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A GRANDE VIAGEM: CONHECE-TE A TI MESMO

A temática da viagem tem uma importância fundamental na maçonaria. O compromisso


maçônico é visto como um percurso. E sem grande exceç ão, n ão de grau, de lendas
aferentes, sem ideia de encaminhamento, de viagem em stricto sensu, de busca … O
maçom, especialmente a partir do segundo grau é convidado a ir ao encontro do outro,
que muitas vezes é apenas ele mesmo. Mas é toda a vida que passa por uma grande
jornada desde o nascimento até a morte … e talvez além. Uma grande viagem com suas
provas, seus objetivos, suas alegrias, suas dores, respondendo a esquemas narrativos
constantes cuja consideração assegurará o sucesso do percurso: o confronto consigo
mesmo provavelmente passando por uma – ou várias – transformaç ão).
Alguns puderam fazer da viagem o primeiro – se não único – modelo do mito. Este é
notavelmente o caso conhecido do mitógrafo Joseph Campbell e seu conceito de
monomito (1), que ele desenvolveu em seu best-seller O herói de mil e um rostos (2). E
mesmo que seu esquema possa às vezes ser contestado, ele n ão deixa de ser uma
referência e sua estrutura será um bom ponto de partida para abordar o lado iniciático-
transformador da viagem.
Sobre a ideia da viagem em maçonaria … e em outros lugares
Essa dimensão transformadora da viagem é, logicamente, um elemento importante da
maçonaria, em cada acesso a um novo grau, como ela o é de quase todas as mitologias
ou lendas fundadoras do mundo. Vale a pena mencionar, entre muitas outras histórias
de jornadas iniciáticas, o livro bíblico de Êxodo, a Odisseia de Homero – cujos nomes s ão
agora sinônimos de grandes viagens – mas ainda a viagem de Bran / Saint Brendan, as
sagas escandinavas, o épico de Gilgamesh, as grandes viagens ao mundo dos mortos
(Osíris, Orfeu, Enéias, Balder …), o asno de ouro de Apuleio, as histórias do Caminho de
Santiago ( o “Campo da Estrela”), as gestas Arturianas com sua busca pelo Graal, até o
Mapa de Tendre do século XVII, de Gulliver e Pinóquio, vem como contos de fada, a
Viagem ao centro da Terra de Verne, ao Senhor dos Anéis de Tolkien, à Viagem
profundamente iniciático-transformadora ao Oriente de Herman Hesse, até mesmo ao
Alquimista de Paulo Coelho e mesmo Tintin (3)? Se encontramos em algumas dessas
histórias, um eco das grandes migrações originais de povos nômades de caçadores-
coletores, elas são principalmente evocações de metamorfoses de personagens em busca
de algo para finalmente encontrarem a si mesmos. Será que nos surpreenderá que a
maioria dos maiores “iniciados” – alguns dos quais s ão exaltados na maçonaria – sejam
também caminhantes: Jesus, Buda, Maomé, Aristóteles … Este processo de
transformação não é sem paralelo com a abordagem hermético-alquímica, que subjaz a
certos ritos maçônicos. “Sobre a tradição hermética, escreve J.E. Bianchi, reteremos o
significado que nossos ancestrais nos deram desde a Antiguidade até a Renascença
incluída. Trata-se de um ensinamento secreto, iniciático, conhecido até na China, já
praticado pelos gregos e os árabes, esse ensinamento veio até nós sob a forma de uma
“técnica”: a Alquimia, onde o Aprendiz Maçom encontra os símbolos pela primeira vez
na câmara de reflexão [pelo menos no Rito Escocês Antigo e Aceito]. (4) E mais adiante:
“A alquimia não pode ser classificada como ciência física, mas (…) deve ser entendida
antes como um conhecimento estético da matéria, situado entre a poesia e a
matemática. Ela empresta seus princípios da metafísica e, tradicionalmente, também
encontra seu lugar entre o universo dos símbolos e o mundo dos números sagrados.
Simbolicamente, pode-se dizer que os materiais reais teriam se transformado em ouro se
tivessem permissão para “crescer”, à medida que o iniciado crescesse espiritualmente
através do trabalho sobre si mesmo. “(5)
Seguramente, com a alquimia, é uma questão de ciência, mas também, conforme
observa Bianchi, de “poesia”. E alegorias de viagem não faltam, seja em formas literais ou
sob o véu de algumas imagens subliminares, às vezes transmitidas por aquilo que muitos
– a começar pelos alquimistas – chamavam de “linguagem dos pássaros” – a linguagem
do céu na terra ou da terra ao céu (não podemos deixar de ver aqui uma
correspondência direta com a sentença fundamental da Mesa de Esmeraldas de Hermes
Trismegistus, “O que está em baixo assim como o que esta em cima”). Esta linguagem
“hermética” joga com as palavras. Há exemplos bem conhecidos, como o famoso “O
Mercúrio é um Sal” de Fulcanelli, que, por trás dessa evidência química, pode ocultar
uma fórmula espagírica “Mercúrio-estanho-sal” ou um igualmente explícito e inspirador
“The Mercúrio brilha”. Quanto a Compostela como o objetivo da voagem sagrada, a
peregrinação, ela se transforma em “componst-asa”: o composto de matéria-prima se
transforma em volátil (pela alquimia da estrela). E já que estávamos falando sobre A
Mesa de Esmeralda acima, essa linguagem volátil facilmente nos impressionará – e, com
relação a nosso assunto – um “aime – (la) rode”, um apetite por rondar, navegar, buscar
… (os jogos de palavra somente têm sentido em francês).
Para esta “linguagem secreta” os trovadores occitanos tinham um termo: trobar clus, a
arte de trovar – sua arte poética – “fechada”. Mas se, para os linguistas, o termo trovar –
que deu “trovador” – pode ter significado, a partir do século XII, “compor [em verso]”,
“inventar”, originalmente, e como seus equivalentes do Norte, os “Trouvères”, esse nome
veio da raiz latino-occitana de “encontrar”, “descobrir” …
É aqui que, na nossa peregrinação poética e hermética, voltamos ao nosso tema da
viagem. Porque a origem mítica desta sociedade de trovadores – que quase nos
sentiriamos tentados a chamar de “alquímico-especulativa”, mas isso é ainda outra
história – nos remete a uma das grandes narrativas de viagem: a de Jason e os
Argonautas partindo em busca do Velocino de Ouro. Segundo sua lenda, o primeiro
trovador da história teria se chamado “Salvador”, que n ão é nada mais que o significado
do nome grego, Jason (ou ainda “Curandeiro”).
O velocino de ouro teria sido o supremo segredo iniciático que os trovadores, os
“buscadores de ouro” da Occitânia, iam buscar e cujos mistérios eles ocultavam sob a
alegoria de sua linguagem secreta. “A fábula do Velocino de Ouro”, escreveu Fulcanelli,
“é um completo enigma do trabalho hermético que deve terminar na Pedra Filosofal. Na
linguagem dos Adeptos, chama-se Velocino de Ouro o material preparado para a obra,
assim como o resultado final. (6) Em o Asno de Ouro de Apuleio (século II), já
mencionado acima, esta verdadeira viagem iniciática mascarada sob um passeio
libertino, Psique é ordenada por Vênus a se apossar do velocino de ouro de ovelhas
assassinas. Quanto a Newton, ele considerava em A Cronologia dos antigos reinos
corrigida que muitas das constelações refletiam uma evocaç ão da epopeia dos
Argonautas. O que está acima é como o que está abaixo…
A viagem como elemento transformador
A lenda de Jasão, em seu aspecto particularmente arquetípico, fornece uma boa
oportunidade para retornar a Campbell e seu monomito. Se seus trabalhos
“narratológico”, baseados no estudo de diferentes mitologias, inspiraram muitos autores,
contadores de histórias e cineastas, de Georges Lucas para sua série Star Wars a
Spielberg, passando por Coppola ou Georges Miller e muitos outros, ele mesmo se
inscreve na esteira de Carl-Gustav Jung e sua psicanálise dos arquétipos.
De acordo com Campbell, é através do monomito da viagem que a transformaç ão – até
poderíamos dizer transmutação – do herói deve vai se manifestar. É um verdadeiro
processo alquímico que ele define: “A aventura mitológica do herói segue um itinerário
típico que é uma ampliação da fórmula expressa nos ritos de passagem: separaç ão-
iniciação-retorno, uma fórmula que poderia ser definida como a unidade nuclear do
mito. (7) Separação (ou partida) – iniciação-retorno … Tem-se aí quase o ternário
alquímico da Grande Obra entre Putrificação / Dissoluç ão-Purificaç ão-Rubificaç ão /
Sublimação (ver quadro). Mas, de uma maneira quase praticamente prática, também se
pode imaginar a viagem através de um modelo simples soprado pela busca arturiana: 1.
Identificar o objetivo da busca. 2. Armar-se bem [encontrar um ou mais guias e adquirir
qualidades físicas ou psíquicas usadas como armas ou armaduras]. 3. Partir [esperar o
momento certo]. 4. A busca em si [associada às viagens e provas em geral triplas,
visando o autocontrole, frequentemente apresentada em forma alegórica do domínio
de um dragão [e claramente seu dragão interior]]. 5. Encontrar.
A viagem do herói (+ imagem de Ulisses)
Campbell decorticou a “viagem do herói” em 17 etapas (que, mais ou menos, ecoam os
mitemas de Claude Lévi-Strauss), divididas entre essas três fases ou “atos” antropo-
alquímicos:
Fase Partida: o herói recebe o chamado; ele está relutante, mas receberá ajuda,
particularmente de um mentor, para cruzar o primeiro limiar e permanecer na matriz
fundadora
O chamado da aventura (problema ou desafio a revelar) 2. A recusa da aventura (medo
do desconhecido); 3. A ajuda sobrenatural (geralmente um sábio mentor, suprimento de
armas mágicas); 4. A transição do primeiro limiar (ponto de n ão retorno até o sucesso);
5. O ventre da baleia (pausa matricial antes da prova) (8).
Fase Iniciação: depois de cruzar o limiar, ele entra em outro “mundo”, onde enfrentará
provas, com ou sem ajuda, até a última prova, a Apoteose, na caverna central, para
alcançar seu propósito, sua transformação, seu “Elixir”, seu Graal.
O caminho das provas; 7. O encontro com a deusa (uma ajuda); 8. A mulher tentadora
(ameaça); 9. O encontro com o pai (outra imagem do mentor no “outro lado”); 10.
Apoteose (a prova final, enfrentando a morte); 11. O dom supremo (a recompensa, o
objeto da busca, o elixir ou uma resposta).
Fase Retorno: o herói deve agora retornar com o conhecimento adquirido. Será que ele
quer agora descobrir uma outra realidade sublime? Por que retornar? Quais provas
ainda lhe esperam, inclusive no ponto de partida, como no caso de Ulisses?
A recusa do retorno (hesitação em retornar a um mundo imperfeito); 13. A fuga mágica
(perseguida pelos guardiões do tesouro); 14. A libertaç ão vinda de fora (ajuda externa);
15. A passagem do limiar no retorno; 16. Mestre dos dois mundos (herói realizado em
duas dimensões, “o que está acima e o que está abaixo”; Livre frente à vida (o herói
transformado é capaz de melhorar a vida de seu mundo original).
Para ter sucesso na busca, é preciso ter-se transformado, corrigido, “curado”. Ao curar o
rei mutilado [“ferido”], graças às boas perguntas que ele lhe faz, Perceval deve se curar
por um efeito de espelho.
O fim do caminho?
“Visite o interior da terra e, por retificação, encontrarás a pedra oculta”, diziam ent ão os
alquimistas [e agora os maçons], que eles sintetizaram na sigla VITRIOL. Muitas buscas
ou viagens alegóricas partem do reino da morte, chegam lá ou pelo menos passam por
ele. No curso transformador da jornada, existe, em todos os sentidos, uma ideia de
morte e renascimento, sob uma forma ou de outra, que é também uma das fontes do
percurso maçônico, em diferentes estágios de progresso – da partida até os cruzamentos
de limite.
No paradoxal Atanor estático de transformação do ser que é a loja, o maçom parte
como o herói viajante passa por crises, provas que ele deve vencer para se transformar…
Mas de onde ele retorna depois seu percurso? A viagem é uma jornada? Um retorno ao
ponto de partida, o que sugeriria uma abordagem alquímica?
“O grande princípio do ensino hermético é a Unidade: “Um e Todo”, que contém em si o
começo e o fim, que se opõe a qualquer divisão como a de eu e n ão-eu ou o ser interior
e o ser exterior. O símbolo que a representa é o círculo, ou a cobra que morde a cauda:
o “Ouroboros”, que ao mesmo tempo representa a Grande Obra, em outras palavras, a
realização total do homem por meio da alquimia espiritual. (9) Essa singularidade
alquímico-espiritual está no coração da viagem, e em particular da grande jornada vida-
morte, que o mito de Er [narrado por Plat ão na República, Livro X] traduz: “A história da
Er nos diz que o cosmos é uma unidade e que somos parte de um grande Todo que
evolui de acordo com leis ordenadas e harmoniosas neste vasto sistema organizado. A
morte é apenas uma etapa no continuum do grande Um “. (10)
Em muitas narrativas, o verdadeiro termo da busca n ão é o sucesso da busca em si, a
realização do objetivo, a aquisição do tesouro visado [ou sua destruiç ão, se é o propósito
redentor invertido, como em O Senhor dos Anéis], mas a capacidade de retornar ao
ponto de partida. O indivíduo deve ser transformado para voltar a transformar o aqui e
agora de seu mundo de origem. O mito de Er, precisamente, ilustra até que ponto,
escalar e ascendente ou descendente conforme possa ser o caminho, sempre se chega a
um momento em que o ser deve operar o caminho oposto.
Alegórica e literalmente, o significado da viagem mudou hoje em dia. Agora em diante
“ignora-se o que estamos almejando. Ignora-se porque somos movidos. (11) Isto é
explicado pelo fato de que “toda a comunicaç ão entre a zona consciente e a zona
inconsciente da psique humana foi quebrada e estamos cortados em dois”. Mas se o
“sentido” da viagem mudou, sua razão de ser fundamental permanece: “O ato a ser
executado pelo atual herói não é mais o mesmo que nos dias de Galileu. Lá onde reinava
a escuridão encontra-se hoje a luz; mas também lá onde a luz estava hoje se encontram
as trevas. A proeza do herói moderno é tentar trazer de volta à luz esta Atlântida perdida
que é a nossa alma reunida. » (12)
📷
Notes:
1: Um termo emprestado de James Joyce, que ele usa em Finnegans Wake.
2: Robert Laffont, 1977 (ed original: O Herói com Mil Faces, 1949).
3: A misteriosa estrela, para citar apenas uma, supostamente reproduz a lenda de Jas ão
e os Argonautas. Sobre esoterismo – em particular alquímico – de Hergé, ver em
particular Bertrand Portevin, O mundo desconhecido de Hergé, Dervy, 2001, e O
demônio desconhecido de Hergé, Dervy, 2004, e Étienne Badot A chave alquímica do
trabalho de Hergé, The Philosopher’s Stone, 2016. https://bibliot3ca.com/arte-e-
maconaria-as-viagens-alquimicas-de-herge-autor-de-as-aventura-de-tintim/
4: Jean-Émile Bianchi, Simbolismo Tradicional e Busca Espiritual, Ediç ões PF, 2017, p. 92
5: Ibid, p. 92-93
6: O Mistério das Catedrais, Pauvert [ed. original, 1926] p. 194.
7: Op. Cit., P. 50 [paginações são levadas aqui da ediç ão de bolso J’ai Lu, 2014]
8: “A ideia de que a passagem do limiar mágico permite o acesso a uma esfera de
renascimento é representada pela imagem simbólica do ventre, vasto como o mundo,
da baleia” Campbell, p. 128.
9: Bianchi, op. cit., p. 93.
10: Liz Greene & Juliet Sharman-Burke, Viagem ao coraç ão dos mitos: mitos como guias
da nossa vida, Dervy, Paris, 2013, p. 291
11: Campbell, p. 515
12: Ibid.
Publicado inicialmente na Revista FM-Franc-Maçonnerie Magazine
Frater Konrad
P.E.M - PESQUISAS E ESTUDOS MAÇÔNICOS

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