade da
escrita (com relação à memória, por exemplo), a escritura está desde sempre lá, uma vez
que "lá onde há linguagem há necessariamente uma forma de escrita."11
Uma construção análoga do conceito pode ser verificada em todo o
Seminário XVIII de Lacan, que, a dado momento, chega mesmo a indagar: "Será
,,
que se não existisse a escritura existiriam as palavras? 12 E é também Lacan quem
,,
afirmará que "a escritura é o gozo 13, eco que ouviremos, mais tarde, em Barthes:
"A escritura é isto: a ciência dos gozos da linguagem, seu Kamasutra." 14 Ao que
Derrida acrescenta: "A escritura sempre ameaçou, pois traz a questão do corpo
,,
como condição de constituição de seja lá o que for. 15
10
LLANSOL. O fakão no p11nho, p. 1 4.
11
SAFOUAN. O inconuienle e u11 mriba, p.23. A respeito do conceito de
euril11ra, ver BARTHES. O prazer do /ex/o. DERRIDA. A es,ri111ra e a
diferen;a.
12
LACAN. Le siminaire - livre 18: d'un discours qui ne serait pas du semblant.
13
LACAN. Le siminaire - Livre 18: d'un discours qui ne serait pas du semblant.
Leçon 8, 18 mai 1971, p. 1.
14
BARTHES. O prazer do texto, p. 1 1 .
15
DERRIDA, citado por CHNAIDERMAN. O hiato ronvexo, p. 32.
17
LLANSOL Ca,ua amante, p. 88.
18
FREUD. Uma nota sobre o "bloco mágico", p. 285-290.
19
LACAN. LI réminairt • livre 18: d'un discours qui ne serait pas du semblant.
Leçon 7, 12 mai 1971, p. 1-15 ('Llturatcrre'') .
� DERRIDA. Freud e a cena da escritura, p. 193.
21 LLANSOL O falcão no p,mho, p. 8.
22 LACAN. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, p. 223-259.
23
LLANSOL citada por BRANCO. Encontro com escritoras portuguesas, 1993.
24
LLANSOL. O Jakão no p,mho, p. 32.
25
LLANSOL citada por BRANCO, op. cit. , 1993.
26
LLANSOL. Ca11sa an,ante, p. 148.
27 Ibidem, p. 19.
28 Ibidem, p. 79.
29
LACAN. Le sé111inaire - livre 18: d'un discours qui ne serait pas du semblan t.
Leçon, 1, 13 janvier 1971, p. 8.
30 DUCROT. O referente, p. 419.
31 LLANSOL. Ca11sa an,ante, p. 163.
Esse animal-escrita, nem vivo, nem imortal, escreve-se, como nos mostra
Lacan, como uma "acomodação dos restos": Lituraterra. E dos restos, fragmentos,
lixo de sons e de palavras, parece saber bem a escritura de Llansol, que, não se
bastando com a batalha de corpos escritos em A Restante Vida33, ainda vem dizer,
em O Falcão no Punho: Sua mãe, Margarida, sabia como ele tinha sido preso pela
primeira palavra que pronunciara - lixo -, e a que ela tinha acrescentado, nos
tempos em que ainda o ensinara - lixo de escrita.34
Sulco, rasura, litura, littera, essa Lituraterra de Llansol, se é "acomodação
dos restos", certamente não é acomodação daquele que escreve e daquele que lê.
Felizmente, para nós, há o véu da beleza, último anteparo ante o horror do Real,
como diria Lacan, a recobrir a cicatriz dessa , escritura e a repetir, no momento em
que a tememos mais, que "a escrita e o medo são incompatíveis."35
1
POMMIER. A exceção ft111ini11tr. os impasses do gozo, p. 98.
2
FREUD. Escritores criativos e seus devaneios, p. 145-158.
3 LACAN. Le sinthome. ln: AUBERT. P. 49-67.
4
Os fragmentos de Antonin Artaud, Oarice Lispector, Guimarães Rosa, Manuel
de Barros e Murilo Rubião, aqui citados, foram colhidos de depoimentos dos
autores, ou de suas obras.
5 ATTIÉ. Isso: despensa freudiana, p. 26-30.
6
LAURENT. R.t1111e d, la Psy,hana!Jst, p. 3-4.
7
DELEUZE. Critiqm et cli11iq11e.
8
DERRIDA. A farmácia de Platão.
9
Os depoimentos de Hélia Correia e Maria Gabriela Llansol foram extraídos de
entrevista concedida a BRANCO. Encontros com escritoras portuguesas, Boleti111
do CESP, p. 103-114.
Essa estranha relação com a obra de alguma forma parece encontrar uma
de suas razões na maneira insuportável como essa obra é produzida: no limite da
loucura, na asfixia. Nesse sentido, é curioso que a autora aceite (e, parece-me,
deseje até) o corte, mas não permita outro tipo de alteração por parte de seus três
leitores eleitos.
Curiosamente, esse texto produzido no limite da loucura é assinalado
por um ritmo poético. Um ritmo da pulsão? O fato é que Hélia parece saber
desse ritmo e, mais que saber dele, Hélia parece obedecer a esse ritmo:
O que me comanda é a métrica. São decassílabos brancos. O
que às vezes me faz parar é uma esdrúxula com três sílabas ... É uma música,
é uma matriz musical. Não sou eu. a dona, porque, muito menos que o
significado, é uma matriz que me comanda, é o mecanismo a que chamava
se, no passado, de inspiração ...
Físico, esse traço marca, então, através da relação metonímica que mantém
com o corpo da autora, sua introdução no papel, seu gesto de sulcagem nessa
superfície branca. E, em consonância com essa simbiose ilimitada - "tudo está
ligado a tudo" -, a autora produzirá um estranha escrita, em que o sentido é
praticamente evacuado para dar lugar a uma cena textual de onde saltam apenas
os significantes em cadeia, ou, muitas vezes, as palavras em sua dimensão de letra,
de grafia, de traço e de espaçamento. Por isso, é natural que a autora não defina
seu texto como ficção ou como memória (embora ela possua obras que se inscrevem
como ficção, ao lado de outras que se nomeiam diários), mas como uma narrativa:
Quando me perguntam se escrevo ficção, tenho vontade de rir.
Ficção? Personagens que acordam, dormem, comem? Não, não tenho nada a
ver com isso (...) O que escrevo é uma só narrativa, uma só narrativa que vou
partindo, aos pedaços ...
10
LLANSOL. Causa amante, p. 135.
11
LLANSOL. Un1 beijo dado n1ais tarde, p. 7.
SUZ/0/SUZ é um neologismo que o grupo catalão La Fura deis Baus utiliza para
nomear seu espetáculo de "Teatro Total", que é, segundo eles, a pan-utilização de recursos
plásticos, cênicos, musicais e sensoriais com finalidade de representação teatral. Para alguns
críticos, trata-se do ''Teatro da Violência", nome igualmente adequado para descrever o impacto
visual e emocional que acomete quem assiste às representações. Cumpre registrar que a
apresentação do grupo vem precedida (pelo menos em São Paulo o foi) por reportagens que
grifam o caráter insólito do espetáculo através de algumas frases: "Jogam água na platéia",
"Banham-se com sangue", "Comem carne crua", "Não usam palavras". O tema da peça é um
ritual de iniciação. Quem os conhece de Barcelona anuncia: "Estão cada vez mais loucos"...
Então, vamos por partes - atos, já que o assunto é teatro.
,
É o ato de escrever que vai permear a procura de Artaud pela "arte total".
Não uma escrita qualquer, mas uma escrita quase mágica, crucial, dilacerada, onde
já não se distingue o que é letra do que é corpo do que é sofrimento do autor. Para
formular essa arte mestra, inicia pela poesia e a "revolta contra a poesia", passa
. pelo cinema, pelas cartas, pintura, ensaios, críticas, até chegar ao teatro, um teatro
que ele não quer subordinado à literatura: um mundo, segundo ele, novamente
"aberto ao perigo". O que o impele nessa busca vital do indizível é sua relação
muito particular com a linguagem. Um tipo de posição que podemos classificar,
psicanalíticamente, de psicótica.
A psiquiatria do seu tempo já lhe reconhecia a loucura, e esse diagnóstico
vem, ao longo dos anos, sendo ressignificado por tantos quantos se interessem
pelas questões da criação artística e dos limites da liberdade humana.
Aqui, ao valorizar esse diagnóstico estrutural, é o estatuto da obra de arte
no contexto específico da psicose que vamos privilegiar. O reconhecimento
artístico já foi outorgado a Artaud por alguns contemporâneos de peso e pela
posteridade. Sua obra faz laço com leitores intelectualizados que a comentam -
ainda que não "compreendam" ou dêem assentimento às idéias do autor -, faz
laço com artistas e diretores de teatro que reconhecem a ruptura do teatro ocidental
em antes e depois de Artaud - ainda que não encontrem forma de usar Artaud
que permaneça fiel a ele -, mas o absolutamente essencial para que isso aconteça
está, paradoxalmente, no que o torna indigerível para a cultura: a psicose. É
justamente a psicose, habitualmente considerada em termos de déficit, que vai
propiciar - por razões dramáticas, é importante lembrar -. o fundamental da
produção artística de Artaud.
Susan Sontag diz que não há maneira de aplicar Artaud, que nem mesmo
o próprio descobriu o modo, que as suas próprias produções teatrais estiveram
longe de chegar ao nível de suas idéias... Mas ele vem chamuscando, mudando,
inspirando, como nos dá mostras a peça SUZ/O/SUZ. E de onde vem a ins
piração de Artaud? Derrida analisa a motivação delirante em Artaud a partir de
sua relação com o Outro, um outro gozador e perseguidor: ladrão da palavra. Sua
estratégia de evitamento desse roubo, desse "sopro da sua palavra para longe do
corpo" é a obstrução ao que quer que seja inspirado por essa Outra voz (a inspiração
poética, a religião, a metafísica, a estética, etc.). O teatro entra aí como sua suprema
e lancinante "metaforização" da liberdade, a solução reunificadora de sua mente e
---
Scanned wit h Cam Scainner
ratara ratara ratara
atara tatara rana
ARTAUD, Antonin. Escritos. Porto Alegre: L & PM, 1980. (Coleção Rebeldes e Malditos,
v. 5).
DERRIDA, Jacques. O discurso e a escritura. São Paulo: Perspectiva, 1976.
/
KAUFMANN, Vicent. Artaud: Loucuras epistolares. ln: GROSRICHARD, Allan (org.).
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LACAN, Jacques. O seminário: El acto analítico. (Inédito).
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POMMIER, Gerárd. O desenlace de uma análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. Porto Alegre: L & PM, 1986. Abordando Artaud,
p. 15-57.
1
GARCÍA MÁRQUEZ, 1 970, p. 213
2 MORAIS, 1990.
Como nas /ettres de cachet, que Foucault recolhe em Le désordre des familles,
esse pequeno texto do Prontuário Médico da Colônia Juliano Moreira constitui
se como uma espécie de dramaturgia do real. Essas poucas palavras determinaram
uma vida e quiçá, através delas, um destino foi decidido. 6 Mas, diferentemente
daqueles homens obscuros que, ao se confrontarem com o poder, deixaram um
vestígio puramente verbal no breve fulgor de um texto outro, Arthur Bispo do
Rosário fabricou seu próprio texto. A infâmia que espreitava aquele ser extraviado,
aquele pobre visionário atrás das poucas palavras do prontuário médico da Colônia,
transformou-se em fama. Quando se abriram os portões e ele se recusou a sair,
um inventário do mundo outro se desfraldou ante os olhares maravilhados. Foi
então que as pessoas se preocuparam em reconstruir a sua biografia: soube-se que
tinha estado na Armada Brasileira e que era boxeador. "O mito do gênio forte,
violento e louco."7
5
MORAIS, 1990, p. s/ n.
6 FOUCAULT, 1969. p. 99.
7 PEDROSA, 1994, p. 39.
Arthur Bispo do Rosário foi internado pela primeira vez em 1939. Depois,
em 1 944 e 1 948. Em 1964, foi internado definitivamente num quarto-forte ·do
Pavilhão Ulisses Vianna, onde eram encerrados os loucos furiosos. Quando lhe
abriram a porta, na década de 80, não quis sair. Lentamente, foi invadindo outras
celas e o corredor. Junto à Bíblia e ao Novo Testamento, o Guia da Marinha Armada
de Domingos Heitor Soares, e os fragmentos de um mundo recriado.
O catálogo do mundo)-
8
NOYES Y KOLB, 1964, p. 415, 416.
9
NOYES Y KOLB, 1 964, p. 475.
10 BORGES, citado por FERNANDEZ FERRER, p. 81.
1 ° o Batedor de Feijão
2º a Escada
3º o Bujão de Oxigênio
4º a Rede
5º o Bilboquê
6º a Tesoura
7º o Cabide
8º a Chave de porca
e põe na porta um
A arte do bordador)-
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Bispo não chamava de arte os objetos que fabricava. Como o nome da
exposição de 1990 denota, eram "registros". A tarefa que lhe foi designada era maior:
"Está na hora de você reconstruir o mundo" 12 disse a Voz. E ele dedicou-se com
afinco à catalogação do seu habitat, seu espaço particular, assim como também do
vasto mundo, muito além da Colônia e dos confins do Brasil. Nessa enciclopédia
singular, ele enumerou, sobre as faixas das misses, os nomes dos países, suas capitais,
suas cidades, os portos, a população, os produtos, as bandeiras. Nas "umas-feminino"
guardava pedaços de papel com os nomes dos 'visitantes ordenados alfabeticamente.
Bordou nos estandartes o catálogo dos barcos, das cidades, das ruas das cidades, e o
nome dos comandantes, dos atendentes, dos psiquiatras, dos enfermos, dos
enfermeiros. Na singela anatomia do Clóvis (um personagem e não uma pessoa), ao
enumerar as partes do corpo hwnano, os significantes se deslocam e as ações se
deslizam dolorosamente no meio da lista nominativa.
LÁBIOS LÍNGUA- VOZ• FALAR CANT / FRONTAL / SUPERCILIO /
A arte bruta"}-
12
PEDROSA, 1994, p. 39.
13
BRANCO. Tranuri;ão dos textos de Arth11r Bispo do Rosário.
14
PEDROSA, 1994, p. 4.
15 FOUCAULT, 1987, p. 10.
2
,..............
19
PLAZA, 1993, p. 43.
20 PEDROSA, 1994, p. 41.
Deus não sabia nada sobre os homens vivos ( ...) Ele precisava apenas
manter comunicação com cadáveres23
Schreber
21 MORAIS, 1990.
22 KRISTEVA, 1985, 124.
23 FREUD, 1952, p. 32.
24
KRISTEVA, 1985 , p. 271.
25 KRJSTEVA, 1985, p. 270.
Ele sabe muito bem que sua alma foi atingida, e que no corpo permanecem
as marcas da lembrança. Marcas do corpo que se espalham e proliferam nos panos,
nas vestiduras, no manto da apresentação, nas faixas de Miss.
Um corpo escrito, nomeado:
.. '---��
'ff
.Ili
26
FOUCAULT, 1987, p. 530.
PERNA FICOU osso) ALAO ABATE C�RUGIAO HOSPITAL LIOYD SUL AMERICA RUA
27
ROSARIO citado por BRANCO. Em nome do Pai, ,,,, nome do Filho.
A palavra bordada).
28
LYOTARD, 1991, p. 15.
Post-scriptum}
29
MORAIS, 1990.
30
Folha de S. Pau!IJ, 1995.
... OS AN
JOS VÃO
ARRIANDO
A FORMOSA
FINA PLUMA
ESPUMA ESPONJA
POR ONDE SAHI O
VERBO ?31
◄!
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IACAN CDM GTT,
- sobre a prática de oficinas literárias com psicóticos -
Metáfora
Uma lata existe para conter algo,
Mas quando o poeta diz lata
Pode estar querendo dizer o incontível
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A queixa que essa canção de Gil traz à tona, muitas vezes incômoda para
alguns analistas do texto literário, assinala a necessidade de um outro tipo de
leitura exigido pela poesia: uma leitura que, respeitando a literalidade que o poético,
em seu projeto impossível, pretende alcançar, possa também respeitar a iconicidade
(e, com ela, a indefinição de contornos) que esse poético prioriza.
O que quero dizer é que a poesia, mais ainda que a ficção, e de maneira
distinta da ficção, faz do signo sua matéria, seu elemento, e, ao fazê-lo de uma
certa forma, faz da linguagem pura materialidade, lançando-se nesse contin1111m
discursivo em que os signos encenam, de maneira evidente, sua dupla qualidade:
a de estarem no lugar de outra coisa e, no entanto, serem também eles próprios.
Assim, a lata, que pode metaforizar o incontível e o incabível, é, também e
sobretudo, lata, em seu grau absoluto de coisa-signo que é.2
Esse tipo de manifestação discursiva, à primeira vista então inabordável
aos olhos de um hermeneuta do texto literário, Gil nos convida a ler de outra
forma, respeitando sua literalidade, através de uma leitura não exatamente literal
(porque tautológica, inoperante) , mas quem sabe lateral, deslocada, metonímica,
que vagueie mais pela superfície do. texto que por suas profundezas, mais pelas
intermitências do discurso que pelos enganosos caminhos da suturação e da
saturação do sentido.
Além disso, a canção de Gilberto Gil ilumina uma outra noção de
metáfora, entendida aqui não só como processo de substituição de significações
por uma relação analógica entre os termos, mas também como processo de
contrução de outra coisa (outra significação, portanto), através da reiteração da
coisa mesma que o signo é.
A metáfora pode, portanto, ao ser vista de fora, apontar para um processo
de substituição por analogia, enquanto que, ao ser vista de dentro, pode apontar
para si mesma, ou para a coisa em si mesma que se exibe como produto dessa
articulação analógica.
Assim, quando se diz que "Fulano é um leão", é evidente que se deu aí um
processo de substituição analógica, em que fulano e leão podem intercambiar-se
por algum traço em comum que possuem: a bravura, ou a vaidade, ou mesmo os
2
A respeito da materialidade e da imaterialidade do signo, ver PINTO. A imagem
(i)material.
3
LACAN. As psicoses, p.235-243.
4 LACAN, op. cit.p. 237.
5
BRANCO. A devoração da imagem-. o poético e o psicótico.
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A primeira indagação que se coloca acerca da linguagem do psicótico, sob
o prisma da Semiótica, diz respeito à estranha habilidade desse sujeito que claudica
pelo simbólico para construir esse texto hipersimbólico, essa suprametáfora que
a metáfora delirante sempre é. Como é possível a esse sujeito, cuja linguagem
descarrilou sobre os . desfiladeiros do significante, construir um texto inteiro, com
princípio meio e fim, com uma lógica discursiva inquestionável que se sustenta,
inclusive, por uma estrutura épica?
Por outro lado, como articular esse texto · "bem-comportado" a outras
produções desse mesmo sujeito que parecem apenas falar da fratura da palavra, da
desarticulação da sintaxe e da fragmentação do discurso? E, diante de produtos
aparentemente tão distintos de um mesmo sujeito, que leitura é possível realizar?
Essas questões, que na verdade surgiram após um ano de trabalho com
pacientes psicóticos, ancoram-se numa questão maior que sustenta todo o trabalho
que venho desenvolvendo até aqui: que função pode ter a escrita, que função seria
a do escrito, quando se trata da produção de sujeitos falantes pata quem a palavra
não funciona do mesmo modo que para os demais?
É apostando no fato de que a palavra pode (e disso os psicóticos bem
sabem) e, sobretudo, no fato de que a palavra pode fazer poesia, fazer literatura
(e, portanto, produzir algum efeito da ordem do "laço social") para além da intenção
do falante, que esse trabalho de oficina literária se desenvolve.
É claro que não se trata aqui de uma visão ingênua do trabalho poético,
nem tampouco de uma · visão inconseqüente do fenômeno psicótico. Na verdade,
uma abordagem desse tipo não pretende, de maneira alguma, afirmar que o psicótico
faz poesia em seu delírio ou em sua alucinação. Entretanto, sendo a poesia produto
de um certo arranjo da linguagem e sendo a psicose produtora de certos efeitos de
linguagem, quem sabe se possa pensar em alguns pontos de tangência em que esses
curtos-circuitos linguageiros de ambos os processos possam vir a se tocar?
O fato é que, enquanto professora de literatura e escritora, não posso deixar
de reconhecer poesia na expressão de um psicótico que, convidado a falar de sua
impressão de uma gravura de Bosch, diz apenas: "As palavras morrem na minha
boca". Como também não é possível não ver a poesia nas palavras de um outro
paciente que rabisca no papel, como um grafita: "A vida é bela/ mas é das feras".
Se tudo isso sé produz espontaneamente (mecanicamente, pode-se dizer)
quando esse sujeito fala, e se isso naturalmente toca o poético, quem sabe um
trabalho de pesquisa e de produção do poético possa ser realizado com certa
"facilidade" com pacientes psicóticos? Quem sabe se possa perseguir a trilha
6
A esse respeito, ver: LACAN. Llt urate rra, e LACAN. Joyrt; o sin toma.
Digo a ela que isso é um poema, ainda não tão bom, mas que tem ritmo,
fôlego, respiração, e ela me diz que isso é só isso e nada mais. Alguns meses mais
tarde, ela _mesma me falaria de seu diário todo escrito dessa forma, a partir desse
poema : um diário em versos mínimos. Meses depois, essa mesma aluna comporia,
a partir de um exercício dadaísta de colagem de palavras recolhidas de um saco
plástico, onde haviam sido colocadas as palavras, recortadas, de um poema de
Sônia Queiroz, esse poema de estranha beleza:
�,
Mina e meninos ,,-
Reinado de cores, bumbos
brilhos nas plumas, fitas
nas saias
foi sacudindo cabeças
que o rei pelos plásticos
dos braços
o Penacho acho
acho 8
8
O poema de Sônia Queiroz intitula-se ''Reinado", e se apresenta desta maneira,
no original: "acho brilho nas saias/sacudindo/plumas nas cabeças/dos meninos/
fitas, cores, pelos braços/e bumbos plásticos!/acho que o Penacho/foi o rei de
Mina. ln: CARVALHO, Roberto Barros de (org.) . Taq11icardias. Belo Horizonte,
Dubolso, 1985. p. 43.
9
Esse paciente, G.M., por ele mesmo alcunhado de Profeta Elias em seu delírio,
não é aluno da Oficina Literária, mas interno do Hospital Raul Soares, onde
trabalhei em pesquisa de campo durante um semestre. Entrevistado duas ·vezes
por nosso grupo de trabalho, pcopusemos-lhe, no segundo encontro, o exercício
dadaísta que ele se recusou a fazer.
1 Anotações dos estandartes de Artur Bispo do Rosário, por Lucia Castello Branco,
na ocasião da exposição do artista em Belo Horizonte, no Museu da Pampulha,
julho/agosto 1 990. Todas as demais citações de textos do autor referem-se à
mesma fonte.
5
ARTAUD, citado por MARTINS, op. cit. p. 1 1 2.
6
BECKER, MARISCAL. Nomiflação, letra e escirtura, p. 1.
7
Idem.
8
Lacan assinala, em seu seminário sobre a Identificação, a relação radical do nome
próprio com a escritura. Cf. BECKER, MARISCAL, op. cit. , P· 4.
....
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nomes de mulher se apresenta aos olhos do leitor, são os nomes próprios, em sua
intradutibilidade, em sua singularidade, que compõem essa língua do Outro:
Armando pinto fernandes-Capitão Tenente Medico-Hospital Central da
Marinha Ilha Dique Rio de Janeiro) Araujo Maciel - sub oficial enfermeiro
hospital central da marinha dique rio Atilio da Silva - copeiro nuclo ulisse
viana J acarepagua
E, ainda, quando nos deparamos com o texto "em prosa" do autor, com
o relato de seu delírio, não é difícil verificarmos que o estranhamento que esse
texto provoca provém exatamente de sua qualidade substantiva, pelo excesso de
nomes próprios que aí se empilham, ou pelo entulhamerito de substantivos comuns
destacados em sua singularidade (funcionando como nomes próprios, talvez) e
pela quase ausência de verbo� e conectivos:
Eu abrir aporta lado leste um jardim flores varas cores ao 7 metros de frente
um portão de 2 metros de altura de ferro lado esquerda com seus gradeado
todas de ponta lança um metro e vinte altura - 1 O espaços - uma polegada
'j)t
12
BECKER, MARISCAL. Nominação, letra t escritura, p. 4.
13
A esse respeito, ver a discussão de Derrida acerca do mito bíblico de Babel, em
que o autor assinala que a tradução desse nome próprio intraduzível é,
literalmente, confusão Cf. DERRIDA. L'oreille de 1'011tre, p. 135-137.
Relatos como esses, tão singulares, de pessoas que pass aram pela
experiência de aniquilamento e desorganização psíquicas fazem Lacan dizer que
o psicótico é alguém que fala uma outra língua e apontar na psicose· a inexistência
do discurso como tal. Ilustro essa observação com outro escrito de M.C., numa
fase posterior de seu processo psicótico, em que ele, atormentado pelo que nomeou
,,
como "Tortura do Silêncio (título de um filme de Hitchcock, onde um padre,
interpretado por Montgomery Clift, preso ao segredo da confissão, não pode
revelar o autor de um crime do qual é acusado), só utiliza a palavra, bem retirado
do campo do Grande Outro, marcando-a com neologismos:
O Senhor não vai
Min é afilhado
Paraninfado
Supõe-se ser-me
Artista e Escritor
De Preciosos Roteiros
Bancário Nacional
De Holliwod USA
Quer Inundar Brazlüydesvis
Apresenta e Sugere-vos
A Tortura do Silêncio
- Palabras.
......
BARROS, Manoel de. Entrevista (por carta) concedida à Revista Bric-à-Brac, entre agosto de 88
e janeiro de 89, Brasília.
BENVENISTE, Émile. Princípios de /ingiiística geral. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1 976.
BRANCO, Lucia Castello. Palavra em estado de larva. ln: BRANCO, Lucia Castello,
BRANDAO, Ruth Silviano. Literatemzr, as bordas do corpo literário. São Paulo: AnnaBlume,
1995.
CHAMPLIN, Russel. O Novo Testamento interpretado. vol. 3.[s.n.t.].
COTTET, Sérge. Diagnóstico diferencial; neurose e psicose. ln: Clínica lacaniana; n.3. São
Paulo: Biblioteca Freudiana do Brasil, 1989.
FREUD, Sigm und. O caso Schreber; artigos sobre técnica e outros trabalhos. Trad. José Octavio
de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1 969. P.1 5-108: Notas psicanalíticas sobre um
relato autobiográfico de um caso de paranóia (dementia paranoidu). (Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 12).
LACAN, Jacques, O seminário. Livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 988.
QUINET, Antônio. Clínica das psicoses. Salvador: Fator Editora, 1990.
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1S2
1
acelerada no que diz respeito às inter-relações de palavras, ou seja, o salto de uma
imagem à outra é feito de uma maneira ultraveloz, o que atropela , algumas vezes,
a velocidade de compreensão do espectador:
2
Entrevista com psicótico. Hospital Raul Soares, Belo Horizonte, nov. 1991.
3
Entrevista com psicótico. Hospital Raul Soares, Bdo Horizonte, nov. 1991.
• Entrevista com psicótico. Hospital Raul Soares, Bdo Horizonte, nov. 1991.
Referência Bibliográfica
CAMPOS, Augusto de, CAMPOS, Haroldo de. Panaroma do Finnegans Wake. São Paulo:
Perspectiva, 1986.
6
JOYCE, citado p or CAMPOS, CAMPOS. Panaroma do Finntgans Wake.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos. Trad. Orizon Carneiro Muniz. Rio de
Janeiro: Imago, 1974. P. 13-1 94: Totem e tabu. (Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 13).
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• 1
Todas as citações foram retiradas de textos de pacientes da Oficina de Lctns do
Instituto Raul Soares.
QUASI MODO
... O amor como em apostásias
apráxias são áporas em
indúcias distopia incognoscível
indígeste incômodo iniódimo
em torpor e quasí modo icós
id dispéptico á inglúvias
em anomalia infensa
ao melôme le misantropo.
Oh! loco adunabilidade
inópia exórdia exígua exícia
exícidio ou como exornar
e exornar em ateses em
em ero e exagitada e a execrar
o metirendo em solércias
e argúcias do metopápago
meduseu meante e meandro
a serpear a voce...
� ... Um zurzio zini como
sibilar zim brem enoute delustre
e delir e deludir ludibriar
y
� pois plésio é o decrépito
que flui o tempo ludro
e a aluitre nóxia que nuta
novamente como o amor
corno amor... (MAF)
y
y
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Il-EscritIB
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inter/in/venções
direito de ser traduzido, copiado, reproduzido,
deformado e apropriado em todas as línguas
e modos de expressão
a poesia deve ser feita por todos
como dizia Polonius : "desvario, sim, mas tem
seu método"
(Uilcon Pereira)
1
HATHERLY, Ana. O escritor. Lisboa: Moraes Editores, 1975.
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"Grafita".
Texto de paciente com diagnóstico de psicose.
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� � - A t-.O I A - MASTU�BAÇAO - CONT�OLE. E M O C I ONAL - ,�oST I TU I ÇAO � E S QUEMA eu� �
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I DADE c� I T I C A - Lb ANos · - L I GADO - QUE s �A� A ~CAetçA - D I V t sÃo ôVE "- "- AS -
, •
D I V I S ÃO DE CO NVE "- S A • D Í V I SÃO DE NUMERO S - E S �l JENT.M A CABEÇA - : E S TOURA DA
B� I ADA - M�S I CA - DANÇA - D I VE�SÃO - FAZE NDA - ZONA CO�P 6�EA - ZONA GE N I TAL -
MCDQ DE ').MA� O O U T !W - SATANÁS - O CONCE I T O DO e!W. E DO t11\U - O CONCE I T O ro
CÜJO E no E R � ADO ,: :: s T U r<Al'C. P A � A S E R H L I Z - HA!!IALHM NA(!l' 1 L O •�l! E G O S T ,\l,t O S
r_ AriALHA"- E M C I MA DAQU I L O ? ! T �AeALHO MA _ 1UAL - Tl'C.AeAL HO COMO T C � P I A - ..
/\' TÊ : � AP I /\ É_ l\i 's . J uc f/\Z(MOS - O:l"I U 4 Ti\ÇÃO PMtA J O VC N S P E "-O I DOS CH s í n; f S
i\ TE l'C.AP I A V OCA C I CíJflL
, - A TC �t. P I A O R I E 'H ,\ Ç I 0�.1\L - RE L I G l t.C - Ci\ S 1 . MC iJTO -
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parentando 60 anos, negra, delirante, não sabemos se é esse o seu nome.
O que sabemos é de seus trabalhos e ímpetos de agressividade e gritaria,
a fala desconexa, os gemidos. Com certeza, muitos seres invisíveis a nós, "pobres normais",
já levaram suas porretadas.
Sua produção é, basicamente, em torno de palavras, frases, imagens e formas
que se relacionam. O que me parece mais interessante é, sobretudo, seu comportamento:
uma espécie de performance que culmina numa instalação de bordados. Penso assim
porque quase sempre encontro seus objetos, como placas, avisos ou sinalizações em
pontos estratégicos, mas inusitados. Uma vez, não tendo como amarrá-los, usou varetas
e gravetos para escorá-los numa parede. Eram folhas de livros escritas com carvão,
batom e giz de cera. No mesmo dia, diversas árvores dos outros lados do quarteirão
tiveram papé�s similares espetados em seus galhos - e não era Natal.
Suponho que o importante para ela seria estar sempre buscando comunicar-se,
sinalizando, delimitando espaços, respaldada por sua própria história de dores e de
"pureti" (porrete?). Seus espaços recortados e suas intalações protetoras e protegidas
pareciam ser seu único objetivo de vida, pelo menos naquele período. Mas em poucos
momentos de conversa, apesar de bastante arredia, D. Teresa declarava acreditar produzir
coisas belas, já que "as pessoa sempre panha tudo".
Há tempos não tenho notícias suas. Ela sumiu, e os bairros Gutierrez, Barroca
e Prado voltaram a ser apenas o que sempre foram.
t T,xto prod,,zjdo por Rmoto Athoyd,, º"'º' do ,11,oio fotográfiro sobe, o obrn d, T,ns,.
.....
......
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71 P' 11 rgun ta - S 11 gundo L e y l a l'errone Moysés , " a runçiio
me teli ngu Í s t i c 11 acen tuo u- s e n as ob ras po é t i c as , a l inguagem
P D � t i c a p a s s o u a' s e r o p r6p rio tema d a poesia. Como resu l tado
d 11 s s a re f l e xão o s u j e i to po:t i co é' o p rime i ro e desmasc11rar-se
ausên c i 11 " • Vo c e c o n c o r d a com e s s a 11 � i rmaçáo 7
co�o f a l t a II
10, P' e rgun t a - " Descobri que todos o s c ami nhos l e vam à
.
ionoranc
,. i a . " � d i z Manoel de B a r ros�em Au to - r e t rato f a l ado.
Não st a t r a v é s des s e verso · •es a t ravés de sua o b r • • veri fi ca-se
o que pode r i a s e r pen s ado como uma"po , t i c a d a d e s a p re n d i z aoem " .
íale um p o u c o sobre e s s a s u a traj e t� ri�, J é que ao· p ropor a
des�p rend i z aoem vocf també� p ropõe um o u t ro t i p o de ap rendiz aoem
( e o r ande p a r te de s u a m e t a l i ng u i s t i c a e s t� a! p a ra mo s t rar
qua isso d a fato o c o r re . )
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