Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DOI − http://dx.doi.org/10.4322/1809-7197.2021.101.0004
Arranhando o céu:
os edifícios altos como
manifestação de cultura
MÔNICA AGUIAR – Engenheira, Professora de Estruturas e Pesquisadora MARCOS FAVERO – Professor de Projeto e Pesquisador
Escritório Justino Vieira Monica Aguiar Projetos Estruturais — PUC-Rio Curso de Arquitetura e Urbanismo — Programa de Pós-Graduação da PUC-Rio
RESUMO
Marco de uma lógica de expansão espacial verticalizada , pos - industrial .Atualmente , esses edifícios podem atingir alturas que
sibilitado pelo desenvolvimento de técnicas de projeto e cons - passam dos 600 metros e figuram como expressão de uma cultu-
trução de estruturas , os edifícios altos surgiram inicialmente ra planetária cunhada pelas grandes corporações transnacio -
em Chicago e Nova Y ork, nos Estados Unidos, e se espalha - nais , expressando valores intrínsecos do capitalismo tardio no
ram pelo mundo ocidental como expressão do poder do setor mundo globalizado .
A
proposta desse artigo é construtivo desenvolvido ao longo de desenvolvimento de um tipo de edifi-
examinar os edifícios al- séculos – fundamentado em paredes cação sem precedentes históricos: o
tos como manifestação portantes – possibilitando sistemas edifício alto. Edificação que passou a
cultural, não apenas atrelada ao de- estruturais independentes de ele- ser símbolo de uma sociedade capi-
senvolvimento da técnica, mas tam- mentos de vedação, que serviriam talista, próspera e industrializada, em
bém como materialização das aspi- à arquitetura e à engenharia para vertiginosa modernização.
rações de uma sociedade. Por meio atender às demandas de uma so- Fazendo um percurso que tem
do patrimônio construído é possível ciedade em acelerado processo de início na década de 1880 em Chica-
observar aspectos relacionados às modernização. go, procura-se compreender como
sociedades no que diz respeito ao Os desdobramentos da Revolu- os edifícios configuraram-se como
conhecimento adquirido ao longo do ção Industrial afetaram diferentemen- símbolo material da cultura indus-
tempo, às manifestações artísticas, te os países europeus e os Estados trializada eurbana dos EUA. Cultura
aos costumes e crenças, bem como Unidos da América (EUA). No caso que acabou por se difundir mundial-
às leis e estatutos morais, todos es- da Europa, a industrialização atingiu mente, sobretudo a partir de meados
tes campos da cultura. uma cultura milenar, materializada século XX, tendo sido apropriada
No caso dos edifícios altos, trata- em um patrimônio construído que, como cultura planetária no início do
-se de manifestação cultural cuja ori- já no século XIX, era objeto de estu- século XXI.
gem está diretamente relacionada ao dos ligados à sua conservação como
processo de consolidação da Revo- patrimônio histórico. Nos EUA, ao 2. A ESCOLA DE CHICAGO
lução Industrial, a partir de meados contrário, por força de seu passado A origem da construção de edifí-
do século XIX. Fenômeno que fez colonial, tudo estava por fazer e ali, cios altos pode ser atribuída às de-
surgir dois novos materiais de cons- em um contexto histórico e geográ- mandas provenientes da moderniza-
trução: o aço e o concreto armado. fico particular, uniram-se capacidade ção acelerada resultante da Revolução
Fonte: https://sv.wikipedia.org/wiki/William_Le_Baron_Jenney
solvidas, primeiramente, pelo campo
da engenharia. Essas demandas ma-
terializaram-se em grandes pavilhões
de exposições, estações ferroviárias,
mercados, lojas de departamentos
e símbolos culturais, cujo exemplo
mais significativo foi a torre projetada
e construída pelo engenheiro Gustave
Eiffel (1832-1923), para a Exposição
Universal de 1889. Torre que pode ser
considerada um ícone relacionado às
técnicas de projeto e construção de
estruturas metálicas – protagonistas
do patrimônio construído em meio às
transformações urbanas que se de-
ram nos centros da vida européia no
final do século XIX.
A Europa industrializada, que ti-
nha em Paris o seu centro de refe-
rência cosmopolita, trazia consigo,
no entanto, toda a tradição artística
de uma cultura milenar. Lá se encon-
travam as universidades para onde
acorriam jovens de várias partes do u Figura 1
mundo em busca da melhor formação The Home Insurance Building, 1885. William Le Baron Jenney
artística e técnica. Seria preciso que
uma geração de jovens arquitetos e
engenheiros, provenientes de famílias Polytechnique e na École Centrale, Em 1893 foi realizada em Chi-
abastadas da aristocracia dos EUA, em Paris, tendo recebido o que era cago a Exposição Universal Co-
frequentasse as universidades euro- então considerada a melhor formação lombiana e naquele momento o
peias, principalmente na França, para de seu tempo. Segundo o historiador público estrangeiro pode tomar co-
que o cenário da construção em aço de arquitetura Siegfried Gideon, “no nhecimento da arquitetura do cen-
começasse a mudar. escritório de Jenney, a engenharia tro de Chicago. Após o incêndio de
Originários de uma cultura sem o francesa combinada aos métodos de 1871, que destruiu praticamente
peso do passado europeu e fundada especialistas alemães produziu uma toda a cidade, deu-se a reconstru-
sobre bases pragmáticas, os enge- mistura curiosa” . Uma mistura que
1
ção, que foi intensificada no perí-
nheiros norte-americanos revolucio- procurava conciliar e refletir as fun- odo entre 1880 e 1900. A cidade
naram a construção em aço. William ções de uso de uma edificação na transformou-se em um laboratório
le Baron Jenney (1832-1907) é um sua arquitetura, subvertendo regras de novas experiências arquitetô-
dos exemplos dessa mudança, que consagradas de composição arqui- nicas, embasadas pela evolução
surgiu em Chicago, no estado de tetônica, estabelecidas originalmente das técnicas estruturais, construti-
Illinois. Jenney formou-se na École pela École des Beaux-Arts de Paris. vas, de comunicação e mecânicas;
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Martinelli_Building_(Edif%C3%ADcio_Martinelli).jpg
dial e antes da crise financeira de
1929, a construção de edifícios altos
intensificou-se nos grandes centros
urbanos de cidades dos EUA. Edifí-
cios de negócios foram construídos
no centro, enquanto os bairros re-
sidenciais foram direcionados para
seus arredores, a partir da imple-
mentação do automóvel como meio
de transporte individual. Tanto Chi-
cago quanto a cidade de Nova York
afirmaram-se então como os grandes
laboratórios onde se desenvolveu a
técnica de construção e projeto do
arranha-céu.
A pilha estéril, rude e espalhafa-
tosa ganharia o mundo a partir dali
e viria a se transformar em um dos
símbolos da cultura norte-ameri-
cana, exportada para vários países
do mundo como o “american way
of life”.
3. O ARRANHA-CÉU CHEGA
AO BRASIL
u Figura 3
A verticalização da construção
Edifício Martinelli
no Brasil está ligada à tecnologia do
concreto armado. No início do século
XX alguns edifícios altos vinham sen- quiteto francês Joseph Gire (1872- Martinelli de construir o edifício mais
do construídos em concreto arma- 1933) e do arquiteto brasileiro Eli- alto da América do Sul. Após suces-
do tanto nos EUA como em alguns sário Bahiana (1891-1980), teve sivas modificações de projeto, que
países da América do Sul. Augusto seu projeto estrutural elaborado segundo Vasconcelos podem ter
Carlos de Vasconcelos menciona pelo engenheiro Emílio Baumgart surgido de certo espírito competitivo
dois edifícios que marcaram o início (1889-1943). O edifício, após o entre as duas cidades, o edifício aca-
do processo de verticalização das acréscimo de dois pavimentos pre- bou sendo finalizado com 105,65m
construções no Brasil: o edifício A vistos no projeto original, porém de altura, pela construção de uma
Noite, no Rio de Janeiro, e o Edifí- construídos em 1930, atingiu a altu- “casa” a partir do 26º pavimento 4
cio Martinelli,em São Paulo, ambos ra de 102,80m. Por sua vez, consta (Figuras 2 e 3).
construídos entre 1927-1929. que o Edifício Martinelli nasceu da No Brasil, foi o arquiteto Lucio
O edifício A Noite, projeto do ar- vontade do Comendador Giuseppi Costa (1902-1998) que, em 1928,
4
VASCONCELOS, 1992, p.44-45.
Além dos exemplos brasileiros, o autor menciona alguns edifícios construídos nos EUA: o Ed Ingalls, em Cincinatti, 1903, 64m de altura; o Hotel Trymore, em Atlantic City,
New Jersey que quebrou o recorde estabelecido pelo Ingalls; o Medical Arts Building em Dallas, 1922, 70m de altura; além do edifício Salvo, em Montevidéu, construído
em 1926 com 45,60 m de altura sobre o qual foi acrescida uma torre que atinge 102,50 m.
entrevista. Independentemente de
julgamento de valor, Costa percebeu
que o edifício alto seria um dado da
realidade urbana no Brasil, com a
qual tanto os arquitetos quanto os
engenheiros precisariam lidar. De
fato, a verticalização do Rio de Ja-
neiro e de São Paulo teve início na-
quela época, prosseguindo ao longo
do século nestas e em outras cida-
des do país, e a previsão de Costa
acabou por se confirmar.
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Shanghai_Tower#/media/Ficheiro:Shanghai_Tower_2015.jpg
é possível destacar o crítico de arte
Jonathan Crary que, em seu livro
24/7: capitalismo tardio e os fins do
sono, chama a atenção para os as-
pectos do capitalismo no século XXI.
Aponta para um capitalismo não mais
fundamentado na acumulação de
bens, mas no estímulo incessante de
necessidades a serem resolvidas por
um consumo constante e ininterrup-
to de serviços. Capitalismo vinculado
ao tempo indistinto de operações ali-
mentadas pela disponibilidade per-
manente de servidores. Surge assim
o trabalho sem pausa, que tem por
único objetivo gerar o estímulo ao
consumo. É no âmbito desta lógica,
qual seja a do capitalismo tardio, que
se caracteriza o contexto cultural no
qual é possível localizar a origem da
demanda de construção dos edifícios
altos do século XXI.
Os projetos desses edifícios são
elaborados a partir de sofisticada
análise estrutural, técnicas específi-
cas de logística e pela utilização de
u Figura 5
equipamentos especiais de constru- Shangai Tower, Shangai, China
ção, bem como de equipes especiali-
u REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] COHEN, J-L. O futuro da arquitetura desde 1889: uma história mundial. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
[2] CRARY, J. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu, 2016.
[3] CURTIS, W. Arquitetura moderna desde 1900. Porto Alegre: Bookman, 2008.
[4] GIDEON, S. Espaço, Tempo e Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
[5] VASCONCELOS, A. O concreto no Brasil: recordes, realizações, história. São Paulo: Pini, 1992.