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Mar Paraguayo:As fronteiras expandidas da língua e da identidade

Luciana Cañete

Publicada em 1992 no Brasil pela Iluminuras, a obra do escritor paranaense cruzou


fronteiras e desembarcou no Chile em 2001 pela Intemperie, na Argentina em 2005
através da editorial Tsé-Tsé e foi traduzida para o francinglish permeado de termos em
língua esquimó pelo canadense Erín Mourin, com publicação da Nightbooks de Nova
York em 2017. O livro - extremamente experimental especialmente no que tange o
idioma adotado - constrói, no próprio título, a ideia de uma fronteira que se expandiu e
subverteu os limites da geopolítica tradicional, uma vez que, na topografia oficial, o
Paraguai não possui saídas para o mar.

A história, sem um enredo linear, tem como cenário o litoral paranaense, mais
especificamente a cidade de Guaratuba, o que corrobora a ideia de um limite territorial
que se alargou e incorporou o mar brasileiro e paranaense por meio da experiência
espacial da narradora. O mar paraguaio é portanto um lugar singular que só se constitui
como tal na imbricação do espaço externo com a experiência individual, num
movimento análogo ao processo de territorialização/desterritorialização tal como
abordado por Haesbaerth no ensaio “Da desterritorialização à multiterritorialidade”.
A constituição da identidade e os limites da fronteira ─ tanto do eu, como de
uma língua e da própria realidade ─ parecem sustentar todo o fluxo de pensamento em
primeira pessoa da marafona brasiguaia-guarani e sua confissão sobre o assassinato (ou
não) do velho. (Y por que no escrever também esta reseña em un linguaje híbrido y así
hacerla más cercana al próprio libro del que habla?). O aviso das primeiras linhas: “el
guarani es tan essencial em nesto relato quanto el vuelo del páraro, lo cisco en la
ventana, los arrulhos del português ô los derramados nerudas em cascata...” serve como
pacto-aviso que suaviza o ingresso na língua híbrida e heterogênea que constitui a
materialidade do texto. Sempre referida pela crítica como portunhol, prefiro incluir uma
especificação ao idioma com o qual o autor se expressa– portunhol brasiguaio – já que a
presença dos termos guaranis o situa numa fronteira específica e expandida que separa e
funde Brasil e Paraguai.
Leitura de difícil percurso, a enxuta extensão do texto (73 páginas de narrativa e
4 de elucidário) pode enganar o leitor desavisado, visto que a densidade deste mar turvo
de pensamentos, reflexões e memórias torna-se capaz de multiplicar o número reduzido
de páginas. Um fluxo denso, tanto pela mistura de línguas que criam o idioma singular,
absolutamente essencial para a construção da personagem narradora, quanto pelo
conteúdo reflexivo que afirma – sem confirmar – a questão central do assassinato, a
leitura pode ser temporalmente breve – uma tarde – porém o exercício de compreensão
permanece por um tempo distendido e instiga uma releitura para melhor organização e
assimilação dos fatos.
O assassinato do velho e as memórias da marafona são a espinha dorsal de uma
reflexão que pode ser tomada como uma alegoria de uma infinidade de questões
identitárias que figuram em pautas hodiernas. Sugiro aqui três possibilidades que me
ocorreram na leitura e releitura do texto. A mulher que assassina o homem, tanto
simbólica quanto verdadeiramente, numa inversão do lugar vitimado da mulher é a
primeira das possibilidades. Uma assassina, por que não se deixou morrer ou matar pelo
parceiro envelhecido? Numa segunda formulação interpretativa, surge a ideia de que o
assassinato do velho ocorre como processo interno e configura-se como meio para o
surgimento dessa mulher, a narradora, cuja identidade é expressa pela língua
transfronteiriça. Se tomado sob esta perspectiva, o texto aporta uma reflexão de
identidade de gênero em que há um ser em transformação, cujo o assassinato é um
processo simbólico de aceitação da marafona com cara de Sônia Braga que é o próprio
narrador. A aceitação ou dificuldade de aceitar o envelhecimento se estabelece numa
terceira possibilidade de interpretação, baseada na tensão entre o velho - que foi
assassinado - e o personagem do jovem atraente - que toma os pensamentos e atrai o
desejo da personagem-narradora brasiguaia guarani.
Afirmar o que ocorreu de fato na narrativa não parece ser a grande chave de
leitura, mas sim a vivência da dúvida mais do que da resposta, estabelecendo portanto
um paralelo com o pensamento contemporâneo sobre a questão da identidade, seja ela
de gênero, de nacionalidade ou étnica. Ao ler “Mar Paraguayo” ficamos
impossibilitados de encontrar qualquer certeza e solidez, e somo impelidos a navegar
pela fluidez do gênero, da nacionalidade e da língua da personagem central, num
movimento em que a forma e o conteúdo artístico são indissociáveis, estão fundidos de
maneira profunda e irreversível num conjunto harmônico e experimental.
Se a língua singular e híbrida sobre a qual trabalha o autor é tão essencial para o
seu conteúdo, é relevante refletir sobre a proposta tradutória de Erín Mourin, que optou
por usar o francinglish permeado de termos de uma língua esquimó para reproduzir a
experiência da complexidade identitária que o portunhol brasiguaio proporciona. Uma
solução que parece extremamente criativa e perspicaz ao não minimizar a potência
estética que a língua alcança nesta obra.

Referências
BUENO, Wilson. Mar Paraguayo. Iluminuras: Curitiba, 1992.
HAESBAERTH, Rogério. “Da desterritorialização à multiterritorialidade”.
In:_______. O mito da territorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.
SANTOS, Márcio Renato dos. “O magnífico portunhol de Wilson Bueno”.
Disponível em: https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Noticia/O-magnifico-portunhol-de-
Wilson-Bueno. Acesso em 10 de jul. 2021.

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