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Volume 3 | Número 2 | Ano 2021

ISSN 2596-268X

O BRINCAR DA CRIANÇA COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA:


FLEXIBILIZAÇÃO DO USO DO BRINQUEDO EM SITUAÇÕES
IMAGINÁRIAS
CHILD'S PLAY WITH AUTISTIC SPECTRUM DISORDER: RELAXATION OF
TOY USE IN IMAGINATIVE SITUATIONS
Maria Angélica da Silva1
Marina Teixeira Mendes de Souza Costa2
Fabrício Santos Dias de Abreu3

Daniele Nunes Henrique Silva4

RESUMO

Apoiados na Perspectiva Histórico-Cultural, analisamos os processos


imaginativos no brincar da criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA) a
partir dos recursos expressivos originados no faz de conta. Para tanto,
procuramos identificar as variações na flexibilização funcional do brinquedo
(objeto) nas situações que envolvem a situação imaginária. Por meio da
análise microgenética de episódios videogravados e transcritos de momentos
de brincadeiras de crianças com TEA, demonstramos que elas brincam,
flexibilizando o significado do objeto (brinquedo) e apresentando indícios de
incorporação de papéis sociais. Argumentamos que a ação do brincar se
constitui por meio de recursos expressivos e corporais, bem como pela

1 Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF). Email: angelscei@gmail.com

2 Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF). Email: mtmscosta@gmail.com

3 Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) – Universidade de Brasília (UnB). Email:
fabra201@gmail.com

4 Universidade de Brasília (UnB) – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Email: daninunes74@gmail.com

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emergência da linguagem. A investigação realizada indica que estes


elementos, incluindo a mediação do outro, parecem alterar a ideia de que a
criança com TEA tem limitações para brincar.
Palavras-Chave: Teoria Sócio-Histórico-Cultural; Autismo; Imaginação;
Infância.

ABSTRACT

Based on the historical and cultural perspective, we analysed the creative


processes in the child's play with Autistic Spectrum Disorder (ASD) through the
expressive resources originated in the make-believe. To do so, we searched to
identify the variations in the toy's functional flexibility (object) in situations
involving the imaginary. Through microgenetic analysis of videotaped and
transcribed episodes of children with ASD playing, we demonstrate that in the
make-believe the meaning of the object (toy) is flexible and the children
presents signs of social incorporation roles. We argue that the act of play is
constituted by expressive and bodily resources and the emergence of
language. These elements, including the mediation of the other, seens to
change the idea that the child with ASD has limitations to play.

Keywords: Socio-Historical-Cultural Theory; Autism; Imagination;


Childhood.

INTRODUÇÃO

A Perspectiva Histórico-Cultural entende a imaginação como


responsável pelo coroamento das funções psicológicas superiores em termos
de um funcionamento sistêmico que se estrutura na idade de transição5
(VYGOTSKI, 2012). Assim, os modos de organização da atividade imaginativa
assumem diferentes contornos ao longo da ontogênese, apresentando
peculiaridades qualitativas no desenvolvimento da criança, em especial, na
idade pré-escolar6, o que pode ser facilmente identificável nos processos

5 Nos textos de Vigotski (2012) a idade de transição coincide com a adolescência. O autor
demarca que a idade de transição se caracteriza por uma série de relações contraditórias e
polarizadas, sendo “a idade da transgressão do equilíbrio do organismo infantil e do equilíbrio
ainda não encontrado do organismo maduro” (Vigotski, 2009, p. 48).
6 “Na conceituação de Vigotski, corresponde ao período estável que se situa entre a crise dos
três anos e a crise dos sete anos” (VIGOTSKI, 2020, p. 150 – Notas da revisão técnica).

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criadores que envolvem a brincadeira de faz de conta, o desenho, a narrativa


etc.
Uma característica comum à criança em idade pré-escolar é o fato de
que ela cria ao brincar. Parte dessas criações advém da sua experiência direta
ou indireta com a cultura, mas isso não quer dizer que o brincar seja uma mera
transposição imitativa daquilo que ela vivencia pois, quando brinca, a criança
sempre traz algo novo para o conteúdo da situação imaginária.
Por essa lógica, a brincadeira não é uma atividade natural e/ou
espontânea, inerente à criança. Seu funcionamento, assim como todo
dinamismo de psiquismo, depende das condições sociais e culturais em que a
criança está (ou foi) inserida (CRUZ, 2015; PINTO & GÓES, 2006). Assim,
conforme argumenta Elkonin (2009, p. 80), “o seu nascimento [do brincar] está
relacionado com as condições sociais muito concretas da vida da criança na
sociedade e não com a ação de energia instintiva inata, interna, de nenhuma
espécie”.
Vigotski considerou o brincar como a força motriz no desenvolvimento da
criança em idade pré-escolar. Ele afirmou categoricamente: “Parece-me que,
do ponto de vista do desenvolvimento, a brincadeira não é uma forma
predominante de atividade, mas, em certo sentido, é a linha principal do
desenvolvimento na idade pré-escolar” (VIGOTSKI, 2008, p. 24). O autor
(2008, 2009) elencou dois aspectos indispensáveis para a compreensão do
papel do brincar nessa idade: 1. a sociogênese da brincadeira e 2. seu papel
no desenvolvimento humano.
Para ele, a gênese do brincar parte da necessidade, do desejo e da
motivação da criança em participar da vivência cultural, contrariando as teses
vigentes na época que compreendiam o brincar como mera satisfação infantil
ligada ao prazer. “Na idade pré-escolar, surgem necessidades específicas,
impulsos específicos que são muito importantes para o desenvolvimento da
criança e que conduzem diretamente à brincadeira” (VIGOTSKI, 2008, p. 25).
Na primeira infância, por exemplo, a criança é guiada pela satisfação imediata,
tornando-se impossível adiar a realização dos desejos infantis, pois “não se
conhece uma criança de até três anos que tenha um desejo de fazer algo
depois de alguns dias” (VIGOTSKI, 2008, p. 25).
Porém, na idade pré-escolar, há uma mudança qualitativa nas
necessidades evidenciadas pela criança. Ocorre uma mudança importante no
modo de organização do funcionamento psíquico. Se, antes, a percepção
mediada estruturava a ação da criança, agora, é a memória mediada que o faz,
permitindo à criança se libertar do campo perceptivo: daquilo que ela vê
objetivamente.

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Para a Perspectiva Histórico-Cultural há uma intrínseca relação entre


brincadeira e desenvolvimento infantil. O desenvolvimento da situação
imaginária na idade pré-escolar, bem como das funções psicológicas
superiores (atenção, memória, percepção, emoção, etc.), em termos de
funcionamento complexo, será fundamental para compreensão da dinâmica
sistêmica interfuncional que será estruturada na idade de transição. Por meio
de crises, estabilidades, instabilidades processuais e dinâmicas do próprio
desenvolvimento - articulado a ampliação dos processos de significação
vinculados a operação com o signo verbal (o trabalho com a linguagem) - a
neoformação da imaginação emerge e se desenvolve na idade pré-escolar,
permitindo a criança experimentar vivências com a cultura que não eram
possíveis até então.
Assim, o mundo objetivo o qual a criança participa, parece se expandir.
Além dos objetos que constituem o meio a que ela pertence imediatamente,
existe também tudo aquilo que faz parte do universo adulto que a criança
deseja explorar, mas sobre os quais ainda não tem condições físicas de agir.
Surge, então, o interesse em explorar dimensões mais amplas da realidade
circundante (VIGOTSKI, 2009). Isto é, surge na criança o desejo, ou a
necessidade, de agir (se inserir) no universo adulto, embora este ainda pareça
ser inatingível a ela (por exemplo, ela quer ser mãe e não pode; quer fazer
comida e não pode; quer dirigir e não pode). Portanto, do conflito (tensão) entre
o querer agir e o poder agir sobre o universo adulto, emerge a situação
imaginária que constitui a brincadeira de faz de conta. Nessa linha, Silva (2012)
complementa: “É a própria condição social da criança que a motiva a querer
participar do universo circundante e entendê-lo, fazendo-a reproduzir, criando
aspectos desse real” (p. 24).
Na tentativa de satisfazer desejos imediatos, a criança se envolve em
um mundo guiado pela fantasia, em que vontades e desejos irrealizáveis
tornam-se possíveis de serem executados por meio da situação imaginária
(VIGOTSKI, 2003, 2008, 2009). Isso é entendido pelo autor como a própria
brincadeira, constituindo-se como a principal característica do desenvolvimento
na idade pré-escolar, por envolver um processo complexo de significação.
No faz de conta, ao incorporar (e ao mesmo tempo recriar) os elementos
de sua realidade, a criança passa a atuar pela situação imaginária,
desvinculando-se do campo concreto imediato. Para além da apropriação da
cultura, a brincadeira possibilita a ampliação do universo cognitivo da criança,
que passa a agir simbolicamente por meio da flexibilização do uso funcional
dos objetos, transição de significados, abstrações e generalizações (PINTO &
GÓES, 2006; VIGOTSKI, 2008). Dito de outra maneira, durante o brincar,
emergem mudanças significativas no campo desenvolvimento da criança. Ao

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interpretar papéis sociais, por exemplo, ela se apoia nos elementos dispostos
no real, a partir de regras e generalizações das funções sociais que quer
representar. Sobre isso, Smolka (2009) comenta: “A brincadeira infantil é,
assim, um lugar por excelência de incorporação das práticas e exercício de
papéis e posições sociais” (p. 16).
Por conseguinte, para Vigotski (2008) a brincadeira implica uma
(re)configuração dos modos de a criança se relacionar consigo, com o outro e
com o mundo derivada da complexificação dos seus processos criadores de
gênese social. Assim, a brincadeira na idade pré-escolar revela a divergência
entre o campo semântico e o óptico. Isso porque a criança passa a operar com
os significados deslocados dos objetos reais, ou seja, esses se flexibilizam; um
lápis pode virar um avião ou um cabo de vassoura um cavalo.
Partindo dessas premissas, neste artigo, propomos problematizar a
situação imaginária que envolve o brincar de faz de conta da criança com
Transtorno do Espectro Autista (TEA). Tendo como argumento central as
considerações teóricas da Perspectiva Histórico-Cultural – incluindo estudos
contemporâneos sobre a temática –, realizamos uma pesquisa de campo com
esse público, buscando contribuir para o aprofundamento teórico da questão
no âmbito da psicologia e da educação.
O autismo é considerado pelos principais instrumentos de diagnóstico
(Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM e
Classificação Internacional de Doenças – CID) como um transtorno do
desenvolvimento, caracterizado por apresentar prejuízos nas relações sociais,
na comunicação e na imaginação (Tríade de Prejuízos). Os estudos são
amplos e uníssonos quanto à importância de trabalhar essas áreas, almejando
um prognóstico mais positivo para a criança com TEA. Todavia, o foco das
pesquisas remete às dificuldades ou aos prejuízos da função imaginativa
dessas crianças. Para muitas pesquisas, é quase impossível a criança com
autismo imaginar. Elas defendem a incapacidade dessa criança para
simbolizar, principalmente, para brincar de faz de conta (KANNER, 2012;
KLINGER & SOUZA, 2015; PASSERINO, 2005; RIVIÈRE, 2004; TAMANAHA
ET AL., 2006; WILLIAMS & WRIGHT, 2008)
Em se tratando da criança com TEA, foco do nosso trabalho, a literatura
mais tradicional (KANNER, 2012; KLINGER & SOUZA, 2015; RIVIÈRE, 2004;
TAMANAHA ET AL, 2006; WILLIAMS & WRIGHT, 2008) aponta que elas são
vistas como aquelas que possuem limitações nos seus processos de criar e
imaginar. Essas pesquisas, em termos gerais, dissertam que a criança com
TEA apresenta um pensamento rígido, inflexível; demonstra falhas quanto à
teoria da mente. Isso implica que a criança com autismo é incapaz de antever
reações futuras do outro; de distinguir sensações (emoções) positivas (alegria,

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satisfação, entusiasmo) e/ou negativas (tristeza, susto, medo, raiva, decepção),


bem como de decifrar expressões faciais e corporais alheias. Tal atraso
justificaria a dificuldade da criança com autismo de participar da brincadeira de
faz de conta, por exemplo. Entretanto, essas pesquisas se pautam em uma
visão organicista (biologizante) de desenvolvimento da brincadeira,
desconsiderando a constituição histórica e social do brincar, tal qual defendido
por Vigotski. Em um desses trabalhos (TAMANAHA et al, 2006), por exemplo,
os autores sinalizam que: “foi possível observar a inabilidade de elas [crianças
com TEA] produzirem atividade compartilhada e imaginativa, mesmo em
situações nas quais o adulto buscou incentivar e fornecer o modelo de
exploração lúdica” (p. 311).
Por conseguinte, o brincar da criança com autismo tem se caracterizado
como algo bizarro, desprovido de sentido e significado. É interpretado mais
como movimentos repetitivos e estereotipados do que como brincadeira
(Leboyer, 1995). Além disso, a criança durante a brincadeira fica presa às
impressões imediatas do real, não adentrando o campo imaginativo, tal como
evidenciado nas pesquisas. Outro aspecto que limita o faz de conta encontra-
se no campo da linguagem. A maior parte das crianças com autismo, de acordo
com essas investigações, apresenta atraso na linguagem oral, o que retarda o
processo de desenvolvimento simbólico.
Em um viés diametralmente oposto, pesquisas na Perspectiva Histórico-
Cultural (BAGAROLLO, 2005; CHIOTE, 2011, 2013, 2015; MARTINS, 2009;
RIBAS, 2013; SILVA, 2017) tem defendido que a brincadeira da criança com
TEA é uma atividade imbricada ao desenvolvimento das funções superiores.
Defendem que elas efetivamente brincam de forma criadora: operam com
flexibilização de objetos e apresentam indícios de incorporação de papéis.
Chiote (2013), a seu turno, argumenta que comumente o brincar da criança
com TEA é visto como esquisito; qualquer ação com objetos é interpretada
como um movimento estereotipado (repetitivo e sem sentido). Por conseguinte,
esse movimento não é significado pelas pessoas mais próximas da criança.
Assim, as relações sociais da criança com TEA, quando direcionadas
estritamente pelo diagnóstico, desencadeiam um baixo investimento do outro
nas situações (lúdicas) interativas, devido à ausência de feedback (imediato).
Isso gera um círculo vicioso que promove a retração da experiência lúdica, tal
qual observado por Martins (2009) e Bagarollo (2005).
Contrária às concepções que compreendem o TEA como uma
incapacidade no campo imaginativo as pesquisas ancoradas na Perspectiva
Histórico-Cultural (Bagarollo, 2005; Chiote, 2011, 2013, 2015; Martins, 2009;
Ribas, 2013; SILVA, 2017) defendem a importância de se ater às possibilidades
criadoras dessas crianças centralizando o papel do outro na significação do

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mundo para ela. Nesse sentido, Chiote (2013) compreende a brincadeira como
uma atividade que se aprende a partir do outro, por isso é necessária a
“criação de condições para que a criança com autismo amplie suas
experiências de brincadeira na relação com seus pares” (p. 60).
Diante dessas discussões, partindo de uma investigação empírica,
indagamo-nos: como brincam as crianças com TEA? Buscamos responder
essa questão, explorando aspectos do faz de conta com foco nos recursos
representativos e expressivos emergentes nas situações imaginárias em que
ocorre a flexibilização funcional do brinquedo no cenário da brincadeira.

MÉTODO

Para responder à problematização elencada anteriormente, foi realizada


uma pesquisa apoiada nos pressupostos epistemológicos da Perspectiva
Histórico-Cultural. A construção de dados fora realizada a partir de observações
e intervenções em uma classe especial de TEA de uma escola pública, em
Brasília, Distrito Federal. A despeito da Política Nacional de Educação Especial
na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), no Distrito Federal,
ainda se mantem a classe especial. De acordo com a Orientação Pedagógica
do Ensino Especial da Secretaria de Educação do Distrito Federal (Distrito
Federal, 2010), esta classe destina-se a atender, extraordinária e
temporariamente, às necessidades dos estudantes com deficiências e com
TEA, cujas condições não puderam ser atendidas adequadamente por
propostas, programas ou espaços inclusivos da rede de ensino.
A turma pesquisada era composta exclusivamente por crianças entre 4 e
6 anos com diagnóstico de TEA. Objetivou-se videogravar situações de faz de
conta no cotidiano das crianças pesquisadas, durante um ano de pesquisa,
com visitas semanais à escola. As videogravações foram transcritas e
analisadas, o que favoreceu a reflexão minuciosa das situações de brincar
(principalmente o faz de conta) nas interações adulto-criança e criança-criança.
A pesquisa cumpriu rigorosamente todos os aspectos éticos de uma pesquisa
envolvendo seres humanos, de acordo com a Resolução CNS 466/12. Além
disso, as imagens e/ou videogravações foram previamente autorizadas por
escrito pelos pais, pelos professores e pelas próprias crianças envolvidas.
Os dados, transcritos a partir da videogravação, foram configurados em
formato de episódios tendo como base a matriz microgenética (GÓES, 2000;
KELMAN & BRANCO, 2004). Essa forma de análise é caracterizada por ser
uma forma de estudo de material empírico “que requer a atenção a detalhes e
o recorte de episódios interativos [...] resultando num relato minucioso dos
acontecimentos” (GOÉS, 2000, p. 9). Consiste, portanto, na interpretação de

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micro-eventos e surge, a partir da interpretação do aqui e agora das ações e


interações diante de uma situação problema, em que processos mentais muito
complexos e ricos podem ser observados” (KELMAN & BRANCO, 2004, p. 95).
Assim, por meio desta abordagem de construção dos dados, percebemos a
emergência das atividades psicológicas em seu contexto de ações específicas;
no momento em que elas ocorrem. Portanto, em movimento, contextualizada e
processual, focalizando, a partir de as questões intersubjetivas, dialógicas e
mediacionais (ABREU, 2019).
Vale explicitarmos que as videogravações foram realizadas tanto nos
momentos em que não houve a participação direta da pesquisadora, quanto
em outras situações em que a pesquisadora interveio de modo espontâneo e/
ou planejado em uma determinada situação imaginária. Sobre isso, Werner
(1999) defende que o pesquisador assume o papel de sujeito, não apenas
ativo, mas precisamente interativo quando constitui um vínculo ou contato
direto com a criança investigada. Freitas (2012) complementa: “Ele (o
pesquisador) não é um ser humano genérico, mas um ser social, faz parte da
investigação e leva para ela tudo aquilo que o constitui como um ser concreto
em diálogo com o mundo em que vive” (p. 29).
No contexto da pesquisa7, participaram seis alunos com diagnóstico de
TEA, todos do gênero masculino. Convém sublinhar que algumas crianças43
do segundo período (na faixa entre 4 e 5 anos de idade) aparecem em alguns
dados, pois dividiam o horário do parquinho com os alunos da classe especial
(participantes dessa pesquisa) e dos momentos do brincar em sala de aula.
Para responder aos objetivos delineados para este texto, nos propusemos a
apresentar dois episódios em que se destacavam os seguintes participantes:
Lui e Gil8. Lui estava com 4 anos à época da pesquisa. Ele frequentou o
Programa de Educação Precoce9 por apresentar diagnóstico de TEA com
atraso na fala, hiperatividade, transtorno do sono. Estava oralizado, porém,
falava frases curtas com omissão de artigos e/ou preposições. Gil, com 4 anos,
também frequentou o Programa de Educação Precoce. Ele apresentava atraso
significativo na linguagem, movimentos estereotipados, dificuldade de
interação, isolamento e pouco contato visual. Na época da pesquisa,

7 Os dados aqui apresentado fazem parte de uma pesquisa mais ampla denominada
“supressão”, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa supressão.
8 Seguindo os princípios éticos da pesquisa em Ciências Sociais, os nomes dos participantes
foram trocados.
9“Destina-se a crianças de 0 a 3 anos e 11 meses que apresentem atraso no desenvolvimento
e que se encontrem em situações de risco, de prematuridade, com diagnóstico de deficiências
ou com potencial de precocidade para altas habilidades/superdotação” (DISTRITO FEDERAL,
2010, p. 103).

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encontrava-se parcialmente oralizado. As duas crianças já haviam passado por


vários exames clínicos tradicionais (realizados por médicos e psicólogos) que
atestavam o TEA.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Nos episódios que serão apresentados a seguir, buscamos identificar


momentos em que as crianças com TEA transgrediram o significado e o uso
funcional do brinquedo (objeto), desvinculando-se do contexto perceptível e
adentrando na situação imaginária. Merece destacar que a ação do brincar se
caracteriza pela utilização de recursos expressivos, corporais e, principalmente,
pela emergência da linguagem verbal. A forma como esses elementos se
afetam mutuamente parece alterar de maneira substancial o faz de conta,
tornando-o mais complexo, conforme será discutido nos dados e análises
apresentados a seguir.

Episódio 01 (Lui): Segura, peão!

As crianças estão na sala fazendo atividade, ao seu término, sentam no


chão, tiram os sapatos e se preparam para a hora do parque. Ao chegarem no
parque, cada uma escolhe um brinquedo ou brincadeira de sua preferência. Lui
entra correndo no parque e vai direto para o balanço de pneus. De repente,
corre até a caixa dos brinquedos (que fica do outro lado do parque, no lado
oposto ao balanço). Ele se abaixa e pega uma caçamba de caminhão que está
no meio dos brinquedos. Lui, então, volta correndo para o balanço de pneus
com a caçamba na mão. Coloca a caçamba em cima do pneu (como se fosse
um assento extra) para balançar sem cair dentro dele. Ele senta no balanço, se
ajeita, mas não consegue balançar sozinho. A professora se aproxima e
começa a empurrá-lo no balanço, pelas costas. De repente, balançando, ele
solta uma das mãos, levanta o braço e grita, sorrindo, enquanto a professora o
empurra:
– Seguura, peão!
Lui sorri e continua balançando. A professora para de empurrar o
balanço e, aos poucos, ele vai perdendo velocidade. O balanço para. A criança
desce e vai brincar de outra coisa.

Episódio 02 (Gil): Achando um tesouro!

As crianças estão no parque brincando na areia com pás e baldes.


Nesse momento, estão presentes também os alunos da sala verde, isto é, do

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segundo período da Educação Infantil10. Fernanda (aluna do segundo período)


cava com as mãos um buraco na areia. Gil, que está sentado no chão, ao lado
dela, tenta cavar um também, mas com um pedaço de madeira. Fernanda fala:
— Eu estou achando alguma coisa, tia!
A pesquisadora questiona:
— Está achando? O que você tá achando, aí? Um tesouro? O que é que
você tá procurando?
Luana (também do segundo período) se aproxima e ajuda Fernanda a
cavar. Gil tenta cavar o buraco com as mãos sem nenhuma pá. A pesquisadora
incentiva Gil:
— Ajuda elas a procurar o tesouro, Gil! Cava também, vai!
Gil se levanta, olha para as meninas cavando e sai correndo para o
outro lado do parque. A pesquisadora questiona se Gil não vai continuar na
brincadeira com as meninas:
— Vai não?
Gil volta depois correndo com uma pá na mão. A pesquisadora então
fala:
— Ah, o Gil foi pegar a pazinha para cavar o tesouro. Isso, Gil! Muito
bom! Para cavar e achar o tesouro, tem que ter uma pá. Quem vai achar o
tesouro, hein? Quem vai achar esse tesouro?
Gil senta no chão e ajuda as meninas a cavar o buraco na areia. A
pesquisadora mais uma vez incentiva as crianças:
— Vamos lá! Vamos cavar bastante! Será que tem ouro ali embaixo, um
tesouro, uma moeda? Será que tem uma moeda aí embaixo? Vamos cavar,
vamos procurar a moeda!
Gil olha, sorri para a pesquisadora, e fala:
— Achei, moeda! – se referindo a areia que estava na sua mão.
A pesquisadora questiona:
— Você achou a moeda, Gil?
Gil olha para a pesquisadora, sorri e balança a cabeça confirmando:
— Aham!
A pesquisadora pergunta:
— Cadê a moeda? Guarda!
Gil não mostra a “moeda” (areia), apenas sorri e continua cavando.
Fernanda encontra uma pedra, coloca na sua palma da mão e mostra
para a pesquisadora:
— Aqui, ó!

10Na organização dos tempos e espaços da escola os alunos do segundo período da


Educação Infantil dividiam o horário do parquinho com os alunos da Classe Especial.

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A pesquisadora responde:
— Guarda ... é ouro!
Luana também cava e encontra uma pedra, e mostra para a
pesquisadora:
— Aqui, ó!
A pesquisadora sorri e faz um gesto de legal com o polegar. Em seguida,
fala com Gil:
— Você achou também?
Gil responde:
— Achei uma moeda!
Gil olha para a pesquisadora sorrindo e mostra a palma da mão cheia de
areia.
(...)
Verificamos, a partir da análise dos episódios descritos que, diferente do
que relata a literatura clássica sobre o TEA (Kanner, 2012; Klinger & Souza,
2015; Rivière, 2004; Tamanaha et al, 2006; Williams & Wright, 2008), as
crianças brincam envolvendo-se em situações imaginárias. Isso ocorre porque
os dados apontam que elas são capazes de agir não somente de acordo com o
que veem, mas conseguem transpassar a realidade imediata-concreta.
Nos dois episódios, as crianças estão no parque. Cada uma organiza
suas brincadeiras e utilizam os brinquedos de acordo com suas preferências.
As crianças com TEA, observadas nesses episódios, compõem suas
brincadeiras conforme seus interesses e com muita liberdade de escolha de
materiais e exploração do espaço físico da escola.
O episódio 01, por exemplo, aconteceu nos primeiros minutos de
brincadeira no parque. Nesse momento, as crianças do segundo período, que
costumavam dividir o horário daquele espaço com as crianças da Classe
Especial, não tinham chegado ainda. Geralmente, no momento do parque, as
crianças ficam mais à vontade, sem mediação direta das professoras. As
docentes assumem um papel de observadoras, intervindo e/ou participando, às
vezes, da brincadeira. Quando necessário, elas mediavam situações de conflito
entre as crianças.
No episódio 01, percebemos que Lui sai correndo e se dirige ao balanço
de pneus. Esse balanço parece ser um dos brinquedos prediletos dele, pois,
comumente, ele gostava de brincar por ali. A ação dessa criança em escolher
um brinquedo contradiz diversas pesquisas que apontam a falta de interesse
da criança com TEA diante de brinquedos e/ou brincadeiras (RODRIGUES &
SPENCER, 2015), afirmando a incapacidade para brincar, principalmente de
faz de conta. Ou, ainda, assim como as investigações que consideram o modo
de brincar da criança com TEA estranho e/ou desprovido de sentido (KANNER,

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2012; RIVIÈRE, 2004 entre outros). Lui, entretanto, parece nos mostrar o
contrário. Ele está bem entretido com sua brincadeira e percebe que falta algo,
o assento extra. Assim, ele sai correndo para o outro lado do parque (oposto ao
do balanço) e vai até a caixa dos brinquedos. Dentro dela pega a caçamba de
caminhão e sai correndo com ela na mão em direção ao balanço. De volta, a
coloca em cima do pneu e senta nele — no assento extra, preparando-se para
começar a brincadeira. A partir dessa iniciativa, percebemos que Lui entendeu
a funcionalidade da caçamba ao se dirigir para buscá-la – sem que ninguém o
orientasse. Lui demonstrou ter independência e autonomia para solucionar o
problema com o qual se deparou no uso do brinquedo. Ele se ajeitou no
assento extra. Segurou firme as correntes de metal que sustentam o balanço e
se preparou para balançar. No entanto, não conseguiu fazer isso sozinho. Seus
pés não tocavam o chão, o que dificultava impulsionar o corpo para frente,
impedindo o brinquedo de se mover. Assim, a professora, que já estava
observando suas ações, aproxima-se para ajudá-lo. De repente, Lui, com o
balanço em movimento, solta uma das mãos da corrente, levanta o braço para
cima, sorrindo e, acompanhado de uma gestualidade específica, grita:
— Seguura, peão!
Podemos deduzir que, nesse momento, o menino atua no plano
imaginativo, se desprendendo do campo perceptual imediato. “Segura peão!”,
por exemplo, é uma frase usada pelos vaqueiros ao domar os touros nas festas
de rodeio, mas também muito empregada nas brincadeiras com touros
mecânicos. Parece-nos que o movimento do balanço remete Lui à lembranças
de cenas típicas desse cenário cultural. Cenas que ele pode ter vivenciado
direta ou indiretamente. Afinal, a criação não surge do nada, mas é oriunda de
nossas experiências culturais; daquilo que vivemos em nosso cotidiano.
Nessa linha, é importante salientar que há indícios de que Lui substitui o
significado concreto do objeto (balanço) por outro (imaginado): o balanço
transforma-se em cavalo ou touro. Aqui, o balanço opera como o objeto pivô da
brincadeira criada por Lui, pois dá a sensação corporal de ir para frente e para
trás com o corpo (como ocorre com o peão em cima do touro). No episódio 02
(Achando um tesouro!) Gil também transforma a areia em moeda. Ou seja, ele
altera o significado do objeto; evidências da flexibilização do significado do
objeto pivô, conforme analisaremos mais adiante (sobre isso ver: ELKONIN,
2009; LEONTIEV, 2014; PINTO E GÓES, 2006; SILVA, 2002, 2012; SILVA,
COSTA & ABREU, 2015; TOLENTINO, 2015; VIGOTSKI, 2008).
Autores da Perspectiva Histórico-Cultural, mais especificamente Vigotski
(2007), Leontiev (2014) e Elkonin (2009), dedicaram-se ao estudo sobre o uso
do objeto pivô na constituição e significação da atividade do brincar pela
criança. Para eles, o uso desse objeto está associado à ruptura da criança com

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o real imediato durante a brincadeira. Isto é, na situação imaginária, o


brinquedo (objeto) possibilita à criança sair do campo perceptual imediato-
concreto e atuar no campo imaginativo. A ação da criança passa a ser
orientada pelo sentido que ela atribui ao objeto e, não apenas, pelo seu uso
ordinário e funcional.
No episódio 01 (Segura, peão!), um outro aspecto merece nossa
atenção; o balanço virou cavalo/touro porque o corpo, o movimento e a
palavra, em uma relação dinâmica, estavam presentes e amalgamados na
constituição da situação imaginativa para composição da cena. Lui grita: —
Seguura, peão!, mas o que revela que ele está em cima de um cavalo não é
somente a enunciação é também o gesto representativo de levantar o braço,
como fazem os peões de torneios.
Vigotski (2007) argumenta que, na brincadeira, o mais importante é a
possibilidade que tem a criança de utilizar objetos como brinquedos, mais
ainda, de executar com eles um gesto representativo, tal qual observado no
episódio descrito. Nas palavras do autor, “uma trouxa de roupas ou um pedaço
de madeira, torna-se no jogo, um bebê, porque os mesmos gestos que
representam segurar uma criança ou o dar-lhe de mamar podem ser aplicados
a eles” (p. 130). Portanto, para o autor, toda a representação é dotada de
gestos indicativos. Isto é, para Lui, o balanço só virou cavalo/touro porque as
condições do movimento do balanço e a posição na qual se encontrava seu
corpo (sentado) possibilitaram representar o cavalo/touro. Caso contrário, tal
situação imaginária não seria possível, ou menos provável de ocorrer. Para
Vigotski (2007), os gestos podem ser analisados como sistemas complexos
que comunicam e apontam os significados dos objetos presentes na
brincadeira, consolidando o enredo e a cena imaginativa.
Nos episódios descritos acima observamos uma intrínseca relação entre
os gestos e o objeto pivô. Para melhor compreensão desse processo, Leontiev
(2014) argumenta que estão presentes na brincadeira dois elementos
essenciais que constituem o brincar, a saber: a ação e a operação lúdica. Em
termos gerais, a ação corresponde ao objetivo para o qual ela caminha. Nas
palavras do autor: “Toda a ação tem um objetivo consciente para o qual ela se
dirige” (LEONTIEV, 2014, p.125). Por exemplo, quando a criança transforma
uma vara em um cavalo, o foco da ação não está em montar em qualquer
coisa, ou em qualquer lugar, mas em um cavalo. A operação lúdica, por sua
vez, são os meios pelos quais a ação se realiza. Leontiev (2014) resume: “a
operação corresponde à madeira e a ação, ao cavalo” (p.125). Por essa via
podemos perceber que existe um outro aspecto central na constituição da ação
lúdica: a contradição presente no brincar. No exemplo por dado por Leontiv
(2014), a criança deseja montar um cavalo, mas essa ação está muito além de

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suas capacidades objetivas. Deste modo, no brincar, a criança se depara com


um conflito, uma tensão entre o querer e o poder. Isto é, a criança manifesta
uma necessidade não somente de agir sobre os objetos possíveis, acessíveis a
ela, como também de se apropriar integralmente dos objetos do universo
adulto.
No episódio 02 (Achando um tesouro!), evidenciamos também a
configuração do objeto pivô, como dito anteriormente. Gil age para além do que
vê, descola-se das amarras situacionais e imediatas (PINTO & GÓES, 2006),
criando, junto com suas colegas e a pesquisadora, um enredo que altera as
características permanentes impostas pelo real.
Quando Gil passa a cavar o buraco também com as mãos, sem o uso da
pá, como fazem as colegas, sua ação parece ser descompromissada e
imitativa – afinal, frequentemente, no parque, as crianças brincam de cavar
areia. Porém a situação muda radicalmente quando Fernanda fala: — Eu estou
achando alguma coisa, tia! E a pesquisadora na sequência introduz o tema do
tesouro. Neste momento, Gui entra na brincadeira e muda radicalmente a
qualidade de sua participação na brincadeira. Tão logo a pesquisadora motiva
Gil a cavar para achar um tesouro, ele larga tudo, sai correndo e volta com uma
pá na mão. Gil altera a dinâmica do faz de conta, incluindo elementos novos (a
pá), sugerindo que o seu uso é mais adequado para o desenvolvimento da
ação de cavar um buraco.
A composição da cena vai se modificando, se complexificando, por meio
da medição ativa da pesquisadora. Ela medeia a brincadeira, favorecendo o
processo de criação e reelaboração da ação imaginativa das crianças. A
pesquisadora incentiva a atividade das crianças pela palavra: — Vamos lá!
Vamos cavar bastante! Será que tem ouro ali embaixo, um tesouro, uma
moeda? As crianças agem conforme a nova situação proposta.
Nesse episódio, a interação adulto-crianças e criança-criança, marcada
pela linguagem constitui elemento central e impulsionador do processo de
imaginação e criação da brincadeira. A participação da pesquisadora amplia os
modos de elaboração das crianças no decorrer da situação imaginária. Nessa
direção, o outro (adulto ou outra criança) tem papel central no processo de
configuração do brincar no universo infantil, ao “atribuir sentidos aos gestos e
movimentos da criança, interpretando-os como brincar” (CRUZ, 2015, p. 71). É
pela mediação do outro que a criança converte os elementos da cultura,
adentrando o campo de significações.
Na sequência, Gil grita que achou uma moeda em resposta à fala da
pesquisadora. Ao ser questionado se achou mesmo a moeda, ele confirma com
a cabeça, mas não mostra nada. A pesquisadora insiste em saber onde está a
moeda, instiga Gil, mas ele apenas sorri e continua cavando. No entanto, as

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outras duas crianças brincantes entram também na cena e apresentam à


pesquisadora a moeda em forma de pedras. Ou seja, elas transformam o
significado do objeto, fazem uma transgressão do real pelos recursos
imaginativos ao converter a pedra em moeda. Gil parece estar em sintonia com
suas colegas, de modo que sorri para a pesquisadora e mostra a mão cheia de
areia, dizendo que também achou uma moeda.
Aqui, tal qual vimos no episódio 01, indubitavelmente, gestualidade e
palavra compõem o cenário imaginativo. De acordo com Smolka, “palavras e
gestos possibilitam transformar uma coisa em outra” (2009, p. 16). Assim como
a ação das meninas em tornar a pedra em moeda, Gil transforma o punhado
de areia em moeda, dando um mesmo significado (moeda), mas utilizando um
outro objeto pivô (areia). Isso diferencia as escolhas de objeto-pivô entre Gui e
suas amigas. Ele “age com o brinquedo, mas se descola daquilo que ela vê
objetivamente. Esse deslocamento perceptivo só é possível porque o
brinquedo é o objeto-pivô da ação lúdica” (supressão, autor). Importante
destacar nessa análise que, em termos de conformidade significado-objeto,
conforma analisaremos logo adiante (LEONTIEV, 2014), a pedra é mais
adequada a representação da moeda do que a areia. Não temos elementos
suficientes para explicar o porquê dessa escolha de Gui. Também não
queremos ignorar a possibilidade de ser algo relacionado à condição particular
de Gui. Contudo, o que nos interessa, aqui, é demonstrar que essa diferença
não impede o desenvolvimento da situação imaginária.
Nesse episódio, as ações de Gil (mais uma vez) contrariam pesquisas
(KANNER, 2012; RIVIÈRE, 2004) que destacam a inflexibilidade do
pensamento da criança com TEA e a dificuldade de agir no campo das
significações, mais especificamente, na esfera lúdica. Em síntese, no momento
de transgressão do objeto pivô, conforme evidenciado nos dois episódios, as
crianças passam a operar com o significado, distanciando-se do real. Essa
forma de composição do brincar promove o desenvolvimento do pensamento
abstrato da criança (Vigotski, 2008). Ao substituir um objeto por outro, a criança
foge das restrições situacionais (COUTO, 2013; TOLENTINO, 2015;
VIGOTSKI, 2009). Isso implica que, na brincadeira, “[...], cria-se uma nova
relação entre o campo semântico, isto é, entre a situação pensada e a situação
real” (VIGOTSKI, 2008, p. 36).
Nos dois episódios analisados, constatamos que Lui transforma o
balanço no cavalo; Gil transforma o punhado de areia em uma moeda. Há uma
alteração na interpretação do objeto que passa a adquirir um outro sentido.
Sobre isso, Leontiev (2014) explica que há uma cisão entre o sentido e o
significado na atividade lúdica: “Em uma ação produtiva normal, o significado e
o sentido estão sempre ligados de uma certa maneira. Isso não ocorre nas

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ações do brinquedo” (p. 128), pois a atividade lúdica da criança envolve uma
ação generalizada. Isso significa que, ao brincar de ser motorista, por exemplo,
a criança imita um motorista qualquer (as ações e funções prototípicas) e não
exatamente aquele único motorista que ela conheceu em um dia determinado.
Ou seja, a criança não se preocupa em representar a ação específica de um
motorista singular, mas se dedica a reproduzir as ações gerais de ser motorista
(de dirigir). Em outras palavras, a brincadeira possui caráter generalizador.
Sendo assim, os modos de ação e as condições do jogo podem amplamente
sofrer mudanças. Entretanto, essas não são de infinitas possibilidades, visto
que as operações lúdicas dependem das possibilidades dadas pelo real
(representar com coerência as ações que representam o motorista).
Nessa lógica, Leontiev (2014) argumenta que, na brincadeira, nem tudo
pode ser tudo: “nem todo objeto pode representar qualquer papel na
brincadeira, ou mesmo brinquedos podem desempenhar diferentes funções,
dependendo de seu caráter, e participar diferentemente da estrutura do jogo”
(p. 131). O autor explica que um lápis pode ser uma pessoa; um relógio, uma
farmácia; mas uma bola macia não poderá ser uma pessoa que precisa ir até à
farmácia comprar um remédio. Isto porque, a ação imposta não pode ser
executada usando a bola. Esse objeto não possui a característica andar, que é
essencial para a configuração da situação imaginativa, inviabilizando a
continuidade da brincadeira. Assim, a criança a interrompe, mas logo reinventa
outra, configurando novas ações, consequentemente, novas operações
lúdicas.
Ao longo da nossa análise e dos episódios apresentados, foi
evidenciada a emergência de processos de significação nas crianças com TEA.
Tais momentos não ocorreram da mesma forma, com a mesma intensidade ou
quantidade, quando comparamos com as crianças com desenvolvimento típico.
Mas contrariam as pesquisas tradicionais que defendem que não há
refinamento simbólico no funcionamento imaginativo da criança com TEA.
De acordo com Vigotski (2008, 2009), fazer a separação da ideia
(palavra) do objeto é um processo mental complexo. Essa premissa se aplica
para toda e qualquer criança, inclusive para as com TEA. Desta maneira, a
participação, a mediação do outro por meio dos instrumentos e signos (em
especial a linguagem) caracteriza-se como elemento indispensável e essencial
na constituição do brincar de qualquer criança.
Cruz (2015), ao estudar o brincar na infância, discute a constituição e o
desenvolvimento da brincadeira. A autora defende a importância do outro no
faz de conta, advogando que a atividade lúdica é uma esfera de aprendizado.
Afinal, aprendemos a brincar! A autora afirma que entre as primeiras
experiências da criança com o objeto (brinquedo) até a emergência do faz de

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conta, há um longo e complexo processo em que o outro assume papel


essencial. As crianças não nascem sabendo brincar. Elas brincam porque
outros brincam com elas. Dito de outra maneira, as orientações dos adultos são
fundamentais para o processo de aprendizagem e desenvolvimento do brincar
das crianças e do uso dos objetos-brinquedos, como vimos nos episódios
acima explicitados em que o papel da professora e da pesquisadora são
fundamentais. São os adultos brincando com crianças e crianças brincando
entre si que emergem as infinitas possibilidades de utilização dos brinquedos e
de desenvolvimento da situação imaginária.

CONCLUSÕES

Ao longo deste trabalho, trouxemos as contribuições da Perspectiva


Histórico-Cultural sobre a importância da brincadeira para o desenvolvimento
do psiquismo. A partir de então, traçamos um panorama geral sobre as
pesquisas que tematizam o faz de conta da criança com TEA, evidenciando
que as investigações clássicas preconizam a impossibilidade de elas
imaginarem e, portanto, brincarem. Em contrapartida, as mais recentes
pesquisas, tendo o pensamento de Vigotski como referencial teórico,
demonstram que a criança com TEA apresenta indícios de incorporação de
papéis e desenvolvimento de situações imaginativas.
Neste texto, nosso foco de análise foi discutir o papel (uso) e a
flexibilização do brinquedo na constituição do faz de conta dessas crianças.
Destacamos a complexificação do brincar, que passa do uso funcional
(convencional) do brinquedo até a adequação ao significado atribuído ao objeto
(uso do objeto pivô) pela criança, a depender do objetivo e contexto da
brincadeira. Verificamos que as crianças pesquisadas atribuem um novo
significado a um objeto, como demonstrado nos episódios. Elas saem do
campo perceptivo imediato e atuam no universo imaginado.
Em relação ao papel do outro, que se evidencia mais claramente no
episódio 02, vale a pena reiterar a intencionalidade por parte do adulto na
mediação da brincadeira de faz de conta da criança com TEA. Entendemos
que o outro promove o desenvolvimento, podendo conduzir qualitativamente os
momentos da brincadeira das crianças. O dado indica que, com a mediação do
outro, elas podem agir para além de suas competências habituais.
Por fim, a partir dessas considerações foi possível rompermos com
paradigmas estabelecidos historicamente de que a criança com TEA não
brinca. Vimos que no e pelo faz de conta, ela (re)corta (re)combina, (re)inventa
os aspectos do real de forma autoral. Apontamos, contudo, a necessidade de
maiores estudos sobre a temática a fim de ampliar a discussão e propiciar

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mediações e intervenções mais qualificadas às crianças com TEA nos espaços


educacionais e terapêuticos.

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