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AS LÍNGUAS O TERRITÓRIO
Damián Cabrera2
damiancabrera@usp.br
PARAGUAIO DO PARAGUAI
1
Trabalho final da disciplina A invenção da Língua: Criação e Tradução na Literatura Hispano-Americana
ministrada pelos professores Pablo Gasparini e Meritxchell Fernández Hurtado.
2
Aluno do Mestrado Acadêmico em Estudos Culturais.
Ao redor do topônimo Paraguai tem sido elaborado diversos conteúdos
simbólicos que serviram –que ainda servem- de argumento para economias e práticas
coloniais; desde a Coroa Espanhola e até as mais recentes formas de relacionamento
com o Brasil e com uma economia da produção específica gerenciadora de uma forma
de modernidade que hoje constrói hegemonia no Paraguai. No lugar comum da narração
histórica sobre o Paraguai, desde o Paraguai, tem sido elaborada uma oposição a um
regime imperialista que teria no Brasil o seu ícone fundamental, especialmente com
relação à Guerra do Paraguai; porém a partir da construção da hidroelétrica de Itaipú e o
desmatamento que preparou uma ampla região de bosques para que ela deviesse
território da soja, as consequências e implicações políticas e culturais duma relação
entre Paraguai e Brasil tem se tornado não só mais visíveis senão determinantes em
termos de uma cartografia imaginada em transformação com sentido prático. E é que
sob o topônimo Paraguai é possível percorrer uma documentação diversa que
constituiria um testemunho da geografia política que num passado teria sido
substancialmente diferente da atual. Assim com o nome Paraguai é possível nomear
algo além de uns limites políticos oficiais. Mas o Paraguai não existe, ou não existia
com efeito sobre subjetividades e grupos humanos que habitavam esse território
delimitado pela cartografia colonial: a outrora Província Gigante das Índias era um
reparto administrativo que nada tinha a ver –ou que não necessariamente tinha a ver-
com os afetos dos sujeitos que nele eram, senão com o devir colonial e a distribuição
dos tesouros da conquista. Mas como enxergar além do relato oficial? Um discurso,
uma narração e umas reivindicações territoriais nacionalistas que desenham um
Paraguai imaginado como antigamente maior, e um passado igualmente maior
(“passado glorioso” dirão os hinos escolares). Essa primeira completude imaginária
aparece hoje com o peso traumático da fragmentação, e com uma consequente sensação
de perda atravessando imaginários e práticas discursivas.
Os primeiros mapas nos quais aparece o topônimo Paraguai abrangem uma
ampla região que vai desde as atuais costas atlânticas do Brasil ao leste, o Río de la
Plata na Argentina, ao Sul, e o Matogrosso (Brasil) ao Norte. Mas a relação entre o atual
Estado da república do Paraguai e um território é fruto de um programa muito posterior
que começaria com os projetos de independência da Coroa Espanhola e que teriam sido
delimitados definitivamente com as guerras da Tríplice Aliança e a Guerra do Chaco na
segunda metade do século XIX e na primeira do século XX respectivamente.
“Mediterrâneo”, “coração da América do Sul”, “ilha secreta”, “pequena ilha
rodeada de terra”, “poço cultural”, são algumas das definições hegemônicas do Paraguai
desde os manuais escolares de história, os ensaios e a poesia. Esta imagem é sempre
projetada na interseção com um sentido complexo de falta: não só o isolamento com
relação às metrópoles, mas em função de uma distância do mar, que às vezes é expressa
com o lamento por uma perda injusta. Ora, pois se o documento diz que o mar é
paraguaio, qual é a razão para que ele não seja?
Mas a história do Paraguai está além da historia do seu território. O papel das
línguas no cambiante território imaginado como Paraguai é fundamental: elas foram,
também, importantes na articulação de forças que modificaram espaços, objetos e
corpos. Indagando no conceito guarani de tekoha (território: ou “el lugar donde somos
lo que somos” (RAMOS, 2012: p. 177)), o antropólogo Bartomeu Melià sugere que
“Nada de lo que ha ocurrido en el Paraguay ha estado al margen de sus lenguas, que se
han relaconado entre sí de forma dispar. La historia del Paraguay es la historia de su
lengua guaraní” (MELIÀ, 2011, p. 106). Num livro anterior, El Paraguay inventado, o
mesmo autor se refere às relações entre as dimensões materiais e imateriais como
condição prévia para pensar o Paraguai. “La del Paraguay ha sido una geografía
cambiante en los últimos años, apenas una miniatura de la nostálgica Provincia Gigante
de las Indias (…) dividido por sus no tan invisibles muros de Berlín” (MELIÀ, 1999, p.
21), e passa a sugerir que este território é ainda menor se pensarmos os antigos
territórios guaranis. Mas o guarani é sinônimo do paraguaio?
Território, mar, guarani, paraguaio. Palavras que constituem o pretexto e o ponto
de partida para pensar um cenário móvel de línguas e espaços. E eis o romance do
escritor paranaense Wilson Bueno que alcança com o seu lirismo estas distâncias: Mar
Paraguayo, cujo inquietante prólogo do escritor argentino Néstor Perlongher esboça
desde o título (Sopa Paraguaia) a estranheza de uma obra quebrantadora de limites na
apertura das fronteiras das línguas, mas também dos territórios que os sujeitos abrangem
no seu estar e no seu ir. A sopa paraguaia é dura, não pode ser tomada, senão comida.
Há ali um deslocamento no interior do nome, na natureza da função que invoca o nome.
Em Mar Paraguayo se produzem deslocações e reposicionamentos similares que, em
termos simbólicos, renovam a arquitetura imaginária do lugar: o lugar-espaço desfeito
pelo lugar nas línguas, e o rebatismo restaurador na imaginação de um espaço que foi
sempre imaginário. Uma justiça poética e brincalhona, pelo menos no nome.
NAS PRAIAS DO RIO DE JANEIRO
A FUNDAÇÃO DO INFORTÚNIO DO PARAGUAI
Assim, pareceria que foi necessário um olhar de fora para ver o que acontecia no
Paraguai, essa “realidade que delira” que permanecia invisível aos olhos de próprios.
Barrett produziu obras de ficção, mas é conhecido fundamentalmente pelos seus ensaios
de denúncia sobre a escravidão de campesinos e indígenas nos engenhos de erva mate
no Paraguai em pleno século XX. Já nessa prosa estava presente a imagem do
“infortúnio paraguaio”, na sua série de artigos Lo que son los yerbales e no posterior El
dolor paraguayo; ali estavam o infortúnio, a dor, e a nacionalidade.
Es preciso que sepa el mundo de una vez lo que pasa en los yerbales. Es
preciso que cuando se quiera citar un ejemplo moderno de todo lo que
puede concebir y ejecutar la codicia humana, no se hable solamente del
Congo, sino del Paraguay. El Paraguay se despuebla; se le castra y se le
extermina en las 8.000 leguas entregadas a la Compañía Industrial
Paraguaya, a la Matte Laranjeira y a los arrendatarios y propietarios de
los latifundios del Alto Paraná. La explotación de la yerba-mate
descansa en la esclavitud, el tormento y el asesinato (BARRET, 1978,
p. 121).
O Barrett também sugere quem seriam esses outros aos quais iria destinada a
denúncia: “Los datos que voy a presentar en esta serie de artículos, destinada a ser
reproducida en los países civilizados de América y Europa” (BARRET, 1978, p. 121).
Posteriormente, Roa Bastos elaboraria literariamente as denúncias do Barrett no
seu livro de contos El trueno entre las hojas, e no capítulo Éxodo do seu romance Hijo
de Hombre (no qual também rendera uma homenagem ao escritor espanhol). Esse
mesmo infortúnio das explorações nos ervais será logo esboçado pelo seu
contemporâneo Hugo Rodriguez Alcalá em La doma del jaguar, e no romance Follaje
en los ojos de Juan Bautista Rivarola Matto.
Mas, já em 1930, Hérib Campos Cervera publica o seu poemario Un puñado de
tierra no qual também estão presentes infortúnio e denúncia, onde os sujeitos poéticos
são sujeitos corais ou indivíduos vítimas da opressão do modelo feudal e escravista.
No seu romance Lo dulce y lo turbio de Esteban Cabañas (pseudônimo do
também artista plástico Carlos Colombino, falecido em 2012), sinala-se a fundação
desse infortúnio paraguaio descrito por esses autores. Detrás do infortúnio existiria um
crime fundacional: o assassinato de Juan de Osorio em mãos de Juan de Ayolas e Juan
de Salazar de Espinosa numa praia do Rio de Janeiro, rumo a uma expedição que os
levaria a fundar a cidade de Asunción em 1537. O Paraguai, mas sobre tudo o seu
infortúnio, é fundado na beira do mar. Do mar paraguaio? O fato aparece nas crônicas
do cronista e explorador Ulrich Schmidl quem acompanhara a expedição. Ele escreve
assim:
Después navegamos de esta isla a otra que se llama Río Genna (Río
Janeiro) a 500 millas de la anterior, dependencia del rey de Portugal:
esta es la isla de Río Genna (Río del Janeiro) en Inndia (Indias) y los
indios se llaman thopiss (tuís guaranís). Allí nos quedamos unos 14
días. Fue aquí que thonn Pietro Manthossa, nuestro capitán general,
dispuso que Hanss Ossorio (Juan de Osorio), como que era su hermano
adoptivo, nos mandase en calidad de su lugarteniente; porque él seguía
siempre sin acción, tullido y enfermo. Así las cosas él, Han (Juan)
Ossorio, no tardó en ser malquistado y calumniado ante thonn Pietro
Manthossa, su hermano jurado, y la acusación era que trataba de
sublevarle la gente a thonn Pietro Manthossa, el capitán general. Con
este pretexto él, thonn Pietro Manthossa ordenó a otros 4 capitanes
llamados Juan Eyolas (Juan de Ayolas), Hanns Salesser (Juan Salazar),
Jerg Luchllem (Jorge Luján) y Lazarus Sallvaischo que matasen el
dicho Hanns Assario (Juan Osorio) a puñaladas, o como mejor
pudiesen, y que lo tirasen al medio de la plaza por traidor. Más aún,
hizo publicar por bando que nadie osase compadecerse de Assirio
(Osorio) so pena de correr la misma suerte, fuere quien fuere. Se le hizo
injusticia como lo sabe Dios el Todopoderoso, y que Él lo favorezca;
porque fue aquel hombre piadoso y recto, buen soldado, que sabía
mantener el orden y disciplina entre la gente de pelea (SCHMIDL,
1903).
A HISTÓRIA DO PARAGUAI
É A HISTÓRIA DA SUA LÍNGUA GUARANI
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Mas além da literatura em castelhano e guarani, existe uma vasta “oratura” em outras línguas indígenas,
e textos ‒muitos deles inéditos‒ em alemão e outras línguas européias, que permanecem ignorados.
Servem os mapas literários? Antes de mais nada, são um bom modo de
preparar um texto para analise. Você escolhe uma unidade narrativa
‒passeios, processos, bens de luxo, o que quer que seja‒, encontra suas
ocorrências, as coloca no espaço... ou, em outras palavras, você reduz o
texto a poucos elementos, os abstrai do fluxo narrativo, e os usa para
construir um desses objetos artificiais que vimos até aqui. E, com um
pouco de sorte, estes últimos resultam ser mais do que a soma de seus
componentes: possuem qualidades “emergentes” que não RAM visíveis
no nível inferior (...). Não, que fique bem entendido, que os mapas
constituam já em si mesmos uma explicação, mas, pelo menos, nos
oferece um modelo do universo narrativo que reordena, de modo não
óbvio, as componentes e destas pode fazer emergir os pattern ocultos
(MORETTI, 2008, p. 91-92).
A proposta aqui não é desenhar um mapa e prezar pela sua estabilidade. Parto do
pressuposto inicial de que os mapas do Paraguai ‒ tanto os que estão relacionados à
delimitação política das fronteiras (os mapas “reais”?) como aos que são imaginados
pela literatura ‒ são instáveis e móveis.
Quais são as modificações suscitadas pela transformação do espaço, e quais as
suas relações com as transformações das formas literárias e os movimentos que elas
produzem nos imaginários? O espaço imaginário sofre transformações a raiz das forças
que transformam os espaços reais, e essas transformações são traduzidas à forma
literária. Nos movimentos de confrontação, aproximação e distanciamento das línguas,
pode se imaginar uma fratura na totalidade aparentemente estável do espaço imaginário;
mas estes movimentos das línguas no caso do Paraguai também respondem às
reformulações do território, e ao reposicionamento no espaço real de subjetividades e
territorialidades.
Como ler a ausência do guarani na literatura canônica em espanhol, mesmo que
os seus autores tenham sido de fala castelhana? Como ler as posteriores hibridações
lingüísticas nos textos de autores que não necessariamente falam as duas línguas (ou a
terceira, nos referindo à presença do português na literatura contemporânea do
Paraguai)? Se pensarmos essa hegemonia do castelhano na literatura erudita como uma
presença autoritária do poder da cultura colonial, seria possível sugerir que nessa
disposição autoritária o seu negativo, a língua subalterna, se torna invisível? Parece que
a falta é notada, e assim, como sugere Homi Bhabha na sua metáfora das transparências,
essa disposição da autoridade também revela o seu negativo.
Nas oposições entre as, agora, três línguas hegemônicas na literatura do Paraguai
há espaço para as interferências. Desde a literatura popular que sem pudor algum tem
misturado castelhano e guarani, até as experiências das vanguardas tardias do século
XX onde o português entra em cena. Sem a vigilância de uma academia ‒ que, como a
crítica, é quase inexistente no Paraguai ‒ as formas híbridas na literatura ‒ pelo menos
no que diz respeito à interferência de línguas ‒ tem proliferado com intensidade.
Subsiste hoje o discurso da “cultura autoritária” que poderia negar estas formas, ou
como diz Homi Bhabha “una discriminación entre la cultura madre y sus bastardos, el
yo y sus dobles, donde la huella de lo que es sometido a la negación no es reprimida
sino repetida como algo diferente: una mutación, un híbrido” (BHABHA, 1994, p. 139).
“A realidade que delira” diz Augusto Roa Bastos para se referir ao Paraguai. O
delirante é sempre instável, supõe uma incompatibilidade entre sentido e referente. E
essa instabilidade requer, para cada momento, uma forma possível. O Paraguai é,
cultural, territorialmente, instável. Essa instabilidade se expressa na transformação dos
referentes, e é preciso, para cada momento dessa transformação, buscar uma forma que
os faça sensíveis.
Para todo gênero literário, chega o momento em que a sua forma não
está mais em condições de representar os aspectos mais significativos
da realidade contemporânea (...), quando chega este momento, o gênero
renuncia à própria forma sob o choque da realidade, terminando por
desintegrar-se, ou renega a realidade em nome da forma, tonando-se
assim, nas palavras de Sklovskij, um medíocre epígono (MORETTI,
2008, p. 104).
O TEXTO AUSENTE
The idea of “national literature” came very many centuries later and the
related recastig of some languages as national involved a great deal of
violence and methodical suppression of many other languages that were
either Just debarred from history or reduced to mere local function, in
the name of progress. This hás been true wherever the European model
of nationhood was adopted, as in Turkey for instance, not to speak of
the treatment of the indigenous languages in much of Latin America
(AHMAD, 2010, p. 27-28).
RESTAURAÇÃO DO MAPA
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Existem mapas e crônicas da conquista do Paraguai onde aparece uma centena de povoados e etnias
indígenas que, posteriormente, nunca mais são nomeados. É como se por arte de magia, a simples
enunciação do nome supusesse a desaparição do seu referente. Estes mapas e crônicas antes que
testemunho da existência destes povoados e comunidades indígenas é o testemunho da sua desaparição.
Andando pelas ruas de São Paulo podem ser divisados sinais utilitários que são
produzidos pela geografia e pela cartografia: os topônimos em São Paulo podem surgir
diante de quem habita ou transita a cidade com a estranheza análoga as interferências do
guarani no romance Mar Paraguayo de Bueno. Um falante de guarani pode reconhecer
raízes, partículas, porções de sentido, sentenças e imagens completas nesses topônimos.
A cidade de São Paulo também fala em guarani: os nomes escritos nessa língua ali
“morta” são as ruínas de São Paulo que revivem para o falante de guarani que transita as
suas ruas: em alguns momentos a cidade estrangeira é capaz de falar com o sujeito
falante de guarani na sua própria língua. O sentido que os topônimos albergam
despertam de sua hibernação e a medida que aquele que é capaz de desvelar o seu
sentido se distancia, a palavra volta a dormir, volta ao seu silêncio.
Em 1992, Wilson Bueno publicou o seu livro Mar Paraguayo, com prólogo de
Nestor Perlongher. O livro teria contado com a colaboração do escritor paraguaio Jorge
Canese para os trechos em guarani5. O título do livro parece uma ironia, e o livro,
celebrado em muitos âmbitos, especialmente no acadêmico, é tido como um objeto raro.
Relendo as páginas existe a impressão (como nas ruas de São Paulo) de que ali está
escrita uma possibilidade que parece aberta unicamente para quem é capaz de viver o
texto nas três línguas ali presentes: espanhol, português, guarani. Como a porta da Lei
para o camponês de Kafka: todos os sentidos ali disponíveis.
Reaparece nesse livro a nostalgia do mar, mas também aparece a restauração
poética ‒geo-poética?‒ de um mapa antigo. Mas essa nova ação ‒essa vingança‒ está
inserida numa nova cadeia de reações.
Mar paraguayo é publicado imediatamente depois da caída do regime ditatorial
de Alfredo Stroessner ‒quem morreria no seu confortável asilo político aqui no Brasil‒.
A queda do regime permitiu o retorno ao país de milhares de paraguaios que haviam
fugido do terrorismo de Estado, dentre eles escritores como Augusto Roa Bastos e
Rubén Bareiro Saguier. Os primeiros anos depois da queda da ditadura foram de
expectativa e entusiasmo, a nível político, no nível dos direitos, mas também
culturalmente. Surge uma nova cena.
Em 1994 um escritor do interior, na fronteira com o Brasil, publica um romance
policial intitulado El último vuelo del pájaro campana, ambientado na fronteira, com
trechos em portunhol. Alentado pela obra de Wilson Bueno, Jorge Canese também
5
Isto segundo uma entrevista concedida pelo Jorge Canese ao autor deste artigo em 2012.
começa a publicar os seus livros em portunhol. No fim da década de 90, o escritor e
artista visual Fredi Casco publica o seu livro de poemas Cowboy Brasiguayo. O poeta
brasiguaio Douglas Diegues, proveniente da fronteira seca entre Paraguai e Brasil, visita
Asunción e entra em contato com o escritor Cristino Bogado e o ainda não escritor
Edgar Pou, juntos lêem e publicam a obra de Jorge Canese na editora Jakembó Editores,
e nas posteriores editoras cartoneras, influenciados pelo projeto de Washinton Cucurto
em Buenos Aires. Em 2008 se realiza o encontro Asunción Kapital Mundial de la
Ficción, com a participação de vários escritores e poetas do Mercosul, além de artistas
populares do interior do país, e são produzidas edições de textos em espanhol e
português traduzidos a uma nova língua inventada: o portunhol selvagem, uma mistura
de guarani, português e espanhol, tal como Wilson Bueno havia imaginado.
Este movimento dos mapas das línguas na literatura do Paraguai coincide com
outros movimentos, e talvez não seja um acaso que os principais autores que
introduziram o português na literatura do Paraguai sejam provenientes da fronteira com
o Brasil. A partir da década de 40, um contingente de imigrantes de origem brasileira ‒a
maioria deles de origem alemã e italiana‒ começaram a colonizar as regiões fronteiriças
do Paraguai com o Brasil. Este movimento produziu um deslocamento de populações
indígenas e campesinas, mas também a transformação, em muitos níveis, dos sistemas
de produção, incluindo a produção literária.
George Steiner pensa nas escritas –e especialmente nos autores- que parecem
fora da casa de uma língua própria e sugere que essa estranheza, que esse viver numa
fronteira na verdade não é algo necessariamente raro, e que não há novidade nessa
hesitação linguística criativa. Se pensarmos a literatura que mistura línguas como uma
exceção, negamos implicitamente o fato de que inclusive as línguas maternas dos ditos
monolíngues estão atravessadas por diversas línguas alheias. É o que Saraceni sugere
num artigo sobre o assunto em relação com a construção da memória: “la lengua madre
no es una sino más que una; es decir, que nunca es una sola porque en ella habitan, en
una simultaneidad problemática, otras lenguas que revelan la presencia en su interior de
una alteridad radical que hace posible la propiedad de y en la lengua” (SARACENI,
2012). Não é possível enxergar na língua espanhola a interferência de léxico árabe,
quéchua, ou do próprio guarani? A genética das línguas está habitada por cromossomos
de procedência diversa. Mas a língua própria e a língua alheia –como os territórios
próprios e alheios- são susceptíveis de delimitação: e assim é possível criar uma
memória e uma identidade em função da língua com a qual se recorda.
O que Wilson Bueno faz com Mar paraguayo é misturar memórias diversas mas
que de nenhum jeito podemos afirmar que não tem uma memória comum. É o que
Derrida chama de “parentesco” no seu livro Torres de Babel. As línguas podem ter um
parentesco, podem formar parte de uma mesma família, e não só no sentido principal da
linguística que estabelece genealogias, evoluções e divisões. Podemos afirmar então que
línguas de origens diversas como as românicas e o guarani tem algum parentesco
possível? Parece que sim. Mas, como ler um texto intervindo por línguas com
parentesco e sem nenhuma semelhança? No prólogo de Mar paraguayo, Néstor
Perlongher faz uma advertência para aqueles que leem preferindo os argumentos
afirmando que eles “deixam de lado o elemento poético das evoluções e mutações da
língua” já que o argumento deste romance “é tão indeciso e emaranhado quanto a
materia porosa que o compõe” (PERLONGHER, 1992, p. 11).
Acredito que uma estratégia possível de leitura deste texto tenha a ver com o
posicionamento diante do texto ou do discurso profético. E termino com uma citação de
Derrida que diante do texto de Wilson Bueno parece definir bem um caminho onde não
há tradução possível, mas ainda há linguagem:
AHMAD, Aijaz. “Show me the Zulu Proust”: thougts on World Literature. Revista
Brasileira de Literatura Comparada, n.17. São Paulo: Abralic, 2010.
BHABHA, Hom. El lugar de la cultura. César Aira (trad.). Buenos Aires: Cultura
Libre, 1994.
DERRIDA, Jacques. Torress de Babel. Junia Barreto (trad.). Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2006.
MORETTI, Franco. A literatura vista de longe. Anselmo Pessoa Neto (trad.). Porto
Alegre: Arquipélago, 2008.