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Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto

As condições da formação do arquiteto na Revolução Industrial

É conveniente, portanto, examinar com o maior


cuidado a denúncia feita pelos mais destacados
historiadores e críticos da arquitetura
contemporânea sobre o referido divórcio que
teria ocorrido entre arte e técnica no campo da
arquitetura, a partir da Revolução Industrial
européia no século XIX.
Grosso modo, esses mestres - e entre eles
Giedion, Bruno Zevi, Benevolo, Munford -
procuram mostrar que os arquitetos se
revelaram incapazes de acompanhar o
desenvolvimento tecnológico da construção,
facultado pela revolução científica dos séculos
XVI, XVII e XVIII, e efetivamente promovido no
curso do século XIX, com base na Revolução
Industrial. Os engenheiros é que teriam
assumido as posições de vanguarda daquele
desenvolvimento, permanecendo os arquitetos à
Nash: Royal Pavillion (1815 - 1821) Brighton. deriva ou, na melhor das hipóteses, sendo
arrastados a reboque...
Os dados históricos do período em foco, quando
interpretados sem parti pris, vale dizer, sem
comprometimentos academicistas e tecnicistas,
revelam a presença de equívocos nas avaliações
feitas pelos citados mestres da história e da
teoria.
Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto
As condições da formação do arquiteto na Revolução Industrial

É possível que essa visão equivocada dos


acontecimentos tenha suas raízes no curioso
episódio do fechamento da Academia de
Arquitetura e da criação da Escola Politécnica
de Paris, em fins do século XVIII, em pleno
processo da Revolução Burguesa na França.
A partir desse momento é que se coloca a
dicotomia arquitetura x engenharia, que
muitos historiadores e críticos procuram
explicar através da presença ativa do "ensino
oficial", subestimando, quando não ignorando
de todo, o aprendizado dos ofícios na própria
prática da arquitetura e da engenharia.
Histórica e milenarmente, tudo o que dizia
respeito à construção enquadrava-se, de
algum modo, no campo da arquitetura - e o
canteiro de construção constituía o lugar por
excelência do aprendizado do ofício, a
verdadeira escola de formação dos arquitetos.
Sta. Maria dei Fiori (Filippo Brunelleschi: Florença, 1436) Foi dos ateliês dos pintores e escultores do
Renascimento, principalmente os da Itália,
que nasceram as academias de arte, que
constituíram novas escolas de formação de
arquitetos.
Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto
As condições da formação do arquiteto na Revolução Industrial

A Academia de Arquitetura de Paris foi fundada em


1671, sob inspiração do Renascimento italiano.
Já pela metade do século XVIII, quando a Revolução
Industrial ensaiava seus primeiros passos, as
exigências formuladas para a arquitetura começavam a
ultrapassar as possibilidades científicas e técnicas de
uma escola que insistia em cultivar a arquitetura como
simples manifestação de arte plástica, nos tradicionais
moldes acadêmicos.
A dicotomia arquitetura-engenharia, portanto, se fazia
necessária e urgente - e se deu na França em 1747,
quando foi fundada em Paris a famosa École des Ponts
et Chaussées.
(...)
Quando, porém, percebe que essas inquietações
intelectuais constituem, de fato, claros sintomas de
profundas mudanças culturais, capazes de afetar as
práticas tradicionais, a Academia começa a se fechar
ainda mais hermeticamente na defesa da sua arte,
contra as ameaças da ciência.
Esse reacionarismo dos acadêmicos dura até 1793,
quando os chefes da Revolução Burguesa decidem
fechar a Academia de Arquitetura, assim como as de
Pintura e Escultura.
Jacques-Germain Soufflot – Santa Genoveva /
Panthéon ( Paris:1764-1790)
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As condições da formação do arquiteto na Revolução Industrial

No ano seguinte, em 1794, a Revolução funda a


Escola Politécnica, cujo programa de estudos é
elaborado por diversos homens de ciência, sob a
liderança do famoso matemático Gaspard Monge. O
currículo da nova escola estabelecia um biênio
fundamental comum, com ênfase em matemática e
física, e um triênio de aplicação, desenvolvido em
escolas especializadas: a Escola de Pontes e
Caminhos de Paris; a Escola dos Engenheiros de
Mezières; a Escola de Aplicação de Artilharia e do
Gênio Militar, de Metz; a Escola de Minas, de Paris;
e a Escola de Gênio Marítimo, de Brest.
(...)
A verdade é que, com o fechamento da Academia
de Arquitetura e com a série de medidas
administrativas mais ou menos confusas que se
seguiram, o título de arquiteto perdeu todo o seu
valor de status e distinção à luz dos critérios
oficiais e, de certo modo, da própria opinião
pública. Para poder usar o título de arquiteto era
suficiente pagar taxa em uma repartição
burocrática - a autorização independia de estudos
formais realizados pelo postulante.

A imagem típica de um arquiteto do século XIX, trabalhando


em sua prancheta
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As condições da formação do arquiteto na Revolução Industrial

Depois de tantas vacilações, marchas e contramarchas,


voltas e reviravoltas em tomo da formação do arquiteto e
do exercício do ofício, decide-se finalmente fundar a
famosa École des Beaux-Arts de Paris, restabelecendo-se
assim, com outro nome, uma instituição do antigo
regime. Isto acontece em 1806, com as bênçãos de
Napoleão Bonaparte. A Beaux-Arts abrange o campo todo
das artes plásticas, com destaque naturalmente para a
Pintura, a Escultura e a Arquitetura - as chamadas artes
maiores. Ela carrega, assim, para o século XIX, em plena
efervescência da Revolução Industrial, o secular ranço do
academismo, conservador ontem e, agora, realmente
reacionário.
Reagrupando os antigos mestres, a Beaux-Arts aparece
como autêntica reencarnação da Academia, agora
revitalizada na sua luta contra a "ciência" e as inovações
que ameaçam vulgarizar as artes e, particularmente, a
arquitetura.
(...)

“Toda forma cuja razão não possa ser explicada


não pode ser bela”
A catedral ideal – Viollet le Duc
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As condições da formação do arquiteto na Revolução Industrial

A necessidade de especializar técnicos em engenharia é


perfeitamente reconhecível em face das exigências da
Revolução Industrial em curso - justifica-se assim a
criação da Politécnica, com seus diferentes cursos
especializados, entre eles o de engenharia civil.
Já a necessidade de fechamento da Academia de
Arquitetura não fica satisfatoriamente esclarecida nos
relatos e comentários dos historiadores e críticos - e em
breve os próprios acontecimentos revelariam o equívoco
cometido pelos chefes da Revolução Burguesa.
(...)
O mais provável é que o ato de violência revolucionária
contra a Academia e a própria figura do arquiteto tenham
sua origem em ilusões de cientistas e técnicos ortodoxos,
principalmente das áreas da matemática e da física,
dentre os criadores da Politécnica: eles acreditariam na
possibilidade da engenharia, com base numa tecnologia
científica, ocupar e dominar o campo da arquitetura; ou,
talvez, que a arquitetura, depois da revolução
tecnológica, passaria a constituir apenas um ramo
Viaduto Rouzat
Gustave Eiffel (1869) especializado da engenharia.
Esta idéia, aliás, vigorou entre os educadores da área da
engenharia até fins da década de 50, no Brasil pelo
menos.
Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto
As condições da formação do arquiteto na Revolução Industrial

A recuperação do prestígio da arquitetura e do arquiteto


começa a ocorrer com o fim da fase heróica da Revolução,
quando já se vai debilitando o ideal democrático representado
pelo famoso lema Liberté, Egalité, Fraternité. Eis que a
burguesia, uma vez instalada no poder, sente necessidade de
refrear o ímpeto libertário do "populacho", para consolidar sua
própria dominação. Em breve, a conveniência de restabelecer e
fortalecer a autoridade conduz a um novo autoritarismo: e a
República acaba por ceder lugar ao Império, com Napoleão à
cabeça.
(...)
Tudo indica que por esse modo se reafirmou o academismo,
que respondeu de imediato através da criação de um novo
estilo, à altura do novo poder: o Neoclássico, de sabor
imperial, condizente com os anseios de eternidade do poder
burguês.
(...)
Mas essa é, na verdade, uma história de instituições oficiais - e
a história que realmente interessa ao esclarecimento da
questão do divórcio entre arte e técnica na arquitetura, essa se
deu na prática mesmo da construção dos novos espaços,
exigidos pela nova sociedade. A recapitulação, ainda que
sumária, do desenvolvimento da tecnologia da construção, ao
longo do século XIX, permite reconhecer com suficiente clareza
a contribuição efetiva do arquiteto, assim como a do
engenheiro.
Opera Garnier – Paris (Séc. XIX)
Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto
O arquiteto e o desenvolvimento tecnológico no século XIX

(...)
O traço distintivo dos sistemas estruturais
arquitetônicos reside no seu compromisso original
com a formação do ambiente que há de
caracterizar o abrigo das atividades humanas. Em
outras palavras, para assegurar a qualidade
arquitetônica é mais importante a adequação da
estrutura ao ambiente e deste às atividades que
ele vai envolver e abrigar, do que o correto
equacionamento das cargas, do trabalho dos
materiais e das resistências dos elementos
estruturais.
É necessário e urgente, decerto, alcançar o
rigoroso equilíbrio entre as cargas, as resistências e
os apoios que garantem a estabilidade da formal
estrutura - mas o importante, tratando-se de
arquitetura, é fazer com que essa forma contribua
para a indispensável adequação do ambiente às
atividades humanas que ele deve favorecer.
Partenon (Acrópole, Atenas, séc. V a.C.)
Isso significa que a estrutura arquitetônica, além e
acima dos compromissos técnicos com a
estabilidade da construção, compromissos de
caráter estático, por assim dizer, tem um
compromisso maior, de caráter psicológico e
estético.
Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto
O arquiteto e o desenvolvimento tecnológico no século XIX

O mesmo não acontece com as estruturas operadas pela engenharia, que normalmente têm apenas
um compromisso indireto com as atividades, cotidianas dos homens.
O contraponto da represa que alimenta a usina é com o empuxo e as infiltrações da água: a energia
gerada vai iluminar a morada humana ou acionar seus aparelhos a dezenas de quilômetros de
distância e os homens fruem dos benefícios da luz e do trabalho dos motores sem tomar
conhecimento da existência da usina perdida no fundo do vale, e sem sequer imaginar a forma
assumida pela estrutura da represa no seu entendimento com a força das águas e a topografia do
sítio.
(...)
Também a ponte ocasionalmente marca presença na paisagem, mas ela é feita de fato para servir
como passagem, uma espécie de prolongamento do caminho sobre o rio ou outro qualquer acidente
topográfico: o homem que a utiliza raramente toma conhecimento da sua forma/estrutura
"escondida" lá embaixo.
Aliás, foi com a realização das primeiras estruturas metálicas para pontes e edifícios que se
encaminhou decisivamente o processo de desenvolvimento da tecnologia da construção no século
XIX.
Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto
O arquiteto e o desenvolvimento tecnológico no século XIX

No campo da engenharia, a primeira contribuição


importante ao desenvolvimento da tecnologia foi a
própria criação da Escola Politécnica de Paris, com
os cursos de engenharia, entre eles o de
engenharia civil - com essa iniciativa criou-se o
ofício de engenheiro, em fins do século XVIII.
A segunda e sempre destacada contribuição para o
desenvolvimento tecnológico nesse campo foi a
construção de uma ponte em ferro fundido, sobre o
rio Severn, na Inglaterra. Essa ponte foi projetada
e construída entre 1775 e 1779, por Darby, que,
aliás, nem era engenheiro, mas um industrial,
fabricante de peças de ferro fundido.
A terceira contribuição importante do incipiente
ofício foi a construção, em 1793-1796, da ponte de
Sunderland, concebida e construída pelo
empresário industrial Burdon, igualmente na
Abraham Darby: Ponte Metálica (1777) Inglaterra. Comentando essa obra, Giedion faz
Coalbrookdale. observação de grande interesse para a discussão
do assunto em pauta:
“Esta ponte de Sunderland constava de um só arco,
de setenta, oitenta metros de luz. As seis nervuras
que formavam o arco eram compostas por painéis
de ferro fundido, que faziam a vez de aduelas. Uma
série de 105 destes painéis formava cada nervura.
Deste modo, a maneira de construir a abóbada de
pedra se adaptou à construção em ferro. Não
estava dentro das possibilidades da época realizar
uma estrutura contínua de tal luz. (Giedion, p.
175.)”
Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto
O arquiteto e o desenvolvimento tecnológico no século XIX

(...)
No intermezzo desses grandes acontecimentos -
realmente marcantes do início do desenvolvimento
tecnológico da engenharia nascente - ocorreu a
primeira contribuição notável para o desenvolvimento
revolucionário da tecnologia da arquitetura: em 1786,
sete anos após a construção da ponte de Darby e sete
anos antes da construção da ponte de Sunderland,
procede-se à substituição da estrutura de madeira da
cobertura do Teatro Francês por uma estrutura de ferro
forjado. O trabalho é projetado e realizado pelo
arquiteto Victor Louis, famoso construtor de teatros.
Sobre essa obra, Giedion tece o seguinte e muito
significativo comentário:
“A elegância e a ousadia requeridas pelo uso do ferro em um
edifício desse tipo permaneceriam como uma característica
constante das construções francesas em ferro. As mesmas
qualidades aparecem, daí em diante, em todas as obras francesas
durante mais de um século, até que a construção em ferro alcance
seu apogeu na Exposição de Paris, em 1889.
O teto em ferro do Teatro Francês merece ser comentado por uma
razão muito precisa. O conjunto da construção está tão bem
equilibrado que paredes muito leves podem sustentá-lo. Como
alguns técnicos franceses asseguram, a forma das suas armações
revela um conhecimento intuitivo do momento de inércia, do qual
não se havia ainda elaborado a fórmula científica. (Giedion, p.
Biblioteca Ste-Geneviéve
176).”
Labrouste (1838 - 1850)
Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto
O arquiteto e o desenvolvimento tecnológico no século XIX

(...)
Foi tão grande e rápida a aceitação desse
embrião dos modemos centros comerciais
(shopping centers), que em muito pouco tempo
além da Panoramas outras cinco galerias
estavam construídas em Paris. Por volta de 1840
elas chegavam a uma centena, só na capital da
França. (...)
Em pouco tempo as galerias se difundiram por
toda a Europa e, logo, pelo mundo todo.
Em arquitetura, uma revolução tecnológica por
si só não é suficiente para criar novas formas de
agenciamento do espaço habitado - essa
inovação só se dá em termos consideráveis
quando a nova solução espacial, a nova
ambientação alcança aceitação pública. Essa
aprovação pelos moradores é que leva à
reprodução das soluções propostas. O grande
sucesso das passagens cobertas e galerias na
primeira metade do século, denotando a
calorosa aceitação por parte do público,
contribuiu de maneira decisiva para a criação de
condições subjetivas favoráveis à plena
manifestação de uma nova arquitetura, já em
processo de gestação.

Giuseppe Mengoni: Galeria Vitorio Emanuele II


(1877) Milão.
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O arquiteto e o desenvolvimento tecnológico no século XIX

A partir dessas primeiras experiências se


desenvolve não só a nova arquitetura, mas
também, e no mesmo ventre da Revolução
Industrial, a nova tecnologia da arquitetura.
(...)
Para conduzir ao entendimento do que de fato
ocorreu, o equacionamento da questão requer mais
do que um par de coordenadas: ele exige a
apreensão de um processo dialético complexo,
historicamente desenvolvido, que inclui, num jogo
de interações, não só os aspectos artísticos e
tecnológicos da arquitetura, mas a participação
destacada dos arquitetos-construtores e do desejo
dos moradores, vale dizer, da aceitação e
aprovação das propostas de solução por parte da
opinião pública.
Aliás, convém sempre insistir e repetir que o fator
decisivo das mudanças realmente substantivas no
campo da arquitetura resulta fundamentalmente
das exigências programáticas. São elas que,
manifestando necessidades, interesses e aspirações
individuais e sociais, induzem as transformações
artísticas e o desenvolvimento da arquitetura e da
sua tecnologia específica.

Lucio Costa: Casa Rodolfo Chmaberland (922) Rio de


Janeiro.
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O arquiteto e o desenvolvimento tecnológico no século XIX

Isso posto, torna-se mais fácil perceber o verdadeiro


papel do desenvolvimento tecnológico da engenharia (nas
estradas, pontes, máquinas, fundições de metais, canais,
represas etc.), no processo de desenvolvimento da
tecnologia da arquitetura (agenciamento da morada
humana).
Eventualmente, obras de engenharia - e principalmente
as chamadas "obras de arte" - termo sugerido aos
construtores do espaço arquitetônico soluções e
adaptações, mas as inovações decisivas se deram
naturalmente no próprio campo da arquitetura.
Na realidade, as influências da arquitetura sobre as
produções da engenharia sempre foram maiores, o que
nem por isso favoreceu a qualidade das invenções dos
engenheiros: estes procuravam "valorizar" seus engenhos
aplicando-lhes enfeites e até mesmo elementos
arquitetônicos, sem se darem conta de que as máquinas e
as estruturas metálicas exigiam uma nova linguagem
Sinagoga da rua Tournelles formal, inclusive da arquitetura.
Gustave Eiffel (Paris: 1866 - 1867)
O processo de gestação da nova arquitetura - com nova
visão espacial e artística, além de novos fundamentos
tecnológicos - é realmente longo e repleto de avanços e
recuos, marchas e contramarchas, sucessos e fracassos.
Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto
O arquiteto e o desenvolvimento tecnológico no século XIX

O coroamento desse processo consistiu naquela


arquitetura que procuramos caracterizar como
arquitetura da burguesia, feita de ferro, vidro e luz.
Seu momento culminante ocorre, sem dúvida, na
Galeria das Máquinas, do arquiteto Ferdinand
Dutert, para a Exposição Mundial de Paris, em 1889.
Para chegar a esse momento de glória, arquitetos,
engenheiros colaboradores, industriais e outros
construtores de vanguarda precisaram percorrer um
longo e penoso caminho, durante quase cem anos.
E isso eles fizeram apoiados apenas em uma
tecnologia incipiente e em seus sólidos
conhecimentos empíricos das técnicas tradicionais
da arquitetura.
O emprego do ferro como material estrutural
arquitetônico se intensifica a partir da invenção da
maquinaria para a produção do ferro laminado e das
barras de aço, o que se dá por volta de 1830. As
vigas de ferro laminado, contudo, só puderam ser
economicamente utilizadas bem mais tarde, lá pelos
meados do século. E os perfis de aço doce, que
permitiram introduzir o cálculo das estruturas com a
precisão necessária, só entraram francamente no
mercado de materiais de construção pelos fins do
século XIX.

Galeria das Máquinas: Ferdinand Dutert (Exposição Mundial de


Paris: 1889)
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O arquiteto e o desenvolvimento tecnológico no século XIX

Os arquitetos mais sensíveis e de maior talento,


entretanto, não permaneceram à espera das
invenções industriais para fazer avançar a
tecnologia da arquitetura. Eles passaram, de
imediato, a especular sobre as possibilidades dos
novos materiais, inventando sistemas estruturais
capazes de ampliar essas possibilidades, criando
novos espaços, procurando vencer vãos cada vez
maiores com o mínimo de apoios intermediários,
tudo como convinha aos novos programas de
necessidades da indústria e comércio.
É mesmo bastante provável que exatamente
essas experiências pioneiras tenham induzido e
orientado o próprio desenvolvimento industrial,
assim como as preocupações científicas na área
da construção do espaço habitado.

Palácio de Cristal: Joseph Paxton (Exposição Internacional de


Londresw: 1851)
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Arte e técnica na formação do arquiteto: ontem e hoje

Para superar de vez os equívocos que


vêm envolvendo as relações entre arte e
técnica na arquitetura, equívocos que
decorrem de uma falsa contraposição -
tecnicismo x academismo - convém
atentar para o fato de que o divórcio em
questão é mais antigo, tendo suas
origens no Renascimento italiano.
O Renascimento mostrou-se
profundamente inovador e mesmo
revolucionário em quase todas as áreas
de conhecimento e campos de
atividades, mas no que se refere à
arquitetura ele mal ultrapassou o nível
de um mais ou menos tímido renascer de
velhas formas e técnicas, eventualmente
utilizadas com uma dose maior de
audácia. Limitou-se, de certo modo, a
tecer variações em tomo de composições
arquitetônicas greco-romanas e, em
alguns casos, bizantinas.
Sta. Croce
(Brunelleschi – Séc. XV)
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Arte e técnica na formação do arquiteto: ontem e hoje

Os novos programas
arquitetônicos puderam ser
satisfatoriamente atendidos
mediante adaptações de edifícios
antigos: as vilas e castelos
inspiraram palácios; as basílicas e
templos conduziram às igrejas.
A ausência de novos e complexos
problemas técnico-construtivos
permitiu que logo o arquiteto-
mestre-de-obras fosse substituído
pelos pintores e escultores nas
tarefas da concepção e projeto dos
espaços arquitetônicos
renascentistas. É quando se
destacam figuras gigantescas
como Bramante, Michelangelo,
entre dezenas de outros
escultores-pintores-arquitetos que
armaram o cenário da
extraordinária aventura do
Renascimento.
Piazza Capitolina
(Michelangelo – Roma: séc. XVI)
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Arte e técnica na formação do arquiteto: ontem e hoje

Nessa mudança de aparência singela, é como se o


próprio berço da arquitetura - e
conseqüentemente do arquiteto - tivesse se
deslocado de canteiro de construção, onde
estivera desde sempre, para o ateliê do artista
plástico. O arquiteto-mestre-de-obra, antes visto
pela sociedade como artesão, um operário,
assume ares e posição de artista e, não raro,
homem da corte; a condição de arquiteto do
príncipe passa a constituir o sonho dourado dos
agenciadores da morada humana.
À semelhança do herói mitológico, com os pés fora
do chão do seu ofício, o arquiteto acaba por
perder o vigor - e débeis se fazem as arquiteturas
que concebe e projeta. O divórcio esse, entre a
concepção-projeto da obra e a sua realização-
construção, gera graves conseqüências para a
arquitetura: o desenho se faz cada vez menos
projeto e mais desenho mesmo, e a arquitetura
passa a ser, cada vez mais, pensada e avaliada
como arte plástica.

Estudo para a Sibila Líbia


(Michelangelo – Capela Sistina)
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Arte e técnica na formação do arquiteto: ontem e hoje

Abrem-se por aí amplas perspectivas de


substituição dos valores específicos da
arquitetura, por valores de uma espécie de
cenoplastia arquitetônica: os valores aferidos ao
lugar de morar - abrigo e ambientação das
atividades necessárias - começam a ser
minimizados, em favor de valores aferidos
principalmente às formas visuais. O saber fazer
arquitetura vai dando lugar, na formação do
arquiteto, ao saber desenhar e discursar sobre
arquitetura.
Assim, o divórcio entre arte e técnica na
arquitetura começa com o distanciamento entre
a teoria e a prática, o desenho/proposta teórica
e a construção/realização prática da obra, vale
dizer, do espaço.

Capela Chigi / S. Maria del Popolo


(Rafael – Roma: 1513)
Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto
Arte e técnica na formação do arquiteto: ontem e hoje

Esse processo de alienação crescente na


gênese das arquiteturas na Europa se agrava
muito quando a escola de formação de novos
arquitetos passa do ateliê dos artistas
plásticos para as academias. Agrava-se a
alienação porque essa transferência significa
um distanciamento ainda maior do aprendiz
em relação ao canteiro de construção. À
medida que a Academia se institucionaliza e
se oficializa, à sombra do poder,
naturalmente, diminui a influência dos
autênticos mestres sobre a formação dos
novos arquitetos.
Uma teia de exigências e rituais burocráticos
vai envolvendo o aprendiz até transformá-lo
em mero aluno passivo de professores que
nem sempre dominam o ofício.

Jardins do Palácio de Versalhes


(Louis le Vau & Jules Hardouin-Mansart – 1655 – 82)
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Arte e técnica na formação do arquiteto: ontem e hoje

Esse processo de alienação teve seu momento


de glória quando a Revolução, depois de fechar
a Academia de Arquitetura de Paris, foi obrigada
a reabri-Ia, travestida em Curso de Arquitetura
da Escola das Belas Artes.
Com as poucas e quase sempre episódicas
exceções da regra, as escolas de arquitetura de
todo o mundo continuam, ainda hoje,
essencialmente acadêmicas, mercê da
consolidação do mercado mundial pela burguesia
européia e do imperialismo mercantil, industrial
e cultural exercido pelos países ricos da Europa
e da América nos últimos duzentos anos. As
metrópoles ditam o modelo, como sempre.

Palácio do Comércio (Hoje Casa de Cultura Brasil-França)


(Grandjean de Montigny – Rio: 1816)
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Arte e técnica na formação do arquiteto: ontem e hoje

Para evitar mal-entendidos e novos equívocos, cumpre


destacar que o divórcio entre a escola (ateliê,
biblioteca, discurso, laboratório) e o canteiro de
construção não constitui privilégio da arquitetura: ele
comparece com idênticos resultados na formação dos
engenheiros civis, que cumprem ainda hoje os rituais e
normas burocráticas estabelecidas há quase duzentos
anos pela Escola Politécnica.
Tal como o arquiteto, o engenheiro civil recebe seu
diploma e é considerado apto para exercer seu ofício
de construtor, tendo apenas uma vaga idéia, de
origem discursiva, do que seja de fato uma construção.
Tal como o arquiteto, o engenheiro faz, durante seu
curso de pretenso aprendizado, algumas ligeiras visitas
a canteiros de obras, oficinas e usinas, mantendo-se
sempre por fora, olhando apenas.
Tal como o arquiteto, o engenheiro não aprende, na
escola, a fazer, fazendo; não aprende a construir,
construindo. E, por tudo isso, a situação real do
engenheiro, ao sair da escola, é ainda mais grave do
que a do arquiteto: este, apesar de toda a alienação
escolar, tem apenas um objeto de estudo - a
composição/agenciamento da morada humana -,
enquanto o engenheiro civil tem sua atenção dispersa
no estudo de diversos objetos, além da construção da
morada, o que implica a necessidade de conhecer
diferentes tipos de canteiros.
Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto
Arte e técnica na formação do arquiteto: ontem e hoje

O que modifica a situação do engenheiro civil no


mercado de trabalho da arquitetura é o fato de ele,
depois de diplomado, não ter opções alternativas além
da construção: ele vai efetivamente para o canteiro de
obras e completa empiricamente sua formação,
fazendo-se construtor. Com o arquiteto não acontece o
mesmo: formado no espírito acadêmico, continua, via
de regra, sonhando se fazer artista, tentando se manter
no ateliê, longe do canteiro e, com isso, muito poucos
conseguem se realizar profissionalmente.
Equacionada nestes termos, a questão do divórcio entre
arte e técnica no campo da arquitetura perde seus
traços catastróficos de fatalidade histórica irreversível,
traços implícitos nas formulações dos críticos e
comentaristas contemporâneos. A idéia, que tende a se
generalizar, de que a arquitetura constitui hoje um
ofício inviável e sem maiores perspectivas, é
completamente equivocada; e reflete, sem dúvida, o
falso dilema da opção entre academismo e tecnicismo.
Entendida como divórcio entre o ateliê de projeto e o
canteiro de construção, a questão em foco transporta,
ela mesma, o rumo da sua solução: trata-se, em última
análise, de restabelecer os vínculos rompidos, ou
instalando as escolas em canteiros de construção, ou
dotando as escolas de estruturas funcionais que lhes
permitam manter canteiros experimentais de
construção, onde o aprendiz possa realizar os
necessários estágios de treinamento em serviço.
Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto
Arte e técnica na formação do arquiteto: ontem e hoje

O Departamento de Artes e Arquitetura da


Universidade Católica de Goiás estabelece, em sua
proposta de reformulação de conteúdos e
metodologias para o curso de arquitetura, o objetivo
de assegurar ao futuro arquiteto o "domínio
instrumental teórico e prático no nível exigido para
resolver de imediato os problemas correntes do
projeto e da construção de edifícios, conjuntos de
edifícios e estruturas urbanas com a complexidade
das pequenas cidades da região e/ou de grandes
setores das cidades maiores".
Buscando atingir esse objetivo fundamental, a escola
vem, há mais de cinco anos, procurando criar
modalidades de treinamento em serviço nos canteiros
de construção - mas não alcançou ainda uma solução
satisfatória e definitiva. A manutenção de um canteiro
experimental pela própria universidade mostra-se
inviável por causa do seu alto custo de montagem e
manutenção; a organização de equipe de docentes e
técnicos numa oficina de construção para prestação
de serviços à comunidade de baixa renda tem
implicações econômicas, financeiras e sociais
complexas, difíceis de serem resolvidas por uma
instituição que carece de maiores recursos
financeiros.
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Arte e técnica na formação do arquiteto: ontem e hoje

Hospital Sarah Kubistcheck:


João Filgueiras Lima (Brasília, 1980)

(...)
Enquanto tenta soluções alternativas,
de emergência, o DAA-UCG vem
estudando uma solução definitiva, sob
orientação do arquiteto João Filgueiras
Lima, implicando a instalação de uma
usina-laboratório para criação de
novas tecnologias e produção de
protótipos de peças e elementos de
construção, e de edifícios inteiros,
principalmente à base de concreto e
argamassa armada.
A própria pesquisa exigirá os testes de
armazenamento, transporte e
aplicação em obra dos protótipos em
elaboração, vale dizer, as experiências
implicam necessariamente os
canteiros de construção e montagem..

CIEP:
João Filgueiras Lima (Rio de Janeiro, 1984)
Edgar Graeff – Arte e Técnica na Formação do Arquiteto
Arte e técnica na formação do arquiteto: ontem e hoje

A adoção da proposta de João Filgueiras


Lima conduz à reestruturação completa da
escola de arquitetura, montando-se o
ensino-aprendizado sobre quatro esteios
fundamentais:
— a biblioteca: centro de informações e
documentação, com auditórios,
equipamento de projeções, espaço e
exposição e salas de estudo, individuais e
coletivas;
— o ateliê: centro de treinamento e
aprendizado artesanal e artístico, e de
elaboração de planos e projetos;
— a usina-laboratório: centro experimental
de pesquisas e desenvolvimento de novas
tecnologias; e de produção de protótipos;
— os canteiros de construção: centros de
treinamento em serviços de montagem e
construção; e de testes dos protótipos e
tecnologias elaboradas no ateliê e na
usina-laboratório.
A realização dessa nova estrutura escolar
não será fácil, certamente, mas tudo indica
que ela colocará em questão o divórcio
entre arte e técnica na arquitetura no
rumo das soluções desejáveis e
Fau - USP necessárias.
Vilanova Artigas (São Paulo: 1969)

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