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NOME: Marina Evangelista Nº USP: 9821180

DISCIPLINA: Literatura Brasileira VI PROFESSOR: Dr. Ricardo Souza de Carvalho

PROPOSTAS DE DISCUSSÃO: TÓPICO 2 – TRISTE FIM DE POLICARPO


QUARESMA
1 – “Sentado na cadeira de balanço, bem ao centro de sua biblioteca, o major abriu um livro e
pôs-se a lê-lo à espera do conviva. Era o velho Rocha Pita, o entusiástico e gongórico Rocha Pita
da História da América Portuguesa. Quaresma estava lendo aquele famoso período: ‘Em nenhuma
outra região se mostra o céu mais sereno, nem madruga mais bela a aurora; o sol em nenhum outro
hemisfério tem os raios mais dourados...’” (Primeira Parte, Cap. 1 “A Lição de Violão’). O trecho
encontra-se na Introdução da obra de Sebastião da Rocha Pita, de 1730, e tem a seguinte
sequência: “[...] nem os reflexos noturnos tão brilhantes; as Estrelas são as mais benignas, e se
mostram sempre alegres; os horizontes, ou nasça o Sol, ou se sepulte, estão sempre claros: as
águas, ou se tomem nas fontes pelos campos, ou dentro das Povoações nos aquedutos, são as mais
puras: é enfim o Brasil Terreal Paraíso descoberto, onde tem nascimento, é curso os maiores rios;
domina salutífero clima; influem benignos Astros, e respiram auras suavíssimas, que o fazem
fértil, e povoado de inumeráveis habitadores, posto que por ficar debaixo da Tórrida Zona, o
desacreditassem,' e dessem por inabitável Aristóteles, Plínio, e Cícero, e com Gentios os Padres da
Igreja Santo Agostinho, e Beda, que a terem experiência deste feliz Orbe, seria famoso assunto das
suas elevadas penas, aonde a minha receia voar, posto que o amor da Pátria me dê as azas, e a sua
grandeza me dilate a esfera”. Em que medida essa leitura de Policarpo a respeito da natureza do
Brasil, ao ser confrontada na Segunda Parte do romance, pode justificar a consideração de Silviano
Santiago de que “a escrita ficcional subscreve o discurso histórico, e ao mesmo tempo, rejeita-o,
criticando-o como ilusório” (“Uma ferroada no pé: uma dupla leitura de Triste fim de Policarpo
Quaresma)

Policarpo Quaresma era um idealista, um típico herói quixotesco imbuído de nobres


ideais, dentre eles o patriotismo. Esses ideais eram embasados principalmente a partir dos
livros de sua vasta biblioteca, preenchida com autores nacionais ou tidos como, dentre eles:
Bento Teixeira, Gregório de Matos, Basílio da Gama, José de Alencar, Gonçalves Dias, Gabriel
Soares, Gandavo, Frei Vicente do Salvador, Armitage, Aires do Casal, entre tantos outros.

Destacamos o autor Rocha Pita que apresenta o Brasil em seus livros como um lugar
abundante e enaltecido: “Em nenhuma outra região se mostra o céu mais sereno, nem
madruga mais bela a aurora; o sol em nenhum outro hemisfério tem os raios mais
dourados...” (BARRETO, 2011, p. 25). Devido a sua imersão nesse Brasil idealizado de
intelectuais que remontam ao período colonial, Policarpo constrói sua visão de mundo
nacionalista, enaltecendo exageradamente a natureza brasileira, seguindo essa visão de terra
paradisíaca, narrada a partir de uma linguagem complicada, cheia de superlativos de ideias
grandiosas.

É justamente por meio do discurso que a obra de Lima Barreto rejeita e critica os
ideais literários e históricos do século XIX, que remontam ao período colonial. A própria
utilização do adjetivo gongórico para introduzir o autor Rocha Pita é uma demonstração
dessa posição. O adjetivo, que em sua concepção significava “rebuscado; que se apresenta
apurada e requintadamente”1, era utilizado de forma pejorativa para se referir a autores
barrocos, com estilo enviesado, rebuscado demais na linguagem. Nessa duplicidade de
leitura, reside uma desaprovação a esse estilo.

Corroborando com essa ideia, o personagem Armando Borges, doutor e marido de


Olga é constituído de modo a satirizar os intelectuais que possuem um saber precário, que
não se sustenta e é mascarada por meio de uma linguagem tida como “clássica”. Podemos
notar esse caráter em seu trabalho de tradutor que busca termos exageradamente
rebuscados:

Buscava nisto uma distinção, uma separação intelectual desses meninos por aí que
escrevem contos e romances nos jornais. Ele, um sábio, e sobretudo, um doutor,
não podia escrever da mesma forma que eles. A sua sabedoria superior e o seu
título "acadêmico" não podia usar da mesma língua, dos mesmos modismos, da
mesma sintaxe que esses poetastros e literatecos. Veio-lhe então a ideia do clássico
(Ibid., p. 162)

Dessa forma, Lima Barreto faz uma crítica a esse discurso exageradamente rebuscado,
nacionalista e ufanista. De acordo com Santiago (1981, p. 540) essa atitude “chamaria a
atenção para o fato concreto de que todo discurso sobre o Brasil foi irremediavelmente
idealista, comprometido que estava com um discurso religioso e paralelo e que, finalmente,
foi o dominador.” No livro, isso se dá na relação de Policarpo com os livros, que é
“totalmente desapegada de um exame ou reflexão sobre os fatos concretos sobre a
sociedade brasileira (...) É produto de uma biblioteca radical e simplória, organizada em
torno de um espírito que presidia a sua reunião- o patriotismo” (Ibid., p. 531).

Sendo assim, por meio da crítica à ação alienada do discurso, há um processo de


desmetaforização da linguagem nacionalista e seus ideais perversos, xenófobos e distorcidos,
que se mostram através das repetidas decepções de Policarpo ao final de cada uma das três

1
Disponível em: <https://www.dicio.com.br/gongorico/>
partes do romance e que levarão ao seu triste fim. Na segunda parte da obra, ambientada no
meio rural, essa visão idealizada da natureza brasileira pregada pelos literatos é confrontada
e colocada em prova por meio de um jogo entre a cultura, a língua e a realidade, num
processo no qual as rebuscadas metáforas começam a ser desmistificadas.

Ao instalar-se no Sítio do Sossego e começar a cuidar da terra, Policarpo começa a se


dar conta de que ela não é tão fértil e perfeita como como diziam os livros. A visão sagrada,
de uma terra abençoadamente fértil, de acordo com Santiago (Ibid., p. 542) “seria a
responsável pela pouca importância que se vai dar ao trabalho da agricultura entre nós”, já
que ao ser próspera e bendita, não precisaria de trabalho e cuidados para dar frutos.

Entretanto, confrontando com essa visão bendita da natureza, seja por meio das
saúvas destruindo tudo, ou a miséria e concentração de latifúndio da política interiorana,
Lima Barreto lança um olhar agudo aos problemas da terra, retirando as camadas glamorosas
dos recursos retóricos referentes à natureza. A salvação do Brasil por meio de uma “forte
base agrícola, um culto pelo seu solo ubérrimo, para alicerçar fortemente todos os outros
destinos” (BARRETO, 2011, p. 88) se mostra pura ilusão.

O próprio nome Sítio do Sossego é uma ironia dessa visão idealizada e idílica da
natureza, pois no lugar de encontrar tranquilidade, Policarpo encontrará ali mais uma
derrota e será expulso como um “cidadão relapso e contraventor” (SANTIAGO, 1981, p. 536).

À vista disso, ao mesmo tempo que a escrita de Lima Barreto subscreve os ideais
nacionalistas e o discurso histórico (como a narrativa da História da América Portuguesa, de
Rocha Pita), ele desmetaforiza e rejeita esses ideais ilusórios, assumindo um caráter de
desvelamento da realidade, mostrando que ela não ocorre como está nos livros, num
discurso que beira quase a um caráter evangelizador que apresenta a suposta terra
prometida.

Por meio das seguidas decepções e do triste fim de Policarpo, é possível observar o
desmoronamento desse tipo de discurso e ideais nacionalistas e se torna possível enxergar o
que Lima Barreto realmente crê importar: a perversidade da jovem República brasileira, por
meio um questionamento do discurso vigente e da própria noção de pátria, com um viés
crítico e pessimista. Segundo Santiago (Ibid., p. 537) esse desvelamento do discurso, que
levará a sua dissidência baseado “que estava em uma noção ilusória, fruto de gabinete de
leitura, não traz e não pode trazer frutos reais, acabando por dar como resultado uma vida
sem rastros e sem sentido.” Pode-se dizer que assim, ao seguir esses princípios nacionalistas
e imaginários, não havia outro fim possível ao protagonista.

Consequentemente, ao mesmo tempo que o romance compartilha dos valores


sócio-políticos do discurso histórico nacionalista, ele também salienta a necessidade de
mudança, primeiramente a nível linguístico, para que se entenda e estudem os verdadeiros
problemas nacionais, não de uma perspectiva ingênua, e sim de acordo com a realidade da
nossa terra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 5 ed. São Paulo: Martin Claret, 2011.

SANTIAGO, Silviano. Uma ferroada no pé: uma dupla leitura de Triste fim de Policarpo
Quaresma. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

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