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MAR GUARANÍ1

AS LÍNGUAS O TERRITÓRIO

Damián Cabrera2
damiancabrera@usp.br

Daí a estranheza a priori da ideia de um escritor


linguisticamente “desabrigado”, de um poeta, romancista,
dramaturgo não completamente em casa na língua de sua
produção, mas deslocado o em hesitação na fronteira.
George Steiner

PARAGUAIO DO PARAGUAI

Próprio ou alheio, um território é susceptível de delimitações. Ele é determinado


por estéticas diversas: imagens e discursos de procedência heterogênea propiciam a
imaginação do espaço, além dos seus acidentes geográficos, em camadas simbólicas
que, porém, podem ser susceptíveis de tradução com um sentido prático. A intervenção
material do espaço pode ser reconhecida como visivelmente transformadora; porém, as
transformações imateriais também interferem na economia dos espaços, ou na
estruturação das relações entre os objetos e os sujeitos que nele são. Além das linhas e
sombras –inclusive de imagens fito, zoo e antropomorfas de apoio- o desenho
cartográfico está intervindo por nomes.

1
Trabalho final da disciplina A invenção da Língua: Criação e Tradução na Literatura Hispano-Americana
ministrada pelos professores Pablo Gasparini e Meritxchell Fernández Hurtado.
2
Aluno do Mestrado Acadêmico em Estudos Culturais.
Ao redor do topônimo Paraguai tem sido elaborado diversos conteúdos
simbólicos que serviram –que ainda servem- de argumento para economias e práticas
coloniais; desde a Coroa Espanhola e até as mais recentes formas de relacionamento
com o Brasil e com uma economia da produção específica gerenciadora de uma forma
de modernidade que hoje constrói hegemonia no Paraguai. No lugar comum da narração
histórica sobre o Paraguai, desde o Paraguai, tem sido elaborada uma oposição a um
regime imperialista que teria no Brasil o seu ícone fundamental, especialmente com
relação à Guerra do Paraguai; porém a partir da construção da hidroelétrica de Itaipú e o
desmatamento que preparou uma ampla região de bosques para que ela deviesse
território da soja, as consequências e implicações políticas e culturais duma relação
entre Paraguai e Brasil tem se tornado não só mais visíveis senão determinantes em
termos de uma cartografia imaginada em transformação com sentido prático. E é que
sob o topônimo Paraguai é possível percorrer uma documentação diversa que
constituiria um testemunho da geografia política que num passado teria sido
substancialmente diferente da atual. Assim com o nome Paraguai é possível nomear
algo além de uns limites políticos oficiais. Mas o Paraguai não existe, ou não existia
com efeito sobre subjetividades e grupos humanos que habitavam esse território
delimitado pela cartografia colonial: a outrora Província Gigante das Índias era um
reparto administrativo que nada tinha a ver –ou que não necessariamente tinha a ver-
com os afetos dos sujeitos que nele eram, senão com o devir colonial e a distribuição
dos tesouros da conquista. Mas como enxergar além do relato oficial? Um discurso,
uma narração e umas reivindicações territoriais nacionalistas que desenham um
Paraguai imaginado como antigamente maior, e um passado igualmente maior
(“passado glorioso” dirão os hinos escolares). Essa primeira completude imaginária
aparece hoje com o peso traumático da fragmentação, e com uma consequente sensação
de perda atravessando imaginários e práticas discursivas.
Os primeiros mapas nos quais aparece o topônimo Paraguai abrangem uma
ampla região que vai desde as atuais costas atlânticas do Brasil ao leste, o Río de la
Plata na Argentina, ao Sul, e o Matogrosso (Brasil) ao Norte. Mas a relação entre o atual
Estado da república do Paraguai e um território é fruto de um programa muito posterior
que começaria com os projetos de independência da Coroa Espanhola e que teriam sido
delimitados definitivamente com as guerras da Tríplice Aliança e a Guerra do Chaco na
segunda metade do século XIX e na primeira do século XX respectivamente.
“Mediterrâneo”, “coração da América do Sul”, “ilha secreta”, “pequena ilha
rodeada de terra”, “poço cultural”, são algumas das definições hegemônicas do Paraguai
desde os manuais escolares de história, os ensaios e a poesia. Esta imagem é sempre
projetada na interseção com um sentido complexo de falta: não só o isolamento com
relação às metrópoles, mas em função de uma distância do mar, que às vezes é expressa
com o lamento por uma perda injusta. Ora, pois se o documento diz que o mar é
paraguaio, qual é a razão para que ele não seja?
Mas a história do Paraguai está além da historia do seu território. O papel das
línguas no cambiante território imaginado como Paraguai é fundamental: elas foram,
também, importantes na articulação de forças que modificaram espaços, objetos e
corpos. Indagando no conceito guarani de tekoha (território: ou “el lugar donde somos
lo que somos” (RAMOS, 2012: p. 177)), o antropólogo Bartomeu Melià sugere que
“Nada de lo que ha ocurrido en el Paraguay ha estado al margen de sus lenguas, que se
han relaconado entre sí de forma dispar. La historia del Paraguay es la historia de su
lengua guaraní” (MELIÀ, 2011, p. 106). Num livro anterior, El Paraguay inventado, o
mesmo autor se refere às relações entre as dimensões materiais e imateriais como
condição prévia para pensar o Paraguai. “La del Paraguay ha sido una geografía
cambiante en los últimos años, apenas una miniatura de la nostálgica Provincia Gigante
de las Indias (…) dividido por sus no tan invisibles muros de Berlín” (MELIÀ, 1999, p.
21), e passa a sugerir que este território é ainda menor se pensarmos os antigos
territórios guaranis. Mas o guarani é sinônimo do paraguaio?
Território, mar, guarani, paraguaio. Palavras que constituem o pretexto e o ponto
de partida para pensar um cenário móvel de línguas e espaços. E eis o romance do
escritor paranaense Wilson Bueno que alcança com o seu lirismo estas distâncias: Mar
Paraguayo, cujo inquietante prólogo do escritor argentino Néstor Perlongher esboça
desde o título (Sopa Paraguaia) a estranheza de uma obra quebrantadora de limites na
apertura das fronteiras das línguas, mas também dos territórios que os sujeitos abrangem
no seu estar e no seu ir. A sopa paraguaia é dura, não pode ser tomada, senão comida.
Há ali um deslocamento no interior do nome, na natureza da função que invoca o nome.
Em Mar Paraguayo se produzem deslocações e reposicionamentos similares que, em
termos simbólicos, renovam a arquitetura imaginária do lugar: o lugar-espaço desfeito
pelo lugar nas línguas, e o rebatismo restaurador na imaginação de um espaço que foi
sempre imaginário. Uma justiça poética e brincalhona, pelo menos no nome.
NAS PRAIAS DO RIO DE JANEIRO
A FUNDAÇÃO DO INFORTÚNIO DO PARAGUAI

Pareciera que el infortunio se enamoró del Paraguay.


Augusto Roa Bastos

Amplamente citada por outros autores, políticos e jornalistas, a imagem do


infortúnio apaixonado pelo Paraguai é atribuída ao escritor Augusto Roa Bastos, um dos
autores paraguaios –senão quase o único- que adquiriu certa visibilidade dentro e
fundamentalmente fora do país. Tanto a questão do infortúnio como a questão das
visibilidades internas e externas constituem dois problemas fundamentais para a
literatura do Paraguai, e para a sua compreensão como fenômeno cultural. A terceira
questão será a língua.
Segundo Roa Bastos, “um dos fundadores da modernidade na literatura do
Paraguai” teria sido o escritor espanhol Rafael Barrett ‒um militante anarquista que
desembarcou em Buenos Aires em 1898, e conheceu os ervais do Paraguai a começos
do século XX‒. Segundo Roa Bastos:

Barrett nos enseñó a escribir a los escritores paraguayos de hoy; nos


introdujo vertiginosamente en la luz rasante y al mismo tiempo
nebulosa, casi fantasmagórica, de la “realidad que delira”, de sus mitos
y contramitos históricos, sociales y culturales (ROA, 1978, p. 19).

Assim, pareceria que foi necessário um olhar de fora para ver o que acontecia no
Paraguai, essa “realidade que delira” que permanecia invisível aos olhos de próprios.
Barrett produziu obras de ficção, mas é conhecido fundamentalmente pelos seus ensaios
de denúncia sobre a escravidão de campesinos e indígenas nos engenhos de erva mate
no Paraguai em pleno século XX. Já nessa prosa estava presente a imagem do
“infortúnio paraguaio”, na sua série de artigos Lo que son los yerbales e no posterior El
dolor paraguayo; ali estavam o infortúnio, a dor, e a nacionalidade.
Es preciso que sepa el mundo de una vez lo que pasa en los yerbales. Es
preciso que cuando se quiera citar un ejemplo moderno de todo lo que
puede concebir y ejecutar la codicia humana, no se hable solamente del
Congo, sino del Paraguay. El Paraguay se despuebla; se le castra y se le
extermina en las 8.000 leguas entregadas a la Compañía Industrial
Paraguaya, a la Matte Laranjeira y a los arrendatarios y propietarios de
los latifundios del Alto Paraná. La explotación de la yerba-mate
descansa en la esclavitud, el tormento y el asesinato (BARRET, 1978,
p. 121).

O Barrett também sugere quem seriam esses outros aos quais iria destinada a
denúncia: “Los datos que voy a presentar en esta serie de artículos, destinada a ser
reproducida en los países civilizados de América y Europa” (BARRET, 1978, p. 121).
Posteriormente, Roa Bastos elaboraria literariamente as denúncias do Barrett no
seu livro de contos El trueno entre las hojas, e no capítulo Éxodo do seu romance Hijo
de Hombre (no qual também rendera uma homenagem ao escritor espanhol). Esse
mesmo infortúnio das explorações nos ervais será logo esboçado pelo seu
contemporâneo Hugo Rodriguez Alcalá em La doma del jaguar, e no romance Follaje
en los ojos de Juan Bautista Rivarola Matto.
Mas, já em 1930, Hérib Campos Cervera publica o seu poemario Un puñado de
tierra no qual também estão presentes infortúnio e denúncia, onde os sujeitos poéticos
são sujeitos corais ou indivíduos vítimas da opressão do modelo feudal e escravista.
No seu romance Lo dulce y lo turbio de Esteban Cabañas (pseudônimo do
também artista plástico Carlos Colombino, falecido em 2012), sinala-se a fundação
desse infortúnio paraguaio descrito por esses autores. Detrás do infortúnio existiria um
crime fundacional: o assassinato de Juan de Osorio em mãos de Juan de Ayolas e Juan
de Salazar de Espinosa numa praia do Rio de Janeiro, rumo a uma expedição que os
levaria a fundar a cidade de Asunción em 1537. O Paraguai, mas sobre tudo o seu
infortúnio, é fundado na beira do mar. Do mar paraguaio? O fato aparece nas crônicas
do cronista e explorador Ulrich Schmidl quem acompanhara a expedição. Ele escreve
assim:

Después navegamos de esta isla a otra que se llama Río Genna (Río
Janeiro) a 500 millas de la anterior, dependencia del rey de Portugal:
esta es la isla de Río Genna (Río del Janeiro) en Inndia (Indias) y los
indios se llaman thopiss (tuís guaranís). Allí nos quedamos unos 14
días. Fue aquí que thonn Pietro Manthossa, nuestro capitán general,
dispuso que Hanss Ossorio (Juan de Osorio), como que era su hermano
adoptivo, nos mandase en calidad de su lugarteniente; porque él seguía
siempre sin acción, tullido y enfermo. Así las cosas él, Han (Juan)
Ossorio, no tardó en ser malquistado y calumniado ante thonn Pietro
Manthossa, su hermano jurado, y la acusación era que trataba de
sublevarle la gente a thonn Pietro Manthossa, el capitán general. Con
este pretexto él, thonn Pietro Manthossa ordenó a otros 4 capitanes
llamados Juan Eyolas (Juan de Ayolas), Hanns Salesser (Juan Salazar),
Jerg Luchllem (Jorge Luján) y Lazarus Sallvaischo que matasen el
dicho Hanns Assario (Juan Osorio) a puñaladas, o como mejor
pudiesen, y que lo tirasen al medio de la plaza por traidor. Más aún,
hizo publicar por bando que nadie osase compadecerse de Assirio
(Osorio) so pena de correr la misma suerte, fuere quien fuere. Se le hizo
injusticia como lo sabe Dios el Todopoderoso, y que Él lo favorezca;
porque fue aquel hombre piadoso y recto, buen soldado, que sabía
mantener el orden y disciplina entre la gente de pelea (SCHMIDL,
1903).

Para os narradores no romance de Esteban Cabañas esse crime fundacional


desencadearia uma série interminável de crimes. Essa é, também, a lógica da justiça da
economia guarani, que os conquistadores e colonizadores não souberam interpretar. Os
guaranis viviam tradicionalmente num sistema de reciprocidade obrigatória; segundo
este sistema, todos tem direito a todos os bens disponíveis, e se uma pessoa negar à
outra o acesso a esses bens, o afetado tem direito a se vingar, tem direito a cobrar. Foi o
que os guaranis interpretaram do sistema econômico dos espanhóis, que sempre se
negavam a compartilhar os bens disponíveis exigindo sempre algo em troca. Os
guaranis chamaram esse gesto de tepy (vingança). Paradoxalmente, os espanhóis
traduziram a palavra vingança como “preço”; e o guarani paraguaio hoje usa essa
palavra para se referir ao preço das coisas, mas principalmente às coisas caras. A
injustiça cometida contra Osorio teria constituído a fundação de uma cadeia de
vingança. Ao ter notícias do crime cometido contra Juan de Osorio, o seu amigo Diego
de Mendoza ‒no romance de Esteban Cabañas‒ anuncia a vingança: “Dícese que Diego,
al oír lo acaecido a Osorio en las costas del Brasil, “anunció que no pasaría mucho sin
que todos purgasen tan horrendo delito”” (CABAÑAS, 1995, p. 35). Mas a vingança
não virá, em diante, sob a forma da lei to talião, com outro crime vingador, e sim sob a
forma da maldição generalizada, todos os que em adiante prosseguem com o projeto
baseado no crime fundador serão amaldiçoados: “Caerán de a uno los asesinos de
Osorio. Los matadores seremos todos” (CABAÑAS, 1995, p. 35).

A HISTÓRIA DO PARAGUAI
É A HISTÓRIA DA SUA LÍNGUA GUARANI

Restringida durante muito tempo por uma urgência na produção de narrativas


históricas, nos períodos críticos da história do país, a escrita literária soube se inventar
no meio da crise. Talvez seja pertinente sugerir, em termos deleuzianos, que uma
literatura menor não é necessariamente a produzida numa língua menor, mas também
pode estar constituída pelo uso menor de uma língua não-subalterna. Porém, no
Paraguai, os dois fenômenos são observáveis: uma produção poética numa língua
minoritária, o guarani, (em termos de subalternidade, dado que a língua “minoritária” do
Paraguai seria aquela falada pela maioria dos paraguaios), e um uso menor da língua
majoritária, o castelhano, na literatura.
Mas, se bem a literatura em guarani é vasta, especialmente na poesia popular
posta em circulação fundamentalmente a través da música, ela também se encontra
numa relação de subalternidade na escala hierárquica das produções; invisíveis não só
diante dos olhos dos mecanismos de validação locais, mas também internacionais, dada
a suposta “impenetrabilidade” da língua. Essa produção popular foi relativamente mais
livre comparada com a literatura erudita cujos autores enviados ao exílio,
paradoxalmente, se tornaram os mais visíveis internacionalmente. Tradicionalmente, a
produção destes poetas populares é vinculada com o campo. Fruto também da cultura
autoritária sob o stronismo, foi criada uma imagem das expressões poéticas em guarani
como fenômeno “folclórico”.
Por outro lado, a hegemonia do castelhano na produção erudita, também
aprofundou ‒talvez não intencionadamente‒ essa cisão entre campos semânticos das
duas línguas. Assim, e a pesar da sua história, o guarani está quase restrito à poesia
popular, enquanto o castelhano à literatura mais erudita. Porém, o que é essa erudição?
Talvez o caso paradigmático do Ayvu Rapyta seja uma mostra da erudição guarani, que
se faz no adorno da palavra. O estado de plenitude e de graça na cultura guarani é
alcançado numa complexa relação entre língua e território, entre corpo e palavra3.
Talvez o que possamos sinalar de comum na heterogênea literatura do Paraguai
sejam alguns significados comuns e algumas direções comuns: um movimento, no
sentido de deslocamento, tanto no que se refere à relação de aproximação, interferências
ou rejeição das línguas e das imagens com elas produzidas, como no que diz respeito ao
movimento da “própria terra”, o seu deslizamento cartográfico no imaginário.
Ao falar sobre o papel dos mapas, gráficos e árvores na interpretação da
literatura, e a sua pertinência nos tempos globais, Franco Moretti sugere apostar pela
chamada barthesiana à prestar atenção ao “repetir-se dos acontecimentos”. Moretti
propõe uma leitura não só dos padrões que se repetem dentro da história ‒ em
detrimento do olhar sobre os eventos excepcionais ‒, mas também sugere prestar
atenção aos padrões temporários:

A leitura textual tem, normalmente, muita facilidade para tratar com o


evento, ou seja, com o texto que não se repete, raro. No extremo oposto,
a longa duração das estruturas quase imutáveis desenvolveu um papel
importante em numerosos ensaios de teoria literária. Mas o tempo de
meio, isto é, o tempo do ciclo, permaneceu, ao contrário, em boa
medida inexplorado (MORETTI, 2008, p. 31).

Aqui, porém, parto de alguns eventos, assumindo, como propõe Raymond


Williams, que “Uma cultura são significados comuns, o produto de todo um povo”,
mas, também, “os significados individuais disponibilizados, o produto de uma
experiência pessoal e social empenhada de um indivíduo” (WILLIAMS, 1958, p. 5).
Mas o desenho que eu proponho também enxerga a temporalidade, o estatuto
provisional do desenho.
Moretti se pergunta sobre a pertinência dos mapas literários:

3
Mas além da literatura em castelhano e guarani, existe uma vasta “oratura” em outras línguas indígenas,
e textos ‒muitos deles inéditos‒ em alemão e outras línguas européias, que permanecem ignorados.
Servem os mapas literários? Antes de mais nada, são um bom modo de
preparar um texto para analise. Você escolhe uma unidade narrativa
‒passeios, processos, bens de luxo, o que quer que seja‒, encontra suas
ocorrências, as coloca no espaço... ou, em outras palavras, você reduz o
texto a poucos elementos, os abstrai do fluxo narrativo, e os usa para
construir um desses objetos artificiais que vimos até aqui. E, com um
pouco de sorte, estes últimos resultam ser mais do que a soma de seus
componentes: possuem qualidades “emergentes” que não RAM visíveis
no nível inferior (...). Não, que fique bem entendido, que os mapas
constituam já em si mesmos uma explicação, mas, pelo menos, nos
oferece um modelo do universo narrativo que reordena, de modo não
óbvio, as componentes e destas pode fazer emergir os pattern ocultos
(MORETTI, 2008, p. 91-92).

A proposta aqui não é desenhar um mapa e prezar pela sua estabilidade. Parto do
pressuposto inicial de que os mapas do Paraguai ‒ tanto os que estão relacionados à
delimitação política das fronteiras (os mapas “reais”?) como aos que são imaginados
pela literatura ‒ são instáveis e móveis.
Quais são as modificações suscitadas pela transformação do espaço, e quais as
suas relações com as transformações das formas literárias e os movimentos que elas
produzem nos imaginários? O espaço imaginário sofre transformações a raiz das forças
que transformam os espaços reais, e essas transformações são traduzidas à forma
literária. Nos movimentos de confrontação, aproximação e distanciamento das línguas,
pode se imaginar uma fratura na totalidade aparentemente estável do espaço imaginário;
mas estes movimentos das línguas no caso do Paraguai também respondem às
reformulações do território, e ao reposicionamento no espaço real de subjetividades e
territorialidades.
Como ler a ausência do guarani na literatura canônica em espanhol, mesmo que
os seus autores tenham sido de fala castelhana? Como ler as posteriores hibridações
lingüísticas nos textos de autores que não necessariamente falam as duas línguas (ou a
terceira, nos referindo à presença do português na literatura contemporânea do
Paraguai)? Se pensarmos essa hegemonia do castelhano na literatura erudita como uma
presença autoritária do poder da cultura colonial, seria possível sugerir que nessa
disposição autoritária o seu negativo, a língua subalterna, se torna invisível? Parece que
a falta é notada, e assim, como sugere Homi Bhabha na sua metáfora das transparências,
essa disposição da autoridade também revela o seu negativo.
Nas oposições entre as, agora, três línguas hegemônicas na literatura do Paraguai
há espaço para as interferências. Desde a literatura popular que sem pudor algum tem
misturado castelhano e guarani, até as experiências das vanguardas tardias do século
XX onde o português entra em cena. Sem a vigilância de uma academia ‒ que, como a
crítica, é quase inexistente no Paraguai ‒ as formas híbridas na literatura ‒ pelo menos
no que diz respeito à interferência de línguas ‒ tem proliferado com intensidade.
Subsiste hoje o discurso da “cultura autoritária” que poderia negar estas formas, ou
como diz Homi Bhabha “una discriminación entre la cultura madre y sus bastardos, el
yo y sus dobles, donde la huella de lo que es sometido a la negación no es reprimida
sino repetida como algo diferente: una mutación, un híbrido” (BHABHA, 1994, p. 139).
“A realidade que delira” diz Augusto Roa Bastos para se referir ao Paraguai. O
delirante é sempre instável, supõe uma incompatibilidade entre sentido e referente. E
essa instabilidade requer, para cada momento, uma forma possível. O Paraguai é,
cultural, territorialmente, instável. Essa instabilidade se expressa na transformação dos
referentes, e é preciso, para cada momento dessa transformação, buscar uma forma que
os faça sensíveis.

Para todo gênero literário, chega o momento em que a sua forma não
está mais em condições de representar os aspectos mais significativos
da realidade contemporânea (...), quando chega este momento, o gênero
renuncia à própria forma sob o choque da realidade, terminando por
desintegrar-se, ou renega a realidade em nome da forma, tonando-se
assim, nas palavras de Sklovskij, um medíocre epígono (MORETTI,
2008, p. 104).

O TEXTO AUSENTE

Geralmente imaginadas em oposição, guarani e castelhano são, porém, línguas


com os seus respectivos espaços hegemônicos. Mas, ainda que o guarani tenha domínio
sobre certos campos semânticos, em relação com o castelhano tem uma existência
subalterna: com participação quase nula nos espaços acadêmicos e uma relativa
ausência na literatura escrita; sem presença nos serviços públicos; e, esvaziado do seu
repertório de léxicos políticos, por vezes é visto como enfeite nos discursos de
sindicalistas urbanos e governantes; persistente, porém, no discurso dos campesinos e,
na sua especificidade, no discurso dos líderes espirituais e políticos das comunidades
indígenas guaranis.
O antagonismo entre a autoridade colonial em castelhano e o guarani não é tão
claro. O que resta da cosmo-visão guarani na língua guarani falada pelos paraguaios? O
guarani dos paraguaios é, ante tudo, um guarani colonizado, é uma língua colonial, e foi
usada tanto pelos colonos espanhóis como pelos colonos paraguaios para completar a
colonização do país até a segunda metade do século XX (antes que o português entrasse
em cena para adicionar complexidade aos antagonismos e agonismos).
Línguas geralmente imaginadas em dois extremos, e em oposição, no in-between
do castelhano e guarani há uma zona ambivalente susceptível de articulação. O guarani
paraguaio deu à mistura entre guarani e castelhano o nome de jopara: literalmente
“mistura”, é o nome de um prato elaborado com diversos tipos de grãos. Essa mistura
não é, para nada, homogênea: pode dar-se em diversos níveis (sintático, semântico,
léxico, etc.).
Insisti-se em que o guarani é uma língua ágrafa, ‒não foram todas as línguas em
algum momento ágrafas até que alguém começou a escrevê-las?‒. Porém, durante as
missões jesuíticas, o guarani teve grafia: ao guarani foram traduzidos catecismos e em
guarani foram escritos manifestos. Mas com a expulsão dos jesuítas do Paraguai, esse
processo de invenção de uma língua literária escrita foi truncado. Não assim a produção
oral de narrações, poemas e canções que não só se conservam até hoje, mas que
continuam sendo produzidos.
A relação subalterna do guarani com o castelhano excluiu a primeira língua de
alguns espaços. Durante alguns governos o guarani foi proibido, e a sua fala punida nas
salas de aula. E se bem os poetas populares e indígenas só escreviam em guarani, ou
misturando guarani com castelhano, os escritores urbanos ‒mesmo que a sua língua
fosse o guarani‒ escreveram quase toda a sua obra só em castelhano. No cenário do
exílio, escritores como Augusto Roa Bastos, Elvio Romero ou Rubén Bareiro Saguier
acharam interlocutores entre leitores não paraguaios, em línguas européias; mas
inclusive dentro do Paraguai, o guarani esteve desterrado da escrita considerada mais
erudita. Se bem nos contos e romances de Gabriel Casaccia às vezes aparece o guarani,
é só nos diálogos, e sempre acompanhado de notas de rodapé: praticamente não existem
até hoje narradores em guarani na literatura erudita.
Questionado por não escrever em guarani, Roa Bastos responde que o guarani
está presente na semiótica, e que constitui o “texto ausente” da sua obra. O escritor
Carlos Villagra Marsal, no sua nouvelle Mancuello y la perdiz fez um exercício
parecido: transportou a sintaxe guarani para o castelhano da sua narrativa.
Estes procedimentos foram bem aceitados internacionalmente, mas por muitos
são vistos como uma tradução que tornou invisível o guarani.
Aijaz Ahmad reflexiona sobre o papel das línguas hegemônicas na formação das
“literaturas nacionais”, não só da Europa mas da América Latina, que supôs a supressão
das línguas indígenas a favor da língua européia, inclusive nas literaturas nacionais de
países onde a língua majoritária não é a língua colonial, especialmente se estas não
tinham, previamente, um sistema literário consolidado:

The idea of “national literature” came very many centuries later and the
related recastig of some languages as national involved a great deal of
violence and methodical suppression of many other languages that were
either Just debarred from history or reduced to mere local function, in
the name of progress. This hás been true wherever the European model
of nationhood was adopted, as in Turkey for instance, not to speak of
the treatment of the indigenous languages in much of Latin America
(AHMAD, 2010, p. 27-28).

Ahmad fala melhor sobre o contexto multi-lingual e colonial da Índia, mas,


conhecedor da literatura do Brasil, também sublinha a supressão das línguas indígenas
pela hegemonia do português, e fala do lugar da produção literária na América hispânica
em línguas indígenas:

Thus, in Latin America, the indigenous languages were wither


eliminated, or forbidden in public discourse ora t least greatly
subordinated, even in countries like Bolivia, where the indigenous
were majority of the population, while Portuguese and Spanish
were more or less universalized in their respective zones for
productiones which came to be called “literary” (AHMAD, 2010,
p. 40).

Ahmad cita a Bolívia como exemplo com uma população majoritariamente


indígena, mas com uma literatura fundamentalmente em espanhol. Porém, talvez porque
o Ahmad não o conheça, ele não cita o Paraguai, um país que se diz majoritariamente
mestiço, o que no Paraguai quer dizer não-indígena, onde os componentes indígenas
desse sujeito mestiço foram reduzidos exclusivamente à língua, e onde a língua indígena
passou a ser uma língua espanhola mais, onde a língua indígena deixou de ser indígena
e foi, como o território vaziado de indígenas, povoada com o espanhol. Porém, mesmo
assim, as produções literárias em ambas as línguas criaram campos semânticos
diferenciados, e existe predominância de gêneros em uma e outra língua. O primeiro
romance em guarani pertence ao lingüista e político Tadeo Zarratea, Kalaíto Pombéro.
A poesia, porém, é bastante prolífica em guarani, incluindo a erudita.
A partir dos anos 90, alguns escritores abandonaram as relações mais
conservadoras com o guarani e introduziram-no nas suas obras. Porém, o resultado foi
uma mistura heterogênea de línguas, um dos fatos mais chamativos da literatura
contemporânea do Paraguai.
Mas talvez a poética mais destacável de toda a literatura do Paraguai sejam os
cantos míticos dos Mbya Guarani do Paraguai, compilados pelo antropólogo León
Cadogan sob o título Ayvu Rapyta. Textos míticos de los Mbya-Guaraní del Guairá, e
publicados no Boletim de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo em 1959.

RESTAURAÇÃO DO MAPA

Muito além do mapa, diversas territorialidades superpostas requerem uma forma


de cuidado, de restauração. Parte deste processo teria relação com restituições históricas
de subjetividades que não aparecem nesse mapa. Muito além do discurso nacionalista
que reivindica a re-incorporação dos territórios “perdidos” para o Brasil, a Bolívia e a
Argentina, existem mapas no interior dessa pequena ilha que exigem restituições mais
urgentes4.
Carolina Rodriguez trabalha com outro tipo de mapas. Em conjunto com
membros de duas comunidades Mbya Guarani que, separadas pela divisão política de
dois departamentos (estados), Itapúa e Caazapá, compartilham, numa intersecção, o
mesmo espaço de terra. Eles compartilham um território sobre o qual expressam as suas
respectivas pertenças territoriais; o espaço, além de compartilhado pelas duas
comunidades, se encontra no meio de uma reserva ecológica privada e as terras de um
fazendeiro alemão. Ali, nessa intersecção, os territórios próprios superpostos sobre e
além dos territórios administrativos, compartilhados com outros territórios.
Territorialidades superpostas. Com a ajuda de Carolina Rodriguez, as comunidades
desenham os seus próprios mapas, marcando neles os lugares importantes para eles.
Carolina Rodriguez também fala sobre visibilidades e invisibilidades no seu artigo
Mapas ocultos:

Lo oculto es lo ignorado, lo escondido, lo que no se deja ver. En el


momento de representar el mundo, se exponen elementos presentes para
quien lo interpela. En un mapa, por ejemplo, vemos una imagen que se
empeña por sustituir la realidad vista por quien lo dibuja. La imagen
resalta algunas cosas y borra otras, siguiendo los criterios del autor para
montar el trazo (RODRIGUEZ, 2014, p. 214).

Além de tornar invisível aquilo que estava visível ‒ ou de fazer desaparecer


aquilo que existia ‒ os mapas são capazes de instaurar a ordem da autoridade colonial.
Porque os processos e os movimentos reais não sempre se correspondem com os limites
dos mapas políticos, e porque os mapas políticos são sempre a construção de uma
política policial que controla a existência dos outros e não está construída como uma
base articuladora das diferenças. Assim, sugere Carolina Rodriguez, “Las imágenes de
los mapas nos dicen cómo es y qué hay en el mundo, desmembrando con violencia
partes de un todo” (RODRIGUEZ, 2014, p. 215). Mas, o que seria esse todo
desmembrado aqui? E, finalmente, esse todo, é um todo unitário?

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Existem mapas e crônicas da conquista do Paraguai onde aparece uma centena de povoados e etnias
indígenas que, posteriormente, nunca mais são nomeados. É como se por arte de magia, a simples
enunciação do nome supusesse a desaparição do seu referente. Estes mapas e crônicas antes que
testemunho da existência destes povoados e comunidades indígenas é o testemunho da sua desaparição.
Andando pelas ruas de São Paulo podem ser divisados sinais utilitários que são
produzidos pela geografia e pela cartografia: os topônimos em São Paulo podem surgir
diante de quem habita ou transita a cidade com a estranheza análoga as interferências do
guarani no romance Mar Paraguayo de Bueno. Um falante de guarani pode reconhecer
raízes, partículas, porções de sentido, sentenças e imagens completas nesses topônimos.
A cidade de São Paulo também fala em guarani: os nomes escritos nessa língua ali
“morta” são as ruínas de São Paulo que revivem para o falante de guarani que transita as
suas ruas: em alguns momentos a cidade estrangeira é capaz de falar com o sujeito
falante de guarani na sua própria língua. O sentido que os topônimos albergam
despertam de sua hibernação e a medida que aquele que é capaz de desvelar o seu
sentido se distancia, a palavra volta a dormir, volta ao seu silêncio.
Em 1992, Wilson Bueno publicou o seu livro Mar Paraguayo, com prólogo de
Nestor Perlongher. O livro teria contado com a colaboração do escritor paraguaio Jorge
Canese para os trechos em guarani5. O título do livro parece uma ironia, e o livro,
celebrado em muitos âmbitos, especialmente no acadêmico, é tido como um objeto raro.
Relendo as páginas existe a impressão (como nas ruas de São Paulo) de que ali está
escrita uma possibilidade que parece aberta unicamente para quem é capaz de viver o
texto nas três línguas ali presentes: espanhol, português, guarani. Como a porta da Lei
para o camponês de Kafka: todos os sentidos ali disponíveis.
Reaparece nesse livro a nostalgia do mar, mas também aparece a restauração
poética ‒geo-poética?‒ de um mapa antigo. Mas essa nova ação ‒essa vingança‒ está
inserida numa nova cadeia de reações.
Mar paraguayo é publicado imediatamente depois da caída do regime ditatorial
de Alfredo Stroessner ‒quem morreria no seu confortável asilo político aqui no Brasil‒.
A queda do regime permitiu o retorno ao país de milhares de paraguaios que haviam
fugido do terrorismo de Estado, dentre eles escritores como Augusto Roa Bastos e
Rubén Bareiro Saguier. Os primeiros anos depois da queda da ditadura foram de
expectativa e entusiasmo, a nível político, no nível dos direitos, mas também
culturalmente. Surge uma nova cena.
Em 1994 um escritor do interior, na fronteira com o Brasil, publica um romance
policial intitulado El último vuelo del pájaro campana, ambientado na fronteira, com
trechos em portunhol. Alentado pela obra de Wilson Bueno, Jorge Canese também

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Isto segundo uma entrevista concedida pelo Jorge Canese ao autor deste artigo em 2012.
começa a publicar os seus livros em portunhol. No fim da década de 90, o escritor e
artista visual Fredi Casco publica o seu livro de poemas Cowboy Brasiguayo. O poeta
brasiguaio Douglas Diegues, proveniente da fronteira seca entre Paraguai e Brasil, visita
Asunción e entra em contato com o escritor Cristino Bogado e o ainda não escritor
Edgar Pou, juntos lêem e publicam a obra de Jorge Canese na editora Jakembó Editores,
e nas posteriores editoras cartoneras, influenciados pelo projeto de Washinton Cucurto
em Buenos Aires. Em 2008 se realiza o encontro Asunción Kapital Mundial de la
Ficción, com a participação de vários escritores e poetas do Mercosul, além de artistas
populares do interior do país, e são produzidas edições de textos em espanhol e
português traduzidos a uma nova língua inventada: o portunhol selvagem, uma mistura
de guarani, português e espanhol, tal como Wilson Bueno havia imaginado.
Este movimento dos mapas das línguas na literatura do Paraguai coincide com
outros movimentos, e talvez não seja um acaso que os principais autores que
introduziram o português na literatura do Paraguai sejam provenientes da fronteira com
o Brasil. A partir da década de 40, um contingente de imigrantes de origem brasileira ‒a
maioria deles de origem alemã e italiana‒ começaram a colonizar as regiões fronteiriças
do Paraguai com o Brasil. Este movimento produziu um deslocamento de populações
indígenas e campesinas, mas também a transformação, em muitos níveis, dos sistemas
de produção, incluindo a produção literária.

A TRÍPLICE FRONTEIRA É UMA BABEL

Da mesma forma, a exigência de tradução não sofre nada em


não ser satisfeita; contudo, ela não sofre na qualidade de
estrutura própria da obra.
Jacques Derrida

George Steiner pensa nas escritas –e especialmente nos autores- que parecem
fora da casa de uma língua própria e sugere que essa estranheza, que esse viver numa
fronteira na verdade não é algo necessariamente raro, e que não há novidade nessa
hesitação linguística criativa. Se pensarmos a literatura que mistura línguas como uma
exceção, negamos implicitamente o fato de que inclusive as línguas maternas dos ditos
monolíngues estão atravessadas por diversas línguas alheias. É o que Saraceni sugere
num artigo sobre o assunto em relação com a construção da memória: “la lengua madre
no es una sino más que una; es decir, que nunca es una sola porque en ella habitan, en
una simultaneidad problemática, otras lenguas que revelan la presencia en su interior de
una alteridad radical que hace posible la propiedad de y en la lengua” (SARACENI,
2012). Não é possível enxergar na língua espanhola a interferência de léxico árabe,
quéchua, ou do próprio guarani? A genética das línguas está habitada por cromossomos
de procedência diversa. Mas a língua própria e a língua alheia –como os territórios
próprios e alheios- são susceptíveis de delimitação: e assim é possível criar uma
memória e uma identidade em função da língua com a qual se recorda.
O que Wilson Bueno faz com Mar paraguayo é misturar memórias diversas mas
que de nenhum jeito podemos afirmar que não tem uma memória comum. É o que
Derrida chama de “parentesco” no seu livro Torres de Babel. As línguas podem ter um
parentesco, podem formar parte de uma mesma família, e não só no sentido principal da
linguística que estabelece genealogias, evoluções e divisões. Podemos afirmar então que
línguas de origens diversas como as românicas e o guarani tem algum parentesco
possível? Parece que sim. Mas, como ler um texto intervindo por línguas com
parentesco e sem nenhuma semelhança? No prólogo de Mar paraguayo, Néstor
Perlongher faz uma advertência para aqueles que leem preferindo os argumentos
afirmando que eles “deixam de lado o elemento poético das evoluções e mutações da
língua” já que o argumento deste romance “é tão indeciso e emaranhado quanto a
materia porosa que o compõe” (PERLONGHER, 1992, p. 11).
Acredito que uma estratégia possível de leitura deste texto tenha a ver com o
posicionamento diante do texto ou do discurso profético. E termino com uma citação de
Derrida que diante do texto de Wilson Bueno parece definir bem um caminho onde não
há tradução possível, mas ainda há linguagem:

No texto sagrado o sentido cessou de ser a linha divisória para o fluxo


da linguagem e para o fluxo da revelação. É o texto absoluto, pois em
seu acontecimento ele não comunica nada, ele não diz nada que faça
sentido fora desse acontecimento mesmo. Esse acontecimento se
confunde absolutamente com o ato de linguagem, por exemplo, com a
profecia. Ele é literalmente a literalidade de sua língua, a “linguagem
pura”. E como nenhum sentido se deixa dele destacar, transferir,
transportar, traduzir em uma outra língua como tal (como sentido), ele
comanda mediatamente a tradução que ele parece recusar. Ele é
tradutível (ubersetzbar) e intraduzíel. Existe apena letra, e é a verdade
da linguagem pura, a verdade como linguagem pura (DERRIDA, 2002,
p. 71).

Perlongher também pensa o romance de Wilson Bueno como acontecimento


deslumbrante. Como o crime funacional que desencadeia uma série de crimes na lenda
do infortúnio paraguaio, o acontecimento que constitui Mar paraguayo é desencadeador
de eventos transformadores. O que este romance fundou tem florido criando uma
memória comum em função de um espaço fronteiriço onde as línguas se encontram: nas
vozes que se dizem ali se imagina o território do Paraguai –mas não só do Paraguai- e se
constrói um movimento de restituições e apropriações, de aproximações e
distanciamentos: ali se configuram o Paraguai insular, mas também o desbordamento da
ilha.
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