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CONFLITOS BRASILEIROS E A DEMOCRACIA1

Márcio Monteiro Rocha2

No dia 22 de setembro de 2022, o canal “Podcast Política de Rua” transmitiu ao


vivo um bate-papo com o Pós-doutor pela USP e Professor de História da Universidade
Estadual do Norte do Paraná - UENP, Marcio Carreri. Ao longo de duas horas de
programação, abordou os principais conflitos políticos, econômicos e sociais que
caracterizaram as tentativas de construção e desconstrução da democracia brasileira,
particularmente dos principais eventos que se desencadearam ao longo da década de 1930,
descrevendo os caminhos que conduziram a sociedade brasileira até o tempo presente,
apontando para os desafios e oportunidades que a sociedade brasileira deve encarar a
partir da atual conjuntura.
Lucas e Guilherme, conduziram o podcast Política de Rua com o episódio
intitulado “Conflitos Brasileiros e a democracia com Professor de História Marcio
Carreri”, utilizando o método de entrevista num bate-papo envolvendo uma temática séria
de forma bastante descontraída. Durante a introdução o convidado Marcio Carreri
apontou para o fato de que o próprio nome do programa “Política de Rua” já expressa por
si mesmo a dimensão política e os meandros da democracia que são abordados no
programa, não uma política institucional, uma política dos partidos, uma política dos
jogos e dos teatros, mas uma política que deve ser discutida para ser vivida, uma política
da democracia e das tensões sociais no Brasil Contemporâneo.
A síntese da entrevista a seguir buscou resumir o conteúdo produzido pelo
programa, procurando preservar a lógica estrutural das questões de maior relevância
atribuídas ao tema “conflitos brasileiros e a democracia” abordadas e discutidas ao longo
do podcast. Como o conteúdo a que se refere o presente relatório inclui porções
significativas de discussões que envolvem questões hodiernas politicamente sensíveis
produzidas e publicadas antes do início das eleições presidenciais de 2022, é possível que
algumas abordagens possam parecer desatualizadas ao leitor.

1
Relatório acadêmico elaborado a partir de podcast: POLÍTICA DE RUA. Podcast Conflitos Brasileiros e a
Democracia com Professor de História Marcio Carreri. YouTube, Canal Podcast Política de Rua, 22 de set.
de 2022. Disponível em: https://youtu.be/KC_fD3satUg. Acesso em: 30/11/2022, solicitado na disciplina
Gestão de Turismo, Turismo Religioso e Desenvolvimento Local II, pelo Prof. Marcus José Takahashi
Selonk, curso de Especialização em Ciências da Religião e Ensino Religioso, 30/11/2022, Universidade
Estadual do Norte do Paraná – UENP.
2
Pós-Graduando em Ciências da Religião e Ensino Religioso. E-mail: marcio.mrocha@hotmail.com
Política de Rua: o que o levou a estudar história?

Carreri: se relacionarmos a nossa história pessoal com a história do nosso país e do


mundo, todos são historiadores, mas precisa fazer essa relação. Tem a ver com a história
de vida, também com a minha militância, com a minha atuação política, social, sindical e
cultural, foi a necessidade de melhor compreender os processos históricos e sociais e a
nossa posição em relação a esses processos.

Política de Rua: o que você acha que foi mais emblemático nesses 500 anos de Brasil?

Carreri: a República no Brasil tem 133 anos e significa “coisa pública”. Não é algo
particular, privativo, é algo do Povo. O Brasil inaugurou a República em 1889, mas temos
menos de 50 anos de democracia porque se somarmos de 1946, que é o pós-guerra, até o
golpe seguido da ditadura civil militar de 1964, então você tem 20 anos, depois você
calcula de 1988 até o golpe de 2016. São esses dois intervalos de democracia que o Brasil
assistiu no período Republicano. Menos que a metade da República, de democracia de
fato, de democracia de rua, de democracia de debate, de plenária, de posições conflitantes,
dos atores sociais e políticos se colocando na arena do debate, então eu considero muito
curto. democracia é um processo, um caminho a ser construído. Para que possa acontecer
a democracia tem solavancos, tem marchas e contramarchas, tem avanços e recuos, tem
golpes, contragolpes, autogolpes, e ela vai se definindo porque é formada por grupos e
atores sociais que agem politicamente dentro dessa mesma democracia. Em alguns
momentos, esses solavancos seriam, muitas das vezes, mais um caminho para o Abismo
do que para a própria democracia. Estamos ainda sob a égide de um golpe, de uma
deposição, de uma prisão. Isso é próprio de regime de exceção. Há que se discutir o
clamor que se ouve nas ruas. Democracia precisa ser vivenciada e se está sendo clamada
é porque ela não está acontecendo. No dia 2 de outubro, ela pode ser reafirmada de fato.
democracia não é um destino manifesto, não é algo inevitável que vai acontecer
independentemente dos nossos atos. A democracia tem a política como condutora, e é ela
que vai fazer esses avanços ou esses recuos em determinados momentos da história. Eu
lembro do historiador britânico Eric Hobsbawm que disse que a palavra democracia é
muito bonita, é uma palavra sonora, é uma palavra que tem força como “mãe” ou “meio
ambiente”. Não é como a palavra “imperialismo” ou “racismo”. A democracia deve ser
tirada desse lugar de teatro da política tradicional que opera no sentido da representação,
do espetáculo, do fazer, do técnico, do profissional.
Política de Rua: então a democracia não é um troféu que você pode pegar e levar para
casa, mas um campeonato que você deve jogar todo dia?

Carreri: Gostei da analogia, da metáfora, eu acho que é isso. A ideia de jogo é interessante
porque ela também é um espetáculo, mas ela também é uma luta na dimensão que o jogo
tem. No jogo você não pode apitar o final antes do juiz. Na política, esses atores estão
interagindo, produzindo todo o tempo, então o resultado disso pode ser uma eleição, uma
posse, uma deposição, um golpe, uma ditadura. Depende da força desses atores sociais
que jogam. Foram as ruas que garantiram a democracia no Brasil, foram as fábricas, foram
as escolas, foram as Universidades. Quem faz a democracia de verdade não é a
democracia do gabinete, a democracia da academia, ou a democracia dos partidos, é a
democracia de fato. Quando os novos atores sociais entraram em cena, os trabalhadores,
o movimento das mulheres, dos estudantes, a democracia se fez no país. Vamos lembrar
1946, do pós-guerra. Nós viemos de uma ditadura varguista que veio de um autogolpe
chamado Estado Novo, pois, do ponto de vista político, foi uma tentativa bem-sucedida
de dar um golpe em si próprio e transformar-se num poder autoritário. Entre 1946 e 1964
houve aquele primeiro período democrático brasileiro. Foi o Socialismo, o Comunismo
real que venceu o Fascismo e o Nazismo e permitiu a democracia, o estado de bem-estar
social. Depois o Socialismo passou a ser uma peça comunista, mas foi o Comunismo que
venceu o Fascismo, o totalitarismo e não sou eu que estou dizendo isso, Norberto Bobbio
que diz isso, um teórico, um filósofo político, um historiador do pensamento político
italiano que faleceu no começo desse século e viveu o período do Fascismo. Ele é liberal,
não é socialista e falou que o Socialismo salvou a todos nós, ele e a Hanna Arendt
também. Ela disse “o que seria de nós sem a política”. Ela disse isso porque o Fascismo
sequestraria a política como queria, não a política parlamentar partidária ou a política de
mídia, mas a política de fato, a democracia real que é sequestrada no Fascismo. Então, a
democracia é produto do Socialismo, do Comunismo que venceu uma guerra e que
possibilitou não só a democracia, mas também um estado de bem-estar social, uma
relação interessante de se fazer com a democracia, com o aspecto social. Então vamos ver
a retomada da democracia, depois da ditadura, a partir da Constituição de 1988. Vamos
ver que essa democracia está ligada ao social, por isso a chegada de grupos sociais e
econômicos que fazem pressão sobre a política tradicional na década de 80, uma década
considerada perdida do ponto de vista econômico, mas muito importante do ponto de vista
social que garantiu a nossa Constituição, produto de lutas sociais pelo fim da tortura e da
censura. Por isso que não dá para dizer que essa transição começou lá atrás com petróleo
de 1973 ou com o processo do MDB das eleições porque nós vivíamos nesse estado de
sítio, nesse estado de segregação, nesse estado de necessidade de liberdade que só tinha
quem mandava. A Constituição é fundamental para isso.

Política de Rua: nesse ponto sobre o Socialismo vencer o Nazismo e o Fascismo, você
pode explicar um pouco melhor como os socialistas venceram Hitler?

Carreri: Foi a Segunda Guerra Mundial. Era popular falar em Socialismo no século XIX,
mas para nós vai importar depois de 1917 com a Revolução Russa. No Brasil foi a partir
dessas lutas sociais com base socialista, seja anarquista ou comunista, por uma série de
direitos sociais, trabalhistas, de saúde. Essas lutas vieram em função disso. Décimo
terceiro nem pensar. O Socialismo era tão popular que até o Partido Nazista se chamava
Partido Nacional Socialista, não porque tinha ideologia socialista, mas porque o
Socialismo era forte, tanto que venceu a guerra, o Hitler tão temido, o exército alemão. A
Rússia venceu a guerra, o Comunismo tem experiências anteriores muito importantes.
Por exemplo, o Comunismo é contra a guerra. O primeiro ato de Lenin ao chegar no poder
via revolução foi sair da guerra, e a Rússia saindo da Primeira Guerra pôs fim à guerra
porque a Rússia é muito forte. Na Segunda Guerra o Comunismo vence o Fascismo.
Nossa democracia tem uma face liberal, uma face burguesa muito forte porque as
garantias das liberdades individuais garantidos na Constituição foi preconizado pelos
liberais por força da luta socialista. A democracia existe em função da luta socialista. Não
podemos naturalizar nada. Tudo tem que ser entendido do ponto de vista histórico. Não
podemos dizer que sempre foi assim. Nem sempre foi assim, porque ainda existe trabalho
escravo na era moderna, chamado de trabalho análogo à escravidão. O Partido Comunista
no Brasil ficou durante quase todo o seu tempo na ilegalidade, mesmo tendo Prestes como
candidato eleito. A democracia real é feita nas ruas por três segmentos sociais:
trabalhadores, mulheres e estudantes.

Política de Rua: enquanto cidadãos, o que devemos fazer para fortalecer essa jovem
democracia e impedir que pensamentos obscuros voltem?

Carreri: Eu nem digo “voltar”, pois eles estão aí. São atores do movimento bolsonarista
que estarão em cena mesmo se a figura central for derrotada nas urnas. Não vai
desaparecer enquanto método, enquanto estratégia, enquanto tática. Fake News sempre
existiu, mas agora é por meio da tecnologia, das novas formas de comunicação. Essas
forças sociais sempre atuaram para, cada vez mais, limitar a democracia.
Política de Rua: E quem ganha com fim da democracia?

Carreri: O Fascismo, a ideia de nacionalismo exacerbado, o culto a uma personalidade,


a violência, a guerra. São forças sociais que se articulam para impedir o desenvolvimento
da democracia em seu sentido mais bonito, como descreveu Hobsbawn, ou no sentido de
ser sequestrada, como expressado por Bobbio ou Arendt, pois assim ela deixaria de
existir, dando lugar ao regime de opressão.

Política de Rua: Quais seriam as forças que se articulam para oprimir o povo?

Carreri: O Fascismo não se encerrou com a derrota de Mussolini ou de Hitler. Uma


arquitetura de destruição foi instrumentalizada e há muita técnica, muita política, muitos
interesses. A democracia liberal, também chamada de democracia burguesa, é essa das
eleições. Não é a política de rua, do dia a dia. Essa política é aquela capaz de
instrumentalizar também avanços e recuos ao longo do tempo, da história, dos processos
para impedir avanços. O Socialismo derrotou o Fascismo na guerra e se conjugou com os
direitos sociais. Há uma contraofensiva, uma reação para impedir que esse avanço
continue, pois sua continuidade significaria uma transformação da sociedade que
inviabilizaria o projeto fascista.

Política de Rua: pensando dessa forma, podemos concluir que os processos político-
democráticos são sempre a mesma peça de teatro, mudando apenas os atores?

Carreri: A Constituição tem 250 artigos e cerca de 1.350 Propostas de Emenda


Constitucional. Veja como querem alterar a condição a todo momento, com extrema
violência nos diversos espaços, seja na democratização, na educação, seja nos meios de
comunicação, seja nos direitos sociais, nos direitos humanos, nos direitos trabalhistas,
nos direitos das mulheres etc. tudo o que foi consagrado. Isso condena o país.

Política de Rua: A PEC é uma lei criada para entrar dentro da Constituição? Como que
funciona isso?

Carreri: A aprovação de uma proposta de emenda constitucional significa que a


Constituição sofrerá uma mutilação, exceto em cláusulas pétreas. O Brasil é federativo e
essa noção não permite alterações, por isso que certas cláusulas são pétreas, porque é
como uma pedra, muito difícil de se remover.

Política de Rua: os efeitos da Revolução Francesa geram impactos no que vivemos ainda
hoje aqui?
Carreri: A Revolução Francesa abriu o caminho porque ela estabeleceu o moderno, a
forma de lidar com a política, ainda que ela seja uma revolução burguesa, uma Revolução
Liberal, ela teve sua importância e foi fundamental para que o velho estado, a velha forma
de ver a sociedade, a história, fosse modificada. Ainda que ela tenha acontecido depois
da independência dos Estados Unidos, os ideais dela é que vão influenciar a
independência americana, e depois as outras independências, como a nossa. A Revolução
Francesa tem sua importância, por isso que Paris é considerada o iluminismo, o farol do
mundo. Por isso, quando os alemães na II Guerra tomam Paris, foi algo muito simbólico.
Marc Bloch, um grande historiador, escreveu o livro “A estranha derrota” porque ele acha
que faltou luta dos Franceses para impedir a dominação nazista de Paris. A Revolução
Francesa colocou a velha sociedade, a tradição e a nova, mas abriu caminho para a
Revolução Industrial, com o capitalismo, e aí consagra essa ideia de mundo moderno.

Política de Rua: A Revolução Industrial impulsionou o êxodo rural? O que você destaca
para nós?

Carreri: a chegada desses trabalhadores na cidade vai se tornar mais complexa. Até o
século XIX vão ser criadas as ciências humanas, a sociologia, a história, a antropologia
para entender esse fenômeno novo chamado Povo. Toda cidade é burguesa, porque ela é
feita na sociedade burguesa. A chegada desses trabalhadores, no caso de São Paulo dos
imigrantes, dos ex-escravos, vira uma Babel e você tem que lidar com esse fenômeno do
Povo, das pessoas, do colorido das pessoas, das formas delas se posicionarem, de se
colocarem nos ambientes etc. Isso tudo afeta a elite. Aí você tem toda uma técnica
desenvolvida para disciplinar corpos, cidades, poderes etc. É a organização desses
trabalhadores que vai qualificar a disputa na sociedade, o que Gramsci chamou de
Filosofia da Práxis, e Paulo Freire chamou de Práxis Libertadora, quando o ingênuo toma
consciência ele deixa de ser ingênuo e passa a ser um novo ator político porque ele está
organizado, e essa organização dos trabalhadores gera tensões urbanas e mais disciplina
de corpos e de comportamentos, produzindo Fascismos. Fascismo é uma experiência,
uma técnica sofisticada, rica, performática. Ele se torna um fenômeno, ele se militariza,
ele se engendra nos nacionalismos, ele se impõe por meio da força, ele sobressai. Então
o Fascismo torna-se muito popular.

Política de Rua: O Fascismo teria um lado?


Carreri: Ele tem um lado. Todos tem um lado. O que a ciência pode trazer para nós é a
Sapiência de localizar isso, entender isso melhor, em cores, em movimentos, em ações,
aí vamos perceber esses atores: têm CPF, principalmente CNPJ.

Política de Rua: Pediram para você comentar sobre as organizações sindicais no Brasil e
sobre a greve de 1917. Como que se organizam?

Carreri: A greve de 1917 foi uma experiência incrível. O momento ali era do chamado
anarco sindicalismo, então a greve de 1917 foi conduzida pelo Anarquismo, por que pela
Anarquismo? Ele chega antes com os imigrantes porque o Partido Comunista é instituído
no Brasil em 1922, no mesmo ano da Revolta Tenentista, da Semana de Arte Moderna, e
do Partido Comunista. São três fatos importantes que marcam essa modernidade na
política brasileira, o Integralismo, o Comunismo e o Culturalismo da Semana de Arte
Moderna, mas o Anarquismo já atuava em 1917, inclusive em Curitiba. A primeira
experiência anarquista da América foi aqui no Paraná, então esses saíram de lá foram para
capital para arrumar trabalho e lideraram, participaram desse movimento da greve de
1917, fundamental para a história da luta social no País. As condições materiais para que
os trabalhadores se organizassem, para que as mulheres se organizassem, para que os
negros se organizassem, para que os homossexuais se organizassem, os homoafetivos se
organizassem, não estavam dadas na sua materialidade, vai ocorrer depois, porque vai
depender desses processos, dos processos de migração que chamamos de diáspora, do
processo de ocupação da cidades, do processo de expulsão do campo, quer seja na
Revolução Industrial, quer seja na geada. Então ocorreu a Revolução Industrial lá na
Inglaterra no século XIX. A população saía, por exemplo, do País de Gales e ia para
Londres. Não é muito longe, mas é longe. No Brasil, na década de 1970, trabalhadores
ocuparam as cidades, espaços da periferia das cidades, portanto, já numa cidade
cientificizada, demarcada, então você chega, mas o seu lugar não é na cidade, é nos
arrebaldes, é na periferia, essa é a explicação da história das favelas no país, e quando a
população ocupava os locais que iam ser colocados como o novo centro, uma área
Central, eles eram expulsos. Tinham Quilombos em Copacabana. Quilombolas foram
expulsos de forma violenta com mortes. Obviamente, estou falando da força do Estado
burguês, que vai delimitar a nova cidade moderna, com higienização, com modernidade.
A cidade de Londrina, cidade onde estamos, parece que não tem favela, parece que a
Cidade de Londrina é o Lago Igapó, parece que ela começa na Catedral e acaba no
Terminal Central, parece que a cidade é isso, mas a cidade é tomada, circundada de
favelas, só que essas favelas não aparecem no cartão postal, portanto, como Londrina é
uma cidade muito moderna, aqui foi experimentado, de forma muito eficiente, essa
disciplina de corpos e comportamentos, essa higienização. Então os locais já são pré-
determinados. O Pensador alemão Walter Benjamin diz que “não há nenhum monumento
de cultura que não seja um monumento de barbárie”. Saímos daqui e vamos para a Europa
visitar castelos, marcos, inclusive napoleônicos etc., e todos aqueles foram feitos com
sangue dos trabalhadores de lá e da riqueza de cá, então o imperialismo, uma palavra que
segundo Eric Hobsbawm, soa ruim porque você vai chegar impondo a força do império,
a força das armas, a força da ciência, a força da religião de uma forma absurda, mas é
esse imperialismo que constrói as coisas belas, aí não tem jeito de não lembrar Caetano,
“Da força da grana que ergue e destrói coisas belas”.

Política de Rua: Pensando nesse processo de imperialismo, com a morte da Rainha


Elizabeth e você como professor de história, o que que você acha do papel da coroa da
Inglaterra, desse processo de achar que a rainha é pop, sendo que tem todo um histórico
de dominação da África e de outros países?

Carreri: Ao lembrar do império britânico, lembro de outra rainha, a Rainha Vitória do


século XIX. São duas grandes rainhas, por longevidade, também pelo que representam.
No caso da Rainha Elizabeth, já é uma outra Inglaterra, subserviente aos Estados Unidos,
a um país Central, a uma ex-colônia. Acho que retrata mais uma decadência, uma tentativa
de manutenção de uma tradição, do que de uma força econômica mesmo. Agora, o Brasil
tem certos fascínios, o Brasil saiu do regime monárquico por um golpe, e ainda que
creditemos tudo ao rei na história brasileira é preciso entender que tinha um Parlamento
no Brasil. As pessoas votavam. Mas quem votava e quem era eleito? Aí vamos ver que
democracia é essa. Não tem democracia, mas o Brasil tem um certo fascínio para isso.
Então tem um pessoal que faz que queria estar lá e registrar aquele momento histórico da
rainha etc. Bom, eu lamento muito. Acho que dou risada mesmo. Acho que mais do que
se revoltar, é tentar entender essa coisa meio jocosa. O Brasil teve um plebiscito em 1990
para definir pelo regime de governo. O pessoal podia optar, o Brasil podia ser uma
monarquia novamente. A descendência do rei continua, “deitado eternamente em berço
esplêndido”. Eles vivem em Petrópolis, que se chama a cidade do rei. Eles não pagam
impostos, o estado ainda garante, como na Inglaterra, a boa vida desse pessoal, com a
garantia ao direito divino dos Reis. Não é o Tesouro Nacional que está bancando isso,
mas é o tesouro Municipal da cidade do rei, onde era o lugar em que ia para descansar,
uma residência de férias dele na Região Serrana do Rio.

Política de Rua: Pensando no aspecto de que tivemos democracia a partir de 1988 e a


primeira Universidade no Brasil a partir de 1913, o que dizer desse período?

Carreri: há controvérsia porque a Federal do Paraná advoga que ela é a primeira


Universidade do país, 1912, 1913, e a USP que é a nossa universidade mais moderna
porque ela congregava em torno de si, diversas áreas do conhecimento etc. diferente da
antiga faculdade de medicina, de direito, uma foi trazida pelo reino. O Brasil atrasou
muito nesse processo Universitário, de produção de conhecimento, de ciência, de
pesquisa, então credita-se à USP. A Federal do Rio era a antiga Universidade do Brasil.
Quando se criou Brasília foi imediatamente criada a UnB como se fosse a Universidade
da capital. É complicado Curitiba defender essa tese porque até 1853, Curitiba pertencia
a São Paulo. O Paraná só existiu no meio do século XIX, só em 1853, então tem todo esse
processo que precisa ser compreendido. A USP foi criada com a missão francesa depois
da derrota da Revolução Constitucionalista de 1932. Cria-se a USP para formar quadros
para a elite paulistana porque tinha acabado de perder uma guerra para Vargas, para o
Brasil, e era necessário reconstruir o ideário do estado mais poderoso do país, tanto que
a USP torna-se a maior Universidade do Brasil.

Política de Rua: O Rio de Janeiro era a capital do nosso Brasil e foi para Brasília. Qual
o motivo da transferência?

Carreri: a ideia de uma capital fora do litoral já vinha desde o século XIX, ela estava
presente na Constituição da República, em 1893. Ao inaugurar a República com golpe, o
Marechal Deodoro vai precisar fazer uma Constituição para ordenar esse novo Estado,
essa nova sociedade. Estamos no período do imperialismo do século XIX. Naquele
momento a ideia era sair do litoral por dois motivos, a segurança, porque é mais fácil o
acesso estrangeiro pelo litoral, e o processo de interiorização do país que era um projeto
que poderia facilitar a integração nacional. Foi tudo pensado, foi uma capital de
prancheta, de engenharias. Oscar Niemeyer, um dos grandes pensadores, ganhou um
concurso e o projeto dele foi vencedor. Teve outros projetos para outros tipos de cidade.
Niemeyer venceu junto com Lúcio Costa e Burle Marx. Burle Marx fazia jardinagem, o
Lúcio Costa fazia o urbanismo e Niemeyer fazia a arquitetura. Foi um projetão bancado
pelo então presidente Juscelino Kubitschek, o JK, na fase desenvolvimentista da
democracia. JK foi herdeiro de Vargas. O suicídio de Vargas, em 24 de agosto de 1954,
adiou o golpe militar por 10 anos. O golpe já ia sair, eles iam depor o Vargas, por isso
que o Vargas se matou. Vargas foi eleito pelo povo e tomou posse em 1951, ia ser deposto
pelos militares que iam instaurar a ditadura em 1954, aí veio o ato radical do suicídio.
Todos os que eram próximos de Vargas foram eleitos e ele adiou o golpe por 10 anos. O
país continuou, aí o JK, prefeito de BH, depois governador de Minas Gerais, depois
presidente, com o apoio do legado de Vargas, um grande fantasma para a direita. E aí a
ditadura vem no período em que Jango, da mesma cidade de Vargas, chegou ao poder e
impulsionou as reformas, o acesso à saúde pública, à universidade, aos direitos sociais
ampliados, às reformas de base, à reforma agrária. Quando vai avançar mais, vem o golpe
de 1964. Por isso que eu disse que a democracia tem suas marchas e contramarchas, seus
avanços e recuos, normalmente é caminho para o Abismo, não para a Bonança, porque
Bonança precisa de luta, de consciência, de participação nas lutas sociais para que essas
forças contrárias à democracia sejam minimizadas, porque elas sempre existiram, e no
período moderno, com a emergência desse povo, eles passaram a ter medo do povo,
começou a incomodar muitas pessoas, ou a polícia vem, ou o cara sai de perto, ou alguém
avisa não sei do que, e etc. A chegada desse povo organizado, reivindicando direitos, é
um rastilho de pólvora para a sedição. Assim estas forças ganham notoriedade, seus atores
ficam mais evidentes e as suas propostas mais relevantes. Essa é a capacidade que essas
forças têm de se articular porque os interesses são múltiplos e se articulam para
determinado fim que interessa a esses grupos que se organizam. Tem uma música do
Chico que ele falava da ditadura, dos “sussurros ardis, a lei de vigia, bandida infeliz com
seu faro de raio x ou com seu faro de doberman”, Chico canta isso, retratava como isso é
feito, mas só que antes essas forças eram obscuras, atuavam na surdina, têm comitê no
Higienópolis, na antiga Sávio sorvetes.

Política de Rua: O que foi o integralismo no Brasil?

Carreri: Integralismo seria um “Fascismo à brasileira” porque ele guarda características


do Fascismo italiano do Mussolini, só que em um Brasil eminentemente rural e católico,
não que Mussolini não tenha sido, porque tem uma aliança inclusive do Mussolini com a
Igreja Católica na Itália que é o que dá força movimento, tem um apoio, uma coesão com
o Papa, eu não estou falando de um padre de esquerda, não estou falando de um pároco,
mas do Papa associado ao Mussolini. No Brasil tinha esse catolicismo mais conservador,
mas tradicional do Plínio Salgado. Ele também tinha um elemento moderno, escreveu
teses em 1926 e apresentou na Semana de Arte Moderna, um romance onde ele vai iniciar
os processos de construção da teoria integralista. Teve outros líderes, mas ele é o mais
importante. Ele se torna deputado e passa a ter força, uma representação importante. Foi
um movimento popular como o Fascismo e se torna depois um partido político, vai ser
candidato a presidente da república, não ganha, mas se coloca por conta da força como
deputado. Ele vai ser eleito por São Paulo, ele era do interior de São Paulo, depois ele
vem para o Paraná, eleito no Paraná também, então tem um Fascismo à la paranaense.
Nós temos o Anarquismo da colônia Cecília e o Fascismo do Plínio Salgado no Paraná
porque nós temos uma fronteira importante com São Paulo e isso vai interferir nessas
relações com a política, com a modernidade, com a cultura brasileira, paulista e
paranaense da década de 1930. Ele pensava que tinha um acordo com Vargas, que rompe
com ele depois da revolução, e é exilado em Portugal. Vargas não comprou as ideias de
Plínio e ele não se torna um tipo de Ministro de Educação e de Cultura com base
integralista fascista, protofascista ou fascista à brasileira, não importa o termo, mas seria
um “fascisminho”, um tipo de “verde-amarelismo” do Plínio. O Vargas implantou
também um estado autoritário com o Estado Novo que tinha muitas características do
Fascismo, ainda que noutro momento teve apoio americano. São marcas do período
moderno do Brasil; existem as particularidades locais, as nossas especificidades
regionais, os nossos atores do Brasil, mas tem sempre essa relação com o que está
acontecendo no mundo, Segunda Guerra Mundial, Socialismo, Fascismo, chegada do
Anarquismo no Brasil, tanto em termos de greve como em temos de uma organização
social comunitária com base filosoficamente anarquista no Brasil e no Paraná. São
disputas de projetos de modernidade do Brasil, entrando nessa espécie de concerto das
Nações, com essas formulações que vem do estrangeiro e que diz muito sobre o nosso
lugar. Quem é esse cidadão paranaense nessa construção da sua identidade?

Política de Rua: E qual é a formação desse paranaense, segundo a parte teórica que você
estudou?

Carreri: A ideia de Identidade do paranaense foi construída de uma forma muito


autoritária, muito de cima para baixo, é o paranismo, o movimento paranista, aquela ideia
de nos identificarmos com o que se tinha, com o que se conhecia do Paraná quando passou
à província. Por que estamos como província? Porque no império o Paraná virou
província, depois virou Estado com a instalação da República. Nesse momento o que está
se construindo é aquela identidade muito calcada em Curitiba, ou calcada nos três
planaltos, ou colocado em Paranaguá, que é a nossa primeira cidade, o planalto Curitiba,
o planalto de Guarapuava, enfim, aquela Constituição dos três, que está muito presente
ainda no símbolo do Paraná, da araucária, da gralha azul. Essa experiência do Norte, do
Oeste ou do Noroeste, do Norte Pioneiro vem com a expansão agrícola, tem muito de São
Paulo, de Minas. Esse novo espaço é outro momento da história do Paraná. Essa
identidade fabricada lá no nascimento daqueles grupos ligados à erva-mate, à extração de
ouro em Paranaguá ou da elite de Curitiba, é muito ligada a esses grupos, marca muito as
diferenças do Norte com a capital. Há uma certa tensão permanente nos vários espaços
culturais, da constituição desses locais, desses territórios, porque são realidades sócio-
históricas diferentes, em tempos diferentes, realidades econômicas diferentes, com a
perspectiva sociocultural diferente. O Oeste do Paraná é diferente do Norte, que por sua
vez é muito diferente do Sul por conta desses diversos momentos e encontros que esses
locais possibilitaram. A extração do ouro vai possibilitar uma corrida para lá, Curitiba era
uma pequena província, Paranaguá era a principal, o Paraná era caminho para região de
Sorocaba onde se concentravam os muares, a venda da pecuária. Até a cidade de São
Paulo nesse momento não era São Paulo como é hoje. O Norte diferencia porque vem
depois, surge no final do século XIX em Jacarezinho, por isso é chamado Norte Pioneiro.
Em meados de 1920, década de 1930 vieram os outros municípios como Londrina,
Cornélio é mais recente. O mais antigo é Serra que tem as populações indígenas,
Jataizinho que vai ser colocado como espécie de espaço militar, um espaço mais central
de organização do território com forte presença do Estado, dos militares, foi inclusive
caminho para o pessoal que ia para a guerra do Paraguai. Então, cada espaço tem uma
realidade diferente, um tempo diferente que forma esse Paraná.

Política de Rua: Você pode falar um pouco sobre seu livro “O Socialismo de Oswald de
Andrade”?

Carreri: Oswald de Andrade é uma figura muito polêmica, uma figura da cultura, da elite
paulistana, que por um momento da sua vida participou do partido comunista como
filiado, militante, atuante, fugindo da polícia com a Pagú, a maravilhosa Patrícia Galvão,
companheira dele. Ela levou o Oswald de Andrade para o Partido Comunista - PC, e ele
se converteu ao partido comunista. Era um boêmio, anárquico, um cara que veio da
riqueza, que vivia a maior parte do tempo em Paris. A Pagú leva o Oswald de Andrade
para Montevidéu, lá ele vai conhecer o Prestes, o grande líder comunista do Brasil. Para
mim, Prestes é uma figura lendária, uma das grandes figuras da política brasileira junto a
Vargas, Brizola e Lula. O Prestes estava exilado no Uruguai, então a Pagú levou o Oswald
de Andrade até lá, até Montevidéu, para conhecer o Luiz Carlos Prestes, e eles ficaram
no café durante dois dias como em um bate-papo. O Oswald ficou fascinado com aquela
figura, com aquela capacidade do Prestes que já tinha ido para a Rússia, já tinha uma
formação militar, que se educou no Comunismo lá na União Soviética. Todas essas
histórias Prestes vai contar para o Oswald que também vai contar as peripécias dele, ali
se dá a conversão. O Oswald renunciou toda sua sociabilidade intelectual, cultural,
editorial e econômica da sociedade paulistana da época, por isso nós falamos de
conversão. O Comunismo também lidava com essa coisa mítica da missão profética etc.
são elementos muito fortes na formação do partido, porque o Brasil é um país cristão onde
essas doutrinas vem eivadas, urdidas desse ambiente mítico profético. Ele bebe nesse
ambiente aqui. Oswald de Andrade se torna comunista e ele passa a produzir literatura
comunista, imprensa comunista, reuniões comunistas, falando de uma vida de
Comunismo. Ele escreve um jornal, patrocina o jornal porque ele tem dinheiro ou ele tem
acesso, ele tem condições materiais de produzir isso, e ele produz um jornal chamado “o
Homem do Povo” em que ele e a Pagú escrevem. A Pagú escreve coisas sobre o
feminismo e Oswald escreve coisas sobre o Comunismo brasileiro nesse jornal que era
vendido em bancas de São Paulo na década de 1930. É fascinante! Tem livraria onde ele
se encontrava, tem lugar de encontro, tem relação dele com Monteiro Lobato, com Mário
de Andrade, com a Pagú, com o Antônio Cândido, com Carlos Drummond de Andrade,
todas essas figuras importantes da cultura e literatura brasileira. Você vê as posições
avançadíssimas dele para época, é incrível como ele contribuiu com esse Comunismo
brasileiro, com essa perspectiva socialista brasileira, por isso o livro. Não é o Oswald da
literatura ou da Semana de Arte Moderna, mas o Oswald político, comunista, partidário,
atuando na luta social, mostrando como ele exerceu a vida partidária.

Política de Rua: Quais seriam suas considerações finais?

Carreri: Gosto muito de uma frase do Freire, nós somos seres inconclusos conscientes da
nossa inconclusão sempre no processo de aprender, de aprender e ensinar, ninguém ensina
o que não aprendeu, ou não aprende o que ensina, segundo Freire. Eu acho que estamos
sempre no processo de construção e o nosso posicionamento no mundo, nossa visão de
mundo tem a ver com a nossa atuação mesmo que não façamos nada. Aqueles que se
autodeclaram apolíticos ou não querem se envolver em assuntos polêmicos ou não tem
opinião formada, tem uma posição política de abstenção. Posição política de neutralidade
é uma posição política, é afirmação. A negação também é o recuo; o cerrar fileira com
reacionário também é uma posição política. Você concordar com o aborto - eu citei o
Hobsbawn - ninguém pode ser a favor do aborto. Não existe isso. Você pode ser a favor
da liberdade da mulher de tomar a posição sobre a sua vida, sobre o seu corpo, sobre a
sua história, e não contra o aborto. Ainda que as pessoas tenham essa posição, embora a
discórdia seja uma posição política, é uma postura política, então todos nós temos. Nessa
dimensão, que aprimoremos nossa perspectiva política, nossa visão para que nossa
expressão seja mais qualificada de acordo com a nossa visão porque não tem outro jeito
senão nos informar, e é a função do programa de vocês, é ter essa capacidade de produzir
um espaço, um local de reflexão, de pensamento. Não significa que tem que ser formal,
sisudo, pode ser bem-humorado, pode ser em forma de diálogo, é a força do contrário
porque isso é que é diálogo. Eu quero terminar citando o Machado de Assis: “se você
troca um pão, você vai para casa, você troca com teu amigo um pão, cada um vai para
casa com um pão, se você troca ideias como você volta para casa?” acho que é isso.

Referências

POLÍTICA DE RUA. Podcast Conflitos Brasileiros e a democracia com Professor de


História Marcio Carreri. YouTube, Canal Podcast Política de Rua, 22 de set. de 2022.
Disponível em: https://youtu.be/KC_fD3satUg. Acesso em: 30/11/2022

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