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A. B.

YEHOSHUA

Viagem ao fim do milênio

Romance da Idade Média

Título original: Massa'el Tom HaElef

Tradução do hebraico: Milton Lando

Revisão: Cláudia Cantarin, Ana Maria Barbosa


Orelhas

Alguns anos antes do ano 999 da era cristã, Ben — Atar — um


mercador judeu da cidade de Tânger — está longe de imaginar que
num futuro não muito distante deverá deixar a ensolarada costa
africana ruma a Paris, para apresentar-se diante de um tribunal
rabínico. Em meio ao esplendor daquele verão, depois de aportar na
baía de Barcelona, Ben-Atar se prepara, como nos anos anteriores,
para desembaraçar mais uma preciosa carga de mercadorias
recolhidas por entre as aldeias dos montes Atlas. Junto com Abu
Lutfi, o sócio árabe, espera ansioso pelo momento em que poderá
ouvir o relato do terceiro sócio, Abuláfia, sobre as circunstâncias da
venda, em território franco, das mercadorias trazidas no ano
anterior.
Neste "Viagem ao fim do Milênio", A.B.Yehoshua — como Abuláfia,
um exímio contador de histórias — revela-nos o traçado milenar das
fronteiras entre as comunidades judaicas asquenazes e sefarditas,
que ainda hoje demarcam afinidades e diferenças dramáticas para
Israel. Como o próprio autor declara, "a linha que separa asquenazes
e sefarditas é a fronteira dentro de Israel e entre Israel e o restante do
Oriente Médio. O livro se desenvolve em torno desse diálogo".
Numa recriação brilhante do mundo medieval das trocas mercantis
entre povos separados pelo Mediterrâneo, Yehoshua nos conduz
pelos meandros da florescente cultura árabe-judaica do Magreb,
evocando a rica policromia de suas sedas, a pungência do odor de
suas especiarias e a sensualidade de suas mulheres, em contraste
como o rigor da cultura asquenaze da Europa do século DEZ,
mergulhada em clima de interno fervor religioso com a aproximação
do milênio cristão. É nesse ambiente que se dá o diálogo entre as
duas tradições da cultura judaica. Não obstante a fé no mesmo Deus
e a adesão aos mesmos princípios religiosos, judeus asquenazes e
sefarditas se defrontam numa disputa pelo reconhecimento de suas
diferenças em relação às manifestações básicas da vida e do amor.
A.A.Yehoshua nasceu em Jerusalém em 1936. Desde 1972 leciona
literatura na Universidade de Haifa. Escritor reconhecido
internacionalmente, recebeu alguns dos mais importantes prêmios
literários de seu país e do exterior e teve o conjunto de sua obra
distinguida pelo prestigioso prêmio Israel. Dele a Companhia das
Letras publicou SHIVA.
Contra-capa

"Será você capaz não só de descrever, mas também de penetrar a


alma de alguém que oitocentos anos separam da música de Mozart?
E para quem até mesmo a serena monotonia do canto gregoriano soa
demasiado complexa aos ouvidos? Será capaz de aquecer a
imaginação nos sentimentos daqueles para quem a figura humana
pá tão rígida e esquemática em seus desenhos desbotados? Pois
ainda haverão de transcorrer quinhentos longos anos de guerras e
pestes até que a luz da renascença os ilumine. É verdade que, ao
contrário de nós, eles não julgam que algo de seu mundo um dia
será diferente, e estão absolutamente convictos de que, passados
mais mil anos, você e seus amigos serão exatamente iguais a eles.
Mas será que essa certeza ingênua é suficiente para que você, de tão
longe, deixe de lhes estender a mão?"
Para Ika
Introdução

Haverá alguém que se lembre de nós daqui a mil anos? Será que
aquela velha alma ainda estará conservada, e em seu próprio útero
úmido ainda se preservará o bruxulear
da sombra passageira dos nossos atos e sonhos? Será que,
desprovida dos seus órgãos internos, imersa em líquidos
programados, miniaturizada em sabedoria e felicidade, ela, seja lá
qual for o seu nome, ainda terá a intenção, ou sentirá o desejo de
retroceder mil anos no tempo e procurar por nós, assim como você
agora procura pelos seus heróis? Mas quem poderá dizer se será
possível encontrar alguma coisa? Pois o peso dos mil anos que a
separarão de nós será como o peso de milhares de anos, hoje. Pois
quem poderá saber se daqui a mil anos a razão clara e consolidada
não terá se desobrigado da responsabilidade pela nossa história
bruta e confusa, assim como já nos livramos da "história" dos
homens da caverna? E ainda assim não seremos simplesmente
esquecidos? Pois é impossível supor que não se encontre uma única
molécula de memória da nossa existência, tal como um manuscrito
amarelado no fundo de uma gaveta esquecida, cujo simples fato de
se catalogá-lo já garantirá sua eternidade, ainda que nem um único
leitor jamais o descubra. Mas será que o próprio catálogo continuará
existindo? Ou quem sabe alguma matriz totalmente diferente irá
fundir e embaralhar tudo o que se passou, e a nossa imagem nunca
mais poderá ser recuperada conforme nós próprios a concebemos?
Mas agora, ao dissipar da neblina da manhã sobre a baía de
Rouen, quando através das lentes dos mil anos passados você
começa a acompanhar o navio bojudo e enegrecido que penetra
vagarosamente na embocadura do rio Sena, você, apesar da
distância, sente simpatia pelos heróis de quem tira o pó do passado.
Na verdade são mais baixos do que imaginava; o cabelo e a barba
mais compridos e emaranhados, e apesar de serem jovens, já lhes
faltam alguns dentes na boca — talvez para lembrar-lhe que a morte
assim chamada "natural" está mais próxima deles do que você
supunha. E suas roupas, especialmente as das mulheres, lhe são
incompreensíveis, e você não consegue entender de que modo as
vestem e como as atam. Mas apesar de tudo isso você não apenas
acredita como tem absoluta certeza de que em suas consciências
opacas esses homens, com seus pesadelos confusos e suas negras
amplidões, seus parcos conhecimentos e suas múltiplas cintilações,
são como um relógio antigo que apesar do mecanismo simples e
primitivo e do pesado pêndulo é capaz de indicar o tempo com
precisão, exatamente como um sofisticado relógio eletrônico.
Será a empreitada bem-sucedida? Será você capaz não só de
descrever, mas também de penetrar a alma de alguém que oitocentos
anos separam da música de Mozart? E para quem até mesmo a
serena monotonia do canto gregoriano soa demasiado complexa aos
ouvidos? Será você capaz de aquecer a imaginação nos sentimentos
daqueles para quem a figura humana é tão rígida e esquemática em
seus desenhos desbotados? Pois ainda haverão de transcorrer
quinhentos longos anos de guerras e pestes até que a luz da
Renascença os ilumine. E verdade que, ao contrário de nós, eles não
julgam que algo de seu mundo um dia será diferente, e estão
absolutamente convictos de que, passados mais mil anos, você e seus
amigos serão exatamente iguais a eles. Mas será que essa certeza
ingênua é suficiente para que você, de tão longe, deixe
de lhes estender a mão?
Advertência ao leitor

Este romance é uma obra de ficção. Os nomes, personagens,


lugares e incidentes são produto da imaginação do autor, ou foram
usados de maneira fictícia. Qualquer semelhança com pessoas reais,
vivas ou mortas, assim como eventos ou locais reais é mera
coincidência.
PRIMEIRA PARTE

A jornada a Paris ou a Nova Mulher


Capítulo 1

No segundo quarto da noite, ao ser acordado por uma carícia,


Ben-Atar pensou que até mesmo em pleno sono sua Primeira Esposa
não se esquecia de lhe agradecer pelo prazer que lhe proporcionara.
Envolto pela escuridão e embalado pelo movimento pendular do
navio, aproximou dos lábios a mão que o acariciava, para nela
pousar mais um beijo. Porém o calor seco da pele sob seus lábios
logo o advertiu do seu erro, e, enojado, repeliu a mão do escravo
negro que, sensível à repulsa do amo, desapareceu. Assim como
estava, ainda sonolento e nu, sentiu novamente a preocupação pela
viagem voltar a atormentar-lhe alma. Estende a mão para verificar se
o rapaz, que tinha ousado introduzir-se nos recessos de sua cama
para despertá-lo, não teria também alcançado o cinto com pedras
preciosas, e apressa-se em afivelá-lo antes de vestir o manto.
Silenciosamente, sem uma palavra de despedida, Ben-Atar esgueira-
se para fora da minúscula cabine e sobe para o convés pela escada de
corda.
Embora saiba perfeitamente que sua partida, por mais discreta que
seja, irá despertar a esposa, está certo de que ela saberá se conter e
não tentará detê-lo, pois não só não ignora mais qual é o seu dever
de esposo, mas talvez até partilhe a esperança de que ainda haverá
tempo para que ele o cumpra antes do raiar do dia.
Entretanto, a julgar pelo intenso cintilar das estrelas de verão
que juncam o firmamento, a aurora ainda está distante. A brisa
delicada que afasta o resto de sono dos seus olhos enquanto ele sobe
ao convés não é o tipo de brisa que nasce de repente no terceiro
quarto. É apenas um sopro suave que logo volta a se dispersar no
vazio, e que ainda ontem, pelo rondar dos ventos e pelo cheiro do
mar, todos haviam identificado como sendo da baía de Rouen, pela
qual vinham ansiando desde que zarparam do Magreb há mais de
quarenta dias. E para não perder a precisa localização da
embocadura do rio que os levará ao coração da terra dos francos,
antes mesmo do pôr-do-sol o capitão deu ordens de recolher a vela,
baixar a âncora, alinhar e prender os dois remos de direção e enrolar
a vela grande em torno da longa retranca que balança presa ao
mastro suavemente inclinado. E no espaço do convés, já livre do
afiar sufocante do grande triângulo de lona, as escadas de corda se
transformaram em redes improvisadas para os marinheiros, que até
mesmo nessa hora profunda da noite não resistem à curiosidade, e,
de olhos semi cerrados pelo sono, observam como o judeu, o dono
do navio, dá novamente vazão ao seu desejo, preocupado em não
falhar para não decepcionar a Segunda Esposa que estivera à sua
espera na cabine de popa.
Entrementes se ouve um leve soar de guizos, e, por entre as
cestas de mercadorias, esgueira-se o vulto esguio do escravo que
despertara seu amo com uma longa e impudica carícia e agora, com
o rosto inexpressivo, estende-lhe uma bacia de água fresca. O
escravo bem poderia ter se contentado em despertá-lo com o tilintar
dos guizos presos à túnica, rumina Ben-Atar ressentido, enquanto
asperge o rosto com a água gelada, em vez de ter vindo se
intrometer dessa maneira em seus aposentos para arriscar uma
olhada furtiva à sua nudez e à nudez de sua esposa. E sem uma
palavra de aviso ou reprovação, dá um tapa com toda a força no
rosto negro do escravo, que cambaleia com o duro golpe mas não
demonstra nenhuma surpresa nem pede nenhuma explicação. Desde
o início da viagem ele já se acostumara com o fato de que nenhum
homem a bordo poupa seu dorso das surras, nem que seja apenas
para acalmar esse filho do deserto, que perdera todo o equilíbrio
desde que fora arrastado para o alto-mar, e que como um
animalzinho arisco e selvagem, ainda dominado pelo terror do
momento em que fora capturado, passara a vagar dia e noite pelos
meandros do barco, percorrendo seus labirintos a fim de se aninhar
em qualquer criatura viva, fosse homem ou animal. E tendo
finalmente levado Abu Lutfi e o capitão ao desespero, ficou decidido
que o desembarcariam em qualquer porto, para recolhê-lo
novamente apenas na viagem de volta. Porém o bom vento que
inflou a vela durante as duas primeiras semanas os arrastara para
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longe da linha da Santa Fé, na península Ibérica, e na aldeia de
pescadores próxima a Santiago de Compostela onde se abasteceram
de água fresca não encontraram nenhum muçulmano a quem
pudessem pedir que tomasse o atônito jovem sob sua guarda, ainda
que temporariamente. Nas mãos de cristãos, os marinheiros árabes
se recusavam a deixá-lo, pois bem sabiam que com a aproximação
do novo milênio não receberiam de volta o que teriam deixado, mas
sim um novo-cristão, pequeno e oprimido.
Devido aos boatos que inundavam a Andaluzia e o Magreb
sobre o pavor e o novo fanatismo religioso que se espalhavam pelos
reinos e principados cristãos neste último ano, o mercador judeu e
seu sócio árabe, Abu Lufti, decidiram minimizar sua movimentação
por terra a fim de não colocar em perigo a si próprios e à sua
mercadoria, ao viajar por aldeias, vilarejos, campos e mosteiros
fervilhantes de fiéis da cruz. Pois, apesar de suas almas ansiarem
febrilmente pelo Messias ferido que descerá dos céus para
comemorar o milésimo aniversário do seu nascimento, também
temem que naquele mesmo dia venha a se dar a prestação de contas
pelos pecados acumulados, em especial para os que caminham livre
e calmamente entre eles — judeus e muçulmanos obstinados em não
acreditar no Deus crucificado e em não esperar d'Ele nenhuma
redenção. E assim, naqueles dias crepusculares, em que as diferenças
entre as crenças iam se acentuando na costura entre um milênio e o
outro, era preferível restringir os encontros com os crentes de outra
fé, e contentar-se, ao menos na maior parte do caminho, em
encontrar apenas a natureza — o mar, por exemplo, que, mesmo se
tornando às vezes revolto e cruel, não cobra nada por coisas que
estão além do seu alcance. Assim, em vez de rumar para leste,
passando pelo estreito de Gibraltar, e costear a margem norte do
Mediterrâneo até a embocadura do Reno, subindo depois o grande
rio fervilhante de embarcações locais, e desse ponto em diante seguir
por estradas arruinadas, repletas de fanáticos em busca de vítimas
para o sacrifício, até chegar à distante cidade portuária, decidiram
ouvir o conselho de um marinheiro muito experiente, que lhes
sugeriu outra rota, ousada porém segura. Esse veterano, de nome
Abd el-Shafi, cujo bisavô caíra prisioneiro numa das últimas
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incursões dos vikings à Andaluzia, e se vira obrigado a segui-los por
longos anos pelos mares e rios da Europa, trouxe-lhes dois mapas
antigos pintados em pergaminho, com mares verdes e continentes
amarelos coalhados de baías vermelhas e rios azuis, pelos quais se
podia penetrar até quase qualquer lugar. Num exame mais
detalhado, os dois mapas diferiam entre si, e bastante: a terra dos
escoceses, por exemplo, figurava num deles, porém desaparecera no
outro, recoberta pelo mar. Ambos os mapas, entretanto, coincidiam
quanto à existência de um rio serpenteando mais ao norte, o qual,
embora o chamassem por nomes ligeiramente diferentes, permitiria
aos mercadores da África do Norte navegar, sem que seus pés
tocassem a terra, desde o porto de Tânger até a pequena e distante
aldeia de Paris, para onde, um ano antes, seu terceiro sócio, Rafael
Abuláfia, havia se retirado.
E assim, seguindo o conselho daquele velho lobo-do-mar,
descendente de um prisioneiro de piratas, que vinha demonstrando
um interesse crescente pela jornada, negociaram no porto de Salé um
grande navio, já velho mas feito de madeira sólida, que em dias
passados servira como barco de patrulha na frota do califa Hashem
I. Sem mesmo retirar da proa a ponte de comando militar, nem a
fileira de escudos recobertos de ferrugem e musgo que lhe
adornavam os bordos, eles o prepararam para sua missão civil.
Instalaram cabines separadas em seus paióis, ampliaram o
compartimento central, reforçaram o convés com respigas de
madeira de lei e aumentaram o mastro e a altura da vela latina
triangular. Aguardaram depois que o verão atingisse o seu auge, e
então ordenaram a Abd el-Shafi que selecionasse seis marinheiros
experientes para tripular o navio num cruzeiro de teste, de ida e
volta até um ponto próximo ao estreito de Gibraltar. Tendo passado
na prova, o navio foi carregado com o grande volume de
mercadorias que se acumulara nos depósitos durante os últimos dois
anos, às quais ainda foram acrescentadas jarras cheias de guelras em
conserva, óleo de oliva, peles de camelo e de leopardo, tecidos
bordados e objetos de cobre cinzelados com esmero. E mais: sacos de
condimentos, cana-de-açúcar, cestas lacradas cheias de figos,
tâmaras e favos de mel, e embornais de couro transbordantes de sal
do deserto, em cujo fundo se escondiam adagas incrustadas de
pedras preciosas e frascos de raros perfumes.
Içaram velas nos dias que intermediavam Sivan e Tamuz (nota
do tradutor: Meses do calendário hebraico correspondentes a maio e
junho no calendário ocidental) dando pela primeira vez na vida as
costas ao sol nascente ao voltar o rosto para o oeste, para a vastidão
do Grande Oceano. E assim puseram-se a navegar cautelosamente
ao largo do litoral sul da Andaluzia, para dar início ao demorado
cruzeiro rumo ao norte, margeando o califado de Córdoba e o reino
de Léon, inclinando-se, depois, um pouco para leste ao percorrer a
costa norte de Castela e Navarra, até o porto de Bayonne. Daí, após
um breve repouso, navegaram ao longo da costa da Aquitânia e dos
ducados de Gasconha e Guyenne. Depois de tocar a costa da "Belle
lie", tomaram a direção noroeste, indo direto ao coração do oceano,
para ganhar uma distância segura das enseadas turbulentas e
selvagens na costa acidentada da desolada província da Bretanha.
Tão cansados estavam da longa viagem que momentaneamente
desconsideraram os mapas dos antigos piratas e buscaram
febrilmente a foz do rio que procuravam no grande golfo que se
descortinava a seus olhos. Mas logo se deram conta da excessiva
afobação, e prosseguiram para o norte durante mais sete longos dias,
costeando o grande ducado da Normandia até conseguirem, por fim,
ao voltar-se para leste, atingir a embocadura de uma nova baía, que
os recebeu na aurora em todo seu esplendor, e onde desaguava o
almejado rio chamado Sena, prestes a conduzi-los, num trajeto
sinuoso porém tranquilo, até o lugar onde o seu terceiro sócio havia
se exilado depois de ter se rendido ao repúdio da esposa.
Embora o milênio do calendário cristão não devesse perturbar a
tranquilidade dos judeus e dos muçulmanos que navegavam
sozinhos pelo oceano universal, parecia que o navio magrebino,
avançando com a velocidade de um corcel, havia se impregnado de
algo do novo fervor religioso que emanava das margens cristãs
próximas. Pois, de outro modo, como explicar o empenho com que
os marinheiros atormentavam o rapazinho negro, sempre que
tentava furtivamente entrar em comunhão com seus antigos deuses
— que o pavor do grande oceano ia aos poucos varrendo da
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memória da sua infância pagã? Em suas estranhas preces, pensava às
vezes Ben-Atar, esse jovem tomado de pânico bem poderia ser capaz
de encontrar alguma tranquilidade e, mesmo, de transmiti-la aos
demais.
Não era assim, porém, que pensavam os marinheiros árabes, já
que todas as vezes em que apanhavam o garoto se desmanchando
em súplicas ao Sol ou à Lua ou às estrelas do céu, ou prostrado no
passadiço da velha ponte de comando diante das cabeças de animais
entalhadas na base do mastro, eles logo o levantavam e o açoitavam
por corromper, com sua idolatria, a adoração do Deus único e
invisível, que, ali, na imensidão do oceano, parecia aos seus fiéis não
só necessário e obrigatório mas o único Deus possível. E, temendo
que o jovem africano pudesse enganá-los, ataram à sua túnica
pequeninos guizos de bronze de modo a poderem controlar-lhe os
movimentos. Assim, nesse exato momento, quando ele traz do
interior do navio a refeição vespertina que preparara para Ben-Atar,
o tilintar suave dos guizos ressoa no silêncio da noite.
Numa travessa redonda de cobre, uma tigela de cerâmica vem
cheia até a borda de um cozido amarelado, onde flutuam alguns
pedaços de queijo. Ao lado, uma fina cestinha de prata, repleta de
figos secos colhidos em Sevilha, sobre os quais descansa um peixe
grelhado que fora capturado pela rede no início da noite, o olho
reluzindo na escuridão como se ainda não tivesse se resignado à
própria morte. Embora Ben-Atar não esteja disposto a fazer uma
refeição completa em hora tão avançada da noite, ele se obriga a
engolir um pouco do cozido escaldante e mordisca um bocadinho da
carne branca do peixe, para que o vinho que o jovem escravo lhe
serve, apesar da proibição rabínica de tomar vinho servido por
idolatras, caia num estômago cheio. Pois, ainda que procure tornar
seu espírito mais leve e mesmo um pouco enevoado, o suficiente
para incentivar o humor despreocupado de onde brota o esperado
desejo, equilibrado entre a timidez e a agressão — como aquele que
o havia guiado ao fazer amor no início daquela mesma noite —,
precisa de qualquer modo ser cauteloso com um vinho
desconhecido, cujos efeitos ainda não foram plenamente testados
por ele.
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No início, em consideração à fé dos seus companheiros de
viagem, pensara em declinar a oferta da grande ânfora de vinho que
lhe tinham feito vinte dias antes no porto de Bordeaux em troca de
uma ânfora de óleo de oliva, e contentar-se em bebericar o vinho
doce, feito de passas, que trouxera de casa para finalidades rituais.
No entanto, o capitão do navio instara com ele para que não
recusasse o vinho dos francos, cujo aroma e sabor eram sumamente
sedutores. Para os que navegam, mesmo que sejam maometanos,
beber vinho não é transgressão, explicou Abd el-Shafi, que muitos
anos no mar haviam transformado não só num velho e rijo
marinheiro mas também em especialista em códigos marítimos. Pois,
na verdade a humanidade é dividida em três classes — os vivos, os
mortos e os navegantes, que não são nem vivos nem mortos, apenas
esperançosos, e sem dúvida não há nada como o bom vinho para
inspirar a esperança. E assim, ao ver o judeu sorvendo seu vinho no
silêncio da noite, o capitão se ergue da sua rede com um movimento
ágil e se aproxima, ansioso, também ele, por arrancar daquele néctar
um pouco de ânimo, não para se achegar a uma esposa que o
aguarde, mas para conseguir penetrar na embocadura do rio, que o
verão, assim espera, teria mantido larga e funda o suficiente para
deixar passar o navio bojudo sem nenhum transtorno ou acidente.
Entretanto, não se dispõe a servir-se antes de pedir permissão ao
dono do navio. Quando começa a beber, porém, os goles de vinho
são rápidos, e quase ininterruptos, como se aspirasse o próprio ar, de
modo que o jovem escravo teve que retornar repetidas vezes à
ânfora do porão do navio para encher novamente a jarra. Até que
Abu Lutfi, entregue ao sono dos justos entre os sacos de
condimentos e as peles de camelo a fim de vigiar as adagas
escondidas, desperte ao som do vinho correndo abundante na ponte
e surja das entranhas do navio, não, Deus não permita, para
transgredir a proibição do Profeta, mas apenas para contemplar o
líquido rubi e talvez aspirar seu perfume desconhecido. Contudo,
deparando-se com a fruição calma e despreocupada de Abd el-Shafi,
não consegue manter o controle e, levantando os olhos para a
abóbada escura do céu tenta descobrir se a uma tal distância da sua
terra natal, acossado pelo temor de penetrar no próprio coração de
p p p p
uma terra cristã atrasada, de governo instável e possuída por crenças
primitivas, ainda haveria alguém que pudesse censurá-lo por
experimentar essa bebida tão amada pelos habitantes do lugar. Não,
longe disso, pelo mero prazer, mas para julgar por si próprio a
natureza daquele néctar que embebe os pensamentos e os
sentimentos dos francos, a quem logo seria chamado a enfrentar.
Cerrando os olhos eleva a taça, aproxima aos lábios e sorve um
pequeno gole do vinho frio, e então seu rosto empalidece, pois agora
ele sabe como é sublime o gosto dessa bebida proibida, e como seria
fácil tornar-se escravizado a ela. Então, naquele mesmo instante
resolve abjurar definitivamente o néctar proibido. Mas com pena de
lançar o maravilhoso vinho ao mar, passa a taça ao capitão, que a
esvazia no mesmo instante, deliciado, e, à guisa de agradecimento,
aponta para um par de novas estrelas, desconhecidas, que haviam
surgido na noite anterior no horizonte norte, de modo a confirmar
para os viajantes o quanto já haviam navegado sob a abóbada
celeste.
Enquanto isso, o jovem escravo limpa os restos do peixe da
refeição do judeu. Antes de atirar as espinhas ao mar, não se contém,
ajoelha-se e ora em segredo às suas divindades pelas espinhas que
repousam sobre a bandeja de prata, para que concedam a elas sua
piedade, agora que tinham encontrado seu fim predestinado. O
suave tilintar dos guizos provocado pelos movimentos de seu corpo
esbelto o denuncia aos homens no convés, mas estão todos cansados
demais para se levantarem e investirem contra a oração proibida.
Talvez porque, agora que chegara o momento de penetrar no reino
dos francos, melhor seria não desdenhar nenhuma possível fonte de
salvação, mesmo que travestida sob a forma de um magro esqueleto
de peixe mastigado. Bem em frente, não longe do local onde a boca
do rio deveria estar, arde uma fogueira desde o cair da noite, como
se alguém em terra já houvesse vislumbrado o navio estrangeiro e
quisesse identificar-se por meio do fogo, preparando-se para o
encontro.
Que forma assumiria esse encontro? Os olhos dos homens no
convés não cansam de perscrutar aquele sinal de um vermelho
brilhante. Até agora a viagem transcorrera agradável e segura, como
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se o Deus dos judeus e o Deus dos muçulmanos tivessem combinado
suas forças por sobre o mar, e as deficiências de um fossem supridas
pelo outro. A natureza sorrira aos viajantes, e se ocasionalmente os
céus tinham escurecido e pancadas de chuva tinham varrido o
convés, estas tinham sido curtas e até refrescantes, e não impediram
o capitão de continuar mareando a grande vela para a posição mais
favorável ao vento, recolhendo assim todas as suas bênçãos. Não
tinham sido perturbados nem sequer pela curiosidade das
embarcações que cruzavam, pois, apesar da aparência insólita do
navio, era patente que se tratava de um navio solitário e inofensivo,
em sua estranheza. Embora ainda fossem visíveis os sinais da
carreira militar anterior, seu bojo arredondado transmitia paz, e
mesmo aqueles a quem a desconfiança não abandonava, os que
insistiam em subir ao convés para verificar o que realmente
abrigavam as entranhas do navio, não conseguiam encontrar ameaça
alguma nas peles de camelo e nos objetos de cobre, nem nos figos e
damascos secos que prontamente lhes eram ofertados. Depois de
ganhar o pacotinho de sal que Abu Lutfi lhes oferecia embalado em
papel fino, os visitantes partiam agradecidos, sem imaginar a
existência das adagas escondidas, de curvas amorosamente afiadas.
É verdade que a visão de uma ou duas mulheres vestidas de túnicas
coloridas e finos véus, passeando pelo convés ou sentadas na velha
ponte de comando, poderia ter despertado alguma intranquilidade
no coração do curioso, mas seria uma intranquilidade íntima,
pessoal, não religiosa nem militar.
Agora, porém, que deixavam para trás o mar aberto e
navegavam rio acima em sentido ao coração do continente, estavam
fadados a atrair os olhares inquisidores dos habitantes locais. Como
deveriam se comportar? Deveriam exibir no convés todos os
passageiros, a fim de revelar, além dos seus objetivos comerciais, o
vínculo familiar em sua harmoniosa confraternização, durante o
lento navegar? Ou, talvez, pelo contrário, seria melhor dissimular o
caráter pacífico da carga humana e material que traziam do Magreb,
do próspero sul, deixando no convés apenas alguns marinheiros
mal-encarados, dependurados nas escadas de corda como escuros
macacos, desencorajando quem quisesse meter-se com eles? É disso
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que Ben-Atar e Abu Lutfi tratam agora em sua conversa com o
capitão, pois, apesar da grande experiência de ambos, nenhum dos
dois jamais havia navegado mais ao norte do que a baía de
Barcelona.
Na baía de Barcelona haviam estado uma vez por ano nos
últimos dez anos, no início do mês de Av (nota do tradutor:
Correspondente ao nosso julho-agosto). Chegavam em veleiros
carregados de mercadorias, para encontrar Abuláfia, sócio de Ben-
Atar e seu querido sobrinho, que vinha de Toulouse para encontrá-
los, atravessando os Pirineus sozinho, por vezes disfarçado de
monge, outras vezes de leproso, para melhor esconder nas dobras de
seu manto, fosse dos guardas-salteadores das alfândegas dos
pequenos ducados no caminho, fosse dos verdadeiros salteadores, as
moedas de prata e as pedras preciosas que recebera em troca da
mercadoria que negociara durante todo o ano anterior na Provença e
na Aquitânia.
Esses encontros eram muito prazerosos para Ben-Atar, pois a
alegria de ver seu sobrinho amado se combinava ao cintilar das
moedas de ouro e prata com que havia abarrotado sua bolsa nos
estados cristãos do norte. Abu Lutfi também não se continha, a cada
vez, ao descobrir novamente como os objetos de cobre, cântaros de
óleo, peles de camelo, perfumes e condimentos que ele conseguirá
reunir com esforço e tenacidade ao percorrer as aldeias e os vilarejos
dos montes Atlas haviam se transformado, no espaço de um ano, em
reluzentes moedas de ouro e prata. Portanto, não era de admirar que
ano após ano os dois sócios se tornassem mais e mais impacientes.
Temiam tanto deixar Abuláfia sozinho — nem que fosse apenas por
um único minuto — no lugar do encontro, com seus tesouros
ocultos, que antecipavam a partida, deixando Tânger antes do final
do mês de Tamuz, e em seis ou sete dias, com breves paradas
noturnas em pequenas angras desertas ao longo da costa oriental da
península Ibérica, cobriam a distância que separa Tânger da baía de
Barcelona. Logo tratavam de deixaras novas mercadorias num
estábulo ao lado de uma taverna que pertencia a um mercador judeu
do local, de nome Rafael Benveniste, e pagavam o que deviam aos
marinheiros com unia carga de troncos de madeira, que levavam nos
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navios para a viagem de volta. Os sócios não confiavam sua volta
aos mesmos marinheiros que os haviam trazido. Leves e aliviados de
sua mercadoria, compravam um par de bons cavalos e subiam até
uma das colinas próximas. Ali, num belo bosque isolado, ficava a
antiga estalagem meio arruinada, onde, conforme se contava, os
últimos imperadores romanos costumavam passar o outono, seis
séculos atrás. E na escuridão de seus grandes quartos úmidos, os
dois sócios, exaustos, tratavam antes de mais nada de dormir
profundamente, para se recuperarem do assédio feroz do sol que
lhes havia maltratado os olhos e escorchado a pele durante as longas
semanas que passaram suspensos entre o azul do céu e o azul do
mar. Porém esse sono não durava muito, pois logo a preocupação
pelo terceiro sócio os despertava, fazia-os esquecer o cansaço e os
levava a percorrer os caminhos das cercanias, pensando e
repensando, na tentativa de determinar por qual rota chegaria
aquele homem generoso. Nos últimos dois anos Abuláfia costumava
atrasar não só um dia ou dois, mas três ou quatro, em geral
pretextando temores reais ou imaginários que o teriam forçado a
esconder-se e mudar repetidas vezes de disfarce a fim de escapar de
quem, assim pensava ele, intentava atacá-lo.
Por fim, o costume de se disfarçar se entranhara em Abuláfia a
tal ponto, que ele passara a enganar não só aos estranhos
ameaçadores, mas até mesmo aos dois sócios, que o aguardavam
impacientes. E não os iludia só com seus disfarces, mas também pela
direção de onde chegaria ao lugar de encontro. Pois, apesar de Ben-
Atar e Abu Lutfi examinarem cada vereda possível para interceptar o
sócio, ele conseguia enganá-los e passava por eles sem que o
reconhecessem, de modo que apenas à noite, quando voltavam
decepcionados para a estalagem com a alma abatida pelo temor em
relação à segurança de Abuláfia e à do ouro e da prata que trazia, é
que descobriam atônitos que o homem tão ansiosamente esperado já
havia chegado, já terminara o jantar e naquele momento repousava
de seus embustes, imerso num sono profundo. Mas nesse ponto Ben-
Atar não conseguia mais resistir, e à noite, mais tarde, esgueirava-se
no quarto do dorminhoco, sorrindo ao ver o chão em volta da cama
juncado de disfarces descartados, e sem uma palavra, suavemente
j p
pousava a mão nos cachos que o faziam lembrar tanto os do seu
falecido pai, até que, forçado a abandonar sua dissimulação,
Abuláfia abria os olhos sorridentes e punha-se a contar.
As histórias então começavam a fluir como se jorrassem de uma
fonte. Abuláfia iniciava por um relato em vividas cores da
aventurosa jornada de Toulouse a Barcelona, gabando-se, em
particular, de como conseguira passar a perna nos guardas da
fronteira dos pequenos condados e ducados, que impunham
pesados impostos sobre todos os que entravam ou saíam, a fim de
sustentar seus nobres. Abu Lutfi, despertado pela animada conversa,
apressava-se a ir ter com os dois sócios judeus, e, embora fosse tarde
da noite, pedia a Abuláfia que lhe mostrasse logo o ouro e a prata
que trouxera e que contasse a história de cada moeda, seu valor, de
onde viera, e qual mercadoria tinha comprado. Como o árabe tinha
uma memória excelente e lembrava precisamente das mercadorias
que havia confiado a Abuláfia no ano anterior, exigia explicações
detalhadas do destino de cada item. Era, então, necessária uma
grande concentração para seguir a acidentada trajetória das
mercadorias, na sua maior parte não vendidas à vista, mas sim
trocadas repetidas vezes numa sucessão de negócios bizarros e
complicados, até encontrar um último comprador disposto a pagar
uma compensação única e de valor, fácil de ser transportada até os
sócios do Sul. Para satisfazer a curiosidade inesgotável de Abu Lutfi,
Abuláfia recordava os compradores um a um, identificava-os pelo
nome, contava onde moravam, qual era o seu ramo de negócios,
como haviam regateado e em que pontos haviam finalmente cedido.
Assim fazendo, descrevia ainda suas roupas e semblantes, e volta e
meia referia suas crenças e opiniões com tanta exatidão que, ao
despontar do dia, a trama das proezas comerciais do último ano
encontrava-se inextricavelmente enlaçada ao próprio tecido da
história. Dessa maneira, os homens de Tânger ficavam sabendo qual
conde tinha morrido e qual duque tinha nascido na Gasconha, em
Toulouse ou no vale do Loire; quem tinha insistido em continuar
lutando e quem, exausto da guerra, resolvera acenar com a paz; qual
rio transbordara no inverno anterior, ou qual praga irrompera na
primavera; o que pensavam os monges, como andavam se
p q p g
comportando os nobres, e por onde vagavam os judeus. E, o mais
importante, o que mudara e o que não mudara no gosto das pessoas
e nos caprichos das mulheres, para que os dois soubessem o que
procurar e o que trazer no próximo ano.
No dia seguinte, com o ano transcorrido já meticulosamente
revisto e examinado, e as previsões para os próximos anos já
cautelosamente assentadas, chegava o momento delicado em que
Ben-Atar devia decidir a divisão do lucro do ano entre os três. Para
liberar a mente de toda distração, despachava os dois sócios de volta
para a baía, para o estábulo contíguo à taverna de Benveniste, de
modo que Abu Lutfi pudesse explicara Abuláfia a natureza das
novas mercadorias que haviam trazido, justificar sua escolha e
discutir qual preço deveria ser fixado para cada item. Enquanto isso
Ben-Atar aferrolhava a porta, cobria a janela, acendia duas grandes
velas, espalhava sobre a mesa todas as moedas, barras de ouro e
pedras preciosas trazidas das terras dos francos, e deixava a mente
divagar sobre o ano transcorrido, de modo a avaliar honestamente
qual porção caberia a cada um dos sócios no esforço despendido e
no lucro obtido. Assim ele se instalava naquela antiga estalagem
romana, nas profundezas de um denso bosque, refazendo primeiro
na imaginação as viagens do árabe Abu Lufti, que via vagando entre
as tribos nos limites do Saara, coletando perfumes, especiarias,
condimentos, peles de animais e adagas. Quanto mais forte o sol
golpeava a imaginação do judeu, e quanto mais ferozes lhe pareciam
os nômades do deserto, mais seu coração pendia para o ismaelita, e
acrescentava então mais e mais moedas e joias à sua pequena pilha,
que ia crescendo. Nesse ponto, porém, já se ressentia o espírito de
Abuláfia, e compelia os pensamentos do seu sócio mais velho a se
voltarem para o norte, para o vento e a chuva e as estradas
lamacentas. Depois de acrescentar várias grandes moedas de ouro à
pilha do sócio que percorria incansavelmente as terras e os castelos
dos devotos da cruz no vale de Touraine, Ben-Atar junta mais
algumas pequenas moedas de ouro pelo talento de Abuláfia para a
evasão e o disfarce, sua maestria em línguas e sua sagacidade. Ainda
não satisfeito, na sua compaixão pelo judeu que vagava sozinho em
meio aos gentios (nota do tradutor: O termo se refere a todos os
g
outros povos que não o judeu) tomados de ódio e de desprezo,
estendia a mão e transferia duas pequenas pedras preciosas
cintilantes da pilha do muçulmano para a de Abuláfia.
Porém, ao se dar conta de que as velas na mesa iam ardendo e
diminuindo, ele percebia que a entusiasmada afeição e simpatia
pelos seus fiéis amigos o fizera negligenciar seu próprio quinhão.
Pois com certeza não deveria esquecer que a fonte de toda essa
riqueza era não apenas o seu próprio dinheiro mas também a sua
iniciativa, suas preciosas conexões e seus espaçosos depósitos. Ainda
que ele próprio não percorresse as estradas, seus pensamentos
velavam sempre sobre os sócios e os protegiam dos perigos. Pensou
também em suas esposas e filhos, nos muitos servos e nas grandes
casas, que exigiam não só serem mantidas, mas serem mantidas com
luxo e beleza, e, ao considerar tudo isso à luz vacilante das velas, em
contraste com a simplicidade das andanças de Abu Lutfi e com a
trágica solidão de Abuláfia, ele passava a diminuir cuidadosamente
as pilhas que erguera para os sócios, aumentando a sua própria.
Quando as chamas se consumiam nos derradeiros estertores e a
profunda escuridão engolia o último lampejo, já havia composto e
amarrado firmemente três bolsas de pele de leopardo, e as colocado
entre os pertences de seus parceiros, os quais, no fundo do seu
coração, ele continuava considerando seus agentes, e não
verdadeiros sócios. Somente então sua consciência alcançava a
tranquilidade. Destrancava a porta de ferro, soltava as aldravas das
janelas e banhava os olhos na prazerosa luz da tarde que se filtrava
através das árvores, recompondo aos poucos sua alma depois da
batalha travada contra si mesma em busca de justiça.
Já se ouvem os cascos dos cavalos que subiam vindos da baía. Os
dois homens parecem cansados de discutir, e o rosto de Abu Lutfi
demonstra irritação pelo leve desprezo demonstrado por Abuláfia às
novas mercadorias, e à baixa estimativa sobre os preços esperados.
No entanto, por um senso de nobreza e orgulho, e para não se
enfurecer ainda mais, o ismaelita não examina o conteúdo da bolsa
de pele de leopardo escondida na sua bagagem, nem tampouco a
pesa, comparando-a com a de Abuláfia ou de Ben-Atar. Não quer
trair nenhum vestígio de suspeita sobre alguma possível injustiça, o
g p g p j
que o obrigaria a envolver-se em cálculos, cálculos que os dois
judeus manipulavam com tamanha destreza, e que ele seria incapaz
de acompanhar. Em vez disso, decide despedir-se de imediato e
retomar seu caminho, pois de qualquer forma ele e Ben-Atar nunca
voltavam juntos, a fim de não tentar o próprio diabo, que poderia
assaltá-los no caminho. Amarra seus pertences no cavalo, oculta a
bolsa de pele de leopardo junto às partes íntimas, e depois de provar
do jantar preparado de acordo com as normas judaicas, enviado pela
esposa de Benveniste, retira-se, procura com toda a atenção sentir a
direção do vento, ajoelha-se voltado para a santa Meca, lá longe, no
deserto, coloca as mãos em concha nos ouvidos e profere alta e
claramente uma prece em louvor a Deus e ao Profeta, concluindo
com uma rápida maldição contra quem tivesse feito, ou porventura
viesse a lhe fazer algum mal. Despede-se dos dois judeus com
abraços apertados e palmadas no ombro, e então, já que, ao contrário
de Abuláfia, desdenha disfarçar-se fingindo ser outra pessoa, ainda
que em nome da própria segurança, contenta-se em enrolar na
cabeça o turbante que seus distantes antepassados lhe haviam
trazido do deserto, de modo que quem o esperar de tocaia não o
reconheça, e quem o perseguir não saiba a quem está perseguindo.
Com as primeiras sombras do crepúsculo monta em seu cavalo e sai
a galope na direção de Granada, iniciando a viagem que seria feita
apenas sob a proteção da noite.
Embora Ben-Atar tenha pelo sócio ismaelita não apenas
confiança, mas também afeição e amizade, sentiu alívio ao ouvir o
som dos cascos do cavalo de Abu Lutfi sumir na púrpura do dia que
agonizava, pois só então se sentiu livre e desembaraçado para,
deixando de lado mercadorias, moedas e notícias do mundo, ouvir
tudo o que se passara no ano anterior com o sobrinho querido, a
quem o duro destino exilara da terra natal e da família. E, ainda que
não fosse prudente para dois estrangeiros, sobretudo judeus,
aventurar-se para longe da estalagem na escuridão, eles não
resistem, e depois de ocultar com todo o cuidado suas respectivas
bolsas de leopardo, embrenham-se no bosque, em direção a uma
clareira que lhes era cara desde seu primeiro encontro.
Ali, entre as dobras das rochas que marcam a entrada de uma
caverna aberta por um antigo terremoto, acendem uma fogueira
para afastar qualquer lobo ou raposa curiosa das redondezas, e
também para aspergir nas brasas ervas aromáticas, para que as
volutas de fumaça perfumem as alegrias e tristezas do ano que se
passou. Apesar de sua grande curiosidade para ouvir tudo o que
tinha acontecido na vida particular do exilado, que havia anos
abandonara o sol e o mar da África do Norte pela solidão e o atraso
dos países cristãos, Ben-Atar bem sabia que, sendo o mais velho,
tinha a obrigação de falar primeiro, fosse pelo dever de fazer um
balanço de toda a família, esposas e mães, filhos e filhas, irmãos e
irmãs e demais parentes e amigos sobre os quais Abuláfia ansiava
por saber tudo, precisamente porque o tinham traído, fosse para que,
pelos relatos do tio, pudesse o sobrinho saciar a saudade de sua
cidade natal, com suas casas caiadas de branco e aleias estreitas, suas
oliveiras e tamareiras, suas hortas, suas praias douradas e seu porto
cor-de-rosa. E chorar novamente, por sobre os anos, por sua linda e
jovem esposa que se lançara ao mar por causa da criança enfeitiçada
e retardada que trouxera ao mundo, e que com seu escandaloso
desaparecimento dobrara e redobrara a vergonha que trouxera para
o marido, a ponto de este ter sido compelido a exilar-se.
Assim, embalados pela doce tristeza das recordações do
passado, atravessam uma noite maravilhosa de verão, juntos, na
fronteira da Marca da Espanha, que dividia distintamente as duas
grandes religiões do mundo. E ainda que perpasse ocasionalmente
por eles certa preocupação pelo destino do terceiro sócio, que neste
momento galopa nas profundezas da noite com sua bolsa de
leopardo presa junto às partes íntimas, sentem-se também aliviados
por não estar compartilhando esses momentos com o muçulmano,
pois agora estão livres para temperar sua conversa com palavras da
língua santa, e no dia seguinte, véspera do nono dia do mês de Av,
quando Benveniste subir trazendo o necessário quorum de judeus
especialmente contratados para orar e prantear pelas ruínas do
Templo destruído, haverão de esquecer-se das bolsas cheias de ouro
e das astúcias do comércio e, tomando achas da fogueira, espalharão
cinzas sobre a testa, juntando-se assim ao eterno luto e temor do seu
povo.
Capítulo 2

Já chegava aos ouvidos sempre atentos de Abd el-Shafi o sutil


murmúrio do terceiro quarto, que vem substituir aquele que agora se
esfuma no espaço da baía. A leste, no horizonte, a lua declinara até a
altura de um homem. E embora a única responsabilidade do capitão
fosse manter a correta navegação do navio, a preocupação quanto à
finalidade secreta e não comercial da jornada também o havia
contaminado. Levanta-se então e desperta Abu Lutfi, que o mero
odor do vinho adormecera, e vai sacudir o dono do navio,
esparramado num estupor alcoólico sobre as tábuas do convés, para
que vá visitar a esposa à sua espera na cabine de popa. Logo a
aurora irá romper e pôr um fim à sua última noite em mar aberto. De
agora em diante terão perdido seu anonimato, e em ambas as
margens do Sena serão seguidos pelos olhares cheios de suspeita dos
desconfiados habitantes. Estes, tomados de pânico pela aproximação
do ano mil, com certeza tentarão de tempos em tempos subir a bordo
do estranho navio que navega tão próximo às suas casas, para
inspecioná-lo e descobrir a que vem. Assim, enquanto Ben-Atar
emerge lentamente das profundezas do sono, não só sente no rosto a
brisa fria e reanimadora das últimas horas da noite, como também
nota a preocupação no olhar de seu sócio, Abu Lutfi, que viera
despertá-lo com violentas sacudidelas. E percebe, dolorosamente,
como o rosto do ismaelita se crivara de rugas nesses últimos anos,
talvez pela desilusão provocada pela atitude do jovem sócio do
Norte, que os abandonara, ao curvar-se ao repúdio manifestado pela
mulher em relação aos sócios do Sul.
Embora Ben-Atar se perguntasse como haveria de desfraldar
novamente as asas do seu desejo, mesmo assim apressa-se a
levantar-se. Primeiro, cambaleando e apoiando-se no guarda-peito
do barco, fita as águas escuras que lambem o casco do navio imóvel.
Enquanto suas mãos acariciam de leve o ferro liso de um dos
escudos presos ao costado do navio, tenta despertar por completo,
dissipar o peso do sono e todos os efeitos causados pelo vinho
bordalês. Ainda ardia a fogueira na boca do rio invisível, e o seu
reflexo nas ondas do mar formava a silhueta encantada de uma
gigantesca ave. Todos os sentidos do judeu se abriam para a noite
que ia se enchendo de novos sinais, e quase foi impelido a ajoelhar-
se, como se também ele tivesse sido contagiado pela fé pagã do
jovem escravo, que estava agora ao seu lado, desperto como sempre,
com os guizos sussurrando na brisa, pronto para erguer a lâmpada
de óleo e iluminar o caminho do homem instado a apressar-se ao
encontro da Segunda Esposa antes do romper do dia.
Aqui, na popa do navio, a luz lhe é muito necessária, pois nos
amplos compartimentos reina a confusão, e a escuridão se torna
mais profunda. Há que tomar cuidado não só com as pilhas de
tecidos, os sacos repletos de condimentos e as grandes ânforas de
óleo amarradas umas às outras, como prisioneiros enfileirados, mas
também com os animais que se levantam à sua aproximação, os
olhos tristes a esgazear na escuridão. O espaço que fora ganho no
bojo desse velho navio patrulha, depois de retirados os beliches dos
soldados, inspirara Abu Lutfi a acrescentar aos carneiros e galinhas
destinados ao consumo um casal de camelos bem jovens, um macho
e uma fêmea, amarrados um ao outro com cordas macias de linho,
como presente para a Nova Mulher de Abuláfia, para acalmá-la e
ajudá-la a sentir e aspirar de perto a própria essência da África, de
onde viera seu jovem marido. No início Ben-Atar rejeitara essa ideia,
mas por fim concordara, não por acreditar que aquela mulher de
olhos azuis pudesse encantar-se por um par de camelos, mas por
uma vaga esperança de que aqueles estranhos e raros animais
ajudassem a conquistar a simpatia das pessoas da alta classe, que
gostam de polir sua nobreza por meio de objetos bizarros e
extravagantes. Mas será, perguntou a si mesmo Ben-Atar,
observando o escravo negro que não consegue se conter e se deixa
ficar, ora se prostrando em reverência, ora abraçando afetuosamente
as duas cabeças pequenas e delicadas. Serão esses dois camelinhos
capazes de sobreviver até o fim da viagem? É verdade que Abu Lutfi
não se esquecia de lhes dar de comer um pequeno feixe de feno
q p q
todas as semanas, ao qual por vezes acrescentava fatias de manteiga
rançosa e esverdeada, feita antes da partida, porém os olhos
injetados dos animaizinhos e o incessante tremor de suas pequenas
corcovas não pressagiavam nada de bom. E quando será o final da
jornada? Um suspiro escapou do coração de Ben-Atar enquanto
descia cada vez mais rumo ao porão do barco. Será que conseguiria
voltar a Tânger, sua cidade natal, e abraçar e beijar novamente seus
filhos?
Tenta então despertar e expulsar dali o jovem filho do rabino,
que nos últimos dias não quer mais dormir com o pai na cabine de
proa pois se acostumara a adormecer bem aqui, ao lado da cortina
de tecido escuro, onde Ben-Atar se detém tomado de leve apreensão.
O garoto, que passa a maior parte do dia ajudando os marinheiros,
seja subindo pelo mastro para perscrutar a amplidão do mar, seja ou
bombeando a água que penetra pelo casco, dorme tão
profundamente que Ben-Atar resolveu desistir de tentar tirá-lo de lá.
Tomou de volta a lâmpada do escravo negro e ordenou-lhe que
subisse ao tombadilho. Só quando teve certeza de que as passadas
do escravo desapareciam no caminho para o convés foi que afastou
um pouco a cortina, e a segunda cortina atrás desta, para esgueirar-
se para dentro, curvando-se até quase rastejar, até alcançar o leito da
Segunda Esposa.
Neste lugar que ela própria escolhera, tão próximo ao fundo do
barco que se pode ouvir o marulhar da água, já o invade o odor
especial de sua esposa, não só de seu corpo, mas dos amplos
aposentos da sua casa, a milhares de milhas de distância. Como se
mesmo numa pequena cabine como esta, ela pudesse ter continuado
a preparar a comida, arejar as cobertas e regar os canteiros floridos.
Entre as sombras projetadas pela luz da lâmpada sobre as velhas
anteparas de madeira do navio patrulha, que quase fora devorado
pelas chamas numa das batalhas do Grande Califa, entre paredes
desalinhadas, roupas atiradas e restos de velas que se consumiram,
ocorre-lhe que desde o começo da noite essa mulher rola na cama e o
aguarda. E seu coração afunda no peito ao pensar que toda essa
espera prolongada e ansiosa já poderia ter aguçado pontas de
ressentimento e irritação, que apenas afugentariam o desejo do
q p g j
homem. Ben-Atar planejara entrar aqui sem nenhum ruído e
esgueirar-se às cegas até a cama, de modo a penetrar no sono da
esposa antes de penetrar em seu corpo, para que ela o sonhasse antes
de senti-lo. Só então ela seria capaz de perdoá-lo por lhe trazer nesta
noite o cheiro do corpo da Primeira Esposa, o que ele sempre
cuidava de evitar.
Ela, porém, estava desperta. Seus olhos rasgados, cor de âmbar,
mostravam-se injetados de sangue pela longa noite insone, como os
olhos de um animal selvagem recém-capturado. Em sua ensolarada
cidade natal, um verdadeiro labirinto de aleias separa as duas casas
de Ben-Atar, de modo que cada esposa podia sentir seu universo
particular, completo e separado. Ele, contudo, que transita entre as
duas, sabe que a distância não é grande como parece a elas, e às
vezes até se surpreendia com a proximidade. Houve noites em que,
tomado por uma intranquila e doce saudade, ele alcançou o telhado,
e pelos tetos e domos da cidade branca, envolta na luz da lua como
um lago de pálidos seios, voou e pairou sobre o teto da outra casa
como um marinheiro que salta da proa à popa. Quem sabe tenha
sido essa a razão pela qual, quando brotou a ideia no início da
primavera, primeiro por desespero mas depois com entusiasmo, de
reunir a mercadoria que já aguardava em triste ócio por quase dois
anos, e navegar com ela até aquela longínqua cidade chamada Paris,
para ter um encontro face a face com o sócio que se separara deles,
nem mesmo lhe parecera estranho levar consigo ambas as esposas.
Estava convicto de que a presença calma e harmoniosa das duas
esposas lado a lado iria provar à Nova Mulher de Abuláfia,
seguidora convicta da fé judaica, melhor do que qualquer
argumento retórico, que ela estava longe de compreender a
qualidade do amor que prevalecia no litoral sul do Mediterrâneo.
De uma coisa Ben-Atar sempre estivera certo: de que o
conhecimento profundo e exato da natureza do seu amor e de seu
carinho é que inspirava tranquilidade e segurança em suas duas
esposas. Cada ato de amor com uma delas envolvia um pensamento
preocupado com a outra. Se assim não fosse, como poderia ter lhes
pedido que deixassem seus filhos e abrissem mão dos servos, que
abandonassem o calor perfumado de suas mansões, com suas belas
p
louças e talheres, e fossem se espremer como fugitivas de guerra em
cabines minúsculas, balançando no bojo de um navio que navega
rumo ao Norte, e não rumo ao Leste, numa rota desconhecida? Se ele
próprio, que já passara dos quarenta anos e tinha o direito, pela
idade, de contemplar seriamente a aproximação da morte, estava
preparado para suportar os rigores de uma jornada tão longa, teriam
elas, tão mais jovens do que ele, o direito de recusar? E bem sabiam
que era também pelo bem delas que Ben-Atar empreendia esta
ousada viagem. Mesmo que estivessem apreensivas quanto à sua
capacidade de suportá-los, haveriam de sentir uma apreensão não
menor pelo vagar de um homem solitário, que no decorrer de muitos
e longos dias carece não só de uma companhia na cama, mas
também de uma palavra amiga para suavizar-lhe a fronte imersa em
preocupações. E se, Deus o livre, levasse consigo apenas a Primeira
Esposa, cujos dois filhos já eram independentes, poupando a
segunda, cujo único filho contava apenas cinco anos de idade, e
ainda vivia agarrado à barra do vestido da mãe, estaria destruindo
com suas próprias mãos a prova viva e mais eloquente da
estabilidade e do equilíbrio do seu duplo casamento. Uma prova
com que deseja surpreender a afável esposa do sobrinho, que não
imagina, nem mesmo agora, nesta aurora que ilumina o seu ingresso
na embocadura do rio, que daqui a poucos dias ele haverá de
deslizar até a soleira da porta da sua casa em seu estranho navio
patrulha.
Entretanto, o famoso tio de Ben-Atar, o grande Ben-Guiat, não
aprovava a intenção de juntar duas esposas que mal se conheciam e
obrigá-las a uma proximidade prolongada num convés pequeno e
estreito. Decerto isso seria uma fonte de convulsões e tempestades,
que se somariam às trazidas pelos ventos e pelas ondas do mar. Para
que seu sobrinho não ficasse sozinho na companhia de marinheiros,
que tinham por hábito procurar o pecado em cada porto, o bom tio
teve a ideia de enviar uma carta a seus amigos em Andaluzia
pedindo-lhes que preparassem para o honrado viajante Ben-Atar,
logo a partir do seu primeiro porto de parada, Cádiz, uma terceira
esposa temporária, apenas para o propósito dessa jornada. Uma
mulher para quem o navio seria seu lar, o mar sua pátria, e as ondas
p q p
suas companheiras. Uma esposa cuja carta de divórcio seria assinada
juntamente com a carta de casamento, e estaria à sua espera, ao
retornar ao mesmo porto em que sua vida de casada começara.
Porém, polidamente, sem ferir o amor-próprio do honrado tio, cuja
prata no cabelo e na barba ele tanto reverenciava, Ben-Atar logo
declinou essa oferta ingênua, que só serviria para acrescentar mais
lenha à fogueira que contra ele já ardia ao longe. Tinha confiança
absoluta no poder do seu amor e da sua compreensão para serenar
qualquer tormenta causada pela solidão ou pelo ciúme, tal como esta
que se represa agora, no pequeno espaço da cabine que ele se
obrigara a visitar nestes derradeiros estertores da noite.
Em casa, Ben-Atar sempre cuidara de não se deitar ao lado da
Segunda Esposa, e muito menos de tocá-la, até ter certeza de sua
total reconciliação, pois mesmo uma só gota de ressentimento pode
reduzir o desejo a um mero ardor incapaz de trazer o alívio. Assim,
sempre que em Tânger ele entrava na deliciosa câmara da esposa,
com seu teto alto pintado de azul e a janela abrindo para o mar,
primeiro lhe examinava bem a face longa e graciosa, cujos traços
angulosos por vezes faziam lembrar o rosto de um homem triste, e
se observasse a menor sombra a coroar seus olhos ou o menor traço
de amargura em sua boca, preferia não se aproximar dela, mesmo
que a doce dor do desejo já começasse a brotar em suas entranhas.
Primeiro ia até a janela e observava os barcos pousados na baía,
depois voltava e caminhava devagar em torno do leito coberto de
mantas de cores vistosas, que Abu Lutfi buscara especialmente para
ela entre as tribos nômades do Norte do Saara. De maneira suave e
casual, começavam a conversar sobre novos problemas e
preocupações dos parentes e amigos, de modo que as misérias do
mundo fluíssem até ela e desfizessem qualquer ressentimento ou
rancor que pudesse estar sentindo contra ele. Só então, quando Ben-
Atar percebia no âmbar denso dos seus olhos o discreto cintilar da
ternura, é que se permitia sentar na extremidade da cama, que
também era sua, e com um tremor de emoção, como se voltasse à
noite de núpcias, tomar com delicadeza de dentro das cobertas
desarrumadas, uma e depois a outra, as pernas perfumadas da
mulher, com sua penugem amaciada pelo mel morno, e aproximá-
p g p p
las do rosto, como se tentasse identificar com os lábios as pernas da
jovem que pisara o pó do pequeno quintal de sua casa, no dia em
que ele confidenciara ao pai seu desejo de casar-se com ela. Só então
se permite começar a acariciá-la desde o alto das longas coxas até os
dedos dos pés, falando de maneira suave e contida sobre a
perspectiva da sua morte, a qual, para um homem como ele, que já
passara dos quarenta anos, é um fato não apenas possível como
natural. Só assim, com a permissão que dava a ela de contemplar
sem nenhuma culpa a perspectiva de um novo e jovem marido que
haveria de casar-se com ela depois da sua morte, que já se aproxima,
é que ela começa a aceitá-lo, trêmula, e ele sente o pé dela retesar-se
nas suas mãos. Ao contrário da Primeira Esposa, que ficava abalada
até o âmago do seu ser por qualquer menção à morte, seja dele ou de
qualquer outra pessoa, esta, que era mais jovem e mais triste, sente
atração pela conversa sobre a morte do marido, conversa que não só
lhe desperta a curiosidade e a esperança, como também o terno
desejo por ele, o qual ele rapidamente recolhe e borrifa sobre si como
se fosse alho em pó, de cheiro intenso e refrescante.
Agora, porém, ele evita mencionar, mesmo de maneira leve ou
jocosa, a perspectiva concreta da sua morte, que, não obstante pareça
iluminada e impregnada de doce tristeza quando mencionada na
janela que se abre para o mar da baía de Tânger, aqui, porém, nesta
pequena e escura cabine encostada ao fundo do navio que range, a
ideia parece assustadora até para ele próprio. Assim, sem nenhuma
palavra desnecessária de desculpas, ele entra e pendura a lâmpada
num gancho de ferro acima da cama dela, desafivela o cinto
cravejado de joias e o coloca ao lado da cabeceira, e se despe rápida e
completamente. Mas antes de deitar-se nu ao lado da esposa, amarra
seus próprios calcanhares com algumas laçadas da corda amarela
que havia sobrado da que o almirante da esquadra do Califa
ordenara que fosse utilizada para reforçar o madeirame do navio, e
então tira a pesada corrente de prata que lhe pende do pescoço e
prende com ela seus próprios punhos, de modo a fazê-la
compreender que nada lhe tolheria o direito que ele lhe concedia de
tomar o que quer que ela desejasse do corpo e da alma do marido.
Talvez assim ela conseguisse, se não perdoá-lo, pelo menos
reconciliar-se com o fato de ser a Segunda, e não a Primeira Esposa.
Apesar de surpresa ao ver como ele se rende a ela de maneira tão
incondicional, desnudo e amarrado, coisa que jamais fizera antes, a
mulher continua esquiva e sem nenhuma pressa em retirar as vestes;
apenas se levanta e aproxima a lâmpada para que ilumine aquele
corpo estirado a seus pés, a fim de que possa examiná-lo para ver se
desde a última vez em que fizeram amor haviam nascido novos fios
encaracolados em seu peito, daquele tom prateado tão
surpreendente, pois são tão raros os homens cujo cabelo branqueia
antes que a morte os colha. E ela confirma para si mesma o que já
supunha. Os mesmos dias de céu azul e sol implacável que vêm
bronzeando a pele da mulher também prateiam a cabeça do marido
e os pelos de seu peito, de modo que é difícil saber o que fazer:
lastimar esses novos sinais do fim que se aproxima, ou rejubilar-se o
pela misteriosa beleza que eles lhe concedem. Uma doce melancolia
invade a alma da mulher, tão intensa que ela não consegue se conter
e deita a cabeça cacheada sobre o peito do homem que tanto a fez
esperar esta noite.
Agora, no silêncio que a envolve, ela já não pensa, como
planejara, em sentir o bater do coração do marido, mas apenas nos
contornos doloridos e desconhecidos das suas costelas. Com um
tremor estranho e egoísta, ocorre-lhe que não só a sua própria beleza
se desgasta com as provações dos enjoos e da comida estragada, mas
também o sólido corpo do marido se debilita pelas preocupações
incessantes com o destino de sua mercadoria — destino ameaçado,
mais que por qualquer outra coisa, pelo casamento com ela. Nos
belos olhos cor de âmbar, ligeiramente míopes, até agora
semicerrados, apenas duas pequenas frestas, perpassa um cintilar
venenoso, e então eles se abrem, profundamente ofendidos.
Procuram e se fixam naquilo que, no quarto de dormir de sua casa,
apenas aparece e desaparece entre o seu corpo e os lençóis, ao passo
que aqui é inteiramente revelado, encolhido em si mesmo, moreno e
ameaçador, como se tivesse se transformado num camundongo a ser
fatalmente devorado por uma serpente. E tanta pena sente daquela
parte do corpo do marido e também de si mesma que levanta um
p p q
pouco a cabeça e, ainda sem encarar o rosto do homem que se atara
diante dela, começa a falar sobre a Primeira Esposa, coisa que ela
jamais ousara fazer.
Um leve tremor de medo atravessa Ben-Atar, e seus olhos se
fecham. É verdade que nos longos dias de navegação já se havia
habituado, volta e meia, à hora do crepúsculo, quando as ondas do
mar engolem os últimos vestígios da luz do sol, a deparar com as
duas mulheres, que antes da viagem mal se conheciam, sentadas
lado a lado na ponte de comando de onde, em dias passados,
capitães haviam comandado batalhas. Com o rosto impassível e os
leves véus coloridos esvoaçantes ao sopro da brisa marinha, as duas
trocam palavras sem olhar uma para a outra, como uma dupla de
traidoras. E ele tem a sensação de que durante os longos dias dessa
interminável viagem elas revelam uma à outra os segredos mais
íntimos do marido comum, e seu coração se enche de temor, mas
também de emoção ao imaginar o horizonte de desejo que se abre
diante dos três. Às vezes chega a ponto de imaginar que conseguirá
levar para a Nova Mulher de Abuláfia em Paris, que empreende uma
campanha contra ele, não só uma prova viva que haveria de aplacar
sua oposição, mas também uma nova e aguda tentação contra a qual
ela não teria defesa. Uma tentação que ele sente agora na própria
carne, nas suas entranhas viris, nessa cabine ondulante com o
movimento das ondas, mergulhada em sombras, entre os odores das
especiarias e os gemidos abafados dos dois filhotes de camelo,
enquanto a Segunda Esposa o questiona sobre como foi feito o amor
no início da noite, e ela própria responde às perguntas.
A descrição da cena e das sensações fornecida pelas respostas é
de tal forma vívida que parece quase como se da popa do veleiro ela
houvesse se insinuado no ato de amor ocorrido na proa no início
daquela noite, e não quisesse agora, sozinha, separar-se, pelo menos
em palavras, de tudo o que ele concedera à Primeira Esposa.
Tomado de pânico, ele tenta libertar as mãos atadas na corrente de
prata para tomar o rosto dela e tapar-lhe a boca. Porém as voltas da
corrente, que se destinavam a ser apenas simbólicas, se tornaram
reais, e também ela, percebendo seu propósito, começa a lutar, tão
feroz e desesperadamente como se ele tivesse de pagar agora não só
p p g g
pelo que fizera antes com a Primeira Esposa, mas por todo o desejo
frustrado que brotara dentro dela ao ver os marinheiros semi nus em
sua faina no convés.
Enraivecida, ela estende a mão para aprisionar o minúsculo
ratinho, como se quisesse estrangulá-lo ou mesmo arrancá-lo fora,
no entanto ele desaparece, e em seu lugar se levanta contra ela uma
cobra jovem e delicada, que logo se endurece num lagarto fogoso e
atrevido que tenta escapar dos seus dedos e pousar os lábios finos e
verticais sobre os olhos dela. Então, a partir do desejo que se
desdobra dolorosamente diante de si, ela entende que o marido
lamenta ter se atado daquela maneira à sua frente, e seu espírito
começa a se aquietar. Agora que ele está imobilizado por correntes, e
não apenas por promessas, ela pode despir sua própria túnica e
tomar dele, lentamente e até o fim, tudo aquilo que ele lhe deve, não
somente desde que içaram velas nesta viagem, mas desde que seu
pai a dera como esposa, ainda que acabe por extrair de si mesma um
gemido selvagem que poderá até perturbar o sono do menino
adormecido atrás da cortina.
Contudo, o gemido alto, que o prazer quase transforma num
grito selvagem, não chega nem a arranhar as grossas paredes da
consciência do filho do rabino Elbaz, entregue ao seu profundo sono
juvenil. Em contrapartida, fez saltar o jovem adorador dos deuses,
que voltara furtivamente para aquecer-se contra o corpo nobre dos
jovens camelos e assim recordar o cheiro do deserto de que fora
arrancado. E, apesar de ser casto, compreende muito bem o
significado dos gemidos que lhe inundam o coração, como se através
dos cortinados duplos o membro de seu amo conseguisse penetrá-lo
também. Acaricia o traseiro dos dois camelinhos, os quais, a julgar
pelos olhos cerrados, também compreendem aquilo que ecoa ao seu
redor. Quem poderá saber, pensou ele. se eles dois não haveriam de
ser sacrificados e cozidos ainda antes de o navio atingir a almejada
cidade, rio acima. O jovem curva a cabeça e ora pela santidade dos
ossos aromáticos que deles restarão após a morte, mas por fim
desiste e sobe rápido pela escada de corda para sumir, antes que o
judeu apareça e o fustigue, ainda que desta vez o pecado tenha sido
apenas ouvir, e não ver. De repente o escravo é tomado pelo desejo
p p p j
de entrar na pequena cabine na proa do navio e ver o sorriso da
Primeira Esposa, cujo corpo branco lhe resplandecera diante dos
olhos no início da noite. Agora, entretanto, com o barco mergulhado
em silêncio, e na falta de um único marinheiro acordado exceto ele
próprio, pode ir aonde quer que seu coração peça, já que a divindade
que emana de todos os lugares o mantém desperto e alerta desde o
cair da noite até a aurora, e faz com que nestes últimos estertores da
noite se torne o verdadeiro senhor do navio. Se quisesse, poderia
sozinho levantar a âncora das profundezas do mar, içar a vela
triangular e, em vez de navegar para o Leste, subindo o rio, penetrar
no coração da Europa, seguir na direção contrária, direto para o
Ocidente, e atravessar o horizonte rumo a um novo mundo.
Porém um passarinho roçando as asas numa corda do convés
anuncia que a aurora se aproxima. Antes que o jovem escravo tenha
tempo de dobrar os joelhos e se prostrar diante dessa minúscula
divindade, o pássaro dá um pio suave e voa rápido na direção de
uma réstia de luz que surge no horizonte do novo continente.
Embora esta seja apenas um fiapo, é suficiente para despertar o
rabino Elbaz, a quem as palavras rimadas do poema, que adejaram a
noite toda entre seus pensamentos e seus sonhos, exigem agora
ordem e lógica. Mas como os finos raios de luz que surgem lentos do
continente ainda são fracos demais para iluminar as linhas escritas
nas folhas de papel guardadas entre as peles de carneiro da sua
cama, ele traz para o convés apenas a sua pluma que, em breve,
assim que a luz se tornar suficiente, poderá aguçar e mergulhar no
tinteiro. Dentro em pouco, conseguirá inserir a palavra correta no
espaço vazio que aguarda por ela já há vários dias. Com um gesto
tímido de agradecimento, inclina a cabeça para o escravo negro que
lhe oferece a terrina para a refeição da manhã, repleta de grandes
azeitonas imersas num molho oleoso, onde ele mergulha as fatias de
pão quente que as acompanham. Já há quarenta dias que o rabino
navega neste barco, e ainda se sente constrangido sempre que o
escravo o serve, como se não fosse merecedor. Após o nascimento do
seu único filho, sua esposa enfraquecera de tal modo que todas as
tarefas domésticas recaíram sobre ele. De tal maneira se afeiçoou ao
trabalho doméstico que teve que assumir no lugar dela, às claras ou
q q g
de maneira dissimulada, que desde a sua morte foi difícil para ele
deixar o luto, pois onde encontrar uma mulher saudável que
consentiria em ser servida pelo marido?
Assim, enquanto os fiapos de uma neblina cinzenta flutuam no
ar, o rabino Elbaz come com a cabeça baixa, segurando o prato entre
as mãos, com cuidado para não fazer nenhum movimento nem
deixar escapar nenhuma palavra que possa incentivar o jovem
escravo a continuar a servi-lo, ou que, Deus o guarde, não seja
arrebatado pelo entusiasmo e se prostre a seus pés e beije a fímbria
da sua veste já muito velha e puída. Como fizera certa noite, tomado
por uma exaltação religiosa tão intensa que o rabino fora obrigado a
queixar-se a Abu Lutfi, que aplicou uma violenta surra em seu
protegido. Mas não, desta vez o jovem não parece querer retornar
aos seus antigos hábitos. A longa noite, e ainda os dois atos de amor
do seu senhor, e o aroma do vinho que paira no convés o engolfam
num poderoso cansaço, enquanto a névoa da manhã se adensa.
Apesar de toda a sua juventude, neste momento ele de bom grado se
veria exalando um último suspiro, antes de desabar sobre a vela
dobrada a seus pés, para morrer. Todavia, deve ainda executar as
ordens de Ben-Atar e cuidar para que o rabino não lance ao mar
todas as sementes de azeitona, mas guarde uma no saquinho
pendurado junto ao coração, garantindo assim a exata contagem dos
dias, pois já havia acontecido de os judeus perderem a conta de seu
sagrado sétimo dia.
Assim, nesta manhã o rabino não descuida de sua tarefa de guardião
do tempo e, depois de roer a carne suculenta da última azeitona,
coloca o caroço junto com os outros cinco e sorri cordialmente para o
jovem escravo, que a exaustão já domina de tal maneira que mal
consegue cambalear até a Primeira Esposa, que acabara de subir,
com o pesado corpo envolto numa túnica vermelha toda bordada,
até a velha ponte de comando, onde então se posta, esplêndida como
o próprio Califa. Ele não sabe se ela quer tomar um pouco da bebida
feita de mel que ele lhe prepara e ferve todas as manhãs, ou se
primeiro deseja saber se tudo correra a contento na popa do navio. A
intensidade desse conflito dilacera sua alma jovem e cansada e o
deixa por um momento petrificado. Mas a severidade da voz de Abu
p p
Lutfi, que vem acordar o capitão, faz com que apresse seus passos
em direção àquela mulher imperial, em tomo da qual a neblina. que
vai se adensando à luz do dia, paira como fumaça de incenso. Ele já
consegue discernir uma sombra desconhecida de preocupação que
anuvia o rosto redondo e franco da mulher, sempre iluminado por
um sorriso amável, e procura acalmá-la, porém não sabe o que dizer
nem como dizer; assim fecha os olhos e começa a suspirar
profundamente, uma vez e mais uma, como se estivesse tentando
transmitir a ela todos os suspiros de satisfação e os gritos abafados
de prazer da Segunda Esposa.
Capítulo 3

Mas até onde vai esse poema?, ele se pergunta, enquanto os


marinheiros tateiam na neblina da manhã para desfraldar a vela —
recolhida durante a noite, ralentando assim o andamento do barco
—, com vistas a iniciar a delicada tarefa de navegação do rio. O
simples fato de escrever um poema é algo maravilhoso para o rabino
Elbaz, que nunca imaginara que ele próprio seria capaz disso, ou
desejaria fazê-lo. Eis que durante a última semana seis estrofes
foram acrescentadas, todas em hebraico, rimadas e metrificadas
segundo a nova e melodiosa fórmula de métrica e rima que Ben
Labrat (N.A.: Dunash HaLevy Ben-Labrat, poeta e gramático hebreu
do século X, introduz na poesia hebraica a métrica em uso na poesia
árabe, inovação que irá influenciar toda a produção hebraica dali em
diante) trouxera do Oriente para a Andaluzia.
Desde o início, do momento em que subira com seu filho a bordo
do navio de Ben-Atar, que viera especialmente ao porto de Cádiz
para embarcá-lo, o rabino sente que uma grande mudança está para
acontecer. No início sentira-se inundado pelo temor e o desalento ao
ver as cabines minúsculas e apinhadas, o convés e suas numerosas
cordas a mover-se com violência com os movimentos do mar, e os
sacos de condimentos e ânforas, amarrados uns aos outros no escuro
bojo do navio, a exalar odores africanos, pungentes e desconhecidos
noite adentro. Acostumado como era à beleza ensolarada de sua
cidade natal. Sevilha, e à elegante cortesia de seus habitantes, é
tomado de terror ao ver os marinheiros árabes seminus, com cordas
de linho amarelado atadas em volta do corpo, gritando ordens
ásperas uns aos outros e chicoteando o escravo negro que corre entre
eles. Também as duas mulheres de túnicas coloridas, descalças e com
o rosto envolto em véus, sentadas na ponte de comando, não
tranquilizavam o novo viajante, que tentava em vão controlar o filho
em sua movimentação incessante pelas escadas de corda, ágil e feliz
como um macaquinho. Ao crepúsculo, quando o navio partia
lentamente para sua jornada rumo ao vasto oceano, onde ele jamais
navegara nem sequer pusera os olhos, e sob os seus pés a
embarcação começava a arfar com o ritmo lento, incessante e antes
desconhecido das ondas, o rabino foi tomado de náusea e tontura.
Constrangido, ocultou-se, e através de uma pequena escotilha
lançou à água iluminada pela luz rubra do pôr-do-sol a refeição
matinal que fora oferecida pela congregação da casa de estudos em
Cádiz como agradecimento pela preleção matutina que lhes
apresentara. À meia-noite vomitou de novo, do fundo dos intestinos,
o jantar de despedida em Sevilha, oferecido pela família de sua
falecida esposa.
Ao raiar do dia, exausto por uma noite insone, achou que talvez
pudesse chegar a um acordo com o mar, mas ao ver as órbitas vazias
do peixe assado servido pelo jovem negro, seu estômago entrou em
erupção mais uma vez. Imediatamente o rabino se impôs o jejum,
pois desde a época da doença da esposa se acostumara a promessas
e jejuns. Contudo, nem assim a náusea arrefeceu. Pálido, emaciado,
com os olhos fundos, não mais tentava esconder seu sofrimento, e
apoiava-se abertamente nas cordas do convés, a boca escancarada, os
olhos esgazeados, como um peixe tirado do mar, sonhando com o
dia em que chegariam ao porto de Lisboa, onde poderia enfim
renunciar à aventura marítima. Não fora talhado para isso. Era como
o profeta Jonas, disse ele num pedido de desculpas ao proprietário
do navio, que o contratara e nele depositara suas esperanças, o mar
não tinha uma opinião favorável a seu respeito. Só que para ele Deus
não providenciara um peixe de tamanho suficiente para engoli-lo
inteiro, sem mastigar.
Assim, enquanto Ben-Atar vai se acostumando à ideia de que
terá que abrir mão do respaldo bíblico na confrontação que o
aguarda com a Nova Mulher e os sábios que a apoiam, pois se enviar
o rabino por terra numa viagem de Lisboa a Paris, ele chegará
apenas no outono, quando já estarão a caminho de casa — Abd el-
Shafi, para sua surpresa, intervém. Sem nada saber sobre o papel
que o rabino estava destinado a desempenhar nessa expedição,
assume suas responsabilidades de comandante pelo sofrimento que
p p q
seu navio vem causando ao novo passageiro. Em primeiro lugar
diminui, por sua conta e risco, o andamento do navio. Mas ao ver
que o rabino continuava a sofrer no convés, obteve permissão de
Ben-Atar para fazer uma parada de um dia e uma noite. Rumou
assim para uma baía tranquila, amarrou a vela de maneira que a
brisa leve não adernasse o navio, lançou âncora e fixou os dois remos
do leme opostos um ao outro para a estabilizar perfeitamente o
navio. Na velha ponte de comando, da qual outrora os oficiais da
esquadra do Califa perscrutavam atentamente o horizonte em busca
de navios cristãos para garantir que não cruzassem a linha invisível
que dividia o Mediterrâneo entre as duas religiões adversárias, Abd
el-Shafi determinou que fosse instalado um canto confortável para o
rabino, homem de trinta e três anos, em cujos olhos parecia pairar
constantemente uma tênue chama de santidade. Foi preparado um
sofá macio, estofado com lã e palha, e recoberto com acolchoados de
cores suaves. Ali foi acomodado o atormentado passageiro, já
esverdeado até as barbas. O capitão começou então a ferver uma
poção especial utilizada pelos vikings para abrandar o terror dos
prisioneiros que não eram executados: um cozido de barbatanas de
peixe temperado com escamas finamente moídas, mergulhadas em
suco de limão, ao qual se acrescentavam algas verdes colhidas no
fundo do mar por um dos marinheiros. Depois de pronto o cozido,
ataram-se as mãos do paciente e Abd elShafi fez questão de despejar,
ele próprio, com sua colher de pau particular, a beberagem acre,
fumegante, que trescalava um cheiro horrível, goela abaixo do
rabino que se debatia. À noite, de fato, os vômitos começaram a
ceder, e o filho, Samuel, aproveitando-se da grande aflição que se
abatera sobre o pai para escalar até o topo do mastro, pôde ver das
alturas o rosado voltar aos poucos à ampla testa do pai, que sentia
na prática as virtudes purgativas e até mesmo espirituais da poção
viking que lhe fora administrada.
Assim, a bordo do navio imóvel, não longe do porto de Lisboa,
um sono profundo se apoderou do rabino Elbaz, e tão tranquilo
dormia que o capitão não esperou que o dia amanhecesse, e deu
ordens aos tripulantes para que levantassem a âncora e içassem a
vela, voltando a navegar e retomando aos poucos o andamento, de
g p
modo que quando o rabino despertasse, depois de dormir
pesadamente por um dia inteiro, pudesse sentir o arfar das ondas
como parte natural e até mesmo necessária à existência do mundo.
De fato, os vômitos não voltaram a atormentar o rabino de Sevilha,
nem mesmo em dias de tempestade, e daí em diante ele aprendeu a
desfrutar da navegação com grande prazer. Preferia, mesmo à noite,
permanecer no convés, a fim de não perder o espetáculo do céu
estrelado a impelir adiante o navio. À meia-noite, quando Abd el-
Shafi se recolhe à sua rede e encarrega dois marinheiros de vigiar as
estrelas que orientam o rumo do barco, o rabino pega uma pele de
leopardo e uma pele de carneiro e as estende, uma sobre a outra, na
velha ponte de comando aquecida pelo corpo das duas mulheres
descalças que lá haviam estado durante todo o dia, e ali mergulha
num sono ao ar livre, em busca de um sonho. Um sonho de verdade,
se possível, e, caso contrário, ao menos uma visão que juntasse cacos
de memória e retalhos de pensamentos e desejos.
Imperceptivelmente seu espírito começa a se recolher, camada após
camada, perdendo a perspicácia e a curiosidade intelectual em favor
de um novo tipo de livre introspecção filosófica, permeada de
sensibilidade.
O dono do barco, com seu olhar aguçado, começara a notar
sinais de letargia e indolência no rabino Elbaz sempre que ordenava
que lhe fosse levado o que chamava de "cofre dos reforços", que
nada mais era que uma caixa de marfim cheia de folhas de
pergaminho inscritas com ensinamentos dos sábios e dizeres dos
livros sagrados, especialmente compilados pelo sábio tio do
comerciante, Ben-Guiat, para que a erudição andaluza temperada
com a sagacidade e a elegância da África do Norte o reforçasse nos
seus estudos.
Entretanto, não parecia que o rabino estivesse interessado em ler
ou estudar nada de novo sobre o caso que fora contratado para
defender. Os argumentos que preparara ainda em Sevilha pareciam-
lhe perfeitamente sólidos, e se houvesse necessidade de reforçá-los,
seria preferível não fazê-lo com base em citações bíblicas ou outras
escrituras, mas, sim, servir-se de trechos da tradição oral, que eram
os primeiros a lhe ocorrer nas profundas reflexões que, sutis como
p p q
um fio de fumo, volta e meia terminavam em longas conversas
casuais com Ben-Atar. Com franqueza, da qual é capaz talvez
somente um entediado viajante do mar, Ben-Atar contava sobre si
próprio e sua vida, e o que não contava, ou não sabia dizer,
contavam às vezes suas duas esposas, sobretudo a primeira, mas às
vezes também a segunda, talvez porque ainda sentisse certo receio
do rabino, apenas sete anos mais velho do que ela. O que as esposas
tinham sido incapazes de ver ou compreender, o sócio, Abu Lutfi,
podia acrescentar a partir da sua própria perspectiva ismaelita.
Ainda que este omita ou oculte algum detalhe, quem sabe por
excesso de lealdade, o capitão ou algum marinheiro arguto pode
fornecê-lo, pois qualquer pessoa, se pressionada, é capaz de deduzir
uma coisa a partir de outra. Até mesmo o negro adorador de deuses
não seria desqualificado pelo rabino como testemunha, se apenas
parasse de se ajoelhar diante dele à noite, em pleno sono.
Porém, há cerca de dez dias, quando o barco passava ao largo
das baías entrecortadas da Bretanha, Ben-Atar notara que o rabino
trazia sempre nas mãos uma pena de ganso, a qual estava
constantemente a afiar com uma faquinha, pondo-se de quando em
quando a lamber-lhe a ponta aguçada enquanto uma expressão
inspirada vinha iluminar-lhe o rosto, como se sua alma estivesse
sendo empolgada por uma ideia realmente arrebatadora. Não
transcorreu um só dia sem que Ben-Atar observasse o ganso já a
alçar vôo, e uma tira desconhecida de pergaminho passear entre os
dedos do rabino, que nela vai alinhando palavras e mais palavras. O
vagar da escrita, por um lado, e a velocidade com que o pergaminho
era escondido sempre que Ben-Atar se aproximava, por outro,
atestavam o fato de que não se tratava de um trecho relacionado às
Escrituras, nem um comentário sobre uma passagem obscura, ou um
elaborado argumento ético, porém algo de outra natureza. Ben-Atar,
observando a distância, percebe como as linhas são acrescentadas,
ou apagadas e substituídas por outras, que por sua vez acabam
sendo também apagadas. Por fim não consegue mais se conter, e
instrui o filho do deserto para se esgueirar à noite até a cama do
rabino e sacar de lá o pergaminho. Quando finalmente consegue tê-
lo em mãos, descobre que são as linhas desconexas de um poema, ou
q p
hino, que começa em árabe e depois, inopinadamente, muda para a
língua sagrada.
Em segredo, à luz de uma vela, Ben-Atar tentou decifrar a
escrita, a princípio palavra por palavra, e depois tentando perceber a
relação entre as linhas. Isso o encheu de tristeza. O desejo velado do
rabino pelas duas esposas de Ben-atar, descrito nas duas últimas
linhas, feriu sua honra. Porém, quando já estava prestes a rasgar o
pergaminho e atirá-lo às ondas do mar, disse a si mesmo que um
poema composto com tanto empenho decerto estava gravado na
mente do autor que, no futuro, cuidaria apenas de guardar e
esconder melhor os frutos do seu espírito. Assim, mandou recolocar
o pergaminho em seu lugar, para que pudesse continuar a vigiá-lo.
Enquanto o escravo negro torna a desatar o manto do poeta
adormecido para recolocar furtivamente o poema no bolso interno, e
ao fazer isso talvez esteja recebendo um pouco do calor que o Deus
invisível confere àqueles que nele creem, volta o proprietário do
navio a refletir sobre as qualidades desse rabino que seu tio lhe
apresentara. Seria ele de alguma ajuda? Pois ele está lhe pagando
não para escrever poesias sobre desejos frustrados, mas sim para
reunir argumentos sutis e convincentes contra a Nova Mulher de seu
sócio Abuláfia, que provocara a cisão entre eles e o deixara de
repente na rua da amargura, sem compradores para sua mercadoria.
Mais uma vez Ben Atar, tomado de comiseração por suas
mercadorias rejeitadas, prossegue no seu caminho sob a vela
triangular para dar uma espiada nos compartimentos internos.
Ali, na escuridão aromática pontilhada de retalhos de luar que se
filtram pelas fendas do passadiço, as cordas que amarram os grandes
jarros e sacos parecem se dissolver, e estes, alinhados em fileiras,
parecem agora um bando de homens perplexos diante do infortúnio
que se abatera sobre eles, e pelo qual seu dono logo deveria prestar
contas. Eis que um dos grandes sacos se ergue de repente e vem em
direção ao judeu, que treme e estrangula na garganta um grito de
horror. Mas é apenas Abu Lutfi, que gosta de se deitar bem junto ao
esconderijo das adagas cravejadas de pedras preciosas. Também ele
não consegue dormir, tal como na estalagem romana nas colinas de
Barcelona naquelas noites de verão dos anos 4756 e 4757 da criação
q
do mundo, quando os atrasos de Abuláfia para os encontros
combinados para o início do mês de Av se tornavam cada vez
maiores.
Foi só dois anos mais tarde que Ben-Atar compreendeu que, caso
tivesse se empenhado em compreender o motivo dos atrasos, teria
percebido antes o repúdio que se articulava contra ele, ao norte. Foi
durante aqueles anos que o primeiro fio se estendera em direção
àquela viúva que chegara à terra dos francos, vinda de uma pequena
cidade à margem do rio Reno. Por aquele tempo, Abuláfia a
mencionava apenas como uma cliente fiel, e não como uma possível
noiva. Mas aguçando-se os sentidos e lendo nas entrelinhas, podia-se
adivinhar que havia uma nova mão envolvida, seja consciente ou
inconscientemente, nos atrasos de Abuláfia, que se encompridavam
de ano para ano. Abu Lutfi, seja dito em sua honra, não se iludira, e
havia tempos mantinha uma atitude cética para com os pretextos e
explicações de Abuláfia. Desde o início da sociedade estava
convencido de que, cedo ou tarde, chegaria o dia em que Abuláfia
iria simplesmente desaparecer com a mercadoria, e tão firme era essa
convicção no seu íntimo que os atrasos dos últimos anos lhe
pareciam ser apenas um prenuncio do desaparecimento final que o
sócio do Norte estava preparando para seus parceiros. Assim,
quando Abuláfia relatava os tropeços de sua jornada devido a novos
conflitos entre ducados que constantemente se dividem, guerreiam
entre si e voltam a se aliar, alterando sempre as fronteiras e
atrasando seu progresso, Abu Lutfi desviava os olhos do narrador e
os fixava na fogueira, para que se purificassem das mentiras que os
profanavam. E se Abuláfia insistia em enredar-se em explicações, o
ismaelita enrolava o xale em torno da cabeça e das orelhas e se
aproximava tanto das chamas que estas quase lhe queimavam as
roupas, como se dissesse: Para mim chega, sócio! Daqui para a
frente, vá contar a alguém disposto a acreditar em qualquer coisa
que você disser! E, de fato, Ben-Atar ficava tão comovido e feliz com
o aparecimento do sobrinho querido, que a preocupação e o medo já
o tinham feito imaginar — Deus o livre — morto, ferido ou feito
prisioneiro, que lhe prestava ouvidos e esforçava-se ao máximo para
acreditar em cada palavra. Para fortalecer sua fé, perguntava vezes e
p p g
vezes sem conta, e voltava ainda a perguntar, sobre os sinais do
famoso milênio, que já estariam suspensos, segundo Abuláfia, nos
céus, como uma imensa nuvem, dentro da qual brilharia um clarão
em forma de uma grande cruz avermelhada, como um relâmpago.
Apesar de faltarem ainda alguns anos para chegar, esse evento já
confunde a mente das criaturas. Abuláfia teria dito que quem não
havia ressuscitado mil anos atrás não haveria de vir fazer uma visita
de surpresa mil anos depois. De qualquer forma, os judeus não
teriam nada a temer dos trovões e relâmpagos no céu, já que lhes
fora prometido, desde tempos imemoriais, que o céu haveria sempre
de ficar à sua direita. Mas ainda não se tinha certeza de que, na terra,
os hebreus seriam capazes de acalmar a fúria dos fanáticos cristãos,
que já de alguns anos vinham preparando a mesa para o banquete
do Messias, pelo qual há tanto tempo vinham ansiando.
Enquanto Abuláfia relatava a seus sócios o pavor crescente que
se abatia sobre os cristãos à aproximação do milênio, Ben-Atar
colocava de leve a mão sobre o ombro de Abu Lutfi, já quase sentado
sobre as brasas, pensando nos ismaelitas, e em como eram gentis
com os hebreus. Até que chegue o milésimo aniversário do
nascimento do profeta dos ismaelitas, o Messias filho de José e o
Messias filho de David (N.A.: Segundo a tradição hebraica, o
Messias pertencerá à estirpe de Davi e será precedido por um outro
Messias, da estirpe de José, que anunciará a chegada do segundo e
combaterá contra as forças do mal e "será assassinado" pela redenção
do homem) já haverão de ter se antecipado e posto cada profeta
espúrio no seu devido lugar. Visando à segurança de Abuláfia à
chegada do ano mil, Ben-Atar o aconselhou a voltar e atravessar
novamente a fronteira entre as duas grandes religiões, e conseguir
uma casa próxima à taverna de Benveniste, onde poderia também
alojar temporariamente a infeliz filha com sua aia, de modo a passar
o ano do milênio em companhia daqueles que contam os anos de
outro modo. Quem sabe se a natureza incomum daquela criança, na
qual Ben-Atar não punha os olhos havia mais de sete anos, não
despertaria pensamentos malignos no coração de pessoas desejosas
de expurgar o mundo, nesse ano sagrado, de todos os seus
demônios, fossem eles masculinos ou femininos? Ben-Atar enuncia
seus pensamentos com palavras cautelosas a fim de não ofender,
Deus o guarde, seu amado sobrinho. Embora talvez tenha sido o
primeiro a notar o rosto "errado" do bebê, que nascera para seu
sobrinho treze anos antes do milênio ameaçador, ele nunca teria
ousado estabelecer nenhuma conexão entre a criança, nem mesmo
por um leve indício, e o mundo dos demônios. Mas fora justamente
sua linda mãe, a falecida esposa de Abuláfia, que em seu desespero
logo havia chamado sua filha recém-nascida de "minha diabinha" ou
de "a bruxinha", numa tentativa de antecipar os pensamentos
malignos dos outros, e talvez mesmo neutralizá-los. A pobre mulher
estava certa de poder demonstrar à família e aos amigos que não
sentia repulsa pela filha, e que estava até preparada para encarar a
estranheza da criança como uma espécie de presente grotesco que
lhe fora enviado pelos céus a fim de testá-la.
Assim, a pobre mãe não só não fez nenhuma tentativa de
esconder aquele bebê de olhos saltados e testa estreita, como
também fazia questão de levá-la a passear, envolta numa reluzente
túnica de seda, enfeitada com fitas coloridas, num esforço para
incluir seus parentes e amigos na provação que Deus lhe havia
enviado. Porém, mesmo que tentassem, parecia que ninguém
conseguia extrair nenhum afeto de um bebê, cujo choro incessante,
de timbre grave e soturno, fazia estremecer o coração. Em particular
não gostava dela a avó, a mãe de Abuláfia e irmã mais velha de Ben-
Atar, que afundava em depressão à vista da neta endemoninhada,
trazida todos os dias pela infeliz nora no seu empenho de mostrar-
lhe como estava crescida e se desenvolvendo. Até que Abuláfia teve
que intervir para evitar que sua esposa, exasperada, transformasse a
pobre criança no teste único de compaixão para o resto do mundo.
Ao constatar que era impossível exercer sua autoridade sobre ela e
convencê-la a cessar seus passeios, em particular suas visitas diárias
à sogra, Abuláfia trancou certa manhã a porta de ferro, ao sair para a
pequena casa de estudos de Ben-Guiat a fim de celebrar as orações
matutinas com sua bela voz, antes de ir auxiliar Ben-Atar em sua
loja. Primeiro sentiu pontadas de remorso no coração pelo que
fizera. Depois pensou que a esposa conseguiria escapar da prisão
que lhe havia imposto, e por fim o trabalho o absorveu de tal forma
q p p
que esqueceu completamente o assunto. Contudo, quando voltou
naquela noite, encontrou a casa trancada tal como ele a deixara, com
o bebê dormindo no berço e o lindo rosto de sua esposa pálido e
imerso numa melancolia silenciosa. À noite ela se ajoelhou diante
dele e prometeu não voltar a desobedecê-lo e nunca mais levar o
bebê à mãe dele contanto que ele jurasse não mais trancá-la em casa
sozinha com o bebê, e ele acedeu ao seu pedido.
Portanto, ninguém suspeitou da intenção da mulher quando ela
apareceu com o bebê no dia seguinte, antes da oração vespertina, na
grande loja de Ben-Atar, e pediu ao marido que tomasse conta do
fruto de suas entranhas por algum tempo. Entrementes, ela daria
uma volta até a praça do mercado para procurar entre os nômades
recém-chegados do deserto novos amuletos, que talvez pudessem
afastar os feitiços da filha. Enquanto isso Abuláfia foi, como de
costume, cantar as orações da tarde e do anoitecer com sua voz
melodiosa para os que se reuniam na casa de orações. Assim, o tio
Ben-Atar foi chamado para tomar conta do pacotinho que fora
colocado entre os rolos de tecido, até que a mãe voltasse. Entretanto,
esta não tinha nenhuma pressa de voltar. Primeiro foi, de fato,
caminhar até o portão da cidade e passear entre as bancas dos
nômades vindos do distante Saara. Recuou, porém, ao ver os
amuletos retorcidos e cabeludos dos idólatras, e não ousou sequer
pegá-los na mão e apalpá-los. Em vez disso sentiu-se atraída, por
algum motivo, por uma velha vara de pesca, guarnecida com um
anzol feito de cauda de elefante. Comprou-a e apressou-se a sair
para fora dos muros da cidade, seguindo até a beira-mar, para tentar
pescar um peixe de verdade. Naquela hora do crepúsculo não havia
vivalma na praia, à exceção de um pescador muçulmano, que ficou
surpreso ao vê-la, pois era incomum que uma jovem, sobretudo
judia, perambulasse sozinha nas praias de Tânger, ainda mais com
uma vara de pesca na mão. Desconcertado com a aparição, hesitou
quando ela lhe pediu que a ensinasse como preparar o anzol e como
lançá-lo ao mar, mas diante de sua beleza não conseguiu recusar o
favor. Depois de ter aprendido os segredos da pesca, ela tirou as
sandálias, jogou o manto sobre os ombros, subiu a uma rocha, onde
se sentou, e atirou o anzol ao mar, que de quando em quando
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quebrava contra a rocha em ondas violentas e a molhava. A sorte
estava com ela, e logo conseguiu apanhar um grande peixe.
Animada com seu sucesso inesperado, já envolta nos últimos raios
do sol poente, recusou-se a sair da praia, enquanto o pescador,
temendo que aquilo não acabasse bem, cogitou se deveria ficar onde
estava e cuidar para que as ondas não a arrastassem, ou apressar-se
a avisar quem decerto já deveria estar em seu encalço. Mas quando,
ao cair da noite, o vulto da mulher no rochedo se tornou indistinto, o
pescador, temendo que se algo acontecesse a ela acabasse ele por
levar a culpa, precipitou-se em direção aos muros da cidade, onde,
próximo ao portão, logo deparou com Abuláfia, Ben-Atar e os
demais frequentadores da casa de estudos, que já estavam à procura
dela. Porém, quando correram até a rocha onde o homem lhes
dissera que ela estava, tudo o que encontraram foi o anzol enfiado
numa fenda.
Primeiro, Abuláfia agarrou o pescador, exigindo que ele fosse preso
e forçado a confessar a verdade, mas quando, com a maré baixa, o
mar restituiu o corpo de sua esposa, com as mãos e os pés
amarrados com as fitas coloridas com que ela adornava as roupas da
filha, todos entenderam que havia sido ela a tirar a própria vida e
que ninguém lhe fizera mal.
Não foi apenas a vergonha pelo grave pecado cometido pela
esposa e o sentimento de culpa pela sua própria indiferença e
severidade, que a impeliram a esse pecado, mas também o terrível
ódio por sua mãe que levaram Abuláfia a buscar de imediato o exílio
de sua cidade natal. Pensou primeiro em punir sua mãe deixando
furtivamente a criança amaldiçoada na casa dela, enquanto ele
próprio iria para a terra de Israel, cuja santidade haveria de poder
livrá-lo de todas as suas culpas. Ben-Atar, entretanto, suspeitando de
suas intenções, apanhou o pobre homem escondido no porão de um
navio egípcio, e com a ajuda da autoridade de Ben-Guiat obrigou-o
no último momento a voltar à terra firme. Para compensar o
insucesso da fuga e evitar uma futura recaída, propôs uma pequena
expedição comercial — levar peles de camelo e couros de animais
selvagens do deserto para alguns mercadores de Granada. Quanto
ao bebê enfeitiçado, se a mãe de Abuláfia de fato se recusasse a
acolhê-lo na sua casa, o próprio Ben-Atar iria assumi-lo por
enquanto. Assim, em vez de navegar para o Oriente em direção à
Terra Santa, que quase com certeza não o teria livrado de nada, e
poderia até mesmo, em sua santidade, induzir o pecador a cometer
mais pecados, subiu o viúvo sofredor para Andaluzia com uma
pesada carga de peles, aliviado do peso da intensa campanha de
reprovação e culpa promovida por parentes e amigos. Como a
Primeira Esposa de Ben-Atar, que na época era sua única mulher,
temia manter a criança deformada em sua casa, para que o novo feto
que estava, ou haveria de estar, em seu ventre não viesse para fora
espiar, e, vendo quem lhe fora reservada como companheira de
brinquedos, se recusasse a sair para o mundo, foi Abu Lutfi a uma
das aldeias próximas e trouxe para Ben-Atar uma parente distante,
ismaelita idosa e experiente, que tomaria conta da criança na casa
vazia de Abuláfia até que o pai viúvo voltasse de viagem.
Abuláfia, porém, não tinha nenhuma pressa de voltar de sua
jornada, e prolongou-a consideravelmente, por iniciativa própria.
Quando soube que os habitantes da terra cristã da Catalunha
estavam ansiosos por peles e couros tais como os que ele trouxera do
deserto, conteve-se e não vendeu a mercadoria em Granada; rumou
para o Norte e atravessou a fronteira das religiões, próxima a
Barcelona, a fim de encontrar mercadores cristãos, os quais de fato
investiram sobre a mercadoria e dobraram seu lucro. Em vez de
voltar de imediato para Tânger, o jovem mercador decidiu explorar
a brecha que havia conquistado. Por intermédio de dois judeus de
confiança, de Tarragona, enviou os lucros para o tio e pediu que lhe
enviasse mercadoria nova, enquanto ele próprio tomava o rumo das
aldeias e propriedades do sul da Provença, a fim de sentir os desejos
e identificar novos fregueses, aproveitando-se da proteção concedida
pelos cristãos naqueles anos. Um novo tratado, conhecido como "A
paz de Deus", fora assinado com a finalidade de proteger os
comerciantes e viajantes. Sobre a criança que deixara para trás, nada
perguntou. Foi como se ela não existisse.
Talvez tenha sido essa a razão secreta do rápido sucesso da rede
comercial de Ben-Atar, cuja cabeça ficava na baía de Tânger,
enquanto os dois braços abrangiam os montes Atlas, ao sul, e a
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Provença e a Gasconha, ao norte. O temor e a vergonha que haviam
impedido Abuláfia de retornar à sua cidade natal e o senso de
gratidão para com o tio benfeitor que lhe encontrara um trabalho,
além de demonstrar boa vontade em cuidar da criança, o haviam
levado a decidir-se a recompensar Ben-Atar com uma energia febril e
uma ousada imaginação, graças às quais, de ano a ano, haviam se
ampliado sensivelmente o círculo de fregueses e o rol das
mercadorias. Abu Lutfi não podia mais se contentar com sua
tradicional viagem de primavera até as regiões setentrionais dos
montes Atlas, e estendia seu trajeto pelos vales e aldeias, chegando
até a penetrar nas tendas dos nômades à procura de objetos de cobre
polido, adagas curvas e condimentos pungentes. Bastava o cheiro do
deserto para atrair e emocionar os novos fregueses cristãos, que às
vésperas do milênio começavam a lembrar-se de que seu Senhor
crucificado lhes viera do deserto. Enquanto isso, a ama ismaelita
permanecia com a criança enfeitiçada, que fora esquecida por todos
exceto por Ben-Atar, que ocasionalmente lhe fazia uma visita para
confirmar se ela ainda existia e se ele não estaria pagando para
manter um fantasma.
Mas a criança, apesar de suas tantas deformidades, não parecia
querer se transformar em fantasma, e insistia em continuar bem viva
à sua maneira. Embora fosse bastante retardada no seu
desenvolvimento, com movimentos limitados e olhos saltados e sem
expressão, como se pertencesse a uma outra raça, ainda assim ela ia
ampliando seu território, de modo que a ama ismaelita, de olhar
severo, viu-se obrigada a vigiá-la atentamente para que a criança não
encontrasse nenhuma abertura na casa por onde pudesse escapar
para um mundo que não a queria. Por essa altura, interveio o tio-avô,
o sábio Ben-Guiat, que chegou no início da primavera para assegurar
que a casa de Abuláfia fosse adequadamente preparada para a
Páscoa. Pois qualquer que fosse o propósito do Criador ao criar tal
criatura, a aliança selada no monte Sinai também a abrangia, e o pai
que a gerou não poderia ser substituído por uma ama ismaelita, que
nada devia ao Deus de Israel exceto sua inferioridade. Ben-Atar,
porém, que já se acostumara à responsabilidade que tinha assumido,
temia que, se Abuláfia fosse obrigado a retomar a criança, seu
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sentimento de culpa abrandaria, e com isso também sua energia e
criatividade, responsáveis pela recém-conquistada notoriedade de
Ben-Atar na cidade nos dois últimos anos. Entretanto, tampouco
queria desobedecer ao sábio tio que, aos cinquenta e cinco anos de
idade, parecia atemorizar a própria morte. E, como não se pudesse
obrigar Abuláfia a voltar a Tânger para levar de volta o fruto das
suas entranhas, Ben-Atar decide levá-lo ele próprio ao pai, sem
nenhum aviso prévio.
Assim, faltando dez anos para o milênio, partiram Ben-Atar e
Abu Lutfi em sua primeira viagem de Tânger até o porto de
Barcelona. Apesar de repetirem essa jornada verão após verão, a
cada ano aumentando a quantidade de navios, a lembrança da
primeira viagem ficou gravada no fundo do coração de Ben-Atar.
Não só pela novidade do cruzeiro, que o fez sentir de perto as forças
da natureza — o sol, a lua, o espaço estrelado, o vento, as ondas — a
lutar em silêncio diante do contorno acidentado da costa que parecia
mover-se lentamente, mas sobretudo pela intimidade criada entre
ele e seus companheiros de viagem no exíguo espaço do navio, e em
especial com a criança estranha e muda, que, embora ligada à ama
por um cordão, este não era curto o suficiente para evitar que de
quando em quando ela se arrastasse até ele e tentasse enfiar seus
dedinhos nos olhos de Ben-Atar. Desse modo, navegando sem
pressa, entre os fardos de tecido, as peles, as ânforas de azeite e o
tagarelar monótono do judeu de Barcelona que viajava com eles,
ocorria de Ben-Atar permitir que a pequena se aninhasse em seu
colo, onde se quedava muda a observar os dois marinheiros
ismaelitas se desfazerem das roupas ao calor do meio-dia, de modo a
ficar nus no castelo de proa, como no dia em que tinham nascido.
Por vezes, quando pernoitavam em alguma baía desolada do
percurso, vendo a criança caminhar lentamente pela praia ao cair da
noite, lembrava-se da mãe, de quem a filha imperfeita herdara,
apesar de tudo, algo da grande beleza — uma linha suave na face,
certa tonalidade de pele, a curvatura da coxa. De fato, nessa viagem,
Ben-Atar pensou muito na esposa suicida de Abuláfia, como se ele
também tivesse alguma culpa, até que numa das noites no mar ela
irrompeu em seu sonho, cheia de dor e desejo.
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Teve o máximo cuidado para não deixar escapar de sua boca o
menor indício desse sonho para os ouvidos de Abuláfia, justamente
por ter sido tão comovente e transbordante de amor e de amizade o
encontro dos três, a ponto de terem despencado no choro. Sim, os
três. Abu Lutfi foi o primeiro a não se controlar e romper em
lágrimas ao abraçar o amigo de cabelo tão crescido que os esperava
envergando uma negra batina cristã na entrada da estalagem
romana para onde o judeu de Barcelona os conduzira. E o soluçar
daquele viril ismaelita foi tão surpreendente que Abuláfia também
se deixou contagiar, e até Ben-Atar se sentiu sufocar, mas não o
suficiente para fazê-lo esquecer o retorno final da criança aos
cuidados do pai. A um sinal seu, a gorda ama que esperava a alguns
passos de distância puxou a menina que se escondia entre as pregas
de suas saias e a empurrou para o pai, que, à vista daquela avezinha
desconhecida esvoaçando em sua direção, deu um grito de pânico.
Mas logo se quedou de olhos fechados, cheio de dor, abraçando a
filha junto ao peito com calor e força, como se só agora tivesse se
dado conta, na sua solidão, do quanto havia ansiado por ela. Porém,
no dia seguinte, entre uma conversa e outra sobre mercadorias e
câmbios de moedas, esperanças dos mercadores e inconstância dos
compradores, Ben-Atar percebeu que Abuláfia imaginara que eles
haviam trazido a criança apenas para que ele a encontrasse, mas que
no fim ela voltaria para casa. Então, de modo delicado mas firme,
teve que lembrar ao sobrinho seus deveres de pai, e respaldar suas
palavras em textos coletados para ele pelo sábio Ben-Guiat. Abuláfia
ouviu em silêncio, leu os versículos com gestos de assentimento e
depois de breve reflexão consentiu em aceitar de volta a criança.
Teria sido apenas pelo dever paterno ou, antes, pela astúcia do
sensato Ben-Atar, que o havia promovido de agente itinerante a
agente sócio, com direito à parte de todos os lucros provenientes de
seu trabalho? Seja como for, a disposição da velha ismaelita para ir
com Abuláfia e continuar cuidando da criança na casa dele em
Toulouse, até que se conseguisse achar uma substituta, também
favoreceu o pai viúvo em sua decisão.
Daí nasceu também uma desculpa para mais um encontro, uma
vez que Ben-Atar e Abu Lutfi prometeram à ama ismaelita que
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voltariam no ano seguinte para levá-la de volta à África do Norte.
Respaldando essa promessa, havia, sem dúvida, a satisfação e o
entusiasmo surgidos do encontro atual, pois após dois anos de
novos e empolgantes negócios, até então conduzidos por meio de
emissários ocasionais, de cartas — algumas das quais se perdiam —,
e com base em boatos duvidosos, Ben-Atar percebia que não havia
substituto para as longas e tranquilas conversas com Abuláfia. Com
palavras vivas e coloridas o jovem mercador descrevia a sorte —
enovelada como uma espiral de serpentes — de cada fardo de tecido
colorido, de cada saco de condimentos raros, de cada adaga
cravejada, do momento em que os havia recebido até o momento em
que, depois de uma sucessão de trocas dramáticas, atingia sua meta
final: uma sólida moeda de ouro ou prata, ou uma pedra preciosa de
muitos quilates. Dessas narrativas, como peças raras, despontavam
observações sutis, avaliações e esperanças que forneciam ao
mercador de Tânger a prova de uma mudança em curso nas pobres
almas sombrias dos cristãos de além das montanhas: nestes tempos
de fim de milênio, os fiéis da Cruz pareciam desejosos de se unirem
ao Sul e ao Oriente por meio de suas peles, seus tecidos e seus
objetos. A esses motivos de ordem prática a falarem a favor da
viagem, devia-se acrescentar, é claro, a alegria da reunião de
parentes e camaradas na baía amena e azul de Barcelona, aonde se
chegava depois de uma navegação cômoda e tranquila. Agora que o
tio e o sobrinho tinham se tornado de certa forma sócios, embora
ainda não em pé de igualdade, parecia que o encontro de verão entre
os que professavam uma crença pequena, porém antiga, sobre a
linha de demarcação entre duas grandes crenças empenhadas em
uma luta sem tréguas, iria se tornar uma rotina permanente para
eles.
Contudo, na viagem de volta de Barcelona a Tânger, a bordo do
navio agora aliviado de sua carga, Ben-Atar de repente foi assaltado
por uma sensação de medo. Como se sentisse nu e exposto. Sentia
falta daqueles fardos de tecidos e sacos de condimentos, que sempre
lhe aqueciam o coração e lhe davam uma sensação de segurança. E
precisava dessa segurança especialmente agora, quando seu cinto e
seus bolsos estavam cheios das moedas e pedras preciosas que
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Abuláfia lhe trouxera. Embora Abu Lutfi estivesse ao seu lado, por
algum motivo, desde o momento em que haviam embarcado, o
antigo auxiliar lhe parecera distante, irritado, insatisfeito, sempre aos
cochichos com os dois marinheiros ismaelitas que, tomados por uma
espécie de renovado fervor religioso na viagem de volta, em vez de
dançarem nus na proa do barco, agora prostravam-se em orações
cinco vezes por dia. Portanto não era de surpreender que Ben-Atar
tivesse se esquecido completamente do tédio que lhe causava o
tagarelar daquele judeu que os acompanhara a Barcelona e sentisse a
sua falta. Em sua nova solidão, sentia saudades até mesmo da
criança retardada, lembrando-se com uma pontada no coração de
como ela engatinhava até ele, atada a um cordão, para espiar bem
dentro de seus olhos. Pensou que se a criança estivesse de novo
aconchegada em seus braços os marinheiros ismaelitas não iriam
atacá-lo durante o sono para roubar seu dinheiro e jogá-lo ao mar.
Porém, naquele momento, a menininha estava além dos Pirineus, e a
Ben-Atar só restava ordenar aos marinheiros que mantivessem o
barco próximo à costa, na esperança de que sempre houvesse
alguém nas proximidades que pudesse testemunhar contra eles caso
tentassem atacá-lo. Mas eles teimavam em desobedecer, dando como
desculpa o temor de encalhar num banco de areia. E Abu Lutfi não
só se recusava a intervir como até defendia com energia essa decisão.
Será que Abu Lutfi tinha conseguido depreender alguma coisa das
conversas em hebraico de Ben-Atar com Abuláfia, quando o jovem
mercador israelita fora promovido a sócio, enquanto o árabe tivera
que continuar a se contentar com as sobras? O temor de Ben-Atar
não cessava de crescer e, ao cair da noite, já se arrependia de ter
empreendido aquela viagem. Com a adaga escondida entre as
dobras do cafetã, sentou-se encolhido na popa do navio, mantendo a
custo os olhos abertos, à espera do ataque.
Abu Lutfi, por sua vez, embora sentisse o novo medo que afligia
seu amo judeu, nada fez para amenizá-lo. E verdade que não
conseguira entender as palavras que os dois israelitas haviam
pronunciado à beira da fogueira na velha estalagem romana, no
entanto seu faro apurado o havia feito pensar que, se o amo estava
temeroso não só de um confronto com os marinheiros mas também
com ele próprio, era porque se sentia culpado de alguma coisa em
relação a ele. De forma que quando Ben-Atar o chamou depois de
uma noite insone e lhe ofereceu uma grande moeda de ouro, ele a
recusou, entendendo que a moeda valia menos do que o seu perdão
por uma culpa pouco clara. A recusa do antigo servidor deixou Ben-
Atar atônito e convencido de que, quando o ataque viesse, Abu Lutfi
o abandonaria a seu destino. Assim, após uma segunda noite insone,
dando-se conta de que suas forças o estavam abandonando, decidiu
nomear como sócio também o ismaelita, de modo que daquele
momento em diante o ouro e a prata fossem tão preciosos para Abu
Lutfi como as pupilas de seus olhos.
Embora nessa viagem viessem unir-se a Ben-Atar dois sócios
para compartilhar seu lucro, este sentia que não estava voltando
para Tânger diminuído, pelo contrário, forte e engrandecido.
Quando o navio passou ligeiro pelo estreito de Gibraltar, e ao azul
calmo e tranquilo do Mediterrâneo veio misturar-se o verde agitado
do grande oceano, cujas ondas alcançavam os muros da sua cidade
natal, prestes a se materializar no horizonte, ele compreendeu como
era longo o braço que estendera rumo ao longínquo Norte.
Recordando a nova confiança e honestidade que irradiavam de
Abuláfia, teve a certeza de que, de agora em diante, o novo sócio do
Norte estimularia o novo sócio do Sul, e que o novo sócio do Sul iria
encantar o novo sócio do Norte, enquanto ele próprio,
permanecendo onde estava, estenderia sua proteção sobre ambos,
mantendo as rédeas numa tensão atenta e recebendo a sua devida
parte. Mal o contorno do grande rochedo quedava às suas costas
como um gigantesco monumento a recortar o céu, e já os invadia a
luz amarelada do sol africano, inundando as muralhas brancas da
cidade com um calor agradável. Os barcos de pesca de Tânger
rodearam o navio, e os pescadores, reconhecendo os recém-
chegados, lhes dão alegres boas-vindas no retorno de sua longa
jornada. Ben-Atar desembarca, beija a areia e dá graças a Deus por
tê-lo trazido de volta ao lar em segurança. No entanto, em vez de
seguir diretamente para casa, entrega sua bagagem a um dos jovens,
encarregando-o de anunciar à sua esposa e servos a sua chegada,
para que preparem uma celebração condigna, enquanto, por algum
p q p p g q p g
motivo, suas pernas o conduzem à casa de Abuláfia, agora esvaziada
dos últimos vestígios de seu ocupante. Ao abrir a porta de ferro com
a chave que trazia escondida, ocorre-lhe que naquele mesmo
momento, lá no norte longínquo, Abuláfia, vestido de negro, estaria
conduzindo a pequena enfeitiçada e a gorda ama a uma casa triste e
sombria em Toulouse, certamente rodeada por cruzes ameaçadoras.
E sente pena deles, pois a casa em que se encontra agora é inundada
pela luz e pelo calor e o assoalho é limpo. Num canto, bem dobradas
e arrumadas, estão as roupas de cama e os pertences da velha ama,
que ainda não sabe que jamais há de voltar para cá. Só dos objetos
da criança nada restou, como se ela nunca tivesse nascido.
Caminhou pelos quartos e olhou para os arcos do pequeno pátio
interno. A maioria das flores tinha murchado, pois não havia
ninguém para regá-las. E mais uma vez lembrou-se da esposa
falecida de Abuláfia e de sua criança que por ali havia estado a
lançar seus estranhos gemidos. Ele tinha em mãos uma autorização
assinada por Abuláfia para vender aquela casa, sobre a qual se
abateram desgraça e maldição, mas de repente sentiu pena da casa
vazia, que nessa hora agradável de verão revelava apenas encanto e
doçura. Acariciou os sacos de ouro e prata atados à sua cintura,
ocultos debaixo das vestes, e calculou o que faria com todo aquele
dinheiro. De repente teve a ideia de não vender a casa a um
estranho, mas sim de comprá-la para si próprio. Contudo, o que
haveria de fazer com a outra casa, que era bela demais para ser
usada como depósito para as novas mercadorias que Abu Lutfi lhe
enviaria do Sul durante o próximo ano? Talvez a emprestasse a seu
sábio tio como local de reunião para os seus discípulos, e assim
poderia vir a ganhar algum crédito por um ato meritório. Porém
Ben-Atar sabia muito bem que por vezes era difícil para Ben-Guiat
reunir para orar até mesmo o número mínimo de dez homens. Como
poderia ele encontrar de repente discípulos para uma segunda casa
de estudos?
Assim, sozinho e em paz naquele pátio inundado pela doce luz
do fim do verão, observando a pequena fonte a espargir sua água em
silêncio, Ben-Atar sentiu que os temores da jornada que acabava de
terminar tinham se transformado dentro dele num suave desejo. Por
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que não haveria de tomar uma Nova Mulher e instalá-la nesta casa?
A ideia de uma Segunda Esposa lhe vinha à mente de tempos em
tempos, e já havia imaginado que poderia ser a que conhecera por
um olhar furtivo, ou por ouvir alguém mencionar. Entretanto, sentiu
agora que a decisão fora tomada em seu coração. Sua riqueza
provavelmente continuaria a crescer, sua força ainda estava no auge,
e sua esposa já ia se debilitando. Vários parentes seus, e também
amigos judeus, e mesmo conhecidos muçulmanos, mantinham duas
esposas, até mesmo três, às vezes sob o mesmo teto. Sua idade agora
era de trinta e cinco anos e, se conseguisse ultrapassar o tempo de
vida de seu pai, que morrera aos quarenta, teria ainda alguns anos
diante de si. Era esse o momento exato de ampliar o mundo. E ao
chegar sua hora, quando seus filhos rodeassem seu leito de morte, a
despedida seria mais fácil, pois a fortuna que ele teria acumulado até
então seria dividida entre eles em termos fáceis e generosos.
Esse novo pensamento capturou de repente seu coração de tal
forma que, depois de trancar a porta atrás de si, não se apressou a
rumar para casa; entrou na sinagoga de Ben-Guiat, que interrompeu
sua refeição para lhe dar as boas-vindas. Ben-Atar, tendo inclinado a
cabeça e se curvado para beijar a mão do sábio tio e receber sua
bênção, estava a ponto de tirar algumas moedas do bolso como
doação aos estudantes pobres sentados em torno da mesa, quando
de repente lhe ocorreu que seria melhor primeiro contar a Ben-Guiat
sobre o novo desejo que lhe brotara no coração, e só depois,
dependendo da reação do tio, fixar o montante da sua doação. O
sábio ouviu com uma expressão sorridente, concordou com meneios
de cabeça e apenas perguntou se ele já conversara com sua Primeira
Esposa sobre o assunto. Como ele dissesse que não, o tio de imediato
se ofereceu para ir dar-lhe a notícia e receber sua aprovação, de
modo que a ideia não lhe fosse imposta. Quem sabe ela poderia até
mesmo ajudá-lo a escolher a mulher adequada, e assim haveria
alegria redobrada para todos.
Capítulo 4

A aurora surge suavemente, e o continente europeu desponta


por entre os últimos retalhos de neblina, encantando os passageiros
do velho navio patrulha com o verde intenso das margens do rio
Sena, que deságua preguiçoso no oceano. Pequenos pássaros
desconhecidos, de asas multicores, enchem o ar com os seus pipilos,
como se estivessem à espera desse navio. Tudo o que parecia
inescrutável e atemorizante à noite tornou-se claro e benigno à luz
do dia, que se faz cada vez mais radiante. A chama, que ardera
ameaçadora durante a noite, transformara-se numa tranquila voluta
de fumaça cinzenta, e o contorno de um pássaro gigantesco pairando
na escuridão por sobre o mar revelou ser apenas os destroços de um
navio naufragado que, a julgar pelas algas que o recobrem, decerto
jaz há muitos anos na embocadura do rio. Embora Abd el-Shafi
tivesse o cuidado de manter a embarcação bem afastada dos
destroços, para não se enredar em alguma parte invisível da nave
submersa, seu coração o arrastou para perto dela, pois os olhos
atilados haviam reconhecido, com grande emoção, os belos entalhes
feitos pelos selvagens vikings. Mesmo que não tivessem encontrado
o navio naufragado, ele não teria dúvida de que estava no rumo
certo para o estuário, mas a presença esverdeada daquele antigo e
vivo testemunho acrescenta doçura à certeza dessa viagem toda.
Quase gritou algo sobre isso ao proprietário do navio, mas se
conteve no último momento para não despertar a lembrança de seu
antepassado, o pirata cativo. Essa lembrança era capaz de solapar a
confiança que conquistara durante a viagem, também das duas
mulheres, que agora se sentavam na velha ponte de comando,
quietas e pensativas depois da dupla noite, fitando com curiosidade
e olhos bem despertos não só uma à outra, mas também a primeira
curva do rio, que então se aproximava. Bem agora, quando o navio
começa a penetrar no rio Sena, e a alegria inunda o espírito dos
passageiros e também da tripulação, cessa por completo o tilintar
dos pequenos guizos do negro adorador dos deuses. Depois de uma
noite repleta de atividade ele agora mergulha num sono profundo
no bojo do navio, enroscado como um polvo negro entre as ânforas
de óleo, os sacos de especiarias e as pilhas de lã de carneiro, junto
aos dois camelinhos que fitam preocupados o jovem que tanto os
ama, enquanto o ritmo regular da sua respiração o transforma no
coração secreto daquele navio patrulha muçulmano, vindo de tão
longe e lentamente conduzido para dentro das terras dos cristãos.
Abd el-Shafi, que já de vários dias teme a resistência da provável
corrente contrária do rio, é surpreendido não só pela pouca força
daquela corrente de verão, como também pela inesperada
generosidade do vento noroeste que sopra à popa, e cujas boas
intenções ele já pudera sentir pelas carícias em suas costas nuas.
Com uma inveja que parece estranha em um velho lobo-do-mar,
reflete que, se esses infiéis conseguem criar um tal equilíbrio entre
ventos e correntes a fim de facilitar o tráfico dos navegantes por este
rio, então, malgrado a sua fé inferior em um Deus desaparecido do
túmulo, podem se gabar de uma ligeira vantagem em relação aos
muçulmanos, atraídos que são pelo destino e pela fatalidade. Mas
não obstante a esperança suscitada pelo vento noroeste, a
preocupação não o abandona, pois nunca antes havia conduzido um
veleiro tão bojudo por um canal tão estreito. Agora, além disso, a
desenfreada libação noturna comprime a sua fronte como um círculo
de ferro, como se cada um dos incontáveis copos de vinho bordalês
sorvido com generosidade, à noite, tivesse se transformado em uma
agulha a verrumar o seu cérebro. Assim decidiu reduzir ao mínimo
possível qualquer palavra ou qualquer grito que pudessem atroar
sua cabeça dolorida, e preferiu dar as ordens em silêncio. Com a
ajuda de seus marinheiros amarrou-se no alto do grande mastro,
para poder sentir a vela em sua pele e reconhecer a direção precisa
dos ventos e, ainda, para avaliar melhor a distância segura a se
manter entre as duas margens do rio. Porém, para não perder o
contato com seus marinheiros, amarrou-os com cordas finas, e
puxando-as de leve podia transmitir suas ordens, como se estivesse
dirigindo não um navio mas uma enorme carruagem que levasse os
g g q
cavalos no seu próprio interior. Dessa maneira, em silenciosa
harmonia, venceu o navio as primeiras cinco curvas do rio.
Mas não são o rio e suas curvas que preocupam Ben-Atar e Abu
Lutfi. Depois de quarenta dias de navegação bem-sucedida pelo
oceano, estão de tal forma confiantes na habilidade de seu capitão
que o acreditam plenamente capaz, se necessário, de fazer o navio
subir sem problemas os degraus da casa de Abuláfia. É antes o
primeiro encontro com os francos que os preocupa, nem que seja só
para constatar se os impostos cobrados sobre as mercadorias vindas
do estrangeiro valem também para as terras remotas e selvagens, ou
se, ao contrário, prevalece neste caso uma generosa hospitalidade.
Porém, até as primeiras horas da tarde ainda os rodeia um silêncio
profundo e, com exceção dos passarinhos que voam alegremente em
torno do navio, não se vê vivalma, como se a passagem de um navio
magrebino pelas próprias artérias da terra dos francos não
despertasse a curiosidade de nenhum habitante local a ponto de
levá-lo a perguntar por suas intenções. Onde estão todos os novos
fregueses de quem Abuláfia falava com tanta esperança? É verdade
que o pequeno Samuel Elbaz, que desde o amanhecer ocupara seu
posto favorito no topo do mastro, bem mais alto que Abd el-Shafi, de
modo a enxergar além da muralha de árvores e vegetação, vai, o
tempo todo, observando coisas ocultas aos demais viajantes: as pás
de um moinho de vento, ou uma pastora conduzindo seus gansos
numa pequena colina, ou um camponês arando o campo, ou crianças
brincando ao lado de uma choupana com teto de palha cinzenta.
Contudo ainda reina silêncio, e parece que nenhum dos habitantes
notara aquele navio estrangeiro navegando candidamente, não longe
de suas casas. E se alguém por acaso erguesse os olhos e avistasse
acima da copa das árvores a ponta deslizante de um triângulo
branco, e sobre ela o vulto de um jovem cuja nudez se embaralha
com os tons de rosa do ar, não se apressaria em procurar o sentido
dessa aparição, mas simplesmente cairia de joelhos, persignando-se
e inclinando a cabeça em emocionada gratidão pelo advento do
milênio que se aproxima e que já o presenteia com essas antevisões
maravilhosas.
É exatamente assim que se comporta o jovem casal de
apaixonados: apesar de seu barquinho quase ter sido esmagado pela
proa do navio estrangeiro, não pareciam surpresos pelo encontro no
meio do rio, como se o surgimento repentino de um estranho navio
arredondado, cuja vela é um gigantesco triângulo de pano, e por
cujas cordas se movem, rápidos, ismaelitas seminus, fosse coisa
absolutamente rotineira. Assim, não fugiram dele, apenas se
deixaram ficar ali olhando, boquiabertos e sorridentes, como se não
fosse um navio de verdade que estava diante deles, e sim uma
imagem passageira, parte de um sonho que produz visões
fantásticas para o seu prazer. Entretanto, quando Ben-Atar os
cumprimenta do convés, os dois jovens são tomados de pânico,
como se o sonho tivesse se desfeito ao som daquela voz possante, e
em seu lugar surgisse uma realidade aterradora. Primeiro, tentam
escapar, mas seu caminho encontra-se bloqueado pelo grande navio.
Em seguida, logo tiram os chapéus e caem de joelhos, suplicando
que suas vidas sejam poupadas numa estranha língua de som
melodioso. Todavia, como ninguém a bordo sabe como lhes
responder para tranquilizar-lhes o espírito, pedem às duas mulheres
que apareçam no convés e acenem numa saudação pacífica, de modo
que eles percebam que o medo e o pânico estavam apenas em suas
mentes e nada tinham a ver com a realidade pacífica de todos
aqueles viajantes. Contudo, a visão de duas mulheres descalças, em
vestes coloridas, acenando para eles, não dissipou o pânico do jovem
casal, até o fez aumentar, e foi necessário chamar o rabino Elbaz a
fim de acalmá-los com algumas frases em latim, memorizadas ao
ouvir as orações de seus amigos cristãos na igrejinha de Sevilha, e
assim informar aos dois jovens apavorados que, mesmo não sendo
este um navio cristão, também não se trata de um navio anticristão.
Com isso, pouco a pouco, os dois namorados sossegaram. O sorriso
lhes voltou às faces e, fazendo com graça o sinal-da-cruz, puseram-se
em pé e cantaram uma melodia encantadora de uma oração em
latim, até que Ben-Atar não pôde mais resistir e os convidou a subir
a bordo. Primeiro hesitaram bastante, temendo que os estrangeiros
resolvessem sequestrá-los e até, quem sabe, cozinhá-los e comê-los.
Sua curiosidade, porém, levou a melhor, e terminaram por subir ao
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convés, embora sempre atentos para não se separarem um do outro.
Observando-os de perto, as pessoas a bordo admiram-se da sua
tenra idade, e o rabino Elbaz não se contém e tenta lhes perguntar,
por meio de gestos, se nestas terras o amor sempre floresce assim tão
cedo. Mas não parece que o jovem casal tenha entendido o
significado da pergunta, talvez por não saber que forçosamente deva
existir uma relação entre a idade de uma pessoa e sua capacidade de
amar. Por fim os convidaram a sentar na velha ponte de comando e
ofereceram-lhes para beber uma infusão esverdeada de ervas, que
eles tomaram num silêncio educado apesar do sabor estranho.
Foram-lhes oferecidos então figos secos da Andaluzia e limões
conservados em açúcar, que comeram com evidente deleite,
enquanto os passageiros e tripulantes os rodeavam, felizes com o seu
prazer. O rabino Elbaz sente-se particularmente atraído pelos dois,
em parte por ter ainda esperança de que alguma palavra ou frase em
latim possa provocar alguma reação da parte deles, mas também
porque o evidente amor que demonstram um pelo outro cativou seu
coração e o fez lembrar os dias perdidos do seu próprio amor. Num
esforço para prolongar a permanência dos dois, sugeriu que fossem
levados para baixo, ao porão, para admirar o par de jovens camelos.
Ben-Atar no entanto recusou, temendo que eles pudessem espalhar a
notícia do grande carregamento contido no bojo do navio aos
funcionários da alfândega, que poderiam montar uma emboscada
para eles rio acima. Desejoso, porém, de deixar uma boa impressão
para o encantador casal, e também de estudar a sua reação na
qualidade de possíveis compradores, consente em lhes mostrar
algumas peças de tecidos bordados, despedindo-os por fim, depois
de ter passado uma hora deliciosa em sua companhia, com a oferta
de um pouco de sal embalado em papel fino. Todavia, antes de fazê-
los desembarcar, Ben-Atar pergunta que tipo de cidade é Rouen e a
que distância se encontra, intuindo, pelos gestos, que não deve ficar
muito longe. Abu Lutfi, que permanecera afastado o tempo todo, de
cenho franzido, aproximou-se e pediu a Elbaz que lhes perguntasse
a que distância estavam de Paris. Embora o rabino hesitasse a
princípio em perguntar a pessoas tão jovens sobre um lugar tão
distante, pronunciou afinal o nome da cidade. Imediatamente o
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semblante do jovem casal se iluminou. Paris — repetiam esse nome
vezes sem conta, numa cadência cantante e com um ar sonhador,
indicando, reverentes, o leste, como se lá se encontrasse alguma
espécie de Jerusalém ou Meca. Não só sabiam a que distância
estavam dela, ainda que nunca tivessem estado lá, como era evidente
sua alegria por essa oportunidade de pronunciar em seu idioma ágil
o nome de um lugar cujo encanto se irradiava até mesmo àqueles
que nunca haveriam de contemplá-la. Mas enquanto Ben-Atar e o
rabino sorriam para o casal, encantados com a resposta que
receberam, Abu Lutfi continuava a fitá-los com uma expressão
sombria e cética, como se, apesar dos muitos dias e muitas noites
cansativos que já investira na viagem até aquela cidade remota,
continuasse a alimentar a esperança de que por fim se revelasse que
a cidade nunca existira.
Na verdade, num primeiro momento nem mesmo Ben-Atar
havia compreendido o entusiasmo do sobrinho por aquela cidade,
da qual havia repetido tantas vezes o nome ainda mesmo antes de
ter estado lá. Paris havia sido mencionada pela primeira vez durante
o segundo encontro de verão na Marca de Espanha, um ano depois
de a criança enfeitiçada ter sido devolvida aos cuidados do pai. Os
magrebinos, reunidos na baía de Barcelona no primeiro dia do mês
de Av, depois de ter deixado em segurança sua mercadoria no
depósito contíguo à taverna de Benveniste, carregaram os dois
barcos com madeira e os despacharam de volta para a África do
Norte. Em seguida, tomaram três cavalos e cavalgaram até a velha
estalagem romana, de modo a cumprir a promessa feita no verão
anterior de levar a ama de volta à sua terra. Porém, para sua
surpresa, Abuláfia chegou sozinho. A ama consentira em
permanecer mais um ano em Toulouse, já que qualquer tentativa
para substituí-la por alguma mulher da região, judia ou gentia, havia
apenas logrado despertar uma resistência angustiada por parte da
infeliz criança, que, na escuridão da sua alma, provavelmente tinha
imprimido no rosto tatuado da ama o espírito da mãe que a
abandonara. Entretanto, no início, Abuláfia teve dificuldade de
convencer a velha ama a renunciar ao arfar das ondas e ao aroma
dos laranjais imersos na límpida luz de bronze da costa norte da
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África, para permanecer confinada numa estranha cidade cristã com
uma criatura cujos desejos inescrutáveis só suscitavam piedade e
compaixão. De fato, os habitantes de Toulouse não pareciam aceitar
de bom grado a presença delas, e sempre que a ismaelita saía a
passear com a criança pelas vielas que rodeavam a fortaleza
envergando a túnica branca que Abu Lutfi tinha lhe trazido, e ainda
um fino véu de seda azulada a cobrir-lhe o rosto de modo a disfarçar
o grande anel pendurado no nariz, eles cerravam os olhos com força,
recitando passagens dos evangelhos cheias de ensinamentos
piedosos para que sua tolerância se fortalecesse diante da estranha
visão daquelas duas criaturas. Assim, para persuadir a ama a não
abandonar o posto, Abuláfia era obrigado a elevar constantemente
seu salário, transformando-a numa espécie de sócia menor,
remunerada com uma grande moeda a cada lua cheia, e uma
pequena moeda todos os sábados. Tinha mesmo concordado em
mudar-se da casa ao pé da fortaleza para o quarteirão dos judeus no
centro da cidade. E isso não só porque não havia em Toulouse um
quarteirão dos ismaelitas, mas também porque, na sua opinião, os
judeus, que desde sua mais tenra infância se aproximavam do
Maligno e se inteiravam de seus mistérios, decerto encontrariam
dentro de si alguma simpatia e compreensão por alguém que caíra
presa dos seus feitiços.
No final das contas, o esforço especial que Abuláfia fez com
vistas à permanência da ama foi compensador, não apenas em
benefício de sua própria paz de espírito, mas também no da
sociedade comercial: agora ele podia permitir-se longas ausências de
casa, vitais para ele, em parte porque achava difícil suportar a
desalentadora presença da filha, em relação à qual não alimentava
nenhuma esperança, e em parte porque sua natureza irrequieta e sua
rica imaginação o impeliam a sair em busca de novos e mais
sofisticados fregueses, que exigissem mercadorias refinadas, leves no
peso mas de grande valor, tais como pequenas adagas cravejadas de
pedras preciosas, peles de cobra ou rosários claros feitos dos dentes
internos do elefante. Sua alma já se cansara das carroças que
afundavam na lama sob o peso dos grandes sacos e ânforas que Abu
Lutfi arrastava do deserto. Assim, depois de conseguir sossegar a
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ama ismaelita e ligá-la à comunidade dos judeus, ele começou a
subir para o Norte, voltando-se primeiro um pouco para o Leste,
rumo ao reino de Borgonha, tomando a estrada que leva de Rodes a
Lion, passando por Viviers, e que constituía a rota comercial do vale
do Reno. Porém, logo percebeu que por ali não haveria de fazer
fortuna, pois o lugar estava apinhado de sagazes mercadores de
Bizâncio, que chegavam da Itália através de Toulon oferecendo uma
tal e tão esplendorosa variedade de joias originárias do verdadeiro
Oriente, o asiático — como coleções preciosas de imagens e
miniaturas —, que, em comparação, seu estoque de produtos
africanos parecia se tornar completamente desprovido de brilho e
cor. Por isso, mudou de direção e seguiu para o noroeste, rumo a
lugares esquecidos no coração da Aquitânia, seguindo até o ducado
de Guyenne e os pequenos vilarejos de Saintes, Angoulême e
Périgord, via Poitiers e Bourges, e daí de Lusignan até Limoges. Ali
veio a saber de um caminho através do vale do Loire, por onde
passava a fronteira com o reino capetíngio, e onde floresciam novas
cidadezinhas como Tours, Orleans, Chartres e Paris, que começavam
a atrai-lo.
Quando Abu Lutfi insistia em pedir a Abuláfia, durante seus
encontros de verão, que desenhasse o novo mapa de suas andanças e
neles a possível localização das comunidades que haveriam de
absorver com sofreguidão as novas mercadorias, mais leves e mais
valiosas, Abuláfia se confundia, e cada mapa que desenhava para
Abu Lutfi resultava diferente. Tinha especial dificuldade para fixar
de uma vez por todas o local exato dessa Paris, cidade portuária no
meio do curso de um rio, que tanto o atraía e entusiasmava,
malgrado ainda não a conhecesse. Não era de admirar que toda essa
confusão exaltada tivesse provocado a aversão e a suspeita do sócio
muçulmano pela cidade e seus arredores. Com finura e
discernimento este último havia intuído que, quanto mais o judeu
penetrasse para o Norte, tanto mais ele, o muçulmano, seria forçado
a internar-se no deserto, à procura das novas mercadorias leves e
valiosas que conquistassem o coração dos novos clientes. Mesmo
Ben-Atar, que todo o tempo buscava fazer a mediação entre seus
dois sócios, se perguntava por vezes até onde os levaria o espírito
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aventureiro de Abuláfia. Entretanto, ao contrário de Abu Lutfi, não
se opunha à nova tendência de seu sócio rumo ao Norte, não
exatamente por considerações comerciais, cujos benefícios ainda não
haviam sido comprovados, mas pela esperança de que, quanto mais
Abuláfia se distanciasse da África do Norte, mais fácil seria para ele
abrir mão de uma vez por todas da fantasia extravagante e infantil a
corroer sua alma desde que deixara a cidade natal para o exílio de
acumular riqueza suficiente para reunir força e coragem de retornar
à sua cidade e infligir sofrimentos a todos os que zombaram de sua
esposa e, entre eles, principalmente à sua mãe. Foi por isso que,
mesmo depois de ter cruzado os Pirineus e se encontrar num mundo
diferente e longínquo, preferia evitar a companhia de judeus, para
que não tentassem seduzi-lo com um novo casamento e com isso o
desviassem de seu plano de retorno e vingança. Assim, no primeiro
ano, Ben-Atar chegou a temer que o jovem viúvo voltasse, não por
pena ou saudade da menina que ficara sozinha, mas para revidar a
injúria dos que o obrigaram a enterrar sua querida esposa fora dos
limites do cemitério. Por isso Ben-Atar alegrou-se e logo concordou
com o conselho do seu sábio tio de viajar a Barcelona e devolver a
criança ao pai, pois, além da descoberta prazerosa de uma viagem
em pleno verão, e da importância do encontro pessoal com aquele
que distribuía a sua mercadoria, esperava também que o contato da
menina com o pai levasse Abuláfia a aceitar o seu destino, e até
mesmo pudesse distrai-lo do seu propósito insensato de retornar à
cidade natal tomado pelo espírito da vingança.
Distrair, pensou consigo, mas não mais que isso. Assim, quando
a mãe de Abuláfia, a irmã mais velha de Ben-Atar, caiu de cama, este
não se apressou a contar a seu sobrinho, e mesmo no encontro de
verão na estalagem romana houve por bem diminuir a gravidade da
doença, de modo que o filho enfurecido não corresse de volta ao seu
leito para envenenar-lhe a agonia com palavras candentes, cheias de
acusação e censura. Só depois do enterro, Ben-Atar despachou um
mensageiro especial, que durante muitos dias seguiu suas pegadas
pelas estradas da Provença para levar-lhe a notícia da morte da mãe.
Tal como esperado, a notícia foi recebida sem lágrimas e até mesmo
com um leve sorriso. Foi então que Ben-Atar pediu a Abuláfia que
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voltasse, ainda que para uma curta visita, para receber sua parte no
testamento da mãe, e até, quem sabe, reconciliar-se com os parentes,
sobre os quais, na sua dor cega, ele fizera recair sua própria culpa.
Porém Abuláfia, mesmo tendo perdido a doce semente da antevisão
de sua grande vingança, continuava muito distante de qualquer
intenção de se reconciliar com quem quer que fosse. Por isso, pediu
ao mensageiro que transmitisse ao tio a autorização para vender a
sua parte na herança da mãe e o pedido para que trouxesse consigo
o que fosse apurado, no próximo encontro de verão.
O coração de Ben-Atar estava cheio de compaixão pela solidão
do sobrinho, ao ver que a mistura de culpa e amor pela esposa
chegava ao ponto de lhe perturbar o juízo. E já começara até a se
perguntar se havia feito a coisa certa ao tirar o sobrinho do porão do
navio destinado à Terra Santa, pois talvez a santidade daquela terra
ancestral tivesse podido, quem sabe, extrair um pouco do veneno
que lhe corroía a alma, e trazer certa ordem à confusão da sua mente.
Sobretudo, lamentava a pressa com que obedecera a seu sábio tio em
devolver a criança ao pai, pois sua presença deformada repelia os
casamenteiros e mantinha viva a lembrança dolorosa da mulher com
os pulsos e os pés atados. Uma lembrança ainda viva na memória de
todas as pessoas presentes na praia naquela noite terrível, incluindo
o próprio Ben-Atar, que fora incapaz de desviar os olhos da
extraordinária beleza daquela mulher nua, estirada na areia. Desde
então Ben-Atar não conseguia impedir a si mesmo de pensar, vez
por outra, que, se ele, que a vira no auge da degradação, não pudera
até aquele momento esquecer sua beleza, o que dizer do marido?
Contudo, Ben-Atar também reconhecia que a solidão e a viuvez
do jovem sócio infundiam um impulso especial aos negócios: um
comerciante sem uma esposa que o levasse de volta para casa sentia-
se atraído por cada nova cidadezinha, mesmo a mais remota, na
esperança de encontrar ali um eco da imagem amada. Alcançava
assim lugares aos quais nenhum outro comerciante chegava, e, ainda
que a mercadoria oferecida fosse estranha e supérflua, a simples
oferta já estimulava a compra. E dessa maneira foi prosperando a
demanda pelas mercadorias magrebinas na Provença, a ponto de a
cada verão os sócios serem obrigados a acrescentar mais um navio
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ao comboio que partia de Tânger. E se oito anos antes do ano mil, no
primeiro encontro, quando trouxeram a criança e sua ama, um navio
bastava, agora, quatro anos depois, cinco navios a custo eram
suficientes. É verdade que não eram apenas a energia e a
inventividade de Abuláfia que haviam contribuído para esse
aumento, mas também a expansão da população cristã, pois, à
medida que o prodigioso milênio se aproximava, os moribundos
tratavam de adiar o trespasse, e os bebês, de apressar sua vinda à luz
para garantir por antecipação a presença naquele ano em que a
ressurreição maciça dos mortos era dada como certa.
No entanto, apesar do rápido enriquecimento dos três parceiros,
ou talvez por causa dele, a solidão de seu sobrinho preocupava Ben-
Atar. Ele teimava em sua obstinação de buscar entre as inumeráveis
narrativas e projetos do sobrinho o roçar das saias de uma mulher.
Assim, ao cair da noite do nono dia do mês de Av, quando Abu Lutfi
amarra entre as pernas com um cordão sua bolsa de pele de
leopardo e coloca a ponta do cordão entre suas partes íntimas,
enrolando um turbante na cabeça para iludir quem tenha a intenção
de atacá-lo, ajoelhando-se a seguir para se prostrar em elegantes
movimentos em direção a Meca, quando lamenta, em suas orações,
estar no extremo Ocidente enquanto seu coração pulsa no Oriente,
mas sem culpa ou sofrimento, e uma vez terminada a prece, monta
em seu cavalo e desaparece nos últimos raios do pôr-do-sol na longa
trilha que serpenteia pela montanha até Granada, Ben-Atar começa a
descrever para seu querido sobrinho e sócio, com cuidado e
suavidade, numa linguagem que entremeia dois idiomas, o terrível
deserto de solidão a que sua obstinada viuvez poderá arrastá-lo. Mas
naquele verão do ano de 4755 da criação do mundo pela contagem
dos judeus, ano 385 da Hégira segundo os maometanos, cinco anos
antes do milênio dos cristãos, depois que as lamentações pela perda
do templo duas vezes destruído já haviam suavizado e adoçado a
alma dos dois judeus, e a seus pés, nas cinzas da relva seca do fim do
verão, as chamas da fogueira haviam se tornado um aromático olho
de Ciclope, Abuláfia envolveu a cabeça num xale e a repousou numa
pedra, estendeu as pernas e, ainda afagando a bolsa de moedas
escondida, que lhe fora dada algumas horas antes como pagamento
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pela sua dedicação por todo o ano que terminara de passar, fixando
os olhos no resplandecente mar de estrelas lá em cima, começou de
novo a falar sobre Paris. Desta vez, porém, não só sobre a cidade,
que ainda não conhecia, mas também sobre uma nova mulher que
vivia ali.
Aparentemente, na franqueza simples de seus pensamentos, não
fora em vão que a velha ama se obstinara na mudança de Abuláfia
para a rua dos judeus, aos quais seu patrão pertencia por origem e
fé. Só assim, de fato, o comerciante magrebino pudera ter a
oportunidade de estabelecer contato com outras ruas de judeus: em
Tour e Limoges, em Angoulême e Orleans, em Chartres e talvez até
em Paris. E nem sempre eram ruas dignas do nome. Por vezes,
apenas estreitos becos; por vezes, nada mais que a entrada de
alguma ruela, ou uma única casa, ou até mesmo um único quarto
onde vivia um único judeu. Por causa disso, os olhos de Abuláfia se
acostumaram a julgar os lugares não só pelos reis, cavaleiros e
marqueses que os governavam, mas também pelos locais onde
habitavam os judeus.
Aos poucos Abuláfia foi sendo atraído de volta para o seu povo,
do qual havia anos se distanciara por temer que tentassem lhe
arranjar uma esposa, comprometendo dessa forma a ilusão de um
vingativo retorno à sua cidade natal. Porque era disto que se tratava
— como já havia admitido para si mesmo —, de uma ilusão, para a
qual não era de temer que algum obstáculo se apresentasse, pois que
é da natureza da ilusão pertencer por inteiro a quem a cria. Assim,
depois de ter se mudado para a rua dos judeus em Toulouse, e ter se
dado conta de que por ali não só havia quem pudesse trocar uma ou
duas palavras em árabe com a ama, como também quem oferecesse
um sorriso e mesmo um afago à criança enfeitiçada, seu coração
abrandou-se e, ao retomar de suas jornadas, ele se reunia às
congregações dos fiéis, onde Abuláfia não só rezava, ainda com
revolta no coração, pela memória da sua esposa, como também
aproveitava para recolher preciosas informações sobre as estradas do
Norte.
Isso porque os judeus, até mesmo aqueles que nunca se
afastavam de sua cidade, sempre sabem alguma coisa a respeito dos
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judeus de outras cidades, assim como sempre sabem alguma coisa
sobre os gentios que até mesmo estes ainda não sabem — por
exemplo, que os devotos do milênio que se aproximava iriam sentir-
se especialmente atraídos pelas mercadorias que vinham do deserto,
objetos grandes e pequenos do tipo que decerto fora utilizado mil
anos atrás por Jesus e seus seguidores na Terra Santa. Os bons fiéis
desejavam propiciar em suas casas um ambiente que fosse familiar
ao filho de Deus, que em breve desceria dos céus com seus
apóstolos. Assim, o astuto Abuláfia revelou-se capaz de se adaptar à
nova situação, e não mais viajava de Toulouse para Bordeaux, nem
de Limoges para Bourges, más sim até certo judeu, que o
encaminhava a um outro, e cada um deles o aconselhava não sobre
os novos tipos de mercadorias, como também sobre como elevar os
preços do estoque antigo. Foi nesse vaivém de conselhos judaicos
que soube da existência, numa estalagem de Orleans, de uma
mulher, a senhora Esther-Míriam, uma viúva sem filhos, que fora
casada com um estudioso dos livros sagrados falecido alguns anos
antes em Worms, chamada de Vermaíza pelos judeus, uma pequena
cidade à margem do Reno, na região de Ashkenaz. (N.T.: O país que
é hoje a Alemanha, e seus habitantes. Atualmente empregado para
designar os judeus originários da Europa, denominados
ashkenazitas). Depois da morte do marido fora convidada pelo
irmão, o senhor Yechiel Levinas, comerciante de joias e pedras
preciosas, a ir residir com sua família em Paris, tanto para aliviar o
peso de sua solidão como também para que pudesse ocasionalmente
auxiliá-lo, com o seu bom senso, em missões secretas às cidades e
aldeias próximas.
Parece que o fato de ela ser viúva e sem filhos, e de tê-la
conhecido na atmosfera um tanto permissiva de uma estalagem à
beira da estrada, e, ainda, sobretudo, por ela ter cerca de dez anos a
mais que ele, permitiu que Abuláfia se entregasse por inteiro a uma
longa conversa que acabou por levá-lo a uma profunda ligação, de
que ele não mais se imaginava capaz. Assim, à tardinha, a partir da
troca de algumas palavras amáveis antes da refeição noturna com
aquela mulher delicada porém digna, viúva de um emérito
estudioso, que embelezava sua fala com termos ou expressões na
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língua sagrada, aprendida com o falecido marido, entremeando-as
com sensatas observações comerciais, surgiu uma absorvente
conversação que se prolongou até a meia-noite. Foi, contudo, uma
conversa lícita, de acordo com as leis rabínicas, em respeito ao
estado de viuvez de ambos, ainda desconhecidos um para o outro,
mas, não obstante isso, com algo de ousado e atrevido.Então,
quando a cruz no campanário atravessou a lua — cuja cor lembrava
os grandes queijos, especialidade das aldeias da região — e
lentamente a deixou cair atrás da igreja, fazendo com que a sala
onde estavam os dois ficasse imersa em profunda escuridão,
Abuláfia sentiu um agradável calor espalhar-se pelo corpo. Pela
primeira vez conhecia uma pessoa que levava a sério a velha história
da sua dor e humilhação, ouvindo com manifesta simpatia o sonho
de vingança que ainda borbulhava nele, mas igualmente repelindo
de maneira firme e categórica qualquer sugestão de maldição ou
bruxaria que porventura tivesse sido infligida à menina.
Nem maldição nem bruxaria, pensou Ben-Atar; o que seria
então? Mas Abuláfia também não conseguia responder. Por
enquanto conseguia apenas falar sobre o espanto e a gratidão que o
invadiram ao final daquela conversa. "Finalmente alguém que traz
paz à minha alma", pensou consigo ao aspirar o desconhecido
perfume da mulher, a quem ele já começara a se habituar e afeiçoar.
E assim como uma criança que lê os lábios da mãe em busca do
significado preciso das palavras, ele hauria as palavras dessa mulher
miúda e esguia, articuladas na língua dos francos, mas lenta e
claramente, com citações da Bíblia e dos escritos dos sábios. Era
como se, durante aquela conversa, a feminilidade que a envolvia lhe
tivesse sido retirada, não, queira Deus, para assumir qualquer
postura masculina, mas sim para revelar a sua humanidade básica e
fundamental, verdadeira fonte de onde jorram os sentimentos.
A senhora Esther-Míriam soubera acariciar com seus dedos alvos
e suaves, e gentil sabedoria, a chaga purulenta do ódio que Abuláfia
alimentava contra a mãe. Como o sobrinho de Ben-Atar poderia
imaginar que aquela mulher tão racional e equilibrada pudesse se
sentir fortemente atraída pelo homem seduzido, postado diante ela?
Talvez, imaginava Abuláfia radiante, o calor que começava a abrasá-
g q
lo proviesse não só das palavras sensatas da mulher, mas também da
centelha do desejo que nela começava a arder e se propagar. Por três
ou quatro vezes nos dez anos de sua viuvez, a senhora Esther-
Míriam se vira arrebatada por uma atração repentina como essa,
porém sempre conseguira conte-la com decisão, talvez porque os
homens por quem se apaixonara fossem não só personagens
eminentes, mas casados. Desta vez ela ficara surpresa com a
juventude do homem que lhe despertara o interesse, como se não
fosse o desejo por um estranho que brotara dentro dela, mas sim por
todos os filhos que ela não conseguira gerar, e que agora teriam se
reunido neste jovem judeu meridional, com seus caracóis negros e
sua pele morena, fascinante e sedutor à luz vacilante das velas e da
lua, naquela noite.
É verdade que Abuláfia se acostumara nos últimos anos a ser
objeto de paixões efêmeras de mulheres, em geral estrangeiras,
paixões que surgiam em tavernas ou praças de mercado, às vezes até
mesmo nas estradas. Embora ele viesse do Sul, as mulheres
descobriam na sua melancolia um perfume do oriente, onde havia
vivido e sofrido o amado Filho de Deus. De fato, apesar de Abuláfia
ter se esforçado, por segurança, para adaptar sua aparência aos
lugares aonde ia negociar no decorrer desses anos na Europa cristã,
ainda assim era possível identificar alguns traços da sua origem
estrangeira na maneira de dispor os cachos ou aparar a barba, ou de
escolher e combinar as cores de suas vestes, ou mesmo na forma de
prender sua capa. Como sua prosperidade ficava patente pela
qualidade de seus trajes e pertences, essas paixões se inflamavam
com particular intensidade. Contudo, tinham vida curta, já que
Abuláfia se empenhava em cortá-las a tempo, de modo a não se
deixar envolver por um fogo excessivo, não antes, porém, de lhes
vender várias mercadorias, que suas amantes nem tencionavam
comprar. Assim foi que se acumularam, em não poucos lares da
Provença e da Aquitânia, sacos de condimentos amarelos que
bastariam para temperar não só a última ceia de seus proprietários,
como até mesmo as ceias dos herdeiros de seus herdeiros.
Todavia, naquela noite de inverno em Orleans, apesar de tocado
pelas perguntas sensatas e pelos finos comentários daquela mulher
p p g p q
mais velha, Abuláfia ainda evitou qualificar como amor o sensível
interesse que ela demonstrava pelos seus pensamentos e suas ações,
sem deixar de indagar acerca da personalidade de seus sócios e
amigos. Até de mim?, perguntou Ben-Atar num sussurro, com a
cabeça inclinada e um riso surpreso, seus olhos comparando o mar
de estrelas cintilando lá em cima com o tronco incandescente que se
desfazia em fagulhas nos restos da fogueira. Veio a saber, portanto,
que a mulher havia se interessado não só por ele, como também por
Abu Lutfi e até mesmo por Benveniste, e pelos encontros de verão
que mantinham. Ficara comovida ao ouvir, por exemplo, sobre a
confiança total com que Abuláfia e também Abu Lutfi conferiam a
Ben-Atar a função de único árbitro da distribuição dos lucros
auferidos no ano anterior.
Assim, à véspera do nono dia do mês de Av, Ben-Atar ficou
sabendo pela primeira vez do encontro de Abuláfia com essa mulher
perspicaz, porém ainda não podia imaginar quanto esse encontro
acabaria sendo decisivo e fatal para o seu destino. Tampouco
poderia saber que um belo dia ele teria que comprar um grande e
velho navio patrulha, carregá-lo com as mercadorias rejeitadas havia
dois anos, separar suas esposas de seus filhos e de seus lares, e levá-
las numa perigosa e extenuante viagem desde o Norte da África até
o coração da Europa, na companhia de seu sócio e de um rabino de
Sevilha, especialmente contratado para confrontar a sua sabedoria
contra a dela. Naquele verão, que apenas cinco anos separavam do
primeiro milênio, quando ouviu pela primeira vez de Abuláfia o
relato de seu encontro com a senhora Esther-Míriam, Ben-Atar
interessou-se unicamente por suas palavras e perguntas, e não pelo
seu aspecto físico e atrativos femininos. Mas ao defrontar com a
sincera exaltação que perpassava o relato do sócio, o qual nem
sequer escondera a intenção de aceitar o convite dessa nova mulher
para visitar sua família em Paris, Ben-Atar começou também a
interessar-se pela aparência dessa dama vinda das terras do Reno e
surpreendeu-se ao saber que se tratava de uma mulher miúda,
delicada e elegante, com o cabelo preso na nuca por um coque,
talvez para melhor revelar seu rosto inteligente e seus olhos claros.
Claros? Claros como?, pensou Ben-Atar. E quando Abuláfia
descreveu a precisa tonalidade de azul dos olhos da viúva e do louro
de seu cabelo, comparando-os poeticamente à cor do oceano que
lambe as areias douradas das praias da África do Norte, a alma de
Ben-Atar estremeceu, não apenas por sentir o amor arrebatado de
Abuláfia por essa nova mulher, mas porque pela primeira vez
compreendeu que poderia haver judeus neste mundo cujos
ancestrais, e até mesmo os ancestrais de seus ancestrais, jamais
haviam pisado a terra de Israel.
Quem sabe se a curiosidade e a vontade de sentir de perto
aqueles judeus, que poderiam ter algum sangue viking ou saxão nas
veias, não tenha também motivado, sem que ele se desse conta, a
viagem de Ben-Atar que agora, no estuário do rio onde se misturam
mar e continente, começava a ganhar uma doçura especial. O rio
Sena dava as boas-vindas a esse navio que vinha de tão longe, e o
carregava no colo como um pai carrega o filho. É verdade que
estavam em pleno verão, e não havia como saber a profundidade do
rio, ou se havia algum perigo submerso para o casco, no entanto o ar
doce e límpido que os rodeava falava apenas de afeto e esperança.
Desde a aurora já haviam percorrido sem notar, apesar das muitas
curvas, uma distância considerável. A noite ia vagarosamente
tomando o céu vermelho, que empalidecia lentamente. No seu país,
o anoitecer era súbito, ao passo que aqui o pôr-do-sol perdurava,
lutando para não morrer. Já há duas semanas Abd el-Shafi vinha
notando o alongamento do crepúsculo, porém no mar o efeito não é
tão espetacular como no rio, onde as árvores lançam na água suas
silhuetas de luz avermelhada. Desde o amanhecer o capitão está
amarrado ao mastro principal e, apesar de suas preocupações,
desfruta bastante dessa forma incomum de pilotar, puxando os fios.
Conquanto Ben-Atar e Abu Lutfi fossem de opinião de que já era
mais que tempo de parar e lançar âncora, o prazer de navegar do
capitão predominava sobre o seu temor, e ele prosseguia pilotando o
navio rio acima, mesmo na escuridão, confiando nos olhos jovens do
filho do rabino, que continuava firme no topo do mastro para ser o
primeiro a gritar "Rouen!".
À medida que a escuridão se aprofunda em torno, limitando a
visão do garoto, sons novos e desconhecidos se elevam do rio. E
quando ouvem ao longe o dobre abafado do sino da igreja de Rouen,
eles compreendem que os dois jovens apaixonados, que tinham
desembarcado do navio havia algumas horas, já haviam anunciado a
sua presença, pois de repente o rio se encheu de barquinhos, a
cercarem o navio como se quisessem fazê-lo prisioneiro.
Capítulo 5

Durante a noite não houve nenhum contato entre os barcos de


Rouen e o navio desconhecido, como se anfitriões e visitantes
relutassem em deixar que a emoção do encontro se dispersasse na
escuridão. Em silêncio, os barcos permaneciam onde estavam,
rodeando o veleiro árabe num semicírculo, e não ficava claro se com
isso desejavam bloquear-lhe o caminho ou protegê-lo. De vez em
quando um barco mudava de posição sem motivo aparente, e o leve
mergulho dos remos na água soava claro e nítido no ar cálido da
noite. Por volta da meia-noite, Ben-Atar tentou deter o fluxo de seus
pensamentos entrando na cabine de sua Primeira Esposa. Apoiou a
cabeça entre as pernas dela, esperando que o sono afastasse sua alma
das preocupações. Porém a alma se recusou a partir e obrigou-o a
subir de novo ao convés e buscar Abd el-Shafi e Abu Lutfi, que
dormiam pacificamente sobre a vela principal dobrada num canto,
enquanto o idólatra negro, sentado a seus pés, lhes vigiava o sono.
Ben-Atar os observou com inveja. Suas preocupações não eram as
deles, refletiu, aguçando os ouvidos para os barcos que cercavam o
navio, tentando discernir suas intenções a partir de suas frases
melodiosas.
Por fim despertou os dois árabes para avisá-los em voz baixa de
sua decisão. Até que as verdadeiras intenções do povo de Rouen
fossem conhecidas, e também para não confundir a mente desse
povo, seria melhor que todos a bordo aparentassem partilhar da
mesma fé. Um ligeiro sorriso ilumina os dentes brancos do capitão.
Como poderiam os maometanos transformar-se em judeus no lapso
de uma noite? Nem até a aurora nem até o dia do Juízo Final,
murmurou Ben-Atar consigo mesmo, mas explicou pacientemente a
seus companheiros que, enquanto o califa Umayad Hashem II, que
se supunha protegê-los, mantivesse obstinadamente a fé islâmica,
todos os seus súditos deviam, em tempos difíceis, unir-se àquela
mesma fé. Até mesmo o rabino Elbaz?, duvidou Abu Lutfi. Claro, foi
a resposta resoluta: até o rabino e o filho do rabino.
Para o filho do rabino, parecia que a mudança já ocorrera havia
bastante tempo. No momento em que, junto com seu pai, pusera os
pés no balouçante veleiro no porto de Cádiz e sentira o suave
embalo do convés, sua alma compreendera que aquele navio haveria
de devolver-lhe todo o carinho que sua mãe não havia podido lhe
dar. Assim, apegou-se ao casco da nave quase como se fosse o colo
perdido da sua infância. Como o terrível enjoo que tinha afligido o
rabino durante os primeiros dias de navegação e o tremendo estado
de confusão no qual ele havia mergulhado o fizeram perder o
contato com o filho, o menino, assustado, fora procurar proteção
junto aos marinheiros que, no mesmo instante, o mandaram escalar
o mastro tanto para mantê-lo ocupado como para testar-lhe a força.
E fora ali, no alto do mastro, que o jovem viajante começara a
crescer. Daquela grande altura vinha às vezes ao menino que
prendia o mastro entre as pernas desnudas e magricelas a impressão
de que era ele o verdadeiro capitão, e aqueles que se atropelavam lá
embaixo no convés eram seus servos. Foi graças a esse devaneio que
logo ganhou o afeto da tripulação, que o adotou como mascote.
Ele, por sua vez, logo adotou os que o haviam adotado:
rapidamente incorporou os costumes dos marinheiros, e de tal forma
captou as nuances de sua linguagem e de suas maneiras que, com a
calça curta e o turbante vermelho, mais parecia ter vindo ao mundo
da velha barriga do navio patrulha do que do ventre de sua mãe em
Sevilha. Mas mesmo assim o rabino estava satisfeito com ele. Ainda
não se esquecera das censuras de seus parentes, que imploravam
para que lhes deixasse o orfãozinho, para não expô-lo ao tédio e aos
perigos da longa jornada. Porém o rabino insistira. Depois de ter
suportado a agonia e a morte de sua esposa, não estava disposto a
sofrer mais perdas. E, enquanto observava os braços e as pernas do
menino ficarem mais musculosos à luz do sol e do céu azul, sua pele
tornar-se morena e macia, e o entusiasmo feliz com que
compartilhava do trabalho a bordo, percebeu que acertara ao
obedecer aos seus próprios sentimentos, e não aos da família e dos
amigos. Uma vez por dia, entretanto, à hora da oração do anoitecer,
g p
ele arrancava com firmeza o pequeno marinheiro das cordas e do
leme e o trazia subjugado à velha ponte de comando, instalando-o
entre as duas esposas de Ben-Atar, e ignorando-lhe o olhar
indignado para a proa que fendia as águas acobreadas do mar,
entoava com ele dois ou três salmos, de modo a não esquecer que
para além da grande extensão de água havia a terra firme.
No início o rabino pensara em estudar com o filho alguns textos
talmúdicos simples, mas uma vez que as emoções do cruzeiro
marítimo despertaram nele poderosos sentimentos poéticos, adiou
os estudos metódicos até que estivessem de novo em terra. Assim,
não era de admirar que quando Ben-Atar o despertou de seu sono e
lhe pediu que antes do amanhecer tratasse de dissimular sua
verdadeira fé, a fim de não confundir a mente do povo local com a
presença de duas religiões estranhas, e provavelmente
incompatíveis, convivendo em um único navio, o rabino não tenha
manifestado nenhuma estranheza diante do surpreendente pedido.
Os versos que compusera nos últimos dias haviam suavizado sua
personalidade e o tornado tolerante, e contanto que não exigissem,
Deus o guarde, que comesse alimentos proibidos, estava pronto para
enrolar a cabeça no estilo de Abu Lutfi e disfarçar-se de muçulmano,
até que ficasse claro o que os habitantes de Rouen reservavam para
eles.
Todavia, às primeiras luzes da manhã Rouen parece lhes
reservar apenas um insistente e festivo ressoar de sinos, que inunda
o espaço do pequeno porto com o seu alegre repicar. Será um
chamado para reunir os fiéis para a missa de domingo, ou talvez,
antes, um estímulo para que os tripulantes dos barquinhos abordem
a nave estrangeira, a fim de sondar-lhes as intenções? Seja como for,
Abd el-Shafi dá ordens para que se enfeite o mastro com as
bandeirolas coloridas, que no passado tinham sido hasteadas nas
batalhas contra as esquadras cristãs. Como sinal de paz, também
baixa uma grande escada de cordas, para incentivar os vigias
noturnos do navio a se transformar nos hóspedes da manhã. Por fim,
alguns homens armados sobem a bordo, chefiados por um dos
dignitários locais, que fica espantado não só pela grande distância
percorrida pelo navio magrebino, como também pela originalidade
p p g p g
da sua forma. Aparentemente, ali no porto de Rouen, havia grandes
entendidos em ciências náuticas — senão, como explicar o longo e
minucioso interrogatório do chefe acerca da construção e das
manobras da grande vela triangular, a vela árabe de estilo latino, que
rende mais sozinha do que as numerosas velas pequenas e
retangulares de um navio cristão? Finalmente, o homem desceu com
seus comandados para inspecionar o porão do navio e ficou
estupefato com os dois camelinhos que, acariciados pelos cristãos,
aumentaram tanto seu tremor que o escravo teve de aquietá-los por
meio de um chamado quase gutural. Em toda a sua vida esses
cristãos de Rouen jamais haviam posto os olhos em semelhantes
animais, dos quais Ben-Atar começou a decantar as qualidades,
louvando-lhes em especial a extrema parcimônia no consumo de
água e comida. Depois lhes ofereceram a costumeira visita guiada —
cheirar as especiarias, apalpar as peles e tecidos e testar vezes
seguidas o fio das adagas com a ponta do polegar, o qual por fim era
mergulhado em óleo de oliva. Foram a seguir convidados a saborear
figos, tâmaras e passas, para concluir com uma pitada de sal branco,
que lhes foi dado de presente, embalado em papel fino.
Foi só quando voltaram a subir ao convés e olharam em torno
para ver se ainda restava alguma coisa a ser examinada naquele
maravilhoso navio que espiaram cautelosamente as duas mulheres.
Às pressas, ambas velaram seus rostos sorridentes e enrubescidos. O
chefe fez a elas uma profunda reverência, enquanto o mercador
judeu, incapaz de se conter, pediu ao rabino, que servia de tradutor
do árabe para a mistura de latim e franco dos homens de Rouen, que
convidasse os visitantes a examinar o estoque de tecidos, dos quais
eram feitas as túnicas das mulheres. Contudo, o senhor de Rouen
ficou mais impressionado com as próprias mulheres do que com
suas vestimentas, e assim o convite para negociar foi recusado com
polidez, dando como motivo a missa a que logo mais teriam que
assistir. Em vez disso, solicitaram ao rabi Elbaz que escrevesse num
pergaminho especial, com letras latinas, o nome de todos os
viajantes e animais embarcados, e o status pessoal de cada qual em
relação aos demais.
Só depois que o dignitário de Rouen deixou o navio, não sem
antes insistir cordialmente, porém firme, para que os viajantes lhes
dessem a honra de uma visita à cidade e sua igreja, foi que Elbaz
cochichou para Ben-Atar que resolvera, por conta própria, registrar a
Segunda Esposa como irmã da Primeira, para evitar fantasias
desnecessárias entre os cristãos, que a aproximação do milênio
impregnava de uma religiosidade excessiva. De início Ben-Atar ficou
chocado. Isso não seria uma traição ou mesmo uma fuga do
princípio em nome do qual a expedição fora concebida? Entretanto,
depois de entender as razões da prudente cautela do rabino, disse
para si mesmo que não havia razão para desesperar de receber uma
ajuda daquele homem. Embora o mar o tivesse transformado num
poeta, a terra firme se encarregaria de lhe restaurar o bom senso.
Assim, com a situação pessoal e religiosa especialmente
adaptada para empreender a visita à cidade desconhecida, e em
particular para a participação na cerimônia de uma religião estranha,
doze viajantes desembarcaram, deixando apenas Abu Lutfi e um
marinheiro no velho navio patrulha. De fato, a fim de garantir maior
segurança para os judeus, desejosos de ocultar sua verdadeira
identidade, e de tornar o disfarce mais plausível, Abd el-Shafi
insistira em acompanhá-los à terra, escoltado por quatro marinheiros
e pelo jovem escravo. Desse modo, despojado de seus andrajos e
vestindo uma túnica branca que lhe realçava o negro de ébano do
rosto e das mãos, ficava o jovem escravo impedido de se aproveitar
da ausência do capitão para escapar para terra firme, pela qual se
sentia irresistivelmente atraído.
Depois de tantos dias embalados pelas ondas do mar, a solidez
do chão calçado de pedrinhas provocava uma ligeira vertigem na
cabeça dos viajantes. De início, procuraram apoiar-se uns aos outros,
nem que fosse apenas para tentar acalmar o medo causado pelo
bimbalhar dos sinos. Suaves e reconfortantes à distância, a bordo do
navio, faziam tremer o ar cinzento com seu som ameaçador ali entre
as ruazinhas de Rouen. Além de ruas estreitas e tortuosas, a cidade
também parecia se desmerecer aos olhos dos visitantes norte-
africanos pelas casas pequenas e miseráveis, cujos muros desnudos,
de pedra cinzenta, encerrando jardins que primavam pela ausência
p j q p p
de canteiros de flores e de árvores ornamentais, os impressionaram
muito. Apenas raras vezes detinham os olhos em alguma viga de
madeira grossa e escura encimando 4uma pequena porta, como que
querendo acrescentar um pouco de solidez e graça a uma habitação
humilde.
Nesta hora matinal, em que a maior parte dos habitantes da
cidade já se encontrava reunida para as orações, os viajantes,
deixados sozinhos, perderam-se um pouco pelas ruas desertas, até
que um menino, que de início, no seu estupor, ficara pregado ao
chão ao ver os estrangeiros, correu a anunciar-lhes a chegada aos
fiéis assim que conseguiu recobrar os sentidos. De imediato, dois
monges vieram ao encontro dos viajantes, dirigindo-lhes palavras
cordiais num latim claro e límpido. E eis que para glória e alegria de
Cristo, os respeitáveis infiéis tomarão parte na cerimônia,
anunciaram aos recém-chegados, abrindo-lhes de par em par as
sólidas e amplas portas da igreja.
Em comparação com as espaçosas mesquitas a que os visitantes
estavam acostumados na África do Norte e na Andaluzia, com seus
sofás macios e suas paredes adornadas de arabescos em tons de azul,
a igreja de Rouen pareceu-lhes apertada e triste em sua escura
severidade. Um cheiro agridoce de incenso se espalhava no ar,
misturado ao suor da congregação, que mesmo nesse dia quente de
verão envergava roupas pesadas e escuras. Por um momento as duas
mulheres estacaram na entrada, mas já todos os olhos se fixaram
nelas, e o serviço foi interrompido não sem que um frêmito de
assombro percorresse as fileiras dos fiéis à passagem das mulheres
que, com suas túnicas vaporosas, em suaves ondulações, assim como
os homens, em suas largas calças, deslizavam por entre os bancos.
Ao ver o negro pagão, em sua túnica branca, e a brilhante policromia
dos tecidos de seda orientais, os piedosos habitantes de Rouen
tiveram quase a impressão de que as figuras mitológicas pintadas
nas paredes da igreja haviam ganhado vida e descido até eles.
É possível que tenha sido ali, na sombria e austera igreja de
Rouen, que o rabino tenha notado pela primeira vez o interesse
especial que as mulheres despertavam em terras de França,
sobretudo se estrangeiras, florescentes e exóticas como as duas
g
esposas de Ben-Atar aos fiéis, não lhes era dado perceber se os véus
finos, coloridos e perfumados, teriam antes intenção de resguardar-
lhes a modéstia ou de, ao contrário, acentuar o seu poder de
sedução. Assim, estavam os recém-chegados em vias de se acomodar
nos lugares reservados pelos monges, quando um coro invisível
irrompeu num canto viril porém suave, acompanhado por um
instrumento musical de timbre totalmente desconhecido. Os norte-
africanos voltaram a cabeça para o alto, em busca da origem dos
cantos e da estranha sonoridade, e entenderam que, apesar da
simplicidade e da austeridade, aquela igreja poderia abrigar eventos
artísticos requintados. Então, o canto claro e monótono se elevou até
as imagens alongadas e severas que pareciam observar com
profunda e imutável melancolia a grande figura do sacerdote,
esplendidamente paramentada, a se voltar para os fiéis, com um
pequeno sino à mão, e pôr-se a ajoelhar-se, a erguer-se, a tocar,
ajoelhar-se, erguer-se, tornar a tocar, e assim por diante.
Ele também tem um sininho, pensou o escravo negro, seguindo
com olhos devotos o padre que, uma vez terminadas as repetidas
genuflexões, retirou a casula dourada e subiu até um pequeno palco
para dirigir-se à congregação Falava-lhes em latim, mas sempre que
notava que seus ouvintes tinham dificuldade para compreendê-lo,
lançava uma palavra ou expressão na língua local, fazendo com que
as pessoas suspirassem deleitadas pelo significado subitamente
revelado. No começo o rabino tentou acompanhar o sermão para
descobrir se continha eventuais palavras de ameaça aos via,antes,
imóveis, postados em seus lugares — exceto pelo jovem pagão, que,
tomado por um profundo desejo de veneração, já se prostrava diante
da imagem do homem dourado atrás do altar com os longos braços
abertos, como duas asas de morcego. Embora o padre tenha ficado
profundamente emocionado com a improvisada e espontânea
prosternação do jovem negro, em consideração aos visitantes
eximiu-se de interpretar o gesto como um sinal do céu ou um
exemplo a ser seguido por eles. Limitou-se a sorrir satisfeito,
esfregou as mãos e pronunciou uma saudação especial aos recém-
chegados, chamando-os em cada sentença por um epíteto diferente
— africanos e árabes, muçulmanos, maometanos e ismaelitas,
meridionais, coloridos e negros, marinheiros, mercadores e via,antes
peregrinos, estrangeiros e infiéis, a ponto de, para os fiéis, parecer
que naquela manhã não unha entrado na igreja apenas uma dúzia de
viajantes cansados da longa ,ornada, mas sim emissários de todo o
grande e vasto mundo.
Terminados os ritos, os hóspedes foram convidados para uma
recepção especial em sua homenagem, num grande salão atrás do
altar. Os monges insistiram em fazê-los experimentar alguns
pedacinhos de um pão estranho, muito fino e de sabor delicioso. Mas
quando os convidaram a tomar de uma grande taça de vinho, Ben-
Atar e o rabino os interromperam às pressas. Os mandamentos do
profeta proibiam beber vinho, explicaram, e por meio de discretos
sinais a Abd el-Shafi e aos marinheiros, ordenaram que também não
bebessem das pequenas taças que lhes eram oferecidas. Foi então
chamado ao salão um monge alto, vestido de negro, que por muitos
anos percorrera as terras do Islã e em suas peregrinações aprendera
um pouco do idioma árabe. E, apesar de falar um árabe sem música,
estranho, que mesmo o rabino tradutor mal podia compreender, ele
insistiu em ampliar seu leque de interlocutores, ao incluir também as
duas mulheres, a quem se dirigiu diretamente, e até mesmo Abd el-
Shafi e seus homens, que permaneciam imóveis, calados e
apreensivos, embora igualados em importância aos outros viajantes.
Ah, no salão, aqueles homens rudes e silenciosos revelavam sua
verdadeira face, que durante oito longas semanas no mar estivera
oculta, por assim dizer, entre a vela e o cordame do mastro. O
monge quis saber se o serviço de adoração divina tinha agradado
aos infiéis O rabino tentou dar uma resposta genérica em nome de
todo o grupo, porém o peregrino insistiu em extrair de cada
marinheiro sua resposta particular. Acabou por descobrir que tinha
sido o badalar dos sinos o que mais impressionara e comovera os
marinheiros norte-africanos. Nas mesquitas não há sinos, disse Abd
el-Shafi, resumindo a opinião dos verdadeiros muçulmanos. E assim,
quando — Alá o permita! — voltarmos ao califado de Umayad,
vamos sugerir que acrescentem alguns sinos ao chamado do
muezim. O monge sorri com malícia a essa resposta. Ele também
acredita que o dobrar dos sinos é capaz de conclamar as pessoas à
q p p
oração, mas oração a quem?, perguntou, prosseguindo de repente
sem esperar uma resposta — àquele Maomé? Sem dúvida um
homem importante, e um grande profeta, que contemplou de perto o
anjo do Senhor, que, todavia, morreu há muito tempo, ao passo que
aqui os sinos chamam as pessoas para rezar para alguém que jamais
morrerá, e que certamente permanecerá eternamente à direita de
Deus, como um filho à direita do pai. Aos visitantes vindos de terras
longínquas tinha sido concedida uma rara oportunidade de conhecê-
Lo, pois a boa sorte os trouxera para cá às vésperas do milésimo
aniversário do seu nascimento, quando Ele haverá de redimir toda a
humanidade de seus sofrimentos. E nós que pensávamos que os
judeus o tinham matado há muito tempo, exclamou de repente Abd
el-Shafi, chocando Ben-Atar e o rabino. O monge sorri com
serenidade. Será então possível matar o filho de Deus? Pois nem a
imaginação mais maligna consegue conceber sua morte. É por isso
que os cristãos haviam resolvido deixar os amaldiçoados judeus em
sua condição desprezível, para que fossem, eles próprios,
testemunhas da própria maldade e insensatez.
Ao ver o capitão começar a anuir com a cabeça às palavras do
monge, demonstrando profunda concordância, Ben-Atar percebeu
que era melhor cortar logo a discussão teológica, pois não se sabia
aonde ela poderia levar. Então levantou-se e pediu ao rabino de
Andaluzia que agradecesse em latim pela hospitalidade. Quando
retornassem à sua distante cidade, não esqueceriam a catedral de
Rouen e sua belíssima missa. E assim, quando chegar o milênio e
esse seu Cristo descer dos céus, eles poderiam lhe pedir, se não fosse
difícil para Ele, que viesse mais para o Sul e os visitasse em Tânger.
Lá também Ele haveria de ser recebido com grandes honrarias. Pois,
às vezes, mesmo aqueles cujo profeta está morto e enterrado
anseiam por alguém vivo que possa confortá-los das aflições deste
mundo, como as que não lhes permitem, por exemplo, permanecer
aqui por mais tempo a fim de desfrutar da interessante conversação,
e os obrigam a apressar-se de volta ao rio para retomar o caminho
que os conduzirá até Paris, que espera impaciente pelas suas
mercadorias.
Sim, Paris, Paru, murmurou o monge, como se lutasse mais uma
vez contra algo que sempre o vencia, e com relutância foi forçado a
interromper seu intrincado discurso e permitir que os teimosos
muçulmanos voltassem ao seu navio. Lá fora começava a cair uma
chuva de verão, que ensopou as túnicas de seda das mulheres,
enlameando-lhes a barra nas poças, onde chafurdavam alguns
porcos rosados. Vindos de um cemitério próximo, começaram a
esfregar-se entre as pernas dos visitantes, causando pânico nas
mulheres. Tocado, à vista de suas aflições, Abd el-Shafi pediu a Ben-
Atar permissão para que seus marinheiros mais fortes fizessem com
as mãos uma espécie de rede viva e as suspendessem do chão. E
assim foram as duas flutuando pelas estreitas ruas ladeadas de casas
e pelas aleias do campo, onde os viajantes começaram a dar voltas
desnorteadas em busca do no subitamente perdido, até que o
escravo negro despertou de seu torpor idólatra, e com o instinto de
um rastejador do deserto os conduziu de volta ao navio, que Abu
Lutfi já havia abastecido com água fresca, maçãs e uvas, e com
aquele pão fino e comprido cujo gosto e frescor muito lhe
agradaram. À tarde Ben-Atar decidiu levantar âncora e escapulir da
cidade em silêncio, sob a proteção do sagrado descanso dominical
daquele povo, quando, porém, um pequeno barco se aproximou,
trazendo dois auxiliares do dignitário, acompanhados por um judeu
usando um chapéu tricórnio enfeitado com uma fita azul, que lhes
fora enviado justamente nesse dia — para ele, um dia de trabalho —
a fim de adquirir algo para seu patrão. Embora Ben-Atar tivesse
preferido esperar por Abuláfia para dar preços às mercadorias,
percebeu que, se recusasse, acrescentaria raiva às suspeitas do judeu,
que ao subir a bordo parecia tomado de grande desconfiança. Ainda
que esse judeu de Rouen nunca houvesse posto os olhos num
muçulmano de verdade de modo a poder distinguir os verdadeiros
dos que não o são, a identidade oculta de seus irmãos de fé
disfarçados perturbou tanto o seu espírito que, ao descer para o
porão do barco, tropeçou na escada de corda e acabou por se
estatelar no chão, lá embaixo Caiu entre os sacos e os jovens camelos,
que logo farejaram com espanto amigável o rosto do visitante rojado
a seus pés Porém Ben-Atar decidiu não revelar ao enviado judeu, à
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tarde, o que tinha julgado oportuno ocultar de seu patrão cristão
pela manhã. Para não aumentar a confusão, fez com que o porão
ficasse imerso em penumbra, sem lâmpadas ou velas acesas, para
que o judeu, na tentativa de ver confirmadas as suas suspeitas, não
pudesse descobrir, por trás das jarras de óleo e das sacas de
condimentos, mercadorias que decididamente não estavam à venda
Aos poucos conseguiram acalmá-lo, e depois de muito tropeçar às
apalpadelas na escuridão perguntando os preços, veio à tona o
verdadeiro propósito de sua missão O coração de seu amo, seduzido
pelos dotes de modéstia e parcimônia dos camelos, desejava possuir
um Mas por que não ambos?, perguntou Ben-Atar Ficou claro que o
senhor ficaria satisfeito apenas com a fêmea, na suposição ingênua
de que a jovem criatura já pudesse ter emprenhado durante a longa
viagem, e assim poderia parir, sem nenhuma despesa suplementar,
um novo camelinho.
Ben-Atar fitou os dois animais Pela maneira como estavam
deitados, com o olhar mortiço e as cabecinhas pendentes, pareceu-
lhe novamente que a morte deles não estava distante Seria certo
separá-los?, pensou E se, ao vender a fêmea, desse o macho de
presente, talvez conseguisse obter em troca um documento que lhe
permitisse seguir rio acima com o navio sem mais impedimentos Por
outro lado, recordou-se de todo o cuidado que Abu Lutfi tivera com
os camelos, vencendo as muitas dificuldades da longa viagem, para
que a Nova Mulher de Abuláfia pudesse sentir, cheirar, e tocar com
as próprias mãos, algo da essência do deserto de onde viera seu
jovem marido Por fim, decide-se e chama o escravo negro para
ajudar a separar a fêmea de seu companheiro e içá-la ao convés.
Entretanto, só ao entardecer os marinheiros conseguiram, graças à
experiência e tenacidade do jovem escravo, separar a debilitada
camelinha de seu obstinado companheiro que, tomado de pânico,
zurrava e espirra\a na direção dela Colocando-a num berço especial
feito de cordas, içaram-na devagar do porão para o convés, e dali,
depois de deixá-la pairando por um momento sobre o cordame
emaranhado, encaminharam-na para o barco do judeu, que a julgar
por seu olhar perplexo ainda não abandonara a esperança secreta de
descobrir a verdadeira identidade do proprietário do barco. Ben-
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Atar, porém, aferrou-se ao seu disfarce maometano, com o qual já
parecia estar se divertindo à tardinha, e depois de ajoelhar-se diante
do judeu e dirigir seu rosto para o sudeste, em direção a um ponto
imaginário a meio caminho entre Meca e Jerusalém, apressou-se a
sussurrar a oração vespertina em silêncio para si mesmo, antes do
cair da noite. Levantou-se e recusou firmemente as moedas de prata,
pesadas e esverdeadas, que traziam gravada a efígie de um
governante desconhecido Em vez disso, exigiu um pagamento
palpável pelo raro animal, ou seja, além de um documento que lhe
garantisse passagem livre e segura, dois carneiros, dez galinhas e
alguns grandes queijos locais de cheiro penetrante. Foi só depois de
concluído o negócio, e de todas as mercadorias constantes do
pagamento finalmente terem sido embarcadas, que o dignitário de
Rouen e seus companheiros apareceram em terra, bêbados, fazendo
grande escarcéu e carregando tochas, para puxar para terra firme o
barco que trazia a camelinha amarrada, à luz misteriosa da lua cheia.
Sob o mesmo mágico luar de prata, Abd el-Shafi levantou âncora
e discretamente afastou o barco da cidade de Rouen, sem mais
interesse para os visitantes. Favorecidos pela espessa vegetação da
margem sul, entre o coaxar dos sapos e o uivo das espertas raposas
francas, Ben-Atar e o rabino apressaram-se em retornar à fé milenar
de seus antepassados, e, apesar da hora tardia, não dispensaram a
oração da noite, a fim de agradecer a Deus por ter separado não só a
luz das trevas, mas também o povo de Israel dos de outras nações.
Envolta num lençol branco, a Primeira Esposa surge de sua
cabine na proa do barco, o grande rosto calmo após um sono
repousante, carregando nos braços, como se fosse uma criança
desmaiada, seu esplêndido manto bordado, já lavado da lama que o
embarreara pela manhã. Só restava agora estendê-lo para secar,
junto à vela, na cálida brisa noturna Em seguida, surge a Segunda
Esposa, também vinda da popa, ainda vestida com a túnica de seda
suja e amassada que se cola à sua pele Traz o semblante preocupado
e inquieto por um estranho sonho que tivera, no qual, entre as
imagens de feições severas que adornam as paredes da igreja,
encontrava-se a imagem da Nova Mulher de Abuláfia, cujo rosto, ao
invés de inexpressivo como os das outras, se tornara vivo e colérico.
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Em sua perturbação ela procura a companhia do rabino Elbaz, que
fita o no apoiado no peitoril Será que esse homem gentil, que às
vezes lhe lança uma mirada tímida, seria realmente capaz de anular
ou abrandar o repúdio que os aguarda?
Repúdio Essa palavra se fez ouvir pela primeira vez no encontro
de verão na Marca da Espanha, no ano 4756 da criação do mundo,
equivalente ao ano 386 da Hégira do Profeta, quatro anos antes do
milênio tão ansiado pelos cristãos No pequeno e musculoso útero
dessa simples e curta palavra, que escapou hesitante da boca de
Abuláfia em nome da senhora Esther-Míriam, já estava presente o
embrião do combate que haveria de envolver os sócios nos anos
vindouros Porém no ano 996 da contagem cristã, ainda era um
pequenino embrião, débil e cego, que não imaginava a seriedade e a
obstinação de sua mãe viúva, a repudiadora, cuja existência recém-
revelada havia sido acolhida sem dificuldade e até mesmo com
alegria por todos os sócios, visto que a expansão de Abuláfia para o
norte do país dos francos e seus novos contatos com comerciantes
judeus em Orleans e Paris haviam forçado Abu Lutfi a ampliar o
circuito de suas viagens pelos montes Atlas e a diversificar seu
estoque de mercadorias Em consequência, não foram três nem
quatro, mas cinco os navios que içaram velas naquele verão no porto
de Tânger, enchendo o coração dos sócios de alegria e apreensão à
vista do seu poderio comercial a se estender de norte a sul. Já
naquele ano, Abuláfia atrasou-se uma semana inteira para chegar à
velha estalagem romana Mesmo assim, não ocorreu a ninguém
interpretar esse atraso como sinal de desconsideração, mas apenas
como uma falha compreensível no cálculo de tempo e distância por
parte do sócio afetuoso e leal, obrigado então não só a vir de mais
longe, como também a despedir-se de uma pessoa querida. A espera
obrigou Ben-Atar a recitar sozinho o Livro das Lamentações Porém
Abu Lutfi, comovido com o tom melancólico do canto do judeu,
acometido por uma dupla tristeza, demonstrou verdadeira
solidariedade ao compartilhar do seu jejum, para aliviá-lo de parte
da dor E de fato a tristeza se dissipou — como se nunca houvera
existido — com a chegada de Abuláfia dois dias depois. Trazendo
uma respeitável quantidade de moedas e pedras preciosas, fruto das
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bem sucedidas negociações do ano transcorrido. Desta vez tinha
dispensado a camuflagem e aparecera a seus sócios em sua
verdadeira aparência, a de um belo e jovem mercador judeu, que
havia honesta e prontamente quitado todas as taxas cobradas em
cada fronteira atravessada em troca de proteção contra os
salteadores de estrada até o posto seguinte. E tendo se legalizado aos
olhos do mundo, parecia estar mais em paz consigo próprio. Depois
de repousar da longa jornada, contemplou com emoção e
perplexidade os finos presentes que os sócios lhe ofereceram, a ele e
à sua noiva, e após relatar, como de costume, embora
resumidamente, os acontecimentos do ano anterior — excepcional
não só do ponto de vista dos negócios — , foram até a taverna de
Benveniste para examinar as novas mercadorias vindas do sul. Ao
contrário do seu costume, Abufália não discutiu com o ismaelita o
preço das mercadorias nem a sua qualidade e, depois de lhes lançar
um olhar ausente e distraído, ouviu em completo silêncio as
explicações de Abdu Lutfi, retornando em seguida à velha
estalagem.
Foi somente à noite, após a divisão dos lucros e da partida do
ismaelita a cavalo para Granada que Abuláfia, acometido por uma
nova inquietação, pediu a Ben-atar que permanecesse com ele na
taverna romana e para que fizessem uma fogueira, como de
costume, apesar de já transcorrido o nono dia do mês de Av, quando
começou a falar, em primeiro lugar descreveu ao tio e ex-patrão a
sua cerimônia de casamento, cuja simplicidade só se fazia aumentar-
lhe a importância. Como era viúvo, e não contava com a presença de
nenhum parente ou amigo, os membros da família da noiva tinham
redobrado as atenções para com ele, e lhe ofereceram custosos
presentes: um talit (N.T.: manto, ou xale de orações normalmente
decorado com listras e ornado com franjas (tsitsit) nos quatro cantos)
de seda bordado com fios de prata, filactérios de couro maciço que
lhe acariciavam o braço tão suavemente como a mão de uma mulher,
um copo de prata gravado com as palavras de bênção do vinho, uma
faixa para a cintura e um solidéu de veludo negro. Abuláfia falou
também das joias da esposa, do lenço que cobria seu cabelo louro, e
até repetiu as palavras rituais proferidas pelo irmão da noiva, o
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senhor Lavinas, negociante mas também estudioso, e entre uma
descrição e outra, ao lado de uma fogueira um pouco exagerada para
uma noite de verão, o tio começou a prestar atenção em uma nova
palavra que ia e vinha, e de novo voltava aos lábios de Abuláfia, com
hesitação, mas com uma espécie de estranha persistência, como se
ele igualmente compartilhasse daquele repúdio de sua Nova Mulher
à parceria entre norte e sul.
No começo foi difícil compreender — seria o repúdio à
sociedade ou aos sócios?4 Repúdio pessoal da esposa aos rigores das
viagens de seu esposo e às consequentes ausências prolongadas em
seu novo leito nupcial, ou repúdio de outra natureza, mais
comercial, provinda do cálculo dos lucros e de sua distribuição?
Cintilou por um momento a suspeita de que Abu Lutfi poderia ser a
origem do repúdio sentido por essa viúva da terra do Reno, que
podia até estar acostumada aos hunos, mas temeria os ismaelitas
Porém aos poucos, a partir das palavras cuidadosas de Abuláfia, que
iam queimando devagar tal como a lenha da fogueira, da qual uma
vez ou outra saltitava de repente uma fagulha, ficou claro que a
verdadeira origem do ressentimento da Nova Mulher era o próprio
tio, Ben-Atar — patrão e benfeitor de Abuláfia, força motriz da
sociedade e alma de seu sucesso —, que agora revirava, em meio à
dor e à humilhação, uma brasa viva na fogueira.
Se Ben-Atar no ano anterior tivesse prestado atenção nos
pequenos detalhes da história de Abuláfia sobre aquele inesquecível
encontro noturno na taberna judaica em Orleans, tratando
cuidadosamente de virá-los e revirá-los, assim como agora vira e
revira a brasa entre seus dedos chamuscados, já teria descoberto o
espanto que gerara o repúdio Pois já então, ao lado da fogueira
próxima à entrada da estalagem romana, entre tristes lamentações,
Abuláfia relatara a seu sócio como a senhora Esther-Míriam se
esforçara para apreender tudo o que lhe fora relatado por aquele
homem de cachos negros, que ainda não se dava conta da força do
amor e do afeto que estava despertando, e conversava livremente,
não só sobre os seus atos e pensamentos, mas também sobre seus
parentes e sócios distantes como eram, o que queriam, que aparência
tinham e como viviam Quando, inocentemente, empolgado pelo
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curso das próprias palavras, mencionara a Segunda Esposa, com a
qual Ben-Atar se casara alguns anos antes, e a qual ele próprio ainda
não conhecia, sentira que por um momento o ar como que havia
faltado à sua delicada interlocutora. Segunda Esposa?, sussurrou a
senhora Esther-Míriam na língua santa, como se temesse pronunciar
aquelas duas palavras na língua local, pois poderiam chocar o
serviçal franco que dormitava junto à porta Porque não?, sussurrou
Abuláfla em resposta, e um sorriso leve e provocador lhe perpassou
os lábios Contudo, a partir do rubor intenso que inundou as faces
dela e sua pressa em erguer as mãos e ajeitar o xale na cabeça,
compreendeu o quanto sua resposta a chocara Assim, tentou de
imediato ampliar os conhecimentos da mulher, pois, embora ela
tivesse experiência nas viagens de negócios do irmão, nunca chegara
mais ao sul do que Orleans, e muito menos visitara as terras
prodigiosas e luxuriantes do Sul, ou conhecera os costumes dos
homens mais nobres e esclarecidos entre os árabes, não só no Norte
da África, mas também nas verdejantes cidades andaluzas, repletas
de sabedoria e poesia, onde há os que, não satisfeitos com dois
casamentos, tomam três e às vezes até quatro esposas A senhora
Esther-Míriam ergueu o rosto, e um novo sorriso de curiosidade e
desdém retorceu seus lábios finos E na terra onde Abuláfia nascera e
crescera também existem judeus que mantêm três ou quatro
esposas? Para essa pergunta Abuláfla não pôde dar uma resposta
clara, pois muitos anos haviam se passado desde que deixara o
Norte da África e a Andaluzia A mulher, no entanto, mesclando
espanto e curiosidade ao despertar do seu amor, continua a
interrogar o homem cacheado vindo do Sul, e insiste em saber se seu
tio, Ben-Atar, o líder dos empreendimentos, poderia um belo dia
decidir-se a tomar, digamos, uma terceira esposa além das duas que
já tinha Só Deus sabe, responde Abuláfia, tentando se esquivar dessa
pergunta estranha. Porém, vendo que nem Deus consegue pôr fim à
curiosidade da bela viúva sentada à sua frente, sentiu-se induzido a
responder. Talvez, quem sabe? Se a sociedade continuasse a
prosperar, trazendo assim grande fortuna para os parceiros, Ben-
Atar poderia tomar outra esposa, pois seu coração, generoso e
repleto de amor, em nada se parecia com o mirrado coração deste
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que está à sua frente, que ainda não se recuperou dos golpes que
sofreu na vida, e para quem até uma única esposa foi impossível até
agora.
Abuláfia sente então a mão leve e pequena que o acaricia na semi
escuridão, e percebe que apenas uma personalidade generosa e
segura de si conseguiria encontrar coragem para tocá-lo Fora essa
demonstração de humanidade que não lhe havia dado sossego
durante todo o ano que passou, de modo que, no início da
primavera, terminou por dirigir os cavalos para o Norte, para
finalmente seguir com suas mercadorias até Paris, a fim de procurar
a dama que conhecera na taverna em Orleans e descobrir se aquela
pequenina mão pálida que se estendera para tocá-lo tão
generosamente na escuridão se disporia a tocá-lo também à luz do
dia. À primeira vista, o irmão mais novo da viúva, que se
considerava seu tutor, mostrou-se hostil à oferta de casamento do
jovem norte-africano. A irmã conseguiu, entretanto, dissipar-lhe as
dúvidas e, depois de ter se assegurado de que apesar dos muitos
anos de perambulação Abuláfia não havia esquecido suas orações e
ainda era capaz de entoar, embora numa melodia estranha e
desconhecida, a bênção do vinho, a oração da véspera do shabat e a
oração de agradecimento pelos alimentos, o irmão consentiu no
casamento. Impôs, porém, a condição de que o novo casal viesse
morar numa ala da sua casa, não só para que a irmã continuasse
próxima a ele e à família, mas também para que não se sentisse só
quando seu marido retomasse sua vida de viajante.
Mas como o novo lar deveria incluir a filha de Abuláfia, a qual
dali por diante ele estava proibido de chamar, mesmo de
brincadeira, de "enfeitiçada" ou "diabinha" — apenas, no máximo, de
"pobre criatura"-, seria necessário ampliar um pouco a casa, situada
na margem sul do rio de Paris, próxima à torre da guarda, com seu
tribunal e sua câmara de execuções. Enquanto isso, Abuláfia se
apressava a partir para o Sul, para o encontro de verão na Marca da
Espanha. No entanto, ficou claro para ele que o espanto que Esther-
Míriam sentira no ano anterior não se desvanecera, ao contrário,
havia se transformado em pânico. Essa mulher, não mais jovem,
sentia-se aterrorizada ao simples pensamento de que seu futuro
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marido fosse associado a um judeu bárbaro que, por ignorância ou
por incontível luxúria, não só era casado com duas mulheres como
também não era de se descartar a hipótese de que viesse um dia a
unir-se a uma terceira. Assim, ela exigiu que Abuláfia não partisse
sem antes lhe prometer que, depois da distribuição dos lucros do
ano que se passara, ele não aceitaria novas mercadorias, dividiria
sua parte com os sócios e daria adeus a esse tio. Ben-Atar, a essas
palavras, foi tomado de tal surpresa que quase pôs na boca a brasa
viva que esmagava entre os dedos.
Mas por quê?, pergunta com voz sufocada, enquanto o
balbuciante Abuláfia trata de encontrar uma resposta plausível.
Enquanto isso, espera que Abu Lutfi os deixe, para retomar a
conversação com Ben-Atar — e o faz para não humilhar o seu
parente a propósito de uma questão que sabia ser motivo de orgulho
para o ismaelita. Mas, fosse por ainda estar longe de habituar-se à
exigência caprichosa da senhora Esther-Míriam, cuja firmeza já se
refletia na suave mirada das pupilas negras do jovem judeu, fosse
por encontrar-se longe de entender os seus motivos, Abuláfia tentou
primeiro justificar o repúdio como algo advindo da peculiar
sensibilidade da futura esposa, aflita ao pensamento da humilhação
que seria inflingida à Primeira Esposa com a chegada da Segunda.
Como assim?, retorquiu Ben-Atar Pelo contrário, duas esposas
poderiam ajudar-se uma à outra a fortalecer o marido de todas as
maneiras, e poderiam, ocasionalmente, transformar seu desejo
passageiro numa privação que só fazia enriquecer e purificar o amor
que sentiam. Quem melhor do que o próprio Abuláfia saberia dizer
como uma única esposa pode ser infeliz? Abuláfia ouviu com toda a
atenção e assentiu com a cabeça. Que pena, disse, que o próprio Ben-
Atar não pudesse explicar esses fatos tão delicados à sua Nova
Mulher, que os longos anos de viuvez fizeram esquecer por
completo. Porém, como ainda não se decidira a acatar a exigência
dela e dissolver a sociedade, tentaria recordar-se das palavras de
Ben-Atar de modo a poder se servir delas para apaziguar o ânimo de
sua noiva. Assim, quando viesse ao encontro de verão no próximo
ano, se Deus quisesse adiar o casamento, traria consigo a
concordância dela.
Assim, no ano 4756 da criação do mundo segundo os judeus, que
é o ano 386 da Hégira do Profeta, quatro anos antes do ano mil, que
deixa os cristãos em tamanho alvoroço, Abuláfia não dissolveu a
sociedade que lhe era tão cara, mas carregou a mercadoria em cinco
carroças, uma para cada um dos navios que a haviam trazido, e ao
chegar a Perpignant enviou uma carroça carregada de sacos de
condimentos para o oeste, para o ducado da Gasconha, e a segunda
carroça, com panelas e bacias de cobre, para o leste, para o sul de
Provence, enquanto ele próprio partiu com as três carroças restantes
para Toulouse, vendendo pelas aldeias ao longo do caminho óleo de
oliva, favos de mel e figos secos da Andaluzia, e negociando de novo
com os bens que recebia em troca dessas mercadorias. Ao chegar a
Toulouse já tinha duas carroças vazias para colocar sua filha muda e
a ama ismaelita, a qual exigiu cinco braceletes de ouro para
concordar em abandonar seus sonhos meridionais e empreender
uma jornada em pleno inverno através dos reinos francos até uma
cidade remota como Paris, para onde levavam um fino carregamento
de frascos de intensos perfumes do deserto, peles de leão e leopardo
e pilhas de tecidos bordados, no meio do qual se escondiam adagas
curvas incrustadas de pedras preciosas.
No início da primavera de 997, Abuláfia volta à mesma Paris,
dessa vez trazendo consigo a filha muda de oito anos de idade —
talvez não mais enfeitiçada, mas com certeza ainda uma pobre
criatura. Novamente se dá conta de que sua futura esposa é mais
velha que ele não só em anos, mas também em sabedoria e
experiência de vida. Embora ela logo tome a pobre criatura ao colo, e
incline a cabeça com respeito diante da idosa ama ismaelita,
cintilante em suas pulseiras de ouro, e não obstante sua alma ter
ansiado pelo jovem de cachos negros durante todo o inverno, ela não
se apressa a realizar o casamento prometido, voltando ao tema do
repúdio ao sócio de duas esposas. Assim dizendo, apresenta a ele
um homem vestido de negro, que chegara a Paris vindo da província
de Lotaríngia, (N.T.: Região da antiga Alemanha (Ashkenaz) às
margens do Reno, aproximadamente a região do atual Hesse) em
Ashkenaz, usando um chapéu alto e pontudo, assemelhando-se a
um chifre recoberto de veludo negro. Esse homem, o rabino
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Kalonymos de Kalonymos, da família do falecido marido da senhora
Esther-Míriam e morador de Vermaíza, sua cidade natal, fora
especialmente convidado para vir a Paris pelo irmão mais novo da
viúva, senhor Lavinas, para realizar a cerimônia do casamento de
acordo com os costumes dos seus antepassados. Buscou primeiro
testar a essência e a firmeza da fé daquele noivo meridional, para o
caso de ser necessário um reforço ou complementação, correção ou
purificação, antes de ser unido à fé inabalável daquela ilustre dama
da sua cidade.
Para esse fim, ele entabula uma longa conversa com Abuláfia.
Como a criança muda tremesse e choramingasse ao ver o chifre a lhe
balançar na cabeça, leva Abuláfia para fora e se dispõe a passear com
ele em meio ao lodo e à lama de Paris, por entre porcos, cavalos e
mulas. Atravessam uma pequena ponte de madeira, e tomam um
largo caminho de terra, conhecido como estrada de Saint-Jacques,
pois dela partem os peregrinos para alcançar o convento de Saint-
Jacques, ou Santiago de Compostela, no extremo norte da Ibéria.
Aquele ashkenazi de temperamento frio aponta para Abuláfia os
peregrinos vestidos com grossas capas, cobertos com seus amplos
chapéus de feltro adornados de conchas, empunhando cajados com
odres de água feitos de couro amarrados na ponta, em suma,
ocupados com os preparativos para uma longa e árdua jornada.
Depois mostra as mulheres que lhes acenavam enquanto prendiam o
cabelo em tranças, enrolavam os tornozelos em panos escarlates e os
calçavam em robustas sandálias. Com isso pretendia mostrar àquele
judeu magrebino que não há no mundo fé verdadeira que não
demande preparativos minuciosos. Daí expôs detalhadamente ao
noivo as etapas da cerimônia de casamento na devida ordem, para
evitar que algum costume mediterrâneo ou alguma bizarria do
deserto viesse a perturbar o sacrossanto ritual. Contou algumas
histórias da aldeia de Vermaíza, onde a senhora Esther-Míriam
nascera e fora criada. Talvez, com suas casas de pilares tortos, não
tivesse o mesmo fascínio que Paris, mas uma coisa com certeza não
faltava ali: estudiosos judeus a se debruçar sobre as sagradas
escrituras. Estudiosos mortos velavam sobre os estudiosos vivos, os
quais, por sua vez, preparavam o mundo para os estudiosos que
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ainda viriam a nascer. Estava claro que a grande preocupação do
homem de Vermaíza era com as futuras gerações, que deveriam
nascer na pureza da união matrimonial. Uma união cuja pureza
deveria ser garantida em paz e segurança contra o anátema de
qualquer homem que buscasse tomar uma Segunda Esposa, ou,
Deus o livre, divorciar-se da esposa contra a vontade expressa desta.
Só então Abuláfia compreende que o visitante, trazido por sua
noiva e pelo cunhado da terra do Reno, estava estabelecendo uma
clara conexão entre a anulação da sociedade com Ben-Atar e a
realização de seu casamento com a senhora Esther-Míriam. Assim,
não ficou surpreso quando, ao retornarem à taverna — depois que os
peregrinos, que, num primeiro momento, tinham tomado o
ashkenazi por um homem importante, mas, reconhecendo nele um
judeu, atiraram-lhe uma maçã podre como primeiro ato virtuoso na
árdua jornada que empreendiam —, o senhor Kalonymos sacou de
sua bagagem duas tiras de pergaminho escuro, recobertas por uma
escrita em tinta vermelha; deu uma ao noivo, para que não
esquecesse o que acabara de aprender, e a segunda a destina ao sócio
repudiado, devendo lhe ser enviada no verão por meio de um
mensageiro, juntamente com a quantia devida, depois de feitas as
justas contas, pelas mercadorias vendidas no ano anterior.
Assim, numa quinta-feira, dia dezoito de Yar, que era o
trigésimo terceiro dia de Omer, ou Lag ba Omer (N.A.: O trigésimo
terceiro dia contado a partir do segundo dia de Pessach, em que se
recorda o fim de uma praga que dizimou os discípulos de Rav
Akiva, na época da revolta de Bar Kochba contra a ocupação
romana. Fim da nota) do ano de 4757, depois de garantir a seus
novos parentes que dissolveria a sociedade, foi-lhe dado o
consentimento final e o casamento se realizou. Entretanto, ao chegar
o mês de Tamuz, quando o mensageiro deveria partir para a Marca
da Espanha, Abuláfia, tomado por uma poderosa saudade da baía
de Barcelona, voltou atrás na promessa que fizera. Apesar da
expressão sombria que se instalou no rosto pálido de sua Nova
Mulher, cujo temor misturado ao forte desejo começara a atraí-lo já
desde a noite de núpcias, Abuláfia não estava preparado para
separar-se de seus antigos sócios por meio de uma simples carta.
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Nem tampouco ousava assumir a tarefa de dividir os lucros do ano e
enviá-los nas mãos de um portador desconhecido. Por isso, depois
de jurar novamente para sua esposa e também para o novo cunhado
que dessa vez iria realmente despedir-se, e a bem-sucedida
sociedade iria se dissolver de modo a que o repúdio se configurasse,
tomou a estrada. Tão dividido estava seu coração entre o
compromisso do juramento que fizera e a dor e a mágoa que o
esperavam no encontro com os sócios, que acabou se confundindo e
se perdendo até que, na Sierra del Fogo, escapou de cair nas mãos de
salteadores de estrada apenas pelo casaco negro usado pelos
leprosos, que comprara no último momento e agora vestia. Em razão
disso, seu atraso se prolongou por dez dias, e pelo segundo ano
consecutivo Abu Lutfi juntou-se a Ben-Atar no jejum do nono dia do
mês de Av.
Com seu traje de leproso, tocando uma espécie de sineta
estridente para manter à distância os sãos, Abuláfia encontrou os
dois sócios deitados, prostrados no auge do calor do dia, entre duas
arruinadas colunas de mármore que restavam da estalagem romana.
Apesar das palavras alegres de saudação, dos abraços e sorrisos, os
dois homens do Sul já podiam discernir nos belos olhos do seu
parceiro do Norte os sombrios sinais da separação. Quando o
ismaelita ouve Abuláfia dizer que desejava romper a sociedade, justo
quando esta alcançava o seu auge, e que desta vez não pretendia
receber a mercadoria que abarrotava os seis navios conduzidos até
Barcelona, não consegue se conter, e levantando-se, furioso, começa
a dar voltas até que de repente se detém diante de uma enorme
oliveira, bate a cabeça contra ela, e lágrimas lhe rolam nas faces,
diferentes das lágrimas de alegria do primeiro encontro neste
mesmo lugar, há oito anos.
Não foi fácil para Abuláfia reconfortá-lo, tanto porque seu
próprio coração ainda não se conformara com a ideia de dissolver a
sociedade, como também por saber como seria difícil para um
muçulmano, que tomava tantas esposas quantas permitissem as suas
posses, e as dispensava ao seu bel-prazer, compreender e muito
menos respeitar, o espírito que passava a ditar as novas regras, que
ele agora apresentava a Ben-Atar escritas numa folha de
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pergaminho, sobre a qual se alongavam as sombras da floresta.
Assim, os israelitas esperaram até que os soluços do ismaelita se
acalmassem um pouco, e antes que a dor o levasse a crer que os dois
hebreus querem dar-lhe um golpe com o fim de excluí-lo da
sociedade, Ben-Atar decidiu subverter as novas ordens vindas do
Norte e ceder a Abu Lutfi, sem nenhuma compensação, a própria
parcela da nova remessa. Deste modo Abuláfia poderia aceitá-la sem
temor das mãos de um gentio, que não estava, portanto, sujeito aos
editos vindos das terras do Reno, nem da Babilônia ou da terra de
Israel.
Num primeiro momento, Abuláfia hesitou bastante em comentar
numa solução cuja simplicidade meridional seria descartada com um
sorriso de desprezo pelos seus sofisticados novos parentes. Contudo,
como os barcos e unham sido enviados de volta a Tânger, e as
mercadorias empilhadas nos estábulos de Benveniste havia mais de
três semanas já encolerizavam os cavalos e asnos agora espremidos
num canto, não pode ficar indiferente à aflição dos antigos sócios e,
assim, consentiu em aceitar a mercadoria das mãos do ismaelita que
se tornou de repente, sem entender muito bem, o dono de tudo.
Porém tudo isso, advertiu Abuláfia mais uma vez, era apenas sob a
condição de que todas as mercadorias fossem transportadas tal como
estavam, direto para Paris, para receber o selo de kashrut de seus
parentes antes de serem vendidas aos gentios. E o instinto de antigo
comerciante lhe sussurrava que os altos preços que ele receberia por
elas na íle-de-France compensariam de sobra os rigores e as despesas
da longa jornada.
Abu Lutfi se apressa a montar em seu cavalo e galopar de volta a
Granada, confiante de que a solução que os judeus tinham
encontrado para o problema também valeria para as mercadorias
que ele reunisse durante o ano seguinte. Embora a estada em
Barcelona tivesse se prolongado demais e já se sentissem no ar os
primeiros sinais gelados do outono, tio e sobrinho achavam difícil
dizer adeus, pois quem poderia dizer se esta não seria sua última
despedida? Como tinham sido privados das orações em comum pelo
nono dia do mês de Av, com suas lamentações e sua dor, desejam
estar juntos para lembrar-se da alegria das filhas de Israel que, em
j p g q
épocas passadas, partiam em busca do amor de um companheiro no
décimo quinto dia do mês de Av. Porém, a melodia da oração de
Abuláfia tinge-se de melancolia ao ver a expressão tristonha que se
estampa no rosto de Ben-Atar. Assim, mesmo sem ser solicitado,
incapaz de se conter na escuridão que baixa sobre eles ao fim das
orações, sem fogueira e sem estrelas no céu, começa a tecer elogios a
nova senhora Abuláfia, para que Ben-Atar, Deus o livre, não venha a
odiá-la. Esmera-se em descrever a sabedoria, o refinamento e o
pendor para a caridade da futura esposa, sublinhando especialmente
o carinho que ela demonstra para com sua pobre filha, que
encontrara um refúgio seguro na casa da senhora Esther-Míriam.
Pouco a pouco, Abuláfia, pasmo, vê suas palavras deixarem entrever
a intensidade do seu desejo por aquela mulher de olhos claros e
cabelo louro, até que, com a língua solta pela empolgação, deixa
escapar pequenos segredos da sua câmara nupcial, que crepitam e
voam como fagulhas na fogueira.
Despedem-se com o coração dividido por emoções
contraditórias. Ao longo das estradas de um outono frio e nevoento,
viajando com decidida determinação, Abuláfia conduz seis carroças
repletas de finas mercadorias para o novo lar em Paris, à espera de
ouvir de sua amada esposa e de seu jovem cunhado um veredicto
categórico. Que, como previsto, deve descartar qualquer subterfúgio
ismaelita para dissimular a continuação da sociedade com aquele
judeu meridional casado com duas mulheres. Para afastar qualquer
futura tentativa de trapaças mediterrâneas, a senhora Esther-Míriam
e o irmão fizeram questão de confiscar integralmente o estoque de
mercadorias de Abuláfia de modo a poder controlar-lhe a venda, a
fim de que a sociedade se desfaça diante de seus olhos e pelas suas
próprias mãos, de uma vez por todas. O lucro obtido, deduzidas as
despesas, será integralmente enviado para o Sul, para os dois sócios,
na realidade já ex-sócios, juntamente com a ama ismaelita cujo
tempo de serviço já se esgotara.
Quando mais uma vez os dois sócios do Sul chegam à taverna de
Benveniste em Barcelona, dessa vez com sete navios carregados, na
esperança de renovar seu estoque, são informados por Benveniste de
que a senhora Esther-Míriam chegara antes deles. Enquanto
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acalentam a ideia de finalmente encontrar a Nova Mulher face a face,
Benveniste os leva a um pequeno cubículo em seu estábulo, e ali, na
escuridão cheia de odores de palha e feno, deparam com a robusta
ismaelita, calmamente rodeada de seus fardos, rebrilhando com as
pulseiras de ouro que acumulara ao longo de seus anos de serviço, e
expondo num largo sorriso seu único dente. Antes que eles
conseguissem recobrar-se da surpresa, ela puxa de entre os seios
uma conhecida bolsa de pele de leopardo contendo moedas de ouro,
os lucros da venda extremamente bem-sucedida das mercadorias,
para ser dividida agora por dois, e não mais por três. Assim, no ano
4758 da criação de acordo com os judeus, 388 anos da fuga do
Profeta de Meca para Medina, dois anos antes do assombroso
milênio dos cristãos, os atrasos de Abuláfia se transformam em
ausência total.
Capítulo 6

Depois de tantos dias transcorridos entre céu e mar, agarradas


ao mastro principal ou suspensas entre os estais de um barco que
adernava de um lado para o outro, não é de admirar que até as
pernas mais espertas e ágeis sentissem uma atração tão poderosa
pela terra firme, a ponto de, incapazes de se manter firmes no alto da
ampla colina que se eleva suavemente na margem setentrional do
rio, irem se vergando de forma involuntária e lenta, voltadas para o
leste, até se prostrar completamente por terra. Ali o jovem Elbaz
aspira o delicioso perfume da relva, das pedras e dos torrões, quase
esquecido durante a longa viagem. Até mesmo as lágrimas de alegria
que assomam àqueles olhos jovens não prejudicam em nada a
atenção com que o filho do rabino se volta para o chefe, o qual, entre
todos os seus homens, escolhera naquela tarde o garoto de Sevilha
como único companheiro para uma caminhada de reconhecimento
inicial, um tanto furtiva, destinada a preparar o primeiro estágio da
disputa com o sócio, que se isolara na cidade a se estender tão
próxima.
Assim, ao lado de um arco de pedra em ruínas, talvez
remanescente de um antigo templo romano, o mercador judeu da
África do Norte contempla agora com contida emoção os campos e
os bosques banhados na luz cor de açafrão daquele estio preguiçoso,
cujo brilho as gotículas acinzentadas e frescas do outono já começam
a empanar. A julgar pela sua minuciosa inspeção, parece quase como
se Paris, a cidade pela qual ele navegara tantas semanas, se situasse
não apenas a leste, entrincheirada numa ilhota no coração do rio
Sena, mas, possivelmente, se estendesse também para o norte da
colina, onde estão, talvez até mesmo para o oeste, e com certeza para
o sul, onde a linda curva do rio rebrilha como o aço macio. Quase
como se cada um dos atalhos de terra que beijam o pequeno arco de
pedra — como raios de luz que se encontram numa estrela pudesse,
à sua própria maneira, conduzir os dois judeus estrangeiros a essa
cidade que irradia sua alma até bem longe.
O menino, seguindo com interesse e atenção os movimentos e os
gestos do dono do barco, não tinha dúvida de que ao cair da tarde
Ben-Atar escolheria o caminho que apontava para o leste. Não só por
levar diretamente àquela ilha cinzenta com suas casas amontoadas,
mas sobretudo por não se tratar de uma simples vereda, e sim de
uma estrada de verdade, ampla e reta. E tão decididamente reta, que
parece que os campos e as árvores recuaram um pouco para lhe dar
passagem e que nesta hora de um crepúsculo iminente até mesmo
um exército inteiro poderia percorrê-la em majestosa formação
militar. Mas antes de chegar o momento de procurar as pessoas que
o pai devia convencer com seus eruditos argumentos, o jovem sabia
que precisavam estudar muito bem, enquanto ainda estava claro, a
aparência das casas isoladas, espalhadas em ambas as margens, e
também a torre da igreja que se ergue esbelta à luz da tarde, não
longe da beira da água, na margem direita, de onde chega agora um
longínquo soar de sinos.
Sim, já havia vários dias que Ben-Atar estava convencido de um
fato: que seu primeiro encontro com o sobrinho e sócio deveria
ocorrer apenas entre os dois, sozinhos, sem a presença da Nova
Mulher nem de nenhum dos seus severos parentes. Para tanto, não
deveria ser um encontro fortuito nem secreto, numa ruela ou no
campo, mas sim no próprio umbral da casa de Abuláfia. Dessa
maneira, o caráter sagrado da hospitalidade, inata em um homem do
Sul e reforçada pela tradição e pelo hábito, poderia levar a melhor
sobre qualquer tentativa da Nova Mulher ou de seu pernóstico
irmão mais jovem de exacerbar o repúdio neste confronto,
transformando-o num verdadeiro boicote, algo que tornaria vãs
todas as esperanças depositadas na ousada expedição. É necessário,
portanto, a fim de obter o almejado efeito surpresa, o conhecimento
prévio e detalhado da casa onde o mercador de Tânger pretendia ser
recebido, não apenas a si como também a suas duas esposas, depois
que o caminho fosse devidamente aplainado pelas adequadas e
definitivas citações bíblicas do rabino de Sevilha. Uma vez admitidas
naquela casa, as duas mulheres poderiam dar prova de sua plácida e
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tranquila existência, compondo a imagem mesma do amor e da
felicidade que aquele edito arbitrário, emanado de uma pequena
cidade em Ashkenaz, buscara destruir.
Assim, no início da tarde, ao tomar conhecimento por dois
pescadores de que a aldeia de Paris estaria à vista dos navegantes a
partir da próxima curva do rio, Ben-Atar ordena a Abd el-Shafi que
imobilize o barco e se prepara para descer à terra. Entretém por
breves instantes o pensamento travesso de surpreender Abuláfia
com um disfarce de monge ou leproso, porém logo desiste da ideia,
temendo o surgimento de alguma questão teológica a que não seja
capaz de responder. Escolhe envergar as vestes de um cristão
andaluz, que, cansado de viver entre ismaelitas, estivesse à procura
de lugares santos — apesar de que, segundo Abuláfia, esta cidade
não parecia se distinguir por sua santidade a ponto de atrair
peregrinos de terras distantes. Enfim, decide pedir a suas esposas
que lhe costurem um manto de cores variadas, de modo a tornar
impossível associar a ele uma única identidade.
Contudo, sabia que não devia aventurar-se sozinho numa cidade
estrangeira: um homem sozinho poderia sumir sem deixar traços, ao
passo que dois homens sempre poderiam testemunhar um pelo
outro, se não neste mundo, ao menos no próximo, no caso de
suceder alguma coisa. Primeiro pensou em levar consigo o rabino de
Sevilha que, conhecendo o latim, poderia ajudá-lo a interpretar
aquela desconhecida realidade capetíngia. E também porque, no
caso de a questão do repúdio ser levantada logo ao primeiro
encontro, poderia fazer prevalecer de imediato a sua autoridade em
matéria de preceito religioso. Porém, refletindo melhor, Ben-Atar
decidiu que seria mais acertado não revelar logo todas as armas que
havia trazido. Mesmo porque não sabia se o rabino Elbaz já estaria
totalmente recuperado do êxtase poético que se apoderara dele sobre
as ondas do mar. Pensou em seguida em escolher Abu Lutfi, na
esperança de que a presença do ismaelita lembrasse a Abuláfia as
mercadorias que haviam sido reunidas com tanto empenho e
descartadas com tanto desdém. Por fim, entretanto, abandonou
também essa opção. Não seria justo deixar duas frágeis mulheres e
um rabino totalmente entregue à poesia à mercê de marinheiros que,
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apesar da correção demonstrada durante a viagem, eram
desconhecidos, cabendo-lhe ainda garantir que houvesse no navio
alguém capaz de navegar de volta ao Norte da África se, Deus o
livre, o atacassem e matassem naquela desconhecida cidade cristã.
Quem lhe restava? Lá no fundo do seu coração Ben-Atar gostaria
de levar o seu capitão, não só porque com certeza teria na memória a
antiga e instrutiva história do ataque dos vikings a Paris no final do
século anterior, mas também por causa do temperamento agradável
e do olhar íntegro. Mas como se poderia deixar um navio à vela
carregado de mercadorias à mercê da correnteza de um rio, sem
capitão? Como último recurso, pensou em levar um dos truculentos
marinheiros de Abd el-Shafi. De novo, porém, as dúvidas
começaram a importuná-lo. Não seria isso tudo o que a nova e sagaz
esposa de Abuláfia esperava? Que ele aparecesse à sua porta com
um simples e rude marinheiro árabe, as vestes em farrapos, de modo
que ela pudesse dizer para o marido: Eis aqui a prova viva do
espírito selvagem que guia o seu sócio? Ou deveria ir acompanhado
do jovem negro? Este decerto haveria de guiá-lo, com o infalível
instinto do deserto, direto para a casa tão ansiada, pelo cheiro do véu
de Abuláfia que ficara com eles. No entanto, o apetite pela idolatria
que o consome até os ossos o faria prostrar-se no chão da casa dos
judeus parisienses diante do cálice de prata ritual, ou ajoelhar-se
diante do candelabro de sete velas, tornando assim a religião de Ben-
Atar profundamente suspeita. Portanto, talvez fosse melhor mesmo
ir sozinho. Mas, ao erguer os olhos para o céu em busca de ânimo
junto ao seu Deus, que fora tão cordial e justo para si e para seu
navio durante todos os longos dias da viagem, viu o jovem Elbaz
balançando-se no topo do mastro, e disse para si mesmo: Parece que
era por esse jovem que eu esperava. Não só porque um homem que
leva uma criança preserva sua humanidade mesmo numa cidade
estrangeira, mas também porque, Deus não permita, se por acaso
Abuláfia insistisse em rejeitá-lo, a presença do garoto contaria a seu
favor e talvez o lembrasse da sua própria infância, quando o tio o
levava à praia e o mergulhava nas ondas, mas sempre o trazia de
volta para casa são e salvo.
Assim, naquela tarde amena, o dono do navio e o jovem filho do
rabino avançam rumo à cidade por uma estrada tão ampla e reta que
se poderia dizer uma avenida. Depois de um bom tempo de
caminhada, chegam a uma espécie de enorme esplanada quadrada.
Ben-Atar pede ao menino que o ajude a erigir uma pequena coluna
de pedras bem no centro daquela praça, de modo a servir como um
marco a sinalizar a volta se, eus não o permita, venham a ser
obrigados a voltar sozinhos. A partir dali, seguindo na mesma
direção leste, os dois passam por pequenos canteiros retangulares de
verduras, arbustos cuidadosamente aparados, e por uma piscina de
água atrás da qual se via outro arco de pedra, só que desta vez
pequeno, chegando apenas à altura do coração — talvez uma cópia
em miniatura do grande arco sobre a colina. Se os dois viajantes
tivessem olhado para trás, teriam visto, mesmo a esta hora do lusco-
fusco, a linha reta que se estendia entre os dois arcos, mas ambos
voltavam o rosto diretamente para a frente, fitando as luzes das
pequenas lanternas que balançavam ao longo do rio, no caminho
para a cidade, e os primeiros rostos dos próprios parisienses, de
traços angulosos, olhos vivos, a cabeça raspada no alto e o rosto
escanhoado, à maneira dos atores.
Entrementes, a ilha resplandece em uma multidão de pequenas
luzes, como se cada habitante, desejoso de se fazer notar, levasse
consigo sua própria luz. Em meio ao ir e vir ruidoso de homens e
mulheres à beira do rio, o jovem Elbaz perde de repente a
autoconfiança, e sua mão, que em pleno oceano segurava
firmemente o topo do mastro, agora agarra, assustada, a túnica de
Ben-Atar. Mas ninguém, não obstante as cores berrantes da túnica de
Ben-Atar, presta atenção nos dois estrangeiros, como se não
estivessem caminhando no centro de uma remota cidadezinha da
Europa, e sim em uma verdadeira metrópole, como Córdoba ou
Granada na Andaluzia, visitadas diariamente por inúmeros
estrangeiros, sem que ninguém lhes conceda a graça de um segundo
olhar. Será o menino a inspirar tanta confiança em nós, perguntou-se
Ben-Atar, ou será que os moradores desta cidade se sentem tão
seguros que são capazes de receber qualquer estrangeiro sem
hostilidade alguma, desde que se esteja disposto a conversar com
eles?
De fato Ben-Atar, e até mesmo seu jovem companheiro, notou
que não só os comerciantes postados em suas barracas tratam de
chamar a atenção dos possíveis clientes, como também as pessoas
que caminham ao longo da margem do rio trocam constantemente
rápidos comentários, e por vezes dirigem aos dois estranhos uma ou
duas palavras, como se o mero fato de falar numa língua tão musical
fosse fonte de prazer e diversão, e valesse a pena falar tão-somente
para não se privar desse prazer. Mas como os dois visitantes do
Magreb não tinham palavras com que responder, e apenas um
sorriso não mais bastava, passaram a andar se cabeça baixa e olhar
fixo para as pedras das calçadas pequenas e tortuosas, por onde os
sapatos de homens e mulheres envolvidos em tiras estranhas,
saltitavam agilmente a fim de não pisar nos excrementos de cavalo,
porco e cachorro espalhados por todo lugar. Seus olhos estavam tão
absortos nos pés que os rodeavam que pareceu ao filho do rabino ter
encontrão entre eles as pernas de seu pai, que permanecera a bordo
— isto é, a sua maneira de andar — , e, movido por essa descoberta,
o garoto puxou com força o manto de Ben-atar e, em seu suave árabe
da Andaluzia, sussurrou emocionado: Senhor, o homem que está
caminhando na nossa frente bem poderia ser um judeu.
Para surpresa do rapazinho, Ben-atar também pareceu se deixar
convencer pela estranha suposição, não tanto pela maneira de andar
do homem à sua frente, mas pelo chapéu enterrado na cabeça. Sem
maiores reflexões, puseram-se a seguir os passos daquele que, se de
fato fosse um judeu, provavelmente não haveria de parar numa das
tavernas cujas luzes vacilantes piscavam ao redor, mas rumaria
direto para sua casa, decerto localizada numa rua onde moravam
outros judeus, pois era inconcebível que um judeu , fiel ao próprio
credo não morasse nas proximidades de seus correligionários.
Assim, despercebidos, os dois chegariam à casa de Lavinas, onde
também morava Abuláfia. Mesmo se ficasse claro que o homem que
caminhava à sua frente não era um judeu, sem dúvida era uma
pessoa cortês, a julgar por seu andar macio, que certamente não se
recusaria a servir de guia, ainda que involuntário.
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Mas guia para onde? Primeiro, o que eles chamavam de "nosso
judeu" continuou caminhando paralelamente à margem do rio, de
onde podia distinguir agora os muros da grande ilha, que por um
instante lhes pareceu um gigantesco navio iluminado a navegar ao
lado deles. Apesar de a maioria das pessoas começar a descer os
degraus na direção de uma barca, que os transportará à ilha, o
"nosso judeu" prefere continuar seguindo pela margem do rio, até
chegar a um lugar escuro, de onde se pode divisar uma simples
ponte de tábuas, metade submersa, que ele atravessa, seguido de
perto pelos dois estrangeiros. Encontram-se, assim, bem no coração
da ilha, apinhada de casas e de vielas tortuosas, onde guardas em
uniformes escuros jogam dados nas esquinas, tagarelando sem parar
em sua amada língua. As janelas dos porões exalam os aromas de
jantares sendo preparados, como se não houvessem chegado ao
coração da cidade de Pari, mas sim ao seu estômago. O rapazinho,
que desde o meio-dia não havia comido, vai reduzindo as passadas e
tornando-as hesitantes, até que, entre temeroso e esperançoso, se
detém diante de um gordo parisiense ocupado em cortar um leitão,
assado inteiro, em finas fatias rosadas.
Quando Ben-atar percebe que o leitão cortado em aromáticos
bocados não consegue distrair seu guia do caminho, e que, pelo
contrário, ele aperta o passo, baixa os olhos e move os lábios
murmurando alguma coisa, confirmou-se a correta dedução do
menino — aquele realmente é um judeu. Assim, Ben-atar continua a
perseguir o homem, mesmo quando este entra numa longa e escura
viela, que os conduz, através de um pequeno vão na muralha que
protege a ilha, para outra ponte, não menos arruinada que a
primeira, e que desemboca na margem sul. Embora parecesse mais
desolada do que a margem norte, havia ali algo de alegre e
espontâneo, pelo menos a julgar pelos jovens risonhos, envergando
roupas que os deixavam bem à vontade, sentados numa pracinha ao
lado de uma fonte que despeja água numa bacia de pedra
circundada por tochas, a ouvir com prazer um músico dedilhar uma
pequena harpa. Lançam olhares amigáveis para Ben-atar e o menino,
que seguem em frente sem se despregar do "nosso judeu". Este não
mais consegue ignorar aqueles dois que o seguem, e se detém no
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meio de um beco escuro, ao lado de uma grande pedra que se
projeta de uma das casa. Pensa por um instante em dizer algo,
desiste e apenas olha direto para eles na escuridão.
Abuláfia?, implora Ben-Atar, murmurando o nome do homem
que há mais de um ano mergulha sua alma em tristeza. Um sorriso
aliviado perpassa o rosto do judeu ao perceber que ouve um
propósito em utilizá-lo como guia. Ergue o braço num gesto seguro e
aponta a maior casa daquela ruela. E sem dizer palavra, abre uma
portinhola oculta pela pedra e desaparece por ela.
Ben-Atar de imediato redobra a atenção. A proximidade da
presença de Abuláfia e de sua Nova Mulher põe em alerta todos os
sentidos. Mas logo cai em si, e considera que uma investida rápida e
impensada a essa hora da noite poderia jogar por terra seus planos
de fazer uma visita formal, acompanhado das esposas, ao lar dessa
mulher que o achava tão repulsivo. Sendo assim, em vez de ir direto
à porta da frente, fica por ali e até se afasta um pouco, observando
detidamente o novo lar do sobrinho e sócio de negócios, ponderando
a melhor maneira de atrai-lo para fora. Porém as janelas da casa
eram pequenas e inacessíveis, com se não pertencessem a uma casa,
mas sim a uma pequena fortaleza. Entretanto, eis que o jovem Elbaz,
instigado pela fome que o torna audaz, localiza pontos salientes
escondidos na massa escura da parede, que lhe permitem escalar até
o peitoril de uma das janelas. Por longo tempo ficou ali,
dependurado e quieto, incapaz de resistir á contemplação da cena
que se lhe oferecia, como acontece com qualquer pessoa que espia
aposentos alheios. Enquanto isso Ben-Atar, atraído por odores
familiares e tomando todo cuidado para se manter em silêncio
absoluto, chega ao pátio traseiro e reconhece entre troncos e rodas
quebradas de uma carroça alguns sacos de peles e objetos de cobre
que tinham sido vendidos a Benveniste pela metade do preço na
última e malfada viagem a Barcelona.
Sufocado pela cólera, dominado ora pela dor, ora pela saudade,
Ben-Atar ordena ao menino com voz baixa, porém firma, que desça
das alturas e lhe conte, o que conseguiu ver. Ao que parece, os olhos
do menino não tinham conseguido se despregar dos estreitos olhos
de uma menina mais ou menos de sua idade, que o encarara
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firmemente sem pronunciar uma única palavra. "Se é assim, alcancei
meu objetivo", pensou excitado Ben-Atar, que envolve o rosto com o
xale, coloca o menino à sua frente e bate à porta, logo aberta por uma
velha serva com expressão bondosa. Antes que ela tenha tempo de se
assustar à vista daquela figura embuçada, o menino, que estava bem
instruído quanto ao papel a desempenhar, cumprimenta-a,
inclinando-se profundamente em uma graciosa mesura, com uma
delicadeza capaz de dissipar qualquer temor, mesmo o mais leve
receio, e pronuncia o nome que pairara silenciosamente diante da
proa do navio nas últimas oito semanas.
Embora apenas dois anos tivessem se passado desde o último
encontro dos sócios, Ben-Atar se preparara para encontrar Abuláfia
mudado. Mesmo assim fica surpreso com a aparência do homem que
desce ao seu encontro. E não pelo seu longo cabelo, ou pela palidez
de seu rosto emaciado, mas por uma nova expressão, uma espécie de
sorriso interior, espiritual, ainda que um tanto forçado, como se
estivesse sempre tentando compreender o segredo do mundo,
porém sem acreditar que isso fosso possível. Será que a Nova
Mulher realmente conseguira trocar a dolorosa lembrança da esposa
afogada por um sorriso espiritual? Até esse momento os olhos do
sobrinho ainda não tinham reconhecido o tio, que se afastara para a
sombra do umbral da porta. Contudo logo foram atraídos para o
menino, que se pôs a tagarelar com o dono da casa em árabe,
comovendo de tal maneira Abufália que ele não consegue se conter e
toca o garoto para estar certo de que aquele que se posta no limiar de
sua casa não é um sonho. Ben-Atar então abre o xale revelando o
rosto, e se delicia não tanto com o espanto, mas pela dor que se
espalha pelo belo rosto de seu sobrinho, que cerra os olhos como se
estivesse a ponto de desmaiar.
Abuláfia, porém, se recompõe de imediato. Sabia muito bem que
um desmaio no umbral da sua própria casa seria considerado uma
fuga, não só pelo visitante, como também por sua esposa e cunhado,
que correriam a socorrê-lo. Assim apressa-se a abraçar Ben-Atar, não
com aquele abraço forte e espontâneo de seus encontros de verão
nos bosques de Barcelona, mas com uma expressão macia e
desesperada, eivada de culpa e de sofrimento, e também com uma
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nova repulsa, um abraço que repelia ao mesmo tempo que segurava
com firmeza o viajante norte-africano. A imensa e impossível
distância que Ben-Atar percorrera para chegar até ali lhe confere
imenso prestígio aos olhos do dono da casa, que de pronto dissipa
em Abuláfia qualquer hesitação quanto à resposta a ser dada a seu
tio duplamente casado, quando este lhe pedir permissão para
desfrutar de sua hospitalidade. Minha casa é sua, disse ele com
clareza, repetindo depois as mesmas palavras em hebraico para
evitar qualquer mal-entendido, seja por parte do sócio recém-
chegado, seja por parte de sua Nova Mulher, cuja presença se
anuncia pelo farfalhar do vestido.
Mas o generoso anfitrião ainda não sabia que por trás do
solitário tio havia um velho navio patrulha ancorado não muito
longe dali. Entretanto, pelo brilho que agora lhe ilumina os olhos e o
rosado que lhe invade as faces, está claro que não teria modificado
seu convite se soubesse que a hospitalidade incluiria não só um
jovenzinho ainda não identificado, mas também um grupo
numeroso. Fica a cada minuto mais evidente que ele está inundado
de alegria ao ver aquele convidado que se materializara à sua frente
de maneira tão repentina, quase mágica, e sua excitação o faz curvar-
se afetivamente uma vez mais para a criança desconhecida e
bronzeada de sol, erguendo no ar, com cuidado suave e excessivo, o
garoto que por muitos dias oscilara no topo do mastro de um navio
temerário. A Nova Mulher, a senhora Ester-Míriam, percebendo que
fora vencida no primeiro embate, rápida como um raio e como
prenúncio à batalha seguinte, também sorri à criança aérea, bem
segura nos braços do dono da casa, que devolve o sorriso talvez na
esperança de receber, assim que fosse colocado de volta no chão,
algo para comer.
Não uma vez, mas muitas vezes Ben-Atar perguntara a si
mesmo, durante a jornada, quando o navio acalmava à noite,
rangendo sozinho no mar escuro sob o firmamento saturado de
estrelas, qual dos filhos de Satã o tentara a ponto de fazê-lo
abandonar seu lar e seus filhos e pôr em perigo não só suas duas
amadas esposas, mas também sua mercadoria numa empreitada
fantástica como esta. Por que insistia em reconquistar o coração do
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seu sócio Abuláfia? Poderia ter encontrado um ou até dois
substitutos para ele, que, ainda que não conseguindo negociar com o
talento e a lealdade de seu querido sobrinho, lograriam de qualquer
modo introduzir-se nos velhos mercados da Provença e de Toulouse,
proporcionando-lhe lucros decentes, que manteriam a honradez e o
prestígio do seu nome e a prosperidade de suas duas casas. A
conclusão era sempre a mesma: na verdade não era o coração de
Abuláfia o que ele tentava reconquistar por meio dessa louca
viagem, mas sim o coração de sua Nova Mulher. Porque, apesar de
nunca ter visto a face daquela mulher, nem jamais ter ouvido sua
voz, ele tinha consciência da sua importância, sobretudo a partir do
momento em que ela havia estendido de longe uma mão certeira
para feri-lo na sua dignidade.
O fato mesmo de ter o pensamento voltado para esta mulher
desconhecida e distante, cuja importância só fizera crescer à medida
que a viagem se alongava e que suas condições se tornavam mais
ásperas, permitiu a Ben-Atar manter-se firme em seu propósito, e
também infundir confiança e fé nos demais viajantes e na tripulação.
Ora, da soleira da casa que a serva ilumina com uma lanterna,
envolvido pelo manto colorido que as mulheres lhe haviam
costurado, Ben-Atar examina a nova parenta, que subira do vale do
Reno para unir-se a Abuláfia, e é invadido pela certeza de que a
longa viagem não fora em vão. Teve a convicção do acerto da
empreitada que o trouxera de tão longe para sustentar um embate
com esta mulher, que mesmo sendo dez anos mais velha do que seu
jovem marido, como evidenciam as finas rugas a lhe sulcarem o
rosto, ainda revela, nas têmporas proeminentes e nos olhos claros
como pérolas, vestígios de uma beleza peculiar e exótica que lembra,
por momentos, a beleza de um cão ou de uma raposa branca. Quem
sabe, continuou Ben-Atar a refletir, agora com um sorriso interior, se
não corre nas veias desta mulher intolerante e piedosa alguma gota
de sangue viking ou de algum saxão selvagem, que faz rebrilhar
aquele olhar de um azul profundo, que ela agora crava nos olhos
dele.
Capítulo 7

Na ampla sala, coberta por tapetes de lã e ricamente mobiliada,


foi-lhes servido o jantar. Entrementes, o viajante norte-africano
estava tão admirado com a rapidez e a facilidade com que fora aceito
naquela casa, a qual procurava com tanto empenho, que não
encontrava forças para provar a comida que lha era oferecida em
pesadas travessas de cobre fosco. Em vez disso observava o garoto
de Sevilha atacar os pedaços de frango servidos numa grande terrina
e saciar sua sede sofregamente numa portentosa taça de cristal que a
senhora Esther-Míriam voltava a encher com naturalidade para ele,
como se estivesse servindo água, e não vinho. Teria sido o aroma do
leitão assado e cortado em fatias em plena rua que provocara no
garoto uma fome tão intensa?, perguntou-se Ben-Atar enquanto
sorria constrangido para os anfitriões, como se ele próprio fosse, de
alguma forma, culpado por ter trazido de longe o rapazinho
faminto. Nesse contratempo, o bom vinho sobe à cabeça do jovem
comensal. O garfo lhe escorrega das mãos, suas pálpebras descaem,
e a pequena trança estilo marinheiro que deixara crescer durante a
viagem começa a oscilar, até ser vencido ali mesmo, à mesa por um
sono irresistível, fazendo com que a prometida hospitalidade passe
de um gesto convencional a um dever imperioso.
Um dever agradável porém. Vê-se claramente, pelos movimentos
emocionados da senhora Esther-Míriam. Por não ter tido filho de seu
próprio ventre, comove-se com toda criança que dela se aproxima,
em especial esse garoto moreno, que com cachos encaracolados
lembra tanto seu marido e que, segundo Ben-Atar, era também meio
órfão. Portanto, não surpreende que ela tenha esquecido, ou pelo
menos reprimido, a atitude de desaprovação que se impôs, e
chamado duas velhas servas para conduzirem o jovem visitante,
profundamente adormecido, ao seu quarto, e despi-lo com toda a
suavidade. Ignora que o sono das crianças é pesado como chumbo,
não como o seu, leve como a urdidura de uma teia de aranha.
Recomenda suavidade no trato com o garoto, em particular porque
nesta casa estão acostumados a cuidar de uma menina que desperta
ao menor movimento e se põe a gemer alto seus estranhos gemidos
atormentados. Pois, não obstante tenha sido proibido ali chamar a
filha de Abuláfia de enfeitiçada ou amaldiçoada, sua natureza inicial
não se modificara.
Mesmo Ben-Atar toma cuidado com as palavras ao avistar a
menina parada na porta da sala, trazendo à memória a imagem do
bebê que engatinhava no porão do navio na primeira viagem a
Barcelona, tentando enfiar-lhe os dedinhos nos olhos. O carinho lhe
enche o coração, e discretamente faz sinais para a menina, em cujo
rosto a beleza da falecida mãe luta contra o vazio da sua alma
deformada, para que se aproxime. Talvez alguma coisa realmente
cintile na névoa opaca de sua memória, já que não se apressa a
escapar, como de costume, daquele estranho visitante; deixa-se ficar
imóvel no umbral da porta, retirando-se apenas com a entrada do
dono da casa, o senhor Yehiel Lavinas, irmão mais novo da senhora
Esther-Míriam. No momento em que veio a saber da surpreendente
aparição do sócio rejeitado, percebeu astutamente não só que a
primeira rodada estava perdida, mas também que a segunda estava
em perigo, e assim antecipou-se e apresentou-se polidamente, ainda
que com certa frieza, para esse parente estranho e distante, que
agora o saúda com uma leve inclinação de cabeça. Sem perder
tempo, o senhor Lavinas se dirige ao norte-africano num hebraico
claro, simples, porém muito lento, como se fizesse questão não só de
enfatizar a diferença existente entre a pronúncia, o dialeto e o
vocabulário de ambos, mas também de evidenciar o abismo mental a
separar o Norte do Sul. E como, ao contrário de seu cunhado
Abuláfia, não tem nenhum sentimento de culpa em relação ao
visitante, não hesita em fazer, depois de algumas breves palavras
corteses, uma pergunta direta destinada a elucidar o propósito de
sua visita O rosto de Abuláfia estampa o constrangimento pela
rudeza do cunhado, claro e de baixa estatura como a irmã, mas cujos
olhos não têm a mesma transparência de joia dos olhos dela Todavia,
antes que Ben-Atar tenha tempo de formular uma resposta, Abuláfia
q p p
já tenta abrandar a pergunta, expressando-se habilmente em três
línguas Primeiro, na língua dos francos, dirige-se ao precipitado
cunhado, indicando-lhe quais são os limites que não se de\em
ultrapassar Depois, em árabe, reafirma àquele querido tio, que viera
de tão longe, a amizade incondicional a uni-los desde sempre Por
fim, na língua santa, que todos entendem, insiste com o fatigado tio
para que finalmente tome seu lugar à mesa a fim de provar a comida
que já começava a esfriar.
Contudo, Ben-Atar ficou satisfeito com a maneira direta com que
o senhor Lavinas lhe fez a pergunta, apoiado de longe pelos belos e
límpidos olhos da irmã Neste momento, não está preocupado
consigo mesmo, nem com sua fome ou seu repouso, apenas com o
navio abrigado na vegetação da margem do no, cuja preocupação
por seu dono, desaparecido naquela cidade estranha, paira sobre ele
como uma segunda vela Pequenas lágrimas inesperadas brotam de
repente de seus olhos ao ver aqueles judeus, cujo repúdio o obrigara
não só a empreender uma longa e perigosa viagem, como também a
ocultar deles a existência de seus companheiros e a se introduzir em
sua casa à noite, sozinho, acompanhado tão-somente de uma criança
estranha Assim, com os olhos fixos nos olhos amarelados do outro,
Ben-Atar responde lentamente, num hebraico claro e simples, como
se também ele se preocupasse em tornar patente não apenas a
diferença entre o sotaque e o vocabulário de ambos, mas ainda o
abismo a separar a religiosidade do Norte e do Sul Viemos aqui para
reclamar a justiça divina contra vocês e contra o seu repúdio, disse
ele, e para esse fim trouxemos conosco um sábio rabino de Sevilha
Teve o cuidado de não acrescentar mais nada, de modo que o plural
que adotara, e que por um momento surpreendera a ele próprio,
permanecesse vago Embora não quisesse revelar ainda a presença
das duas mulheres que trouxera consigo no intuito de que viessem a
ser aceitas como hóspedes na casa que abrira suas portas para ele,
também evitou ofendê-las, deixando de mencioná-las
deliberadamente.
Sua determinação de ser vago foi bem-sucedida Pois, apesar de
ter empregado o plural, nem a arguta senhora Esther-Míriam nem
seu cauteloso irmão poderiam imaginar a presença tão próxima das
p g p p
duas esposas em carne e osso. A notícia da chegada de um rabino
erudito e ingênuo, que haveria de querer disputar com eles até ser
derrotado, os alegrava, visto que ambos haviam crescido num lar de
estudiosos brilhantes, onde frequentemente o jantar ficava esquecido
por uma acirrada discussão em torno da interpretação de uma
passagem da Torah. Então, como outrora, trocaram olhares
animados, cheios de cumplicidade. E o judeu do Sul, no seu manto
multicor, os impressionou favoravelmente como possível
interlocutor, pois não viera pedir compaixão, e sim justiça, como os
verdadeiros judeus. É com alívio que juntam suas vozes às súplicas
de Abuláfia, exigindo que seu tio coma e recupere as forças, para que
depois vá ter ao leito preparado para ele. Pela manhã irá buscar o
rabino, que dona Esther-Míriam e o irmão estão ansiosos para
receber com todas as honras devidas a um erudito, antecipando
desde já o doce sabor da vitória.
Ben-Atar, entretanto, acredita na própria vitória. Não pela
esperança que deposita no rabino, mas sobretudo porque já imagina
como a presença feminina viva e colorida de suas duas esposas nesta
casa escura e cinzenta irá lentamente dissolver a resistência de seus
habitantes. Não por meio de uma inesperada citação bíblica ou de
um argumento engenhoso, mas simplesmente graças à naturalidade
da tríplice ligação amorosa, que se mostraria em toda a sua
humanidade diante de quem ousasse difamá-la. A visão do encontro
iminente já o empolga de tal maneira que ele quer retornar de
imediato ao seu navio. Seus anfitriões, porém, insistem para que se
sente à mesa. Assim, Ben-Atar, depois de ter lavado as mãos numa
bacia de prata que a serva cristã lhe oferece e abençoado o pão com
uma velha cantilena apenas murmurada, começa a comer. Prova
primeiro as duas metades de um ovo cozido, recobertas por um
espesso creme branco, a que se seguem pedaços de frango frito,
acompanhado por um molho escuro, guarnecidos por feijões, e ainda
uma grande salada de folhas verdes, salpicadas de amêndoas
moídas. Como arremate, pêras assadas no mel. Por ter comido
devagar e com toda a educação, como se quisesse expiar a pressa
voraz do jovem ao seu lado, sobrevêm dentro dele um grande prazer
em comer, e deixa-se tomar por um desejo poderoso e premente de
compartilhar esse prazer com as mulheres que deixara no navio.
No entanto seus anfitriões, que o acolheram em seu lar, são
igualmente responsáveis pela sua segurança, e o proíbem de sair a
essa hora tardia da noite, oferecendo-lhe, em contrapartida, um leito
próximo ao do jovem Elbaz, que o excesso de vinho já fazia roncar
como um marinheiro bêbado. Contudo, depois de tantos dias e
noites em que o mundo inteiro não cessou de girar em torno dele, o
norte-africano foi incapaz de encontrar repouso num quarto imóvel
e fechado como uma caixa escura. Não admira, portanto, que aos
primeiros raios de luz ele já esteja pronto para partir, depois de ter
deixado o filho do rabino aos cuidados da senhora Abuláfia, como
precursor dos que deverão chegar ao longo do dia, e como garantia
do retorno do marido, que com alegria acompanha seu tio sócio.
Como a casa está situada na margem sul do rio, não há necessidade
de esperar que os portões dos muros se abram para atravessar para a
margem setentrional — ou Margem Direita, como diz Abuláfia,
considerando a direção do fluxo do rio — pois podiam simplesmente
caminhar ao longo da margem sul — a que Abuláfia chama de
Margem Esquerda — até chegarem à curva onde o navio se oculta. É
chegada a hora de revelar ao atônito sobrinho, além da existência do
próprio navio, a riqueza da carga material e humana que ele carrega.
Ao longo dos dois anos de separação, Abuláfia nunca desistira
da esperança de que seu tio e sócio tentasse lutar contra o repúdio
que sua Nova Mulher e seus parentes haviam decretado. Nos
primeiros meses que se seguiram ao frustrado encontro de verão na
taverna de Benveniste, fora perseguido por visões fantasiosas, como
se avistasse de repente o esplêndido manto de seu tio nos becos da
Cite de Paris, ou entre as bancas do grande mercado em Saint-Denis,
ou ocasionalmente ao longo dos muros do convento de Santa
Genoveva. Porém, conhecendo bem o caráter de seu tio, Abuláfia
estava convicto de que um homem acostumado ao conforto e ao luxo
de duas belas casas numa cidade calma e temperada à beira-mar iria
poupar-se aos rigores e perigos que aguardavam os viajantes nas
longas e tortuosas estradas dos reinos cristãos às vésperas do
milênio.
Só agora, ao lado de seu querido tio no campo próximo à fonte
de Saint-Michel, é que percebe como sua imaginação fora pouco
ousada, voltando-se sempre para a terra firme, sem nunca considerar
o mar, e muito menos o grande oceano. O atrevimento e a audácia
de seu sócio, que persistira no plano de navegar em segredo até a
porta da sua casa, trazendo não apenas mercadorias, mas também
suas esposas, sem nenhuma garantia prévia nem nenhum indício
claro e palpável de que fosse surgir uma oportunidade para
convencer os parentes obstinados e fanáticos, inundam sua alma
com tanta alegria e compaixão que ele sente vontade de cair de
joelhos e pedir perdão por tudo o que fizera a seu benfeitor Porém,
renuncia a fazê-lo, pois sabe que um pedido de perdão equivaleria a
fazer uma acusação indireta à sua mulher, e tornaria vão tudo o que
ela se esforçara para lhe ensinar desde o casamento. Então, ele se
contém e se limita a cingir com grande emoção os ombros sólidos do
tio, como se pedisse apoio para seus passos inseguros pela vereda
escorregadia que serpenteia ao longo do rio.
Assim, na frescura dessa manhã do princípio do mês de
setembro do ano 999 do nascimento de Cristo, últimos dias de Elul
do ano 4759 da criação do mundo segundo os judeus, os dois se
apressam a ir ao encontro do navio, que pela primeira vez na longa
jornada passou uma noite sem a presença do dono Interrompendo-
se continuamente no desejo de recuperar o tempo perdido no
transcurso dos dois últimos verões na antiga estalagem que domina
a baía de Barcelona, estão de tal forma absorvidos pelo seu discurso
apaixonado que não se dão conta do caminho que foge rapidamente
sob seus pés, nem ouvem o som dos sinos do grande convento de
Saint-Germain-des-Près, cujos altos muros se erguem muito
próximos à fímbria do no Logo dão início a uma acalorada conversa
sobre negócios, na qual Ben-Atar se informa das preferências
manifestas e secretas do mercado parisiense, para ter uma ideia de
quanto poderá receber pela mercadoria trazida no bojo do navio E
embora o navio não esteja muito longe, o mercador não consegue se
conter antecipa-se e enumera em detalhes não só tudo aquilo que
seu exilado sócio logo haveria de ver com seus próprios olhos, como
também todas as coisas que tinham sido e já não eram mais, tais
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como a camelinha que fora separada de seu companheiro pelo
senhor de Rouen.
Não é com a possibilidade de ver o jovem camelo ou a de
deparar com as sacas de especiarias que a alma de Abuláfia parece se
tornar presa de grande agitação, mas sim com a de encontrar suas
duas tias a mais velha, da qual se despedira havia dez longos anos, e
a mais nova, que não mais havia visto, embora ela estivesse vivendo,
desde o casamento, em sua antiga casa, a casa do seu grande amor
perdido Todavia, a vista da robusta embarcação castanho escura que
o comandante conseguira esconder muito bem entre o denso
emaranhado da vegetação à margem do rio o faz esquecer por um
momento das duas mulheres Um grito de espanto lhe escapa da
boca ao perceber a solução engenhosa que Ben-Atar encontrara para
imprimir à nave um caráter admiravelmente equilibrado entre o
militar e o civil, com vistas a se lançar àquela aventura que só Deus
sabe como irá acabar.
Abraça mais uma vez o corajoso tio que não o abandonara, e cai
nos braços de Abu Lutfi que, ao reconhecer o jovem parceiro
desaparecido de longe, se apressa a descer da ponte e a correr-lhe ao
encontro gritando de alegria, abraçando-o e sacudindo-o com raiva e
afeto, com hostilidade e amizade, até quase sufocá-lo. O ilustre
visitante é então convidado a subir pela escada de corda até o
convés, onde o capitão se inclina diante dele numa mesura festiva,
ordenando a um marinheiro que agite bandeirolas azuis em honra
do hóspede, que logo mais será seu anfitrião. Manda então o escravo
negro ir correndo chamar o rabino, que surge de sua cabine confuso
e espantado, a roupa em desalinho. Admirado, Abuláfia arregala os
olhos ao ver o sábio andaluz. Beija-lhe a mão, pede-lhe a bênção e
lhe transmite as saudações de seu filhinho, que repousa agora sob os
atentos cuidados de sua esposa. Quando o sócio reencontrado desce
ao porão da embarcação onde o assalta o intenso perfume
magrebino da sua infância, dá-se conta de como esse navio patrulha
árabe castanho-escuro e marcado por cicatrizes é uma parte real e
preciosa de sua identidade. Seus olhos se enchem de lágrimas pela
dor da separação que lhe fora imposta e pela separação que ainda
estava por vir.
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As mulheres sobem então ao convés. Primeiro se aproxima a tia
mais velha, que, embora tenha engordado e o rosto se arredondado
bastante nos anos transcorridos desde que a vira pela última vez,
manteve a afável expressão de cordialidade que irradia para o
mundo inteiro. Ainda que, quando criança, ela por vezes o abraçasse
e o pusesse no colo, agora ele tem o cuidado de não se lhe
aproximar; apenas curva-se repetidas vezes diante dela, descrevendo
com a mão um triplo gesto de respeito: da fronte à boca, e dali ao
coração, para depois perguntar pelas crianças num murmúrio
emocionado. Porém, logo surge a outra tia, vestida com uma leve
roupa matinal, tímida e temerosa, sorrindo com dentes tão
brilhantes e perfeitos que ele enrubesce e, rápido, abaixa os olhos,
pois a juventude dela lhe fere o coração. Mas não é em si que pensa,
e sim na dor e na raiva que antevê como reações da esposa. Esta,
agora tem absoluta certeza, não aceitará se rendei aos argumentos de
Ben-Atar e colocar um ponto final no seu repúdio, nem que o rabino
da Andaluzia os assombre a todos com suas citações eruditas.
Abuláfla entretanto bem sabe que não pode retirar sua oferta de
hospitalidade, mesmo que tenha sido obtida por meio de alguma
astúcia Pois, embora a ideia de ter o tio e suas duas esposas
hospedados em sua casa lhe provoque verdadeiros calafrios, nunca
se perdoaria se permitisse que aquele homem — carne da sua carne
e sangue do seu sangue — que o próprio bom Deus havia conduzido
da sua terra natal até ali, fosse se hospedar em algum albergue
estranho, junto com as duas esposas, onde a comida duvidosa seria
inadequada não só para eles como também para Abu Lutfi que,
ansioso como sempre, faz questão fechada de mostrar a seu parceiro
do Norte as maravilhosas mercadorias recolhidas por entre as
dobras ocultas dos montes Atlas.
Por alguns momentos as coisas voltam a ser como tinham sido
no passado a penumbra que se difunde pelo porão do navio evoca
aquela reinante no estábulo de Benveniste, e até os surdos gemidos
do pequeno camelo solitário lembram os relinchos dos cavalos e
burros Mais uma vez, as sacas abertas exalam os odores pungentes
das especiarias, os dourados favos de mel exibem seu desenho
delicado e, dos esconderijos, emergem as adagas cravejadas de
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pequeninas joias Arrebatado pelo entusiasmo à vista das novas
mercadorias, Abuláfia se apressa a julgar sua qualidade e calcular o
seu valor. Enquanto conversa com o árabe, as tábuas do piso
ondulam com suavidade sob seus pés e as paredes se inclinam
sutilmente ao redor, pois fora dada uma ordem discreta a Abd el-
Shafi para levantar âncora, ultrapassar a curva do no e conduzir os
viajantes até o portal da casa onde a Nova Mulher os aguarda.
Mesmo estando longe de imaginar que neste exato momento
duas visitantes navegam para a hospitalidade de seu teto, uma seta
de incerteza vem se fincar no coração da senhora Esther-Míriam ao
pensar no norte-africano que há pouco cruzara o umbral de sua casa
Sem encontrar paz em seu espírito, vai até o pátio para deter o
irmão, que sela o cavalo para rumar para o sul, numa jornada de três
horas até um lugar chamado Ville-les-Juifs Vai ao encontro de um
mercador da Terra de Israel que chegara havia dois dias trazendo
uma pérola preciosa Este homem, que sempre soube acompanhar
com toda precisão o que se passava na alma da irmã, surpreende-se
ao vê-la implorar que não parta antes do retorno de Abuláfia com
Ben-Atar e o rabino Mas a quem ela teme?, pergunta o irmão Será
Ben-Atar? Ou o rabino? Ela se cala e não responde, porque, mesmo
não podendo imaginar a ameaça que navega preguiçosamente para
dentro do coração de île-de-France nesta manhã radiosa, já consegue
pressenti-la. Assim, gagueja e se confunde, O rabino..., e se admira
da própria resposta. E causa no irmão uma explosão de riso, que
assusta até o cavalo, impaciente para se pôr a caminho O que
poderia dizer o rabino de Andaluzia que pudesse assustar a irmã,
ela que era filha e viúva de homens doutos, importantes e
renomados? Nenhuma interpretação enganosa, nenhuma narrativa
bíblica conhecida ou obscura, nenhum pergaminho antigo poderiam
anular uma sentença clara, nova e correta, ditada pela realidade do
tempo e endossada por grandes e eruditos luminares. Em todo caso
— e aqui o irmão toca de leve o ombro delicado da irmã —, não se
deverá iniciar nenhum debate sem que antes se estabeleça um
tribunal especial, que talvez converta o vago repúdio em
excomunhão definitiva.
Com essas palavras claras, monta no cavalo e parte. Mas a irmã
está longe de ficar tranquila. Na sua aguda sensibilidade, custa a
acreditar que o sócio duplamente casado teria empreendido uma
viagem tão longa da África do Norte até ali simplesmente para
reivindicar uma sentença de uma corte rabínica pela afronta que
sofrera. Ainda na noite passada, pelos movimentos lentos e
decididos de Ben-Atar e seu olhar negro e suave, que não a deixava,
ela já compreendera que aquele homem, de inegável semelhança
com seu marido, e que invocara contra eles a justiça divina, também
conhecia perfeitamente a justiça terrena. Por isso quisera introduzir-
se em seu lar: para revelar-lhe alguma coisa da natureza humana
que ela ignora e que nem tem como saber, a menos que o garoto
acorde e lhe revele. Porém o vinho que fora entornado como água na
taça do menino se transformara em chumbo nas suas veias durante a
noite e, quando ela tenta acordá-lo e fazê-lo falar, ele apenas
mergulha num sono ainda mais profundo, enquanto a menina
muda, que desde a manhã a segue como uma sombra, irrompe
naquele seu uivo alto e contínuo de lamúria que persiste há um ano,
desde que lhe fora tirada a ama ismaelita.
Em meio a esse uivo, que se prolonga desde cedo e que agora
perfura o silêncio do meio-dia, surgem as duas esposas, carregando
seus pertences e seguindo as pegadas de Abuláfia, que decidira
acompanhá-las pessoalmente até dentro da casa, pelo
pressentimento de um desastre iminente. Acredita que assim se faz
um ato de justiça, ainda que temporária. Como Ben-Atar
permanecesse a bordo para ajudar Abu Lutfi e Abd el-Shafi a
abrandar as suspeitas dos guardas reais que haviam subido ao
navio, ancorado ao lado da pequena ponte, Abuláfia se encontra
sozinho ao defrontar com a mulher, o que faz com uma
determinação e autoridade completamente novas. Embora zangada,
a senhora Esther-Míriam fica fascinada com o novo tom enérgico do
marido, que lhe ordena que prepare três quartos: dois para as duas
mulheres e um terceiro para o rabino, que também aparece num
passo leve e tímido e saúda com linguagem poética e musical a
graciosa dona da casa, cujos olhos azuis já o fazem sentir falta do no
que acabara de deixar.
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"As minhas tias", repete Abuláfia para sua esposa, sublinhando o
vínculo familiar que o une a elas na tentativa de amenizar um pouco
a intensa vibração de cores, perfumes e irradiante sensualidade que
a entrada das duas mulheres traz para aquela casa de paredes
cinzentas e mobília escura, a ponto de fazer a dona da casa, sentindo
o chão lhe faltar sob os pés, precipitar-se em direção à cadeira mais
próxima para buscar algum apoio. Mas não é a nova e resoluta
expressão a estampar-se no rosto de seu jovem marido, nem o
sorriso receoso a perpassar o rosto pálido do rabino que a tornam
subitamente mais doce É antes a presença muda, tão submissa e
todavia tão séria das duas mulheres de rosto coberto por véus,
postadas à sua frente, que faz por alguns momentos a sua resistência
se esbater e subir ao céu, leve como uma espiral de fumo, junto com
a fumaça da chaminé de sua cozinha. E, ansiosa por demonstrar ao
marido que não fica atrás no cumprimento do dever da
hospitalidade, sem hesitar ela dá ordens às servas de preparar o seu
próprio quarto para receber a Primeira Esposa, e de esvaziar o
quartinho da menina de seus pertences para poder colocá-lo à
disposição da Segunda Esposa Ela própria conduz o maravilhado
rabino, com sua magra trouxa de roupas, até a cama do filho, onde,
exercendo a autoridade paterna, certamente conseguirá arrancar o
garoto de seu sono letárgico. Assim, tranquilizado com o
comportamento conciliador da sua amada esposa e com a sua
aparente resignação à derrota no segundo embate, Abuláfia se
despede dela calmamente e volta ao navio para examinar mais
algumas mercadorias. Mas a cordialidade mostrada pela senhora
Esther-Míriam não é senão uma artimanha e a prova de sua absoluta
confiança em um futuro juízo do céu, que lhe garantirá o triunfo
final sobre o espírito terreno que lhe invadiu rudemente a casa.
Em virtude da certeza do caráter temporário da sua derrota, a
senhora Esther-Míriam se permite expressar uma rendição tão
incondicional apenas como forma de poder, no devido tempo,
saborear com mais intensidade a doçura da vitória Assim, sem medo
de perder a própria dignidade diante das duas hóspedes, ela se une
às servas na troca dos lençóis e da colcha do seu leito conjugai, pois,
a partir do momento em que a bigamia, que tanto a desgostara e
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indignara de longe, se tornou uma realidade tangível na sua própria
casa, ela procura não fugir, mas, pelo contrário, se dispõe a enfrentá-
la Diz então às empregadas que tragam uma grande tina e a encham
de água tépida Com doçura, mas ao mesmo tempo com autoridade,
ordena às visitantes que dispam suas túnicas para que possam lavar
aquela pele perfumada, bronzeada pelo sol africano, retirando toda
poeira e suor acumulados durante a longa viagem.
Por isso, não foi através dos olhos do marido comum, mas sim à
luz do suave porém brilhante sol do meio-dia numa casa estranha e
distante, que a Primeira e a Segunda Esposa se viram, pela primeira
vez em suas vidas, na contingência de revelar uma à outra os
segredos mais ocultos da sua nudez e, além do mais, na presença de
uma terceira mulher Uma estranha, de pequena estatura, que com
seus olhos azuis não se contenta em olhar de longe, de um canto do
aposento, ela se aproxima e, tomando a jarra de água das mãos da
criada, lava as tranças emaranhadas, esfrega com esponja e sabão as
costas curvas e as barrigas macias, os seios fartos e pesados, as coxas
longas e bem torneadas. Enxuga as com toalhas macias, e constata
que a poeira acumulada na viagem apenas camuflara a diferença
profunda e genuína existente entre as duas Agora, rebrilhando de
limpeza, os corpos nus das duas mulheres a manifestam em sua
plenitude, embora ainda sem revelar o segredo que as une na
perfeição de um único amor.
Mas a senhora Esther-Míriam não pode esperar pelo retorno do
dono desse segredo que agora, em obediência às ordens da guarda
da ilha de Paris, está ocupado, retirando do antigo navio patrulha do
califa todas as velhas insígnias militares e artefatos bélicos reais,
decorativos ou imaginários, a fim de que a nave, para todos os
efeitos, ganhe uma aparência civil e obtenha a permissão para
ancorar no porto da cidade Assim, à hora do jantar, a esposa de
Abuláfia, apesar de sua habitual rigidez, decide não perturbar o
rabino de Sevilha, que, em vez de despertar o filho, fora
compartilhar do seu sono, e se dispõe a cear apenas em companhia
das duas mulheres, recém-saídas do banho restaurador Uma vez que
Ben-Atar nunca julgou oportuno ensinara suas esposas nenhuma
palavra na língua sagrada, qualquer conversa à mesa estava fora de
p g g q q
questão. Essa atitude deixa a anfitriã absolutamente mortificada,
pois tanto seu pai como seu primeiro marido, que Deus os tenha,
sempre a advertiram de que fazer uma refeição sem nenhuma
palavra dos livros sagrados era o mesmo que comer os sacrifícios
destinados aos mortos.
Assim, as três mulheres almoçam em profundo silêncio
Enquanto as duas convidadas provam cautelosamente os deliciosos
"sacrifícios aos mortos", e parecem flutuar, imersas num sonho doce
e macio, a anfitriã, determinada a não renunciar às palavras sagradas
da Bíblia, sobe ao andar superior e pede permissão à cunhada para
procurar entre os pergaminhos do irmão Por fim, encontra um
pergaminho desbotado, com o antigo e conhecido Cântico de
Moisés, e o lê devagar, verso após verso, para as duas mulheres, que
já haviam terminado a refeição Enquanto escutam em absoluto
silêncio, começam a sentir que o mesmo novo e pesado torpor que
prevalecera no aposento contíguo se insinua lentamente na sala de
jantar para apoderar-se de ambas Só agora, de fato, naquela sala
fechada e imóvel, abarrotada de móveis escuros feitos de madeira da
Floresta Negra, as duas mulheres intuem o mesmo que já haviam
descoberto o rabino e seu jovem filho que todo o sono que
conheceram durante sua longa viagem por mar não fora sono
verdadeiro, pois as ondas nunca, em nenhum momento, lhes
permitiam esquecer, nem sequer por uma fração de segundo, a
existência do mundo para além do sonho Dessa maneira, antes que
as fartas tranças recém-lavadas se inclinassem para os pratos vazios,
melhor seria interromper a leitura daquele antigo cântico, recitar às
pressas a bênção dos alimentos e conduzir sem demora as duas
mulheres atordoadas de sono para as camas em seus respectivos
quartos E se a senhora Esther-Míriam, agora sozinha à mesa, ainda
não irrompera em lágrimas de desespero, foi apenas porque seus
longos anos de viuvez lhe haviam ensinado, entre outras coisas, a
divina qualidade da paciência Porém à tardinha, ouve-se uma batida
suave na porta de entrada e a serva cristã introduz na casa o tio, Ben-
Atar, o antigo novo sócio que volta sozinho e se apresenta agora
diante da esposa não tão jovem de seu sobrinho com total
naturalidade, como um hóspede bem-vindo que já se acostumara ao
p q j
seu lugar Ainda sentada à mesa sobre a qual permanece o
pergaminho amarelado do último cântico de Moisés, a senhora
Esther-Míriam ergue a cabeça num sobressalto, enquanto sente um
frêmito percorrê-la à vista da súbita intimidade que o sócio bígamo
lhe impõe, depois de ter conseguido se insinuar astuciosamente no
seu lar através das feridas causadas pela culpa na alma do marido,
as quais ainda não haviam cicatrizado. A Nova Mulher percebe nele
um estado de satisfação, vê que os olhos estão brilhantes e calmos:
não só porque encontrara um local conveniente para atracar seu
navio, mas também porque pudera constatar o quanto as novas
mercadorias armazenadas no porão do navio tinham despertado o
interesse de Abuláfia, logrando reacender a velha centelha perdida
nos seus olhos. Então ele oferece à senhora Ester-Míriam a chance de
transformar a derrota de seu repúdio em uma vitória nova, comum,
de harmonia e amizade, e assim dizendo sorri e se inclina diante
dela polidamente, como se dissesse: apesar de ter me obrigado a
fazer essa longa viagem, eu a perdôo desde já. Ela, entretanto,
sufocada por uma onda de medo e repulsa, e não se sentindo mais
capaz de suportar a proximidade daquele homem, perde a paciência
e deixa a sala.
Contudo, Ben-Atar não perde a presença de espírito, quase como
se a embaraçosa e precipitada fuga de sua adversária derrotada não
tivesse realmente ocorrido, assim como na noite anterior não tinha
lhe parecido verdadeira a cor dos seus olhos azuis. No entanto,
sente-se mal na sala vazia, sem saber onde e como encontrar suas
mulheres nesta casa cheia de corredores estreitos e escuros. Notando
o pergaminho abandonado sobre a mesa, que a fome o faz ver como
se fosse uma tira de massa para biscoito, estende a mão para tocá-lo
quando ouve atrás de uma cortina a voz da Primeira Esposa, que
sempre desperta à sua aproximação como se, mesmo imersa no sono
mais profundo, estivesse sempre pronta para recebê-lo. Estaria ali
sozinha, ou com a Segunda Esposa? Com todo cuidado ele afasta a
cortina, encontrando-se numa câmara conjugal de paredes curvas,
pontilhadas de janelinhas estreitas, como olhos apertados à luz do
sol. Na semi escuridão, os odores estrangeiros fazem desaparecer o
cheiro familiar da Primeira Esposa que, à entrada do marido, afasta a
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leve coberta desnudando as grandes pernas nuas, e as cruza numa
postura tranquila porém explícita.
Pelo som dos seus passos ao entrar no quarto ela intui o bom
humor do consorte, satisfeito não só com a porta desta casa ter se
aberto de imediato tanto para ela como para a Segunda Esposa, e
ainda para o rabino, mas também por encontrar um lugar adequado
para o barco e sua tripulação. Assim, pensou consigo admirada,
pode até acontecer de essa viagem maluca que Ben-Atar lhes
impusera vir a se revelar um sucesso, e de a rede comercial entre o
Norte e o Sul recompor-se, voltando à vida. E neste caso, continuou
ela consigo mesma, eu estava errada ao imaginar que a melancolia e
a tristeza que se abateram sobre ele nesses últimos dois anos o
tinham feito perder o juízo e a sabedoria. E o prazer de dispor de
uma cama ampla e macia, além da alegria de ter um teto de verdade
sobre a cabeça, se junta ao sentimento de arrependimento,
combinado com o orgulho pelo sucesso do pai de seus filhos, o
marido sábio e forte, fazendo-o ainda mais desejado. Enquanto Ben-
Atar avança na direção dela na penumbra da câmara circular, a
Primeira Esposa despe a camisola, aproximando dele os grandes
seios perfumados.
Mas Ben-Atar se subtrai ao abraço. Não só porque não se sente
pronto nem merecedor de um ato de amor assim repentino, ainda
mais no quarto e na cama de seus parentes e anfitriões, de quem até
então não conseguiu conquistar nem a mente nem o coração, mas
também porque não sabe onde e a que distância se encontra a outra
esposa. Porém, quando tenta afastar a mulher, sussurrando-lhe no
ouvido arrebatadoras palavras de afeto, as carícias dela se tornam
mais veementes e seus suspiros se transformam em gemidos, de
modo que ele é obrigado a tapar-lhe a boca com uma mão enquanto,
com a outra, tenta acalmar com toques doces os seios pesados e
ardentes, que se comprimem contra o seu rosto, recendendo ao
perfume novo e fresco do sabão. Neste quarto circular, nesta cidade
estrangeira, Ben-Atar descobre, todavia, que durante os longos dias
de viagem a Primeira Esposa, assim como a Segunda, tornou-se mais
forte do que ele. Pois enquanto as preocupações da viagem sugavam
sua energia até a medula dos ossos, dia e noite, as duas mulheres,
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que viram a viagem transcorrer instaladas na velha ponte de
comando, entre o céu e o mar, livres de toda responsabilidade e sem
nada para fazer, acumularam forças, temperadas com alguma
selvageria. Agora a Primeira Esposa agarra seus cachos e os puxa
com força para si, não só para obrigar a mão que a sufoca a libertar
os sons de seu desejo, mas também para lhe permitir retirar mais
facilmente o manto que recobre a virilidade do marido — o qual,
devido à existência de uma Segunda Esposa, lhe deve mais do que se
fosse ela a única.
Perplexo e pego de surpresa, ele primeiro luta em silêncio contra
o desejo da Primeira Esposa na penumbra do aposento, até que seu
coração se apieda e ele a toma, pousando não a palma da mão, mas a
boca sobre a dela para abafar-lhe os gemidos, e satisfaz seu desejo
impetuoso. Depois, com um gesto de afeto, volta a cobri-la,
perguntando-se pelo paradeiro da Segunda Esposa, porque sabe não
só o que deve como também o que quer fazer agora, a fim de
demonstrar a perfeição do seu duplo amor. Porém, ao tentar se
levantar, descobre que o sono insidioso, que já envolve os demais
viajantes desde a noite anterior, o está dominando. Assim, por um
breve instante, volta a pousar a cabeça entre as fortes coxas da
Primeira Esposa, maravilhando-se uma vez mais com o refrescante
perfume do sabão da dona da casa. Entre as paredes arredondadas
deste quarto, de onde, através das minúsculas janelas, penetra a luz
rosada do céu parisiense mesclada ao alegre e rude tagarelar que
vem do caminho próximo à margem do rio, Ben-Atar fecha os olhos.
Mas permanece bem atento para não adormecer e não perder o
controle, justo agora, quando ao tagarelar de fora se junta, vinda do
interior da casa, a voz límpida e inquieta de sua dona.
Com delicadeza, Ben-Atar se liberta daquela cálida armadilha,
enquanto a Primeira Esposa se enrodilha toda e volta a dormir. Ele
se levanta, veste-se e, depois de ter tratado de alisar as pregas do
manto amarrotado, entra silenciosamente na sala onde se encontra a
senhora Esther-Míriam, de rosto afogueado, sentada no mesmo
lugar de antes, de frente para a velha criada. Aberto entre as duas jaz
o pergaminho amarelado com os versos da oração "Escuta, ó Israel",
como se a contemplação compartilhada da judia e da gentia pudesse
p p j g p
abrandar a ira e a ameaça contidas naquelas palavras. Desta vez,
contudo, a dona da casa não se apressa a levantar-se e cumprimentar
seu hóspede, talvez em parte por ter constatado que sua generosa
hospitalidade não deixara nenhum canto da casa para si própria.
Assim permanece calada a observá-lo. Se pudesse, também o teria
obrigado a lavar o corpo, como fizera com as duas esposas, pois ele
recendia não só ao sal do grande oceano como também ao aroma
rico e pesado das especiarias e das peles de animais. Mais ainda, a
julgar pelo olhar suave e denso que lhe turva os olhos, e talvez
também pelo odor de uma gota reveladora de sêmen na barra do
manto, ela, sem nenhuma possibilidade de defesa, sente-se ferida
como se por uma dolorosa facada ao constatar que, momentos antes,
ele tinha feito amor no seu próprio leito conjugal e perambulava
agora pela casa à procura da Segunda Esposa, a fim de provar à
dona da casa o quanto ela está enganada e mal informada a seu
respeito.
Um forte tremor a abala, como se o Deus do deserto, vingativo e
cheio de rancor, que acabava de amaldiçoar o mundo no "Escuta, ó
Israel", quisesse colocar à prova ela também. Não no deserto
longínquo, mas aqui, na sua casa, em seus mais íntimos recessos,
como se o que fora vetado e banido pelo novo edito emanado das
terras do Reno viesse a lhe ser revelado agora, como se revela um
incesto a uma criança. Profundamente perturbada, ela abaixa a
cabeça desviando o olhar, e leva o punho à boca num gesto infantil e
gracioso, enquanto os olhos azuis, cintilantes como duas legítimas
safiras, resplendem de espanto por entre as finas rugas que, como
arabescos, desenham-se nos cantos de seus olhos Ben-Atar a observa,
constata o frêmito de censura que a percorre nesse confronto, mas,
ao lembrar o que Abuláfia lhe contara ao lado da fogueira na Marca
da Espanha sobre os prazeres que ela lhe proporcionava, nada diz, e
apenas lhe pergunta delicadamente pelo paradeiro da Segunda
Esposa. Caminha então ao longo de uma passagem estreita e muito
escura até o quartinho onde paira ainda, entre as paredes cinzentas e
nuas, o espírito enfeitiçado da menina, embora ela tivesse sido
retirada de lá naquela manhã. Os últimos raios da luz crepuscular
que inunda a ilha vêm morrer docemente sobre a figura da Segunda
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Esposa, colhida pelo mesmo torpor que se abatera sobre os outros
viajantes hospedados ali. Embora Ben-Atar não tivesse nenhuma
intenção nem desejo de trazer a jovem esposa daquelas profundezas,
ele não esmorece, pois sabe que do outro lado da porta o aguarda a
mulher que busca converter seu fracassado repúdio numa expulsão
total e completa. Assim, à espera de que o rabino de Sevilha desperte
e saiba o que dizer a ela, cabe a ele mostrar com atos, e não com
palavras, que ela não tem razão, que o amor é possível quaisquer
que sejam o tempo e o lugar em que os amantes se encontrem Ainda
que exausto, ele, obstinado no seu intento, trata de manter-se
acordado e de acordar a mulher deitada à sua frente. Mas
exatamente por causa de sua juventude, a Segunda Esposa aferra-se
ao seu sono profundo e, quando ele tenta despertá-la com seus
beijos, ela o repele com toda a energia, ainda inconsciente,
defendendo o seu repouso com a determinação de quem defende a
própria virgindade.
Ben-Atar, não obstante a fadiga e a fome, não renuncia ao seu
propósito De fato, neste momento a fome é maior do que o desejo
por uma mulher. Assim como no seu absoluto cansaço imaginara ter
sido atacado pela Primeira Esposa, permite-se atacar a Segunda, e
devagar luta com ela para arrancá-la das profundezas do sono,
beijando todas as partes de seu corpo que se possam beijar, e não há
parte do corpo que não se possa Por fim ela se compadece dele, e
lambe-o de leve nos olhos para que ele os feche, e sejam os dois,
abraçados na mesma respiração, enfim colhidos pelo mesmo sono,
de modo que quando ele a possua não possa dizer se o ato terá sido
real ou sonhado.
Sempre sentada no aposento contíguo, junto ao seu pergaminho,
que a sua sombra faz parecer ainda mais severo, a senhora Esther-
Míriam espera impaciente a volta do marido, neste momento
entretido em passear pela Margem Direita em companhia de Abu
Lutfi, o qual descera à terra para descobrir o que atrai e o que não
atrai a atenção dos parisienses no mercado de Saint-Denis. Como
desde o dia em que a sociedade fora desfeita Abuláfia carrega no
peito uma sensação de culpa não só em relação ao seu bom tio, mas
também em relação ao amigo, o parceiro do deserto, cujo pranto na
g p j p
última despedida ele não consegue esquecer, trata agora o ismaelita
com toda a paciência. Mostra-lhe cada barraca do mercado, cada
prateleira, cada objeto, e traduz cada observação, como se não
estivesse hospedando pessoas importantes em sua casa, capazes de
perdoar sua ausência apenas porque estavam todos naquele
momento imersos em sono profundo Sua esposa, porém, não o
perdoa, e desce uma vez mais até o pátio para encontrar o que
chegar primeiro seu jovem marido ou seu jovem irmão, enquanto o
escoar do tempo e a aproximação da noite só fazem aumentar sua
inquietação. Por um átimo ela é tomada pelo terrível pensamento de
que, se nenhum dos homens jamais retornar, ela acabe se
transformando na Terceira Esposa do mercador norte-africano, que
se instalara em sua casa. Assim, quando o filho do rabino desperta
do seu sono profundo — pois é justo que aquele que adormeceu
primeiro seja o primeiro a despertar, não obstante a tenra idade —
aproxima-se dela, ainda sonolento, e instintivamente se agarra ao
seu avental, ela não se contém e prorrompe em lágrimas amargas,
que só o relincho do cavalo que vem trazendo seu irmão consegue
estancar. A expressão serena do senhor Lavinas a faz antecipar que
não só a pérola que fora buscar havia chegado em segurança, como
também que o seu preço fora razoável. Dispensando qualquer
palavra de boas-vindas, a senhora Esther-Míriam o informa de
imediato de tudo o que ocorreu na casa durante a sua ausência. O
leal irmão ouve, como de costume, com o semblante imperturbável,
mantendo o ânimo calmo e a mente lúcida, buscando acalmar a
agitada irmã mais velha com palavras tranquilas, que transmitem
segurança. O que há para se temer? Os decretos eram claros, e a
justiça natural os tornava irreversíveis. Se aqueles judeus de pele
escura exigiam um julgamento pelas disposições dos Livros
Sagrados, eles o teriam, e com toda clareza. Sim, pois entre uma
pérola e outra — já que vieram duas e não apenas uma — o senhor
Lavinas já conseguira convocar um tribunal especial em Ville-les-
Juifs, que poderá converter o nebuloso repúdio do passado na
definitiva proibição do futuro.
SEGUNDA PARTE

A jornada ao Reno ou a Segunda Esposa


Capítulo 1

No segundo turno da noite o rabino Elbaz é despertado por uma


fome repentina que o tira do seu sono, antes mesmo que ele possa
entender onde está. No mar, as estrelas no firmamento lhe
acariciavam os olhos que se abriam, e o ajudavam a se lembrar.
Agora, porém, seus olhos deparam apenas com uma treva espessa,
negra como carvão. Às apalpadelas explora o escuro que o envolve,
surpreendendo-se com a cálida presença do filho, adormecido a seu
lado. Já se acostumara a dormir sem ele, desde que o menino
insistira em descer às noites ao porão do navio, para arrumar a cama
ao lado da cortina da Segunda Esposa. Mas aqui está ele, como na
casa de modestas dimensões de Sevilha, de novo a seu lado,
pequeno e encolhido como um bebê, suspirando de vez em quando
como um velho.
Embora o quarto não esteja frio, o rabino estende a própria
coberta sobre o garoto adormecido, e vai em busca de algo com que
saciar a fome antes de sair ao ar livre, ansioso para sentir a abóbada
celeste sobre a cabeça, aliviando assim a sensação de abafamento.
Onde está Ben-Atar?, pergunta a si mesmo, vagando como um
sonâmbulo pelos longos corredores estreitos desta casa grande e
estranha, na esperança de encontrar uma fatia esquecida de pão.
Será que seu empregador já teria conseguido encontrar as esposas,
ou ainda estaria às voltas com a guarda parisiense a fim de provar a
pacífica disposição do seu navio? Por um momento tenta localizar o
mercador pelo cheiro de suas roupas Mas os novos eflúvios da casa
estranha já tinham adormecido a lembrança dos odores familiares de
seus companheiros de viagem Então, sem querer e com toda a
inocência, toca as costas macias e arredondadas da Primeira Esposa,
que logo se vira na cama com um resmungo mimado.
Encontra finalmente a cozinha, mas não acha nem uma côdea de
pão nem qualquer outro bocado esquecido sobre a mesa.
Empilhadas sobre a mesa viu apenas algumas panelas de ferro bem
lavadas, enquanto grandes caçarolas de cobre brilham à luz branca
da lua, penduradas na parede Se não viu nenhum sinal de comida,
todavia divisou uma escada em espiral que descia ao andar inferior,
onde a escuridão é tão densa que todos os sentidos são exigidos para
localizar a porta externa de ferro grosseiro, tão diferente das portas
de madeira graciosamente ornamentadas das casas de Sevilha Com
mais um esforço, consegue abrir silenciosamente os inúmeros
ferrolhos e aldrabas, de modo a escapar daquele breu para a fresca
brisa da noite, que o acolhe com seus difusos ruídos noturnos
Apesar de noite alta, Paris, estendida entre as duas margens, não
repousa completamente Logo ali, na deserta margem sul, ouve-se o
murmúrio melodioso de uma conversa entre um homem e uma
mulher. Aparentemente, para eles, esta não é uma hora avançada
demais para o amor Por um momento o rabino de Sevilha tenta se
aproximar sem ser notado, para se deixar envolver um pouco por
aquele amor, embora expresso numa língua estrangeira, mas o temor
de que sua aparição súbita fosse mal interpretada o retém Decide
então tirar de uma pilha de lenha preparada para o inverno um
grande tronco redondo, do qual arranca alguns pedaços de casca
macia, que mastiga, e sobre o qual depois se senta para desfrutar da
plácida luz da lua.
Uma mão leve pousa sobre ele. É o menino, que acordou e saiu a
procurá-lo. Também ele puxa um grande tronco, senta-se e criva o
pai das perguntas que agora, quase já no último quarto da noite,
parecem querer transbordar do seu coração É para chegar a esta casa
que eles haviam viajado por tantos dias e semanas? São estas as
pessoas que deveriam encontrar? Seria este realmente seu ponto
final, ou iriam ainda navegar no acima para algum outro destino?
Até ali o menino parecera ignorar o propósito da jornada que lhe
tinha sido imposta Cheio de entusiasmo juvenil, tinha se deixado
seduzir inteiramente pelo navio e por sua tripulação Porém, a partir
do momento em que desceram à terra firme, havia retomado sua
antiga natureza e sentiu muitas saudades da sua casa, de seus
primos e amigos, e das jardineiras cheias de flor, penduradas nas
paredes pintadas de azul-claro. Por que embarcaram naquele navio,
p p q q
pergunta, mal-humorado, ao pai, e o que vieram fazer nesta casa
sombria? E se Ben-Atar de fato resolver ficar ali com suas esposas,
quem os levará de volta para Andaluzia? Será que outro navio virá
buscá-los? Ou teriam de voltar para casa por terra? O pai tenta
tranquilizar o filho e, depois de lhe prometer que não estava longe o
dia em que voltariam a Sevilha, tenta explicar de novo o motivo da
viagem. Fala sobre a sociedade que florescera por muitos anos, da
sua dissolução como resultado do novo casamento de Abuláfia, e do
pânico de sua Nova Mulher ao saber da existência de duas mulheres
casadas com o mesmo homem. Contudo, vendo que seu filho não
consegue compreender a hostilidade da senhora Esther-Míriam em
relação a Ben-Atar, o rabino Elbaz traz para si a cabeça inclinada da
criança e olha bem nos seus olhos poderia ele, malgrado a juventude
e a inocência, compreender o temor da Nova Mulher? Penetrar o
significado dos argumentos que o seu pai estava preparando para
ela? Até por ter passado tantos dias num convívio tão próximo com
o mercador e suas duas esposas, não apenas no pequeno convés mas
também no bojo do navio, o menino pode testemunhar melhor do
que qualquer outra pessoa se havia ali algum sofrimento ou pesar.
Mas que pesar, e que sofrimento?, sussurra o menino para o pai,
atônito É justamente esta a questão, responde logo o pai, com um
sorriso Nem pesar, nem sofrimento E exatamente isso que vou
explicar para a Nova Mulher de Abuláfia, para que desista de seu
repúdio à sociedade Foi para isso que Ben-Atar afrontou os desafios
de uma longa viagem por mar e, não contente em vir ele próprio,
trouxe consigo as duas esposas, para que possam igualmente
testemunhar a seu favor Foi para isso também que trouxe consigo
um rabino para que sustente que aquele duplo vínculo é lícito aos
olhos de Deus Pois essa Nova Mulher considera muito a vontade de
Deus E, diz o rabino Elbaz dando uma piscadela para o filho, se você
também der seu testemunho da serenidade e do amor que
prevalecem entre as duas esposas Porém o menino, espantado com a
proposta do pai, e tomado de um vago terror, subtrai-se com decisão
às mãos paternas que o acariciam Não, não vai dizer nada Não sabe
de nada Não dirá nenhuma palavra O sorriso do rabino congela no
rosto, não só pela recusa terminante do filho, mas também pela visão
p p
de uma fila de monges trajado s de negro, que caminham pela ruela
cantando calmamente, e empunham varetas de incenso, seja para
expiar os pecados do dia que passou, seja para aspergir um convite
aromático ao dia que haverá de vir Todavia, a visão de dois
estranhos sentados, no meio da noite, à frente da casa dos judeus
lhes prega um enorme susto Por um momento ficam petrificados, até
que rapidamente se persignam e somem de vista.
Um tremor percorre o garoto à visão dos monges que
desaparecem na direção dos muros do mosteiro próximo a Saint-
Germain, cujo sino toca para saudá-los, e pede ao pai que voltem
para casa. Mas um novo pensamento perturba agora o pai, devido à
firme recusa do menino em acrescentar seu testemunho em favor do
duplo casamento de Ben-Atar Será possível que o garoto veja e
compreenda algo que eu não quero ver?, pensa consigo, e decide
examinar mais uma vez os pergaminhos que Ben-Atar trouxera de
Tânger, preparados pelo sábio Ben-Guiat, e encontrar talvez um
versículo apropriado ou uma parábola reveladora das palavras dos
sábios e dos antepassados que
possa fortalecer seus argumentos no debate religioso que os
aguarda. Desse modo, antes do raiar do dia, decide retornar ao navio
e remexer na arca de marfim que ficara esquecida, e ao mesmo
tempo matar a fome provocada pelo longo sono.
Porém o menino se recusa a voltar sozinho para a casa
desconhecida e escura, e insiste em acompanhar o pai, reforçando os
argumentos com a garantia de que se lembra muito bem do caminho
de volta Como não sabia que o navio do qual desembarcara havia
dois dias fora trazido para a própria ilha, ao vê-lo atracado logo
adiante o garoto primeiro nega que seja o mesmo navio, e insiste em
que se trata de outro barco simplesmente parecido com o seu Foi
uma árdua tarefa para Elbaz fazer com que o menino reconhecesse o
erro, talvez porque o velho navio patrulha realmente se transformara
e parecia mesmo ter encolhido nas horas transcorridas. A grande
vela triangular desaparecera por completo, assim como os velhos
escudos e ornamentos que adornavam os costados. Entretanto,
quando Abu Lutfi, que ouvira as vozes da discussão romper o
silêncio da noite, os chama do convés, o menino é forçado a
reconhecer que de fato é aquela mesma a embarcação cujo mastro
escorregara por entre suas pernas magras durante tantos dias, como
se já fizesse parte de seu corpo.
De imediato o escravo negro foi enviado à terra num bote para
recolher os passageiros que voltavam ao barco Apesar do pouco
tempo decorrido desde sua última despedida, Abu Lutfi estava
exultante de ter o rabino de volta ao navio, esperando que sua santa
presença pudesse restaurar alguma ordem a bordo — pois desde o
momento em que a nave chegara ao ponto final e fora ancorada na
margem norte do Sena, certa liberalidade começara a prevalecer ali,
não só devido à ausência do dono, mas também de suas duas
esposas, cuja presença serena e cortês amainava os ânimos da
tripulação. Assim, quando o rabino e seu filho sobem ao convés,
deparam com uma grande confusão de pratos sujos. e com um
grupo de bêbados dormindo esparramados diante de Abd el-Shafi.
Este, sentado na velha ponte de comando, enrolado numa pele de
leopardo que tomara dos depósitos sem permissão, cantarola uma
velha canção, que provavelmente fora entoada pelos vikings, ao
invadir esta mesma cidade cem anos antes Ao ver o rabino
caminhando pelo convés na sua direção, o capitão deixa escapar
uma expressão vulgar, daquelas que nunca visitaram seus lábios
durante toda a longa viagem Mas o rabino a ignora, indeciso como
estava entre procurar a caixa de marfim e sair em busca do que
comer Julgando, porém, que uma investida voraz à comida poderia
lançar suspeitas sobre a hospitalidade de Abuláfia e sua esposa,
decide descer ao porão e acalmar com figos e damascos secos a fome
terrível que o assalta No entanto o fiel Abu Lutfi, que já havia notado
a sua aflição, dá ordens expressas para que se prepare aos visitantes
uma lauta refeição, com peixes vindos do novo rio.
Até que seja cozida com todo o esmero essa ceia do terceiro
quarto, que já ia descobrindo uma fímbria de luz no céu da cidade
escura, o rabino sai à procura do baú de marfim Desde que o espírito
da poesia o dominara, ao largo da costa acidentada da Bretanha, esse
baú fora esquecido e desaparecera por completo da sua mente Mas
não consegue localizá-lo na confusão de roupas e objetos espalhados
pela sua cabine e tampouco entre os pertences de Ben-Atar Voltando
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a subir para a velha ponte, procura o pequeno cofre entre os rolos de
corda e sob a pele de leopardo que agasalha Abd el-Shafi, que o
contempla com olhos turvos pela bebida. Contudo, ali também não
encontra nenhum vestígio dele Será que Abu Lutfi incluíra o baú
entre as mercadorias a serem oferecidas à venda7 Com cautela
questiona o sócio ismaelita, que se apressa em jurar que jamais se
atreveria nem sequer a tocar numa caixa contendo palavras sagradas
Será que uma das mulheres o levara, então?, pensou o rabino Mas
elas não sabem ler Por consideração, pensa em enviar seu filho para
procurar nas cabines das esposas, porém acaba determinado a ir
sozinho, já que essa busca poderia trazer ainda mais alguma
informação nova e valiosa. Primeiro entra na cabine da Primeira
Esposa, na proa do navio, mas logo percebe que fora completamente
esvaziada, permanecendo no ar apenas um vago rastro de perfume.
Será que o temor de perder suas roupas e posses a fizera levar tudo
consigo, ou estaria se preparando para uma longa estada em terra
firme? Seja como for, a maior parte de seus pertences tinha
desaparecido, e o pouco que restava estava empacotado em ordem,
atado com um cordão vermelho e colocado ao lado de suas cobertas
cuidadosamente dobradas. Segue então o rabino Elbaz para a popa
da embarcação, onde quedava, solitário, o jovem camelo, fitando
tristemente por entre as pernas dianteiras um camundongo
parisiense. Antes de encontrar a pequena cabine fechada por uma
cortina, confunde-se um pouco no escuro, tateando entre as grandes
sacas. Por fim, com as mãos trêmulas, afasta a cortina tecida de corda
e, segurando uma vela, vai se dirigindo, encolhido e emocionado,
diretamente para o leito da Segunda Esposa, coberto por um confuso
amontoado de roupas e outros pertences, como se ela tivesse saído
apressada, com a intenção de voltar em seguida. Aqui, entre os
macios mantos de seda que perfumam as mãos, o rabino encontra o
baú de marfim, que poderia ter sido abandonado neste lugar por
acaso, ou cuidadosamente escondido para os propósitos de algum
ritual secreto.
Desde o falecimento de sua esposa, Elbaz não estivera assim tão
próximo das roupas e objetos de uma mulher, o que por um
momento o fez ser tomado pelo desejo. Mas ele se apressa a deixar
p j p
aquele lugar, abraçado ao pequeno baú guardado dentro da túnica, e
acaricia com ternura, ao passar, a delicada cabeça do filhote de
camelo, pela compaixão devida a todos os seres vivos, e talvez como
um meio de expiar os pensamentos escusos que o assaltaram
momentos antes. No convés encontra Abd el-Shafi, que descera de
seu posto na ponte para mostrar ao menino como se corta um peixe
em postas. Tão bem o filho do rabino aprende a lição que, sem que
lhe peçam, corta em postas também o peixe do pai. Este, incapaz de
se conter, atira-se sobre a carne branca e tenra.
Foi apenas ao esmaecer da estrela da manhã que o rabino,
saciado e levemente embriagado, consegue reexaminar os
pergaminhos que Ben-Guiat lhe enviara e compreender por que os
tinha negligenciado de tal forma durante os últimos dias da jornada,
a ponto de quase perdê-los. Os trechos dos relatos dos patriarcas,
juízes e reis que o sábio norte-africano selecionara e copiara em sua
caligrafia ampla e bela pareciam pueris e tediosos, muito distantes
da nobreza daquele triplo amor que convivera consigo por tantas
semanas. Assim, pede a Abu Lutfi, que não desviava os olhos dele,
que recoloque os pergaminhos no baú de marfim e o mantenha
escondido sob sua proteção, num lugar seguro ao lado do seu leito.
Enquanto o árabe, cheio de reverência, recolhe os rolos, estirando-os
e arranjando-os por ordem de tamanho, o rabino, ouvindo o
levíssimo roçar do casco na água, é tomado de ligeira comoção ao
sentir no ar vestígios daquelas relações íntimas ainda pairando na
embarcação — que se queda tranquila, a dormitar embalada pela
suave correnteza do rio — e entrecerra os olhos à luz que se faz mais
intensa, jurando para si mesmo, pela memória da sua amada esposa,
que de ora em diante se dedicará de corpo e alma à defesa da
integridade da família do dono daquela nave.
Sentado no convés e imerso em seus pensamentos, o rabino de
Sevilha não imagina que será chamado a exercer tal defesa ainda no
curso do dia que está lentamente nascendo e que revela a inquietude
da senhora Esther-Míriam, incapaz de fechar os olhos durante toda a
noite. Também o irmão, o senhor Lavinas, não obstante a lucidez e a
aparente segurança de que levará a melhor, pergunta a si mesmo se
o pequeno tribunal rabínico convocado às pressas no dia anterior em
p q p
Ville-les-Juifs será capaz de examinar cada aspecto da questão,
atingindo o seu cerne, e concluir os trabalhos antes do pôr-do-sol,
para que possa o quanto antes despachar aquele bando de
meridionais, instalados em sua casa com excessivo entusiasmo.
Embora Ben-Atar e sua pequena comitiva tivessem feito todos os
esforços para manter um silêncio educado durante a noite, a senhora
Esther-Míriam fora incapaz de evitar a sensação de que sua
existência tranquila estava sendo ameaçada. Como permanecera
acordada a maior parte do tempo, foi impossível não ouvir o ranger
dos ferrolhos na porta de entrada no meio da noite e os passos leves
desaparecendo lá fora. Primeiro tentara refrear-se, e não se mexera.
Mas depois de um longo tempo, vendo que as passadas que foram
não tinham retornado, descera e descobrira atônita que a porta da
frente estava escancarada, e lá fora não havia ninguém.
Experimentou então um estranho sentimento, festivo e no entanto
doloroso, de que talvez a Segunda Esposa houvesse decidido
desaparecer de repente, fosse pelo medo do que lhe traria o dia
seguinte, fosse pela culpa imposta pela bigamia. A ideia da jovem
morena a perambular sozinha pelas ruas perturbou-a de tal forma
que decidiu acordar Abuláfia para sair à sua procura e trazê-la de
volta, pois se sentia agora tomada pela compaixão.
Antes, porém, de acordar o marido, decidiu fazer uma inspeção
que pudesse confirmar suas suspeitas nos aposentos. Eis que a
Primeira Esposa de Ben-Atar ressona tranquilamente em seu quarto,
e também a Segunda, no lugar que lhe fora designado, o cubículo da
infeliz menina, onde dorme nua nos braços do marido. Ao perceber
o quanto sua imaginação estava longe da realidade, a senhora
Esther-Míriam reúne coragem para afastar a cortina do quarto do
rabino, e ali encontra não só uma, mas duas camas vazias. Será
possível, perguntou a Abuláfia de manhã, com um leve sorriso, que
aquele prodígio das leis, trazido especialmente da Andaluzia, já
tivesse fugido do campo de batalha? Abuláfia, contudo, se recusa a
acreditar. Não é possível, repetia. Por que haveria de fugir? Era
evidente que, por algum motivo, Abuláfia estava de muito bom
humor, como se guardasse algum outro segredo que sua mulher
desconhecia.
De fato, esse novo e feliz estado de espírito que se apoderara de
Abuláfia desde a inesperada e surpreendente chegada de seu tio
tinha despertado no coração da Nova Mulher uma angústia infinita
pela harmonia do seu casamento. Porque, apesar dos momentos de
alegria e de dor, ainda não estava claro se a pureza espiritual, e não
apenas mental ou física da sua união, havia realmente penetrado o
coração do seu jovem marido. Embora convencida de que o tribunal
convocado às pressas pelo seu irmão em Ville-les-Juifs teria a
capacidade de repelir essa invasão bizarra e inoportuna, tanto
pessoal quanto religiosa, que viera do Sul e os atacara a partir do
Oeste, mesmo assim não a deixava o temor de que oculto por trás
disso tudo houvesse um novo plano para reconstituir a extinta
sociedade. O que resultaria em novas viagens de Abuláfia, que mais
uma vez estaria exposto não só à ameaça dos salteadores de estrada,
mas também à tentação do duplo matrimônio, cujas virtudes seu
resoluto tio tratava de demonstrar na intimidade da sua própria
casa.
Assim, na clara luz da manhã, o rabino Elbaz, com grande
alegria de Ben-Atar e de Abuláfia, retorna refeito de sua visita
noturna ao antigo navio patrulha, depois de um passeio pelas ruelas
estreitas da ilha parisiense e de sua refeição à base de peixe. A
felicidade que esse retorno traz ao tio, e também ao marido, vela os
belos olhos da senhora Esther-Míriam que, mordendo os lábios finos,
desce ao pátio para procurar um pouco de conforto junto ao irmão,
ocupado em examinar as rodas da grande carroça onde serão
transportadas as partes litigantes até o tribunal. Ben-Atar não
renunciou ao propósito de levar com ele as duas esposas,
acreditando piamente que a presença delas a seu lado iria fortalecer,
e não enfraquecer sua defesa. Torna-se então necessário pedir ao
cocheiro para atrelar mais um cavalo à carroça, de modo a fazer
companhia ao robusto animal de pelos longos, já arreado e pronto
para a viagem. Sorte, riu consigo mesmo o senhor Lavinas, que o
sócio ismaelita permanecera no navio e não exigira ser considerado
partícipe da disputa legal; assim não seria necessário acrescentar à
carroça um terceiro cavalo. Estendendo uma moeda ao condutor
franco, manda-o alugar um dos cavalos que aram um campo
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próximo ao grande mosteiro. Embora Ville-les-Juifs não fique
distante e estivesse previsto que aquele assunto deveria estar
encerrado até o anoitecer, o sensato irmão da senhora Esther-Míriam
ordena às criadas que preparem comida e bebida em abundância,
como provisões para todos os viajantes, não importando de que lado
do front se encontrem, de modo que o processo possa transcorrer
num clima de satisfação e bom humor geral.
É nesse clima ameno de camaradagem que acusadores e
acusados se põem a caminho. Três deles tomam lugar de um lado da
carroça e quatro, do outro, enquanto o menino decide sentar na
boleia junto ao rijo condutor franco, que não cessa de se maravilhar
com a cor morena da pele do pequeno judeu. Assim que vencem a
rude encosta de uma colina, onde ainda se encontram esparsos
restos de pedras e colunas de mármore em estilo romano —
vestígios das lindas casas da cidade de Lutécia, que fora saqueada
por invasores vindos do Norte —, a estrada se torna plana e fácil,
passando por cabanas de camponeses, campos de cevada ou cercas
vivas de parreiras. A viagem prossegue tão tranquila que os
viajantes não se encontram nem um pouco cansados, quando, ao
meio-dia, transcorridas apenas três horas, o senhor Lavinas ordena
que se faça uma parada para o almoço num bosque encantador,
atravessado por um sinuoso riacho, e situado sobre uma pequena
elevação de onde se avista ao longe a propriedade de Ville-les-Juifs.
Talvez por estar tão convencido do claro veredicto favorável que o
aguarda, decide tornar essa refeição comum, que acredita ser a
última, a mais agradável possível. Para tanto, escolhe um lugar à
sombra das amoreiras, de onde se ouve o alegre gorgolejar do
riacho. A senhora Esther-Míriam o torna ainda mais confortável,
estendendo finas toalhas de mesa bordadas e dispondo elegantes
talheres tirados de um estojo. Seu irmão a ajuda a fatiar os longos
pães e o queijo escuro, e os oferece na faca aos três homens, em
primeiro lugar. Em seguida, após um momento de hesitação,
também às duas mulheres, as quais, desde o desembarque do navio,
sentem um vago temor que as faz ficarem bem junto uma da outra.
A mão firme treme sob os olhares que ardem sob os finos véus, e ele
se sente corar ligeiramente enquanto a boca, sob a barbicha, se
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arqueia em um embaraçado sorriso. Apressa-se a sacar das dobras
do manto um livro de orações encadernado em couro vermelho, na
versão do Rav Amram Gaón, com o intuito de compará-lo ao que já
vira de relance na bolsa de Ben-Atar, cuja versão era a do Rav Saádia
Gaón. E não o fez somente pela curiosidade erudita, mas também
para que a conversa sobre coisas da religião garantisse que a refeição
simples ao ar livre não transcorresse sem menção às palavras
sagradas.
Mas um pensamento perturbador atravessa de repente a cabeça
do rabino Elbaz. Com um gesto brusco, afasta de si o queijo e o pão,
e os coloca no prato do filho, sempre esfomeado. Depois, com o
espírito agitado, vai até o riacho para refrescar o rosto e as mãos na
água fria, e por fim dirige-se ao senhor Lavinas, ainda absorvido em
folhear os dois livros de orações com seus dedos finos, para
perguntar-lhe quem são os elementos que integrarão o tribunal que
os espera lá embaixo, no horizonte. Parece que Lavinas hesita um
instante, como se temesse enumerar os méritos particulares dos
juízes. Considera suficiente um elogio genérico às boas qualidades
dos judeus em Ville-les-Juifs. Tal é, de fato, o nome da extensa
propriedade de uma família abastada, povoada por artesãos, servos
e agregados onde, em uma grande prensa de uvas, é produzido um
vinho que, intocado por mãos gentias, torna-se apropriado para o
consumo dos que observam com rigor os preceitos judaicos de
pureza. Numa propriedade familiar, pequena como esta, onde as
pendências se resolvem por si, não é necessário um verdadeiro
tribunal de justiça rabínica. Entretanto, em consideração àqueles
judeus vindos de tão longe, e para satisfazer-lhes a exigência de
justiça, o senhor Lavinas decidira reunir um tribunal especial, um
tribunal dos campos e dos vinhedos.
De fato, uma sucessão de férteis campos e vinhedos dá as boas-
vindas ao grupo de contendores, antes que cheguem ao portão do
muro recoberto de limo que cerca Ville-les-Juifs, um pequeno burgo
de apenas oito ou nove construções de um só pavimento, dispostas
em torno de um pátio central. A julgar pela agitação das crianças de
cabelos longos que correm por ali, parece que os judeus do local já
sabem tudo sobre o debate que está prestes a se realizar na
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propriedade, entre parentes distantes. Sem dúvida, a notícia de que
um rabino fora trazido especialmente da Andaluzia para participar
da disputa inflama em particular a curiosidade dos habitantes locais,
já bastante excitados não só pelo prazer de uma boa discussão, como
também pelo teor picante da disputa.
Esse mesmo teor atraíra, como abelhas a um favo de mel, até um
ou dois cristãos, vindos de propriedades vizinhas, que expressaram
o desejo de estar presentes numa disputa entre judeus para quem
sabe até tentar auxiliar, graças à sua superioridade religiosa, na
formulação do veredicto. Como já se espalhara a novidade de que as
duas mulheres interessadas também estariam presentes, ficava claro
para todos que a pequenina sinagoga de Ville-les-Juífs não bastaria
para aquela reunião, e seria necessário um local mais espaçoso e
menos sagrado para conter um público tão grande. Por essa razão,
Meshulam Hacohen, proprietário do vinhedo e da prensa, e amigo
íntimo do senhor Lavinas, decidiu esvaziar o principal
compartimento da vinícola, localizado num patamar inferior, do
qual já haviam sido retirados os tonéis de madeira, tanto os grandes
como os pequenos, enquanto os barris de vinho iam sendo
empilhados uns sobre os outros. Com a madeira subtraída às pilhas
já prontas para o inverno que se aproxima, constrói-se um pequeno
palco elevado, sobre o qual vão se acomodar os juízes para poder
seguir o debate e, ao mesmo tempo, espiar a reação do público
postado ao fundo.
Mas quem serão os juízes?, volta a perguntar o rabino Elbaz a
Ben-Atar, sem obter uma resposta. Emocionado e silencioso, desce os
degraus de pedra áspera que conduzem ao amplo compartimento,
cujo piso empoeirado é manchado de rosa pelo suco de uva que uma
grande prensa de madeira verte para um depósito fundo e redondo,
de onde exala a doçura perfumada do líquido espumante. E lá já o
espera a comunidade de judeus, composta em sua maioria de
trabalhadores da vinícola. Judeus barbados, de cabeça descoberta,
vestidos em roupas rotas e desbotadas. Não longe dali se encontra
um grupo de mulheres de rosto descoberto, o cabelo maltratado
coberto por
pequenos lenços, os pés descalços, manchados pelas uvas pisadas.
Crianças desgovernadas se embarafustam entre os homens e as
mulheres, como pequenos emissários, com sua tagarelice gutural
misturada com ocasionais palavras na língua santa, de pronúncia
bastante estranha. Mas quem escolherá os juízes?, pergunta de novo
o rabino, que hesita em descer ao pavimento inferior, resistindo a
encarar de frente o fato de que, desta maneira apressada e sem os
preparativos necessários, estavam correndo o risco de deixar escapar
aquele momento crucial e tão esperado pelo qual haviam desafiado
as ondas do mar por mais de quarenta dias.
Os juízes já foram escolhidos? O rabino não desiste e continua
puxando com força a barra do manto negro de Abuláfia, que dá de
ombros, demonstrando não saber, e conduz com delicadeza as duas
tias, a nova e a antiga, atentas a erguer a barra de suas túnicas
coloridas para não varrerem os degraus poeirentos. Apresenta-as
então ao proprietário do vinhedo e da vinícola, que por sua vez está
orgulhoso por lhes apresentar um hóspede, um corpulento mercador
de pedras preciosas, com um turbante verde à cabeça, de ar atento,
um genuíno radanita, chegado havia alguns dias do Oriente, tendo
cruzado a terra de Israel com duas grandes pérolas sobre cujo valor e
preço o senhor Lavinas, na véspera, não cessara de especular. Já se
misturam acusadores e acusados, e são oferecidos às visitantes do
Magreb dois barriletes de vinho cobertos por macias tapeçarias. A
seu lado está a esposa do proprietário do vinhedo, uma mulher alta
de rosto delicado e doentio. Mas não é possível que tudo seja
conduzido com tamanha ligeireza, pensa o rabino Elbaz, com o
coração cheio de dúvidas, tomado de repente de compaixão pela
Segunda Esposa, sentada silenciosa e ereta, o véu esvoaçando pela
ligeira brisa que bem pode ser o prelúdio do outono.
Mas por quais critérios foram escolhidos os juízes?, repete ele,
exigindo uma resposta imediata do senhor Lavinas, que abre agora
uma porta lateral e faz entrar três homens magros vestidos em
empoeirados cafetãs negros, trazendo um grande rolo de
pergaminho e uma pequena prancha de vidro esverdeado. Eram
escribas, calígrafos velozes, especializados em copiar os livros
sagrados, filactérios e mezuzat — amuleto colocado no marco direito
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da porta da entrada da casa dos judeus, contendo um pergaminho
enrolado, no qual estão escritas duas orações: "Shemá Israel" e "Ehie
im Shmoa", ambas versículos do Deuteronômio. Os três foram
trazidos de aldeias vizinhas para constituir o tribunal. Escribas?,
murmura o rabino andaluz, demonstrando estar profundamente
desapontado ao ver aqueles três que tentam compreender as
Escrituras à custa de as copiarem vezes e mais vezes. Porém o senhor
Lavinas os tem em alta conta. Eles saberão julgar com base no que
está escrito nos livros. Mas quais livros? E por que livros?, protesta
veemente o rabino Elbaz. Se esses fatos todos estivessem escritos e
comentados nos livros, será que teria consentido em deixar sua
querida Andaluzia e lançar-se ao oceano para exigir justiça para seu
cliente? Teria ele permitido que Ben-Atar colocasse em risco a vida
de suas esposas por algo que já está definido num livro? Mas as
palavras do rabino estrangeiro não causam nenhuma impressão
sobre o senhor Lavinas, que as descarta com um sorriso indiferente e
educado e continua a encaminhar seus três juízes até o pavimento
inferior. Nada resta ao furioso rabino senão apressar-se a antecipá-
los, saltar para a pequena plataforma e, num grito selvagem, que
ninguém suporia estar guardado num ser tão gentil e sonhador
como ele, exigir que os juízes sejam substituídos imediatamente.
Silêncio total. Todos ouviram o grito, mas devido ao seu
estranho sotaque apenas alguns poucos o entenderam, e um deles foi
o senhor Lavinas, que se apressa a silenciá-lo. Abuláfia, porém,
extremamente abalado com o grito do rabino, agarra o ombro do
cunhado para refreá-lo. Mesmo sabendo que dentro em pouco será
chamado a se defender das acusações proferidas pelo mercador do
Sul, uma estranha esperança brota em seu coração. De que os
argumentos da defesa não surtam o efeito esperado, e as razões do
bom tio ultrajado, sustentadas pela sabedoria do rabino, façam
pender a favor de Ben-Atar o prato da balança. Assim, embora
derrotado, Abuláfia ficaria livre para retomar suas viagens e
comparecer aos encontros azuis de verão na Marca da Espanha.
Como tivesse compreendido perfeitamente o grito do rabino
exigindo a substituição dos juízes, que com certeza já haviam
prejulgado o caso, vira-se para a esposa, cujos olhos, de um azul
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intenso, tomados pela inquietude desde as primeiras horas da
manhã, haviam se tornado cortantes e cinzentos como aço a esta
hora da tarde, e, com voz fraca, implora que rogue ao irmão para
que se mostre magnânimo em relação aos hóspedes vindos de tão
longe, com risco da própria vida, e concorde em trocar os juízes por
pessoas mais adequadas.
Adequadas para quê? Ela se vira surpresa para encarar seu
jovem marido de cabelos encaracolados, e com o olhar dolorido e
cansado de uma noite insone perscruta os três magros escribas que,
confusos pelo súbito repúdio que os atingira, se apertam uns contra
os outros, piscando os olhos ofendidos. Adequados para quê?,
pergunta de novo a senhora Esther-Míriam, zangada, no que é
secundada pelo irmão e pelo desapontado proprietário do vinhedo,
que desde o dia anterior vinha fazendo a ronda das vilas e
propriedades vizinhas para trazer até ali os três escribas. Contudo,
enquanto Abuláfia insiste em explicar à esposa de que maneira se
poderiam encontrar verdadeiros juízes, estudiosos das Escrituras,
dotados de excepcional sabedoria, capazes de satisfazer os visitantes,
que buscam até mesmo neste lugar tão ermo e remoto o espírito da
sabedoria de Andaluzia, o rabino Elbaz se apressa a pacificar os
participantes decepcionados, explicando que ficaria satisfeito com o
espírito dos ancestrais, que é o verdadeiro espírito, e que poderia
transformar, digamos, toda a congregação de bons e simples judeus
numa verdadeira corte rabínica capaz de julgar e salvar o acusado ou
o acusador, tal como está escrito em palavras claras no Livro do
Êxodo: Inclina-te diante da multidão.
Até mesmo o senhor Lavinas, um homem erudito e perspicaz, se
confunde com a surpreendente sugestão do rabino de Sevilha. Antes
de mais nada tenta ler nos olhos da irmã a reação dela à ideia de pôr
nas mãos de uma comunidade de pisadores de uvas, roladores de
barris e vendedores de vinho, aqui reunida por mero acaso, o
destino de uma disputa que ele já considerava favas contadas. No
entanto, antes que consiga atrair-lhe o olhar, surpreende-se com a
pergunta que ela faz ao pequeno rabino, sussurrando em voz baixa,
porém clara: Todos eles? Todos mesmo? Inclusive as mulheres?
Antes de poder amenizar a pergunta descabida da irmã mais velha,
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já o rabino Elbaz volta a surpreender com a resposta, num sussurro
entusiasmado: As mulheres? Porque não? Afinal, elas também
tinham sido criadas à Sua imagem. Será que a mente desse rabino se
embotou por completo, ou quem sabe, pelo contrário, é ele quem nos
conduzirá ao bom caminho? O mercador norte-africano se entrega a
uma meditação profunda, enquanto observa o rosto sorridente do
sobrinho aproximar-se dos finos véus de seda de suas esposas para
sussurrar em suas orelhas delicadas, adornadas de brincos de ouro, a
tradução no idioma pátrio das palavras surpreendentes trocadas por
uma mulher perspicaz e um rabino poeta. Não parece que a
novidade tenha despertado temor ou pânico nas esposas de Ben-
Atar, apenas grande curiosidade, a ponto de não mais se conterem e
tirarem o véu que lhes cobre o rosto. A Segunda Esposa remove o
véu, e a Primeira logo a acompanha, para que possam ver melhor,
com seus olhos negros com cintilações azuis, os homens e as
mulheres de Villeles-Juifs, que também as observam com rostos
sorridentes, nem de longe suspeitando que logo se transformariam
em seus juízes.
Todos eles? Como é possível?, Será o caos total, gemeu o senhor
Lavinas para sua irmã e o rabino, subitamente aliados. E o refinado
parisiense é logo secundado pelo proprietário do vinhedo, alarmado
pela ideia de converter seus empregados em juízes. Assim, após uma
breve troca de palavras, concordaram ambas as partes que, segundo
o espírito das antigas leis, bastaria selecionar sete juízes, que
deveriam ser os sete homens justos da cidade. Porém, levando-se em
conta que não se tratava de uma cidade, e que os viajantes
estrangeiros não tinham a menor ideia de quem poderiam ser as
melhores pessoas, os juízes teriam que ser escolhidos por sorteio.
Para esse fim, o jovem Elbaz, que estava sentado num barrilete a um
canto, aspirando profundamente o perfume do vinho em maturação,
é levado para fora, com os olhos vendados por uma banda de pano,
para, completamente cego sob a luz dançante entre as copas das
árvores, escolher, com as mãos estendidas, sete pessoas ao acaso.
Silêncio profundo desce sobre todos enquanto a criança vendada
hesita. A princípio não se move, mas logo caminha com passos
pequenos e cautelosos em direção à mulher alta de rosto doentio, a
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esposa do proprietário da vinícola, e coloca devagar as mãozinhas
sobre seu ventre macio, como se já tivesse decidido, ainda antes de
ter os olhos vendados, fazer dela sua primeira escolha. Mas ele se
assusta com o gesto atrevido, recua e colide com um dos escribas,
que se colocara deliberadamente no seu caminho para forçar o
menino a escolhê-lo. Só agora o mundo que se estende para além da
venda se torna, por fim, compreensível para o garoto, que percebe
no profundo silêncio a respiração contida do grupo de pessoas, para
o qual se volta resoluto. Por algum motivo, porém, os judeus recuam
assustados ao ver o menino vendado que avança para eles. Todos,
exceto uma jovem de rosto suave, uma das pisadoras de uvas, que
permanece imóvel como se convidasse o jovem estrangeiro a tocá-la.
E de fato ele a toca com as mãozinhas que acariciam suavemente o
seu rosto. Até que uma outra mulher, pelo visto enciumada, dá
alguns passos em sua direção, e o menino se volta para ela. Seus
dedos lhe percorrem o seio, e, sem se perturbar com esse contato, o
menino vira-se para a direita, onde uma terceira mulher espera por
ele, e também a toca num gesto rápido. Enquanto se ouve o riso
sardônico do senhor Lavinas, e um murmúrio de censura de seu pai,
o rabino, uma quarta mulher, velha e banguela, se aproxima dele,
procurando ser tocada. O jovem apalpa com os dedos o rosto
enrugado, se assusta, enfia rapidamente as duas mãos nas dobras da
pequena túnica e, petrificado, não mais se move. Agora o pai é
obrigado a vir salvá-lo das mulheres que investem sobre ele. Faz
com que o garoto gire algumas vezes e volta a conduzi-lo de volta à
pequena plataforma. Parece por um momento que ele vai mais uma
vez caminhar na direção da mulher alta de rosto doentio e tocar-lhe
de novo a barriga, porém seu pai o dirige delicadamente ao
mercador radanita vindo da terra de Israel que, sentado imóvel, a
farta barba negra repousando calmamente sobre o peito, aparenta
estar se divertindo bastante com a cena que se desenrola à sua frente.
Devagar o menino retira uma só mão das dobras de sua pequena
veste e com muita cautela a estende à sua frente, até encontrar a
espessa barba.
Agora, escolhido o sétimo juiz, e retirada a venda, uma nova
preocupação assalta o senhor Lavinas. Apontando a luz do sol que
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morria por entre as árvores, sugere que todos eles, réus e queixosos,
testemunhas e juízes, unam-se na oração vespertina, o que deverá
também servir como uma discreta indicação aos visitantes cristãos
de que é chegado o momento de se retirarem.
Capítulo 2

Assim, foram todos até o poço tirar água para a lavagem ritual
das mãos, reunindo-se depois para a oração da tarde. Logo os fiéis se
dão conta de quanto o rito comove Abuláfia, que arde de desejo de
conduzi-lo com sua voz melodiosa. Desde o início do serviço o
proprietário da vinícola e o senhor Lavinas tentaram impedir o seu
intento, cantando mais rápido ou mais devagar, mas por fim
desistiram. Não porque a voz de Abuláfia soasse mais alto do que a
deles, mas porque no seu canto havia uma melodia deliciosa e única,
que encantava os fiéis de Ville-les-Juifs e os incitava a acompanhá-lo.
A senhora Esther-Míriam, embora ainda desconcertada com a
facilidade com que o júri se enchera de mulheres, faz um sinal
discreto ao irmão para que desista daquela espécie de competição e
permita que Abuláfia se entregue por inteiro aos seus ornatos e
floreios, que a seduziram, embora não consiga lhes identificar a
origem. Ben-Atar, porém, que pela primeira vez na vida estava tão
próximo de suas esposas nas orações, sentindo de perto a alma de
ambas, identificou de imediato a origem dos floreios do sobrinho
com o chamado do muezim vindo do minarete da mesquita de
Tânger. Espantoso, pensou Ben-Atar, que depois de todos esses anos
ele conserve no seu canto a forma do fraseado muçulmano daquelas
praias, ainda que o entremeie com outras melodias, que a julgar pelo
ritmo eram inspiradas em canções dos camponeses locais.
Deve ter sido por esse motivo que os três cristãos que tinham se
misturado aos judeus a fim de desfrutar da vista das duas mulheres
bonitas, mesmo que cobertas de véus, e que pertenciam legal e
naturalmente a um único homem, não tinham saído no início das
orações dos judeus, deixando-se ficar deliciados com aquela melodia
que lhes é vagamente familiar, vibrando com uma modulação
desconhecida ao se fundir ao latim dos judeus. Quando Lavinas
percebeu que os três insistiam em permanecer, abreviou o intervalo
entre as orações da tarde e da noite, e antes mesmo que aparecesse a
primeira estrela no céu, sinalizou para que se desse início à oração
da noite, na esperança de que quando alcançassem o "Escuta, ó
Israel", e a escuridão e o silêncio se enchessem com os vultos dos
judeus de olhos cerrados, imóveis, as mãos cobrindo o rosto,
parecendo misteriosos adivinhos, algum secreto temor pudesse
fazer, afinal, com que os convidados indesejáveis partissem. De fato,
quando duas ou três tochas foram acesas ao final do serviço, e os
cachos de uvas suspensas em ganchos ao redor do salão voltaram a
desenhar sombras fantásticas nas paredes, nem mais um único
estranho restava no salão da vinícola a procurar diversão entre os
judeus.
Talvez tenha sido essa seriedade solene que desceu sobre a
comunidade judaica de Ville-les-Juifs depois das duas belas orações,
que encerraram o dia com o duplo selo de exaltação e santidade, a
inspirar temor nas quatro mulheres sorteadas. Assim, ao convidarem
a mulher alta, a dona do vinhedo, a subir ao pequeno palanque de
madeira, seguida pelo mercador oriental de rosto agradável, e logo
após o escriba, magro em sua empoeirada capa negra, mas também
sério e sinceramente decidido a representar seus dois colegas
rejeitados, surgiu a dificuldade de juntar a eles as quatro "juízas",
pois ficou claro que elas não haviam entendido bem quais seriam as
consequências do tão almejado toque do menino moreno. Agora elas
se amontoam num canto, agarradas umas às outras, assustadas
demais para subir à pequena plataforma. Neste ponto intervém a
senhora Esther-Míriam, que, apesar de acreditar na justiça de um
veredicto decidido por três juízes, exige a presença de mais mulheres
no júri, de modo a que sua fúria e sua feminilidade ferida pudessem
ecoar no coração de Abuláfia até o fim dos seus dias, afastando dele
qualquer sombra de pesar por um eventual matrimônio duplo que
poderia ter contraído se não tivesse deixado o Sul. Então, numa voz
doce que encobre não pouca severidade, ela induz as três jovens e a
velha colhedora de uvas a desgrudarem umas das outras e irem ter
com os três que já estavam acomodados, com ar importante, sobre
barriletes de vinho cobertos por velhas peles de raposa, iluminados
pela luz bruxuleante de uma tocha.
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Está tudo pronto. Se não são "os sete homens justos da cidade",
como exigem as Escrituras, e sim apenas sete pessoas comuns que
foram escolhidas ao acaso, os que se acomodam sobre o palco, é
simplesmente porque há quase mil anos não se encontra nenhuma
cidade inteiramente judaica, mas tão-somente pequenas e dispersas
comunidades de hebreus que adversidades e ameaças obrigam a
vagar constantemente de um lugar para outro e a se misturar entre
si. Portanto, não há mais nada que impeça Ben-Atar de levantar-se e
proferir seu discurso de acusação, que o trouxe até aqui, percorrendo
uma grande distância que, agora, depois da dupla oração ao
anoitecer, parece-lhe bem pouca coisa. Talvez por isso ele ainda
pareça hesitar, imerso em seus pensamentos, até que o rabino Elbaz
é obrigado a lhe fazer um sinal de incentivo. De fato, desde que o
mercador e seu grupo entraram naquela tarde no pátio interno de
Ville-les-Juífs, e foram dali para o salão da vinícola, o ânimo de Ben-
Atar pareceu esmorecer. Era como se não tivesse imaginado que
aquele repúdio, que da África lhe parecera uma reação apavorada
dos judeus temerosos sobretudo do julgamento dos cristãos, pudesse
materializar-se diante dele, revelando-se em sua inteira realidade. E
não é que, há apenas dois dias do desembarque, Ben-Atar já se
encontra diante de um estranho tribunal convocado às pressas em
um salão sombrio de um vinhedo distante, e, pela primeira vez
desde que concebera a ideia da viagem, experimenta uma vaga
ameaça de derrota.
Mas, para sua surpresa, não sente piedade de si próprio, nem de
suas duas esposas, que haviam sido obrigadas a deixar seus filhos e
suas casas, mas sim de seu parceiro ísmaelita, Abu Lutfi, que
permanece sentado, assim o imagina agora Ben-Atar, no escuro
porão do navio, ao lado do camelo solitário, orando a Alá pelo
sucesso de seu parceiro judeu, embora jamais, jamais consiga
compreender, por mais vezes que lhe expliquem, por que um
mercador judeu, que vive com suas esposas e desfruta do respeito de
todos, judeus e ísmaelitas, deva se preocupar com o repúdio de
judeus longínquos, que vivem em florestas sombrias às margens de
rios selvagens no coração de um continente remoto.
Ao sentimento de culpa e à compaixão que Ben-Atar
experimenta em relação ao árabe, que investira, e que continuaria a
investir sua força e seu dinheiro em uma viagem da qual não
alcançava compreender o motivo, vêm se juntar intensos sentimentos
de revolta e pesar. Com severidade, perscruta o rosto de Abuláfia,
que lhe sorri com uma estranha expressão de perplexidade, uma vez
que se encontra diante do tio não só na condição de acusado, mas
ainda na de intérprete, convocado que fora para traduzir fielmente
as palavras de seu adversário. De súbito Ben-Atar se sente invadir
por uma cólera seca contra o sobrinho, que ele criara com tanto
amor, por não saber contestar o sentimento de desaprovação de sua
Nova Mulher, obrigando-o a uma viagem extenuante e àquele
confronto humilhante e injusto. Sua cólera arde tão intensa que ele
dispensa os préstimos do sobrinho como intérprete, e numa voz
profunda que de imediato impõe completo silêncio sobre o público
ali presente, diz algumas palavras hesitantes na antiga língua dos
judeus, na esperança de que aqueles da comunidade que a
compreendem comuniquem seu sentido aos demais. Porém, depois
de algumas sentenças percebe que seria melhor para ele abandonar
seu hebraico rudimentar em favor do árabe fluente e colorido, que
agora brota espontâneo, para descrever, antes de mais nada, a
angústia do sócio ismaelita.
Abuláfia se queda surpreso e perturbado com a abertura do
discurso de acusação do tio, que decide falar de Abu Lutfi, e não de
si próprio. Porém Ben-Atar se mantém firme em seu rumo. Sim, ele
deseja começar sua declaração exatamente pela dor e a angústia de
uma terceira pessoa, um gentio, que há dez anos, no início do
outono, conduz seus camelos até as encostas setentrionais dos
montes Atlas, para peregrinar por entre pequeninas aldeias e tribos
remotas, procurando descobrir tudo o que houvesse de melhor, de
mais valioso e de mais belo para poder agradar aos olhos refinados
dos clientes de seu parceiro do Norte.
Lentamente, diante do público atento, revela-se o prodigioso
quadro daquela tríplice sociedade que se estendia dos contrafortes
dos montes Atlas às praias do Magreb, para depois se insinuar
através das cidades e jardins da Andaluzia, onde aportava
j p
docemente na baía de Barcelona, no encantador local de encontro
sobre a Marca da Espanha. Dali, depois de ultrapassar as vertentes
orientais dos Pirineus, espraiava-se como um leque colorido pelas
terras da Provença e da Aquitânia, para prosseguir pelas veredas da
Bretanha até chegar à Ile-de-France. Nessa descrição, Ben-Atar não
economiza detalhes. Pelo contrário, com rara precisão, expõe a rica e
elaborada estrutura concebida pelos três parceiros, unidos não só
por sentimentos de compreensão e de confiança mas também por
vínculos de solidariedade e amizade, com o intuito de ganhar o seu
sustento e obter lucro com as delícias cultivadas pelos maometanos
do Sul, para que a canela, o gengibre e o coentro não viessem a faltar
nos caldeirões fumegantes das cozinhas cristãs de Narbonne e
Perpignant.
É essa a maneira de falar de Ben-Atar: três ou quatro sentenças.
Depois se cala, crava os olhos em Abuláfia e em silêncio conta as
sentenças proferidas na língua franca, por medo de que falte alguma
coisa. Contudo, seu temor é infundado, visto que não só esse
intérprete não deseja omitir nada, como ainda, na qualidade de um
dos membros do lendário trio, também contribui, por sua conta, com
detalhes que reforçam a consistência do relato, e de tal modo se
deixa envolver pelas suas próprias palavras que se esquece de que
logo mais precisará se defender contra aquela mesma acusação que
ele traduz com tanto brilho.
Entretanto, eis que o rosto do juiz barbudo, do corpulento
mercador radanita, que compreende as palavras pronunciadas em
árabe, vai se anuviando à medida que Ben-Atar descreve os
primeiros sinais do logro de Abuláfia: os disfarces estranhos, as
insinuações do repúdio, os atrasos que se tornavam cada vez mais
longos, enchendo de angústia a alma dos que o aguardavam, até que
no último verão se abateu sobre eles aquela ausência terrível, final e
definitiva, que deixou os dois sócios do Sul sozinhos entre os cavalos
e burros no estábulo de Benveniste, espantados com a enorme
quantidade de mercadorias que os rodeava. É surpreendente como
Ben-Atar ainda consegue se manter vigilante para não apontar o
dedo acusador para a Nova Mulher que subira da terra do Reno,
tendo mesmo o cuidado de não mencionar seu nome. É como se
Abuláfia estivesse sozinho no mundo, e toda a culpa recaísse apenas
sobre ele — como se aquele maldito repúdio tivesse nascido apenas
na mente do sobrinho, e fosse sua a iniciativa de fazê-lo atingir seus
amigos. Assim, não admira que agora seja difícil para o intérprete
continuar a tradução fiel, pois o discurso do tio descreve sua própria
culpa. Ele é obrigado a ouvir as palavras duras de Ben-Atar que, com
frieza, mas num árabe eloquente e preciso, levanta contra o sobrinho
a vil suspeita de simplesmente tentar dissolver a velha sociedade a
fim de substituí-la por uma nova, que talvez pudesse se revelar mais
promissora. É como, continua Ben-Atar em sua impiedosa denúncia,
não era fácil para o traidor se separar de seus sócios fiéis na medida
em que tudo entre eles havia sempre transcorrido com justiça e
honestidade, Abuláfia inventara uma espécie de estranho repúdio
em relação ao duplo casamento do tio e, não ousando expressá-lo
como seu, o atribuíra à sua Nova Mulher estrangeira.
De qualquer modo, como poderia Abuláfia se queixar agora do
tio e de seu duplo casamento se ele sabia há muitos anos que o tio
havia instalado uma Segunda Esposa na sua velha casa de Tânger
exatamente para tirá-la da tristeza e do abandono em que a havia
deixado a amada esposa desaparecida nas profundezas do mar? Não
só Abuláfia havia aceitado a presença da nova tia em sua casa, como
inclusive havia se mostrado feliz com a notícia, mesmo quando
soubera que ela era mais jovem do que ele. Assim, não podendo de
repente protestar contra algo que sempre entendera ser aceitável,
precisara atribuir aquele pretenso repúdio à nova família,
sustentando que eram eles os responsáveis por ele se ver obrigado
agora a rejeitar sua própria carne e sangue.
Neste ponto a voz do intérprete torna-se tão estrangulada que
ninguém naquele salão escuro consegue entender nenhuma palavra
das últimas sentenças por ele pronunciadas, que o atingem como
penetrantes golpes de espada. Mas o mercador chegado da terra de
Israel, que havia entendido perfeitamente tudo o que Ben-Atar
dissera, julga oportuno intervir e, voltando-se para o juiz vizinho, o
escriba, que continua atônito e amedrontado, resume clara embora
lentamente no idioma sagrado tudo o que fora relatado até ali, para
que o pálido escriba, envolvido em suas negras vestes, levante-se e
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traduza no idioma local para os silenciosos colegas sentados no
palco e para o público. O conflito assim revelado aos olhos de todos
vai assumindo um tom mais e mais áspero, incentivando os
presentes, atraídos pela disputa acalorada que se desenrola diante
dos seus olhos, a se aproximar, passando por entre os tonéis de
vinho e se juntando não só ao redor dos dois litigantes mas também
da Nova Mulher, que logo percebe a esperta tática de Ben-Atar:
forçar seu magoado marido a declarar em público que continua fiel à
sociedade, expondo, à vista de todos, a ruptura que havia entre o tio
e ela.
É nessa mesma ruptura que o rabino Elbaz tenta agora inserir
como uma lança a peça de acusação concebida ao ritmo das ondas
do mar. Porém a senhora Esther-Míriam se apressa em atropelar seu
intento, pois fica de coração partido ao ver o marido ali postado
imóvel, olhando o tio com um estranho e perplexo sorriso, como se a
terrível suspeita que lhe fora imputada se disseminasse pelo seu
corpo como um veneno paralisante. Portanto, sem procurar saber se
tem ou não o direito à palavra, ela se dirige à corte na qualidade de
acusada que espera que a justiça seja feita e, falando no idioma
franco colorido e fluente, declara a intenção de dissipar antes de
mais nada, e com desprezo, qualquer suspeita de existência de uma
outra parceria secreta por parte de seu marido, e revelar por fim a
verdadeira origem do repúdio, que é mais importante para ela do
que os editos que vieram da terra do Reno, sua terra natal.
O senhor Lavinas, que desde aquela manhã vinha sentindo o
torvelinho que ia na alma de sua irmã mais velha, e conhecendo seu
desejo e mesmo sua capacidade de romper as regras, dá alguns
passos cautelosos em sua direção, para que sua presença tranquila e
sua índole serena, ainda que não expressas em palavras, pudessem
sinalizar a ela um limite, caso fosse tentada a cruzá-lo. Enquanto
Ben-Atar proferia suas duras palavras, o comerciante parisiense não
havia se detido nem por um momento sobre o rosto do acusador ou
do intérprete acusado; permanecera atento às expressões cambiantes
na face das quatro mulheres escolhidas para compor o júri. A julgar
pela expressão de comiseração que perpassou pelo semblante das
quatro ao ouvir o relato da perda da mercadoria que restou sem
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comprador, e pelo cintilar de suspeita em seus olhos ao ver o rosto
de Abuláfia empalidecer ao ouvir as acusações, já compreende esse
homem cauteloso e sagaz que de agora em diante convém se
resguardar de qualquer certeza acerca do desfecho que os espera.
Assim sendo, seria prudente refrear qualquer sinal excessivo de
autoconfiança ou de orgulho que a irmã pudesse demonstrar, aquela
mulher pequenina porém ereta, de língua afiada, e cujas belas
feições, afiladas como as de um cão de caça, resplandecem à luz das
tochas.
Contudo, seus temores são infundados. As palavras iniciais da
irmã não demonstram nenhuma soberba, talvez apenas uma leve
astúcia, tomada de empréstimo do seu oponente do Sul. Tal corno
Ben-Atar, que abrira sua acusação não com a sua própria dor, mas
com a de seu parceiro árabe, também ela inicia sua defesa não a
partir de si própria, ou da aversão que sente pela bigamia, mas sim
pela história da infeliz filha de Abuláfia, ainda atormentada pelo
enigma do seu abandono por sua jovem mãe, uma mulher bela e
amada. Aqui o senhor Lavinas toca de leve a irmã, não por contestar
sua linha de argumentação, mas para lembrá-la de que seria
necessário e apropriado dar aos seus adversários uma oportunidade
de compreender as palavras, que, com a ajuda de Deus, em breve os
derrotariam.
Mais uma vez foi preciso pedir a Abuláfia, o acusado, que
servisse de intérprete, desta vez no sentido oposto, da língua dos
francos para o árabe. Embora esteja postado entre o tio e a esposa, as
duas criaturas que lhe são mais próximas neste mundo, ele volta o
olhar para o rabino Elbaz à sua frente, que, envolto na túnica
característica dos rabinos, puída pelas muitas noites e dias a bordo
do navio, meneia de leve a cabeça como se estivesse imerso em
oração, e bebe cada palavra pronunciada como se fosse um néctar
prelibado. Se até há pouco a vida do jovem sócio fora sendo revelada
por meio do discurso de acusação proferido por Ben-Atar, prossegue
agora na lúcida exposição da Nova Mulher, que recorda com tal
precisão cada particular da história do marido, até aqueles dos quais
ele já havia se esquecido, que ele se vê forçado a deter aquela
torrente de palavras, de momento em momento, antes de traduzir,
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para se certificar de que as coisas de fato haviam se passado como
ela as estava contando.
Só agora, no amplo salão desta vinícola imerso em semi
escuridão, é que ele compreende quanto a amada esposa havia
registrado com exatidão cada detalhe que ele lhe narrara de sua vida
e de suas viagens, quase como um colecionador que recolhe
cuidadosamente conchinhas à beira-mar, acreditando que em cada
uma delas deverá encontrar uma pequena pérola. Ainda no seu
primeiro encontro em Orléans, diante da lareira acesa, quando a
recatada viúva se surpreendera com a disposição do jovem mercador
norte-africano, de pele morena e cabelos cacheados, de conversar
com ela, com recato mas com franqueza, sobre si mesmo, ela se
perguntara como era possível que aquele homem simpático,
sociável, cordato, viesse percorrendo havia sete anos as florestas e
aldeias de uma terra estranha sem ter procurado uma esposa e
constituído um lar. Já naquela primeira noite, conta a senhora
Esther-Míriam, ela compreendera que só agiria dessa maneira um
homem cuja fonte do amor por sua esposa, ainda que desaparecida,
continuasse a jorrar dentro de si como uma fonte que se alimenta do
próprio fluxo. Mas se de fato foi assim, ela continua a se perguntar,
como fora possível àquela mulher, que recebera do esposo um amor
tão grande, levantar-se um belo dia e renunciar tão facilmente a tudo
o que lhe fora dado com fartura e generosidade, abandonando o
homem que a amava, arrancar as fitas coloridas das roupas da
filhinha que tanto precisava dela, e com elas atar suas mãos e pés e
atirar-se às ondas do mar?
Foi por isso que, já naquela noite na estalagem em Orléans —
como a nova senhora Abuláfia não hesita em confessar diante do
tribunal —, ela experimentara um grande sentimento de compaixão
por essa criança, abandonada com uma ama ismaelita numa
pequena casa na rua dos judeus, próxima à Fortaleza de Toulouse. E
sentiu um poderoso impulso não só de compreender por si própria o
mistério da tragédia que sobreviera ao mercador do Sul, mas
também de compartilhar essa compreensão com ele, que, abatido e
incapaz de entender, continuava a perambular pelas estradas. Para
isso era preciso que um novo amor conquistasse o antigo, o amor
p q q g
mediterrâneo, não, Deus nos livre, para fazê-lo esquecer sua
Primeira Esposa, e sim para permitir que a senhora Esther-Míriam
desvendasse o segredo da vitalidade daquele antigo amor, e também
o segredo da sua fragilidade e ruína. Porém é apenas no seu
segundo ou terceiro encontro com o jovem mercador, transcorridos
já o inverno e a primavera, que ficou claro para ela o motivo oculto
daquela tragédia. Abuláfia lhe revelara candidamente a permissão
para os casamentos duplos vigente nas terras ismaelitas. E não havia
falado como que de algo abstrato, mas corno de fato um bem
conhecido, e até mesmo em sua própria família, pois o tema da
conversa era seu tio, o esteio daquela admirável sociedade.
Naquele momento ela sentira que ali se encontrava a semente do
mistério que causara aquele desastre. A princípio nada dissera,
esperando ter seu vínculo completamente consolidado, para poder
ter a prova de que não havia nenhuma lassidão na energia viril,
nenhum defeito na capacidade de amar daquele homem
inteiramente devotado a ela como havia sido à esposa anterior que,
segundo testemunho dele próprio, sempre soubera receber o seu
amor e acreditar na sua fidelidade. Só então, certa da sua dedicação,
ela havia começado a pensar que talvez o terrível ato de desespero
da Primeira Mulher tivesse nascido da ameaça de uma eventual
segunda união com outra mulher, união que, em princípio, não
exigia que o amor dedicado à primeira viesse a ser renegado ou se
visse diminuído. Sim, mas só em tese porque, quando uma segunda
mulher entra num lar, como uma inocente duplicação, tal como o
nascimento de outra criança, ela traz dentro de si um terrível poder
destruidor, em especial para uma Primeira Esposa que se acredita
portadora de uma maldição em seu ventre. Assim, será que a
senhora Esther-Míriam ainda precisa justificar para alguém o fato de
a ideia do repúdio ter brotado dentro dela? Essa ideia com o tempo
vicejou e floresceu, até se tornar afiada como um punhal, destinada
não só a defender seu novo companheiro da humilhação de
encontrar um belo dia no estábulo de Benveniste, entre os sacos de
especiarias e os utensílios de cobre, uma Nova Mulher, trazida no
navio para ele pelo seu tio, mas também... sim, sim, é isso, para
vingar um pouco as ofensas e os temores da esposa afogada, expulsa
desnuda das profundezas do mar.
Aqui o rosto da senhora Esther-Míriam enrubesce de repente, ela
baixa a cabeça e se cala. Não só para dar ao atônito intérprete tempo
para assimilar o segredo da sua vida antes de transmiti-lo na língua
dos árabes para os membros de sua família, mas igualmente para
fugir ao olhar intenso e ofendido de Ben-Atar e aos misteriosos
olhares velados das duas esposas, ainda sentadas em seus barriletes,
tranquilas, eretas e disciplinadas, no mesmo lugar que lhes fora
destinado. Ela não sabe se a tradução consegue penetrar em suas
mentes, ou se simplesmente lhes esvoaça ao redor qual uma
borboleta. Nesse momento a senhora Esther-Míriam sente o toque da
mão de seu irmão, leve como uma pluma, que busca lhe dar um
sinal de encorajamento. Embora no fundo do seu coração o senhor
Lavinas tivesse de bom grado dispensado todo esse discurso sutil e
rebuscado em favor de um curto aviso sobre a existência de um novo
edito rabínico, simples porém rigoroso que, apesar de nascido nos
pantanais e areias movediças das terras do Reno, estava destinado a
iluminar e reformar o mundo inteiro.
É exatamente esse edito escrito pelos estudiosos dos livros
sagrados que o rabino de Sevilha espera desde o início, por se referir
aos princípios e não aos detalhes. Inúmeras vezes durante a longa
jornada seus pensamentos se voltaram para esse edito, a ponto de já
começar a imaginá-lo como uma adaga árabe, pequena e curva, feita
de cobre amarelado, que, para não voar descontrolada, deve ser
firmemente cravada na terra. Agora, porém, com a brisa da noite, o
rabino sente uma ligeira tontura, eco daquela fome terrível que o
despertara à noite, e instintivamente leva as palmas das mãos ao
rosto para sentir se restou nelas algo do odor do peixe de água doce
que o escravo negro lhe preparara antes do raiar da aurora. Mas não
é mal, pensa ele, começar um discurso num leve estado de fome,
pois isso aguça ainda mais os sentidos e a inteligência, já
despertados pelas palavras vigorosas e singulares da senhora
Abuláfia.
Agora faz-se um silêncio absoluto, Ben-Atar fita o rabino de
Sevilha com um olhar sombrio e desconfiado, como se depois do
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arrazoado virulento da senhora Esther-Míriam tivesse perdido a
confiança no que receberia do rabino em troca do pagamento que lhe
fora prometido. O senhor Lavinas toca de leve o ombro de Elbaz,
para indicar que chegara o seu momento. O rabino já havia notado
que era justamente esse homem, frio e reservado, a tratá-lo sempre
com grande consideração, como se qualquer estudioso das Escrituras
— mesmo que tivesse vindo do distante Sul com a óbvia intenção de
derrotá-lo — fosse, por princípio, uma pessoa respeitável. Mas será
que aqueles judeus estranhos e selvagens seriam de fato capazes de
acompanhar as intrincadas sinuosidades de seu pensamento
andaluz? Como era possível que não tivesse sido encontrado, em
toda aquela vastidão sombria ao redor, nenhum verdadeiro
estudioso das doutrinas para sentar-se com ele frente a frente e
debater a questão? Na verdade, o que poderiam compreender
aqueles colhedores de uva e fermentadores de vinho, ou aquelas
pisadoras de uvas, cujos pequenos pés descalços, expostos à vista de
todos sobre a plataforma de madeira, eram tão manchados de suco
que ele sentia um forte impulso de lavá-los com água limpa antes de
iniciar sua fala? E eis que seus olhos dão casualmente com seu filho,
sentado sem sandálias, arrancando lentamente as uvas de um
grande cacho, a observar a fina corrente de suco que escorre da
prensa de vinho para o tanque interno. Já fazia seis semanas que o
menino fora tirado de casa, e certamente já tinha aprendido durante
a viagem mais do que poderia aprender até o fim de seus dias.
É então que inesperadamente a Segunda Esposa de Ben-Atar,
incapaz de se conter, levanta-se, como se quisesse ver e ouvir melhor
o rabino, que disse a si mesmo, comovido: se ela está tão interessada
em ouvir suas palavras, a ponto de dispor-se a romper as regras e se
expor muito além do permitido pela sua própria modéstia e pela
modéstia da Primeira Esposa, melhor seria se ele não abrisse o seu
discurso na antiga língua sagrada, como pretendera fazer, para atrair
a atenção do irmão e da irmã, mas sim no idioma árabe, para que as
palavras nuas e não traduzidas atingissem em cheio o coração
daquela jovem esposa, que ocultara entre as vestes de seda o baú de
marfim que ele acariciara a noite passada. Ele decide empregar o
árabe não só para fortalecer e animar a Segunda Esposa, mas
p g p
também em consideração à Primeira, que ergue a cabeça, surpresa
pelo movimento repentino de sua companheira. Talvez a intenção do
rabino seja a de apagar, com seu árabe claro e inteligível, algo do
soturno desânimo que se apoderara de Ben-Atar, que se comporta
como se acreditasse piamente na acusação que inventara contra o
sobrinho. Quem sabe, pensa o rabino, talvez suas palavras
convençam até o seu cético filho, se estiver disposto a ouvir o pai.
Assim, mais uma vez o acusado é chamado a desempenhar o
papel de intérprete. Ao que parece, esta noite Abuláfia não vai
conseguir pronunciar uma única palavra dele próprio em sua defesa,
irá apenas transferir de uma língua para a outra aquilo que outros
dizem a seu favor ou contra ele — se é que o que foi dito por sua
esposa fora de fato em seu favor, e não em favor da esposa anterior,
a antiga, que nunca haveria de supor que a Nova Mulher se ocuparia
a tal ponto com o enigma de seu afogamento, como se esse enigma a
ameaçasse também, mesmo em uma cidade onde não há mar,
somente um rio. Embora Abuláfia soubesse que o rabino trazido de
Sevilha estava prestes a censurá-lo, a atacar o repúdio de sua esposa
e a reprovar o seu súbito desaparecimento, mesmo assim sente por
ele certa afeição Não só pela simpatia despertada pela figura do
rabino, esbelto e infantil, pouco mais alto do que o próprio filho, mas
também pela esperança de que as reprimendas de um rabino,
certamente impregnadas de sensatez, teriam a capacidade de serenar
o ânimo de todos Assim, Abuláfia se dispõe, com todas as suas
forças, a reportar as palavras do rabino do modo mais fiel e rigoroso
possível, procurando ao mesmo tempo manter-lhes o espírito.
De início, porém, não há nenhum espírito nas palavras do
rabino, pois a sede pelo vinho, cuja fragrância perfuma o ar da noite,
retém as palavras em sua boca. Como o proprietário do vinhedo se
mostra indeciso entre servir apenas uma taça ao rabino, ou abrir um
barril para todos, o senhor Lavinas decide por ele, com a
generosidade de visitante que é também um pouco anfitrião. Barril.
Pequeno, mas barril. E o vinho mais apropriado para as
circunstâncias, esta é a conclusão a que chegaram os entendidos, se
encontra exatamente no pequeno barril sobre o qual se senta o
garoto, que com certeza não por mero acaso fora atraído para ele. De
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imediato levantam dali o jovem Elbaz, rolam o barril para o centro
do salão e o colocam de tal maneira que será possível verter o
líquido para toda a sagrada congregação sem que uma única gota
sequer seja desperdiçada. Primeiro enchem a taça do rabino, que
entoa em voz alta a bênção do fruto da parreira, e é seguido pelos
juízes e pelos litigantes. Enquanto a Primeira Esposa bebe
discretamente encoberta pelo véu, a Segunda o retira como se tivesse
decidido a prescindir inteiramente dele e, com um novo sorriso que
lhe ilumina todo o rosto finamente esculpido, esvazia sua taça e
espera por mais uma.
É então, e somente então, sem mais preâmbulos, e ainda
segurando sua taça, que o rabino começa a falar, na esperança de
que o vinho rosado que lhes desliza pela garganta suavize os
pensamentos dos judeus de Ville-les-Juifs — que logo se
aproximaram em silêncio para compartilhar do pequeno brinde e até
mesmo ampliá-los para horizontes novos e desconhecidos. Pois se o
rabino fosse falar tão-somente em termos simples, usando conceitos
conhecidos e aceitos, talvez nem houvesse necessidade de se
estender, mas apenas dizer diretamente: Judeus francos, distantes e
estranhos, por que o espanto? E por que a aversão? Abram e leiam os
rolos das Escrituras, cuja santidade se estende sobre todos nós, e
encontrarão os grandes patriarcas, Abraão, Isaac e Jacó, casados com
duas, três e até mesmo quatro esposas. Continuem e irão deparar
com Elcaná e suas duas esposas, e isso antes de chegarmos aos reis e
suas inúmeras esposas, sendo que o maior de todos é o próprio
Salomão? Mas se quiserem objetar que esses são nossos
antepassados, seres humanos distantes, grandes e poderosos, que ao
serem instados souberam discernir entre o bem e o mal, vejam então
o que está escrito no livro do Deuteronômio: que para um homem
haverá duas esposas. Qualquer homem. Todo homem. Não um
patriarca, não um herói, não um rei, e não um antepassado.
Enquanto Abuláfia se esforça para traduzir a última sentença, o
rabino toma todo o vinho de um gole só. Mas não pousa a taça sobre
a mesa, enchendo-a de novo com o líquido rosado. Depois prossegue
sem demora, para que não haja nenhuma suspeita de que ele se
esquivara da continuação do versículo, uma amada e outra odiada,
q
com toda confusão e ameaça que essas palavras pareçam conter, e
diante das quais ele não pretende recuar. Para o momento, porém,
irá se limitar a exprimir sua cólera contra aqueles que ousaram, e
ainda mais numa cidade longínqua como Paris, pronunciar contra
seus próprios irmãos, filhos de Israel, um veredicto de repúdio e
afastamento, demonstrando assim antes ignorância do que soberba,
e profanando a honra dos antepassados, homens e mulheres.
Agora o rabino Elbaz já pode observar pelo canto do olho como
se atenua a expressão de ansiedade no rosto do dono do navio, e
uma pequena fileira de dentes brancos reluz em seu sorriso de
mercador, que começa afinal a sentir o retorno do investimento. Mas
será que Ben-Atar é, na verdade, apenas um mercador? O rabino
coloca de repente essa nova pergunta para si mesmo, e no impulso
do momento a repete em voz alta para o público, que se encontra
agora arrebatado pelo fascínio das palavras do acusador. Não,
responde ele com convicção à própria pergunta, Ben-Atar não viria
de tão longe somente para exigir reparação pela mercadoria perdida.
Também não passaria pela cabeça do rabino Elbaz empreender uma
viagem tão longa apenas pela disputa de um mercador. Se este
homem fosse motivado unicamente pelo apego ao dinheiro e à
parceria rompida, será que lhe teria ocorrido realizar uma viagem
tão difícil e perigosa em perseguição a um sócio desaparecido? Pois
poderia tê-lo substituído com toda facilidade, e pelo mesmo custo,
por três sócios novos e viçosos, prontos a espalhar a notícia das
mercadorias norte-africanas não só entre francos e borgonheses, mas
também entre flamengos e saxões. Não, o rabino de Sevilha não vê
Ben-Atar como um mercador, e sim como um homem disfarçado de
mercador. Durante os longos dias da jornada, e as noites sobre as
pranchas do convés, nunca deixou de considerar a natureza especial
deste homem extraordinário, que só agora, em Ville-les-Juif, revela-
se em toda a sua essência. Porque este é um homem que ama, um
sábio e um filósofo do amor, que vem de muito longe para anunciar
aos quatro ventos que tem duas esposas bem-amadas. E as ama por
igual.
Quando Abuláfia traduz a última sentença, seus olhos pousam
em suas duas tias — e não só os seus. Todos se voltam na direção
daquelas duas mulheres, das quais uma permanece ainda de pé.
Ben-Atar, bastante confuso com as últimas palavras do rabino, toca
no braço da Segunda Esposa, sugerindo discretamente que volte a
sentar-se. Mas ela insiste em continuar de pé e, apesar de todos os
olhares que se fixam por um momento em sua recusa obstinada,
parece não estar disposta a desistir da visão privilegiada do corpo
miúdo e musculoso do rabino que, embalado pelo próprio discurso,
vai e volta em passos pequenos diante da grande tocha. Ela não
pretende se contentar apenas em ouvir sua voz grave, que agora
começa a refutar as últimas palavras da senhora Esther-Míriam.
Pois a Segunda Esposa, acrescenta o rabino com segurança,
sempre existe. Se não existe na realidade, existe na imaginação.
Portanto, nenhum edito rabínico a fará desaparecer. Porém, quando
existe apenas na imaginação do homem, ela é boa, bonita, submissa,
sábia e agradável, de acordo com suas fantasias e seus desejos. Por
mais que sua esposa tente, nunca chegará aos pés dessa mulher
imaginária; logo, sempre haverá, pairando sobre a esposa real, a
sombra do ressentimento e da decepção. Entretanto, quando a
Segunda Esposa não é um sonho, mas a realidade em carne e osso, a
Primeira Esposa poderá sempre se comparar a ela e mesmo superá-
la; por vezes também se unir a ela e, se assim quiser, amá-la.
Um sorriso de desdém ganha o rosto da senhora Abuláfia, que
com seus olhos profundamente azuis não cessa de perscrutar
detidamente a face do tradutor, seu jovem marido, tentando captar
se ele está sendo um tradutor fiel, ou um cúmplice secreto das ideias
criminosas. Mas o rabino não se altera com o sorriso daquela mulher
esperta; pelo contrário, dá um passo em sua direção e dedica um
sorriso direto à sua face enrubescida, a que a mecha dourada
escapulida do prendedor de cabelo confere de repente um ar infantil.
E volta a insistir nas últimas palavras. Sim, até mesmo amá-la, pois
só a Segunda Esposa poderá suavizar o infinito e doloroso desejo do
homem, para que se transforme de ato de afirmação em ato de
prazer.
Agora, porém, o fiel intérprete, subitamente apavorado, estende
os dois braços, impotente, na direção do acusador, que se deixou
arrastar pelas suas tortuosas considerações levantinas. O rabino
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Elbaz se detém e fita a senhora Esther-Míriam, a quem o tumulto de
emoções que lhe agita a alma assoma ao belo rosto, tornando-a assim
mais e mais atraente. Com o canto do olho, percebe o filho
espremido entre a multidão que se empurra na direção do rabino,
com o ouvido atento para não perder uma só palavra do que diz o
pai. De repente Elbaz fica consternado por seu filho estar ouvindo e
compreendendo suas palavras. Desejoso de cumprir a promessa feita
naquela mesma manhã no convés do navio, de defender com todas
suas forças aquela dúplice união familiar que havia se revelado em
toda a sua delicadeza nos mais de quarenta dias de viagem
decorridos, considera a necessidade de realizar uma mudança de
idioma, valendo-se para tanto de mais dois tradutores. Pede então
aos escribas, os rejeitados copistas de textos sacros,
momentaneamente sem função, que venham substituir o
desesperado intérprete e passem a traduzir da língua santa, de que
se servirá de agora em diante, diretamente para o idioma local. O
rabino tem a impressão de que, prosseguindo seu discurso na antiga
língua, amada e esquecida, não só reafirmará sua autoridade aos
olhos da pequena e inculta plateia, como poderá revelar, assim como
fez a senhora Esther-Míriam, certos fatos particulares sem que seu
filho o entenda.
Enquanto a congregação vinícola de Ville-les-Juifs se comprime
interessada em torno dos contendores, o rabino de Sevilha começa a
revelar fatos acerca de si próprio e de sua falecida esposa, como se
sua vida particular tivesse um valor metafórico exemplar, que
permitisse extrair conclusões válidas para a vida de todas as outras
pessoas. Sob o encanto do luar que o envolve, confessa aos que o
ouvem que se porventura um dia sua querida esposa andaluza
ressuscitar do túmulo em Sevilha será certamente para proferir
apenas uma única frase: o quanto ela lamenta o marido nunca ter
tomado uma Segunda Esposa. Não só porque assim, depois de sua
morte, haveria uma mãe para cuidar de seu filho órfão, mas também
porque uma outra mulher poderia aliviar o fardo que a insistência
do marido em procurá-la, ansioso por cumprir seus deveres
conjugais e, Deus o guarde, para não frustrar seus próprios desejos,
lhe impunha, num anseio tão intenso de se fundir a ela que a esposa
p q p
temia que ele acabasse por se transformar em mulher. Quando a
mulher não está sozinha diante dos desejos do esposo, e ele é instado
a ir constantemente de uma à outra, não há alternativa senão renovar
sempre a sua natureza original, masculina, visto não haver mulher
que se pareça com outra.
Elbaz interrompe o fluxo das palavras em hebraico, que jorraram
impetuosas de sua boca num discurso vertiginoso, como se a própria
antiguidade da língua o dispensasse de responder pelo seu
conteúdo. Os dois tradutores, os copistas de textos sacros, discutem
entre si para saber se o que foi ouvido foi o que foi dito, se o que foi
dito foi o que foi entendido, e se o que foi entendido pode ser
traduzido. Enquanto travam um combate particular sobre como
contornar, na sua dupla responsabilidade, os obstáculos da tradução,
discutindo ora uma palavra, ora uma frase, ora um exemplo, ou,
ainda, uma metáfora, o rabino de Sevilha, surpreendendo um brilho
caloroso nos olhos do mercador da Terra de Israel, vislumbra a
possibilidade de vir a conseguir uma sentença favorável para a
sociedade de Ben-Atar. O rabino ainda não sabe como irá conseguir,
mas se enche de repente de esperança e entusiasmo, e o idioma
querido soa dentro dele como se quisesse transformar o discurso em
um novo poema. Depois que os escribas lhe sinalizam que haviam
terminado a tradução, ele se dirige, com uma linguagem simples e
direta, ao irmão e à irmã, que entendem cada palavra.
Não cruzamos o grande oceano para encolerizar-vos. Nem
acalentamos nenhuma intenção de convencer-vos a duplicar ou
triplicar vossas esposas. Se pudermos julgar pelo que vemos aqui, a
terra onde viveis é tão deserta, vossas casas, tão pequenas, vossas
colheitas, tão escassas, e de tal modo os cristãos que vos rodeiam vos
aterrorizam sem que tenteis reagir, que não admira que a vós falte a
virtude da energia que floresce em mil rosas nas terras do Sul,
iluminadas pela sábia luz do sol. Mas do mesmo modo que
cuidamos de não vos julgar a partir da nossa força, assim também
não admitimos que nos julgueis a partir da vossa fraqueza. E,
portanto, que cada um continue fiel a si próprio e honre a sua
própria natureza: que seja restaurada a antiga sociedade, e que ela
nunca mais seja rompida por vós.
Capítulo 3

Em Vermaíza, às margens do rio Reno, o rabino Lavinas e sua


esposa costumavam incentivar seus filhos Esther-Míriam e Yehiel a
procurar, em qualquer contratempo que os afligisse, antes de mais
nada a sua própria culpa, e só então ir buscá-la nas ações alheias.
Esse treinamento transformou-se numa segunda natureza, a ponto
de se notar naquelas duas crianças certo prazer especial em
culparem a si mesmas, enquanto secretamente cada um examina
bem o outro e trata de não assumir uma porção maior da culpa do
que o outro assume.
Também nesta noite, quando a senhora Abuláfia começa a se
atormentar pela tolice e irresponsabilidade com que permitiu que as
coisas se desenrolassem daquela maneira no salão da prensa de
Ville-les-Juifs, continua ainda a perscrutar atentamente, apesar da
escuridão, cada traço do rosto do irmão, para ver se ele, do mesmo
modo, avalia o tamanho da culpa que deve assumir. Apesar de o
senhor Lavinas não ter dito praticamente nada durante todo o
"processo", e, como um maestro de coro, ter somente dado as deixas
para os outros — quem tem a palavra, quem deve se calar, quem
traduz —, não restava dúvida que a ideia de convocar um tribunal
em Ville-les-Juifs partira dele. Ele poderá sempre arguir contra sua
irmã que, se ela não houvesse se imiscuído entre ele e o rabino
andaluz e, num impulso, dado ao rabino a estranha permissão de
alterar a composição do júri, talvez tivesse conseguido evitar a
fragorosa derrota. Porém o senhor Lavinas, sentado agora num
canto escuro da carroça que retorna a Paris, não está disposto a
apresentar, nem para si próprio, nenhum argumento a seu favor e
contrário à irmã; pretende assumir, tal como lhes fora ensinado, mais
e mais a culpa sobre si próprio, como uma criança que enche o prato
com comida de que não gosta apenas para agradar a mãe.
Não age assim, contudo, somente pelo desejo de se culpar, mas
pela suposição de que, ainda que sua ideia original tivesse sido posta
em prática e o júri tivesse sido composto somente pelos três escribas
trazidos da herdade de Chartres, não teria sido possível saber se o
rabino andaluz também não teria conseguido confundiras suas
ideias. Pois em uma coisa concordaram a senhora Esther-Míriam e
seu irmão naquela mesma noite: o erudito rabino trazido de Sevilha
por Ben-Atar, apesar de sua aparência infantil e de suas vestes
puídas, era muito mais esperto e perspicaz do que haviam
imaginado, o que ficou evidente tanto pelo que disse como pelo que
deixou de dizer. De que outra maneira se poderia entender a traição
das mulheres, que preferiram Ben-Atar a Abuláfia, o qual, por
alguma razão, pareceu risonho e satisfeito ao anúncio da sentença
contrária a si próprio?
Mas será que aquilo que foi proferido podia ser chamado de
sentença? Talvez algum outro nome fosse mais adequado. Poderia,
talvez, ser considerado um apelo emocionado feito por pessoas de
boa vontade ao sobrinho e à esposa para renovar a antiga sociedade
familiar com o tio. Quem sabe por trás daquelas palavras se
escondesse algo mais ousado e profundo, a ideia de que a bigamia
não representasse apenas um fato colorido e particular de judeus
distantes, mas uma prática que bem poderia ganhar interesse
renovado mesmo ali no Norte. Naquela hora da noite, fria mas
intensamente perfumada pelo aroma do vinho de um segundo barril
que fora aberto, ambas as interpretações pareciam plausíveis. E não
foi apenas o talento do rabino andaluz que pôs a perder as
esperanças dos parisienses, mas também a intromissão do viajante
radanita, pois, logo que o rabino concluiu seu discurso, ainda antes
de se ouvir a tradução, aquele homem corpulento se pôs de pé e
aplaudiu entusiasmado, precipitando com isso uma onda de
simpatia ao queixoso.
Foi essa simpatia, somada ao sentimento de piedade que os
judeus vinhateiros experimentaram pelo moreno e tenaz mercador
norte-africano, que sem temer desonra havia arrastado as suas duas
mulheres por distâncias inimagináveis, que permitiu àquela gente
simples se liberar das obrigações de respeito e de dever para com o
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dono do vinhedo e com a família Lavinas e considerar, com mente
aberta, a natureza humana na sua plenitude em vez de se limitar a
um contato tímido e furtivo com a maciez da seda das vestes das
mulheres magrebinas. Mas o que induziu o mercador vindo da Terra
de Israel àquele comportamento? Será que também o comerciante
radanita tinha escondida, em alguma escala da longa rota que
percorre entre o Oriente e a Europa, uma Segunda Esposa, para
aliviar o tédio e a solidão de suas viagens? Ou quem sabe fora o
impulso de se vingar do senhor Lavinas pelo baixo preço que lhe
sugerira no dia anterior pelas pérolas indianas, trazidas de tão
longe?
Naquela mesma noite, depois que os judeus de Ville-les-Juifs
retornaram a suas casas, e as partes em questão, acusadores e
acusados, voltaram a Paris, o dono da vinícola, em sua grande cama
cercada de garrafinhas de vinho para degustação, não cessou de
interrogar a esposa, a mulher de rosto doentio, acerca de sua
"traição". Como ela pôde optar por um judeu estrangeiro e não por
seu amigo de Paris? Seria possível que ela concordasse com as
palavras do rabino andaluz?, volta a perguntar o marido, apertando
com força seus ombros, em parte por raiva, em parte já com desejo.
Porque, se de fato as coisas fossem assim, continua a ameaçá-la com
um sorriso zombeteiro, ele também poderia um dia ter uma Segunda
Esposa. E por que não?, pensa a mulher, exausta de satisfazer os
desejos do marido, a quem a cena cotidiana das mulheres pisadoras
de uva em seu pátio desperta sempre uma excitação que vai além
das suas forças. No entanto, ela não ousa dizer ao esposo que, do
fundo do coração, anseia pela calma e a tranquilidade de que
desfrutam as duas mulheres do Sul, a que se senta e a que fica de pé,
imóveis em suas túnicas multicoloridas. Cansada e irritada, ainda
tenta resmungar alguma resposta incoerente, quase dizendo que o
viajante da Terra de Israel, com sua grande barba negra, tinha
lançado contra ela uma espécie de feitiço que a fez inclinai-se para a
causa do acusador bígamo e repudiado.
As três jovens pisadoras de uvas também poderiam falar do
feitiço que o viajante da Terra de Israel irradiava à sua volta, mas
bem sabiam que por trás do "feitiço" estavam seus olhos ardentes e a
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intensa aura de masculinidade a envolver seu corpo robusto e sólido,
que as atraía e tornava confiáveis as suas opiniões. E talvez também
por uma ideia estranha: quem defende com tamanha segurança o
marido de duas mulheres com certeza poderá defendê-lo se elas
forem três. Todavia, como não pudessem admitir essa ideia nem
mesmo entre elas, e menos ainda, com certeza, entre os demais
trabalhadores, atiçados pela curiosidade de saber o que as fez
votarem uma sentença contrária ao patrão e amigo, adotaram a
desculpa de atribuir à abundância de línguas e de traduções a
confusão que lhes embaralhou a mente.
Até mesmo o escriba que, junto com seus colegas, foi levado
numa velha carroça de volta para casa, na pequena herdade de
Chartres, tenta agora, no silêncio da desolada distância da île-de-
France, por vezes quebrado pelo contraponto temível entre o uivo de
chacais famintos e o das raposas espertas, explicar a si mesmo, antes
de poder explicar a seus colegas, como e por que mudou de ideia.
Pois sabia muito bem qual era a sentença esperada pelos que os
levaram a Ville-les-Juifs, e qual a recompensa prometida em troca do
incômodo, que se dissipou no ar frio graças à sua vergonhosa
traição. Mas, engraçado, a despeito da decepção
generalizada,inclusive a sua própria, não se sentia infeliz nem
desencorajado; pelo contrário, estava emocionado e cheio de
exaltação, como se o mercador de Israel houvesse sabido infundir
nele outra espécie de autoridade, real ou imaginária, fazendo ruírem
de uma só vez todas as antigas certezas. Todavia hesita em revelar
esse estado de ânimo aos seus companheiros, temeroso de suscitar
neles um sentimento de desaprovação, semelhante ao que Ben-Atar
fizera surgir na senhora Esther-Míriam. Assim, enquanto a carroça
desconjuntada cedida pelo dono do vinhedo vai adivinhando o
terreno por entre a neblina dos campos desertos e as ruínas de
castelos arrasados, e o carroceiro gentil conversa com os cavalos
tentando se lembrar do caminho, o juiz infiel se lança num discurso
entusiasta e cheio de nostalgia pelos antigos patriarcas, suas muitas
mulheres e numerosos filhos, na tentativa de transformar a distância
espacial, percorrida por Ben-Atar, em uma distância temporal,
colocando o norte-africano entre os heróis bíblicos.
Só da velha viúva, colhedora de uvas, ninguém exigiu
explicações. E foi justamente ela que, tomada de uma espécie de
intuição, tinha entrevisto que uma decisão favorável à reconstituição
da sociedade entre o Norte e o Sul estaria indo ao encontro do desejo
secreto de toda a comunidade. Como se sentia emocionada e
satisfeita com tudo o que acontecera, resolveu dormir no grande
salão escuro da prensa e não voltar para a sua casinhola. Recolheu as
peles de raposa que forravam alguns barris e arranjou com elas uma
cama macia sobre a pequena plataforma do júri. Lá, como quem se
sente com o dever cumprido e com todo o direito, ela se deita, cheira
o que sobrou dos aromas de acusadores e acusados, juízes e
tradutores, e pensa consigo como seria bom se seu falecido marido
tivesse deixado para ela uma Segunda Esposa, que estaria agora
deitada a seu lado, aquecendo-a com lembranças comuns. E ela fecha
os olhos, acende de novo na imaginação a grande tocha colocada à
frente do pequeno palco e passa em revista os rostos, um por um,
todos, oradores e tradutores, até que seus olhos se fixam nos grandes
olhos de Abuláfia.
O jovem mercador permanece em profundo silêncio, assustado
mas cheio de esperança, sentado no centro da grande carroça a
caminho de Paris. Embora espremido entre a esposa e o cunhado, e
de frente para o tio e as tias, seus olhos evitam qualquer outro olhar
e se cravam nas costas estreitas do rabino Elbaz, que escolheu um
lugar próximo ao carroceiro para se acomodar com o filho, de modo
a coroar com a visão das estrelas de um céu desconhecido a sua
vitória, e sentir-se livre para murmurar para si mesmo os versos de
seu novo poema, imprimindo-os assim profundamente na
memória.Todos estão em silêncio, mas enquanto os vitoriosos no
processo sentem muita fome, os hospedeiros derrotados não sentem
fome nenhuma e acabaram se esquecendo por completo do segundo
baú cheio de comida, que continua preso do lado de fora da carroça.
Abuláfia também não sente fome, mas não por se sentir derrotado
ou deprimido, e sim por não conseguir parar de pensar no momento
em que estará a sós frente a frente com a esposa, quando terá de
consolá-la pelo fracasso, e ao mesmo tempo lembrá-la com gentileza
de todo o sofrimento inútil causado por seu estranho repúdio. Coma
p p
mesma gentileza volta a prometer a si próprio que a revogação
pública e festiva daquele repúdio o convida, já no próximo verão, a
descer novamente ao ponto de encontro entre os dois mundos, no
azul profundo da baía de Barcelona, que aqui na escuridão úmida da
carroça lhe surge iluminada por mil encantos. Desejoso de pôr um
pouco de ordem nos próprios pensamentos e de conhecer os dos
outros antes do confronto com os argumentos tão complexos da
mulher, assume o papel de dono da casa e dá ordem ao cocheiro de
conduzir os cavalos para o mesmo bosque, à margem do riacho,
onde almoçaram na viagem de ida.
Todos os viajantes, acusadores e acusados, esfomeados e
inapetentes, ficam satisfeitíssimos com a parada imposta por
Abuláfia, apesar de não ter sido tão longa a viagem até ali e de Paris
não estar distante. Justo agora, após um dia tomado pelas emoções
do processo, cada um sente a necessidade de passar algum tempo
sozinho consigo mesmo, protegido do olhar dos demais pela
escuridão, à vontade sob o céu estrelado. Assim, mal a carroça se
imobiliza e já o rabino puxa seu filho para o bosque para esticar um
pouco as pernas e atender às necessidades que haviam sido adiadas
em consideração ao tribunal. Ben-Atar também não hesita em levar,
embora em direções opostas, suas duas esposas bem para o fundo do
bosque, para que possam fazer tudo o que lhes fora até agora
interdito.
Enquanto os outros não voltam, o senhor Lavinas vai ao rio
encher uma jarra de água fresca, e Abuláfia, ajudado pelo condutor,
desamarra a caixa de alimentos do lado externo da carroça e sai para
ajuntar alguns galhos com que alimentar a pequena fogueira que vai
acender para os visitantes. Só a senhora Esther-Míriam se deixa ficar,
estática, ao lado de um cavalo, segurando as rédeas com uma das
mãos, e com a outra alisando, distraída, o pescoço largo e rijo do
animal, que espera pacientemente que a mão pequena e agradável
da mulher o deixe, para ir ter com seu companheiro que se delicia
com a relva fresca.
Abuláfia, acostumado a percorrer estradas, logo acende um bom
fogo, e a seu crepitar vem se juntar o ruge-ruge da túnica da
Primeira Esposa, que volta sozinha, sem o marido. Ao ver a senhora
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Esther-Míriam ainda absorta em pensamentos junto ao paciente
cavalo, oferece a Abuláfia sua ajuda para estender a toalha e cortar o
queijo, o pão e os ovos cozidos. E bem-vindo o costume judaico de
fazer a bênção do alimento após a refeição, e não antes. Assim, não
há nada que impeça o garoto esfomeado de iniciar sua refeição sem
ter de aguardar a volta de Ben-Atar com a Segunda Esposa. Basta
lavar as mãos na água oferecida pelo senhor Lavinas e dizer duas
bênçãos curtas para receber das mãos da Primeira Esposa uma
grande fatia de pão preto. Mesmo que não fique bem à senhora
Esther-Míriam continuar distante, sem participar da refeição, como
se fosse uma visitante amuada e não uma anfitriã hospitaleira, só se
separa do cavalo ao ouvir os passos de Ben-Atar e da Segunda
Esposa vindos do denso bosque, e fica claro o motivo do atraso: a
jovem esposa trocara a leve túnica de seda por um manto de tecido
simples, porém bem mais quente. A senhora Esther-Míriam, embora
ainda sem dizer palavra, dirige a eles um sorriso triste e distraído, e
os acompanha pela vereda escura em direção à fogueira, que vai
sempre ganhando força.
Mas só o seu irmão, que compreende bem melhor do que o
marido a extensão de sua angústia, levanta-se rápido e lhe estende a
mão, ajudando-a a encontrar um lugar junto à fogueira. Sem
conseguir comer nada, aceita o copo de vinho que lhe é oferecido
para que comece a se reanimar. Ela precisa mesmo de um bom
reforço, inclusive pelos olhares candentes do rabino que lhe
acariciam sem cessar o corpo e a face, deixando-a ainda mais
preocupada, pois agora já conhece bem sua esperteza e sagacidade.
A preocupação a faz ficar com os nervos à flor da pele, a ponto de
tremer assustada ao leve toque da Primeira Esposa, que com um
sorriso amigável lhe oferece um cubinho de queijo no qual se pode
ler, em letras gravadas, a palavra hebraica brahá, bênção, como
garantia de ser apropriado ao consumo pelos judeus. O que fui
fazer?, pensa consigo Esther-Míriam, em desespero. Em vez de
dissolver a sociedade discretamente, em silêncio, com algumas
desculpas e pretextos, eu agora os soldei em definitivo, por meio da
sentença pública de uma comunidade ignorante e embriagada. Ela
procura em vão o olhar do esposo, que não parece nada triste ou
p p q p
deprimido, apenas bastante ocupado em ferver água para uma
infusão preparada com algumas folhas secas e muito aromáticas que
a Primeira Esposa tira de sua bolsinha.
De repente o senhor Lavinas se levanta de um pulo e dá um tapa
na testa. Só agora lembra que na afobação da partida de Ville-les-
Juifs se esquecera por completo do pagamento da soma devida aos
três escribas, que poderão pensar que ele, não tendo conseguido o
veredicto esperado, tivesse faltado à palavra dada, como se não se
tratasse de uma justa compensação, mas sim de uma tentativa de
suborno. E tão penoso para o senhor Lavinas imaginar o que os três
devem estar pensando dele naquele momento que, não conseguindo
encontrar sossego para comer ou beber, começa a dar voltas e mais
voltas ao redor do fogo. Somente um retorno imediato a Ville-les-
Juifs para saldar a dívida esquecida poderá tranquilizá-lo. Embora
Abuláfia tente persuadir o cunhado a esperar mais um ou dois dias,
e não sair pela estrada só, à noite, a senhora Esther-Míriam, melhor
conhecedora do irmão, sabe que não haverá força no mundo capaz
de impedir aquele homem de se pôr a caminho para limpar seu
nome honrado. Assim, ordena ao aturdido carroceiro que desatrele
da carroça o animal que pouco antes tinha afagado e o arreie, a fim e
que o irmão possa rapidamente remediar o seu esquecimento.
Nem bem o tinir das ferraduras do cavalo, rumando para o Sul,
desaparecera na noite e um sentimento de profunda solidão a
invade, acentuando-se a ponto de tornar-se quase insuportável. Até a
amada cabeça do marido, tantas vezes acariciada na cama, suas
mãos mergulhando na cabeleira encaracolada para alisar-lhe os
cachos, parece-lhe estranha e selvagem à luz da fogueira. Vê-se
surpreendida por um sentimento de urgência de voltar para casa,
embora não tenha esquecido que, ainda nesta noite, o seu leito
conjugal será requisitado pelos visitantes do Sul, cujo valor e
prestígio se tornaram menos questionáveis em virtude do estranho
veredicto. Mas não parece que o grupo ao redor do fogo esteja
ansioso para retomar a estrada. Sentados de pernas cruzadas, em
círculo, sorvem calmamente a bebida de ervas aromáticas. Por vezes,
de pequenas bolsas de couro, tiram pitadas de especiarias das mais
variadas cores e as espargem sobre a comida para realçar o seu
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sabor, prosseguindo com a característica tranquilidade sulina na
conversação em árabe, quase como se estivessem em alguma praia
dourada e segura de sua terra, e não no coração de uma planície
árida, selvagem e deserta.
Fica claro que a partida do senhor Lavinas faz com que as
mulheres se sintam livres para abandonar sua estrita reserva.
Notando que o carroceiro cristão cochila em seu posto, elas se
permitem erguer um pouco os véus e, reasseguradas com a
restauração da sociedade que justifica e dá sentido à longa jornada,
lançam-se num alegre tagarelar, fazendo comentários hilariantes não
apenas sobre Ben-Atar como também sobre Abuláfia, arriscando
mesmo arremedar o rabino, que permanece deitado com a cabeça no
colo do filho, a fim de procurar novas estrelas, invisíveis no céu da
Andaluzia. Embora a tristeza da senhora Esther-Míriam esteja
patente, Abuláfia não pode permanecer indiferente ou alheio à
conversação familiar que se desenvolve animadamente à sua volta.
De quando em quando, volta-se em direção à esposa para confortá-la
e traduz uma ou duas sentenças, sobretudo do que diz a Segunda
Esposa, que, diante das alegres fagulhas a voltearem ao redor do
fogo, conduz a conversa com especial vivacidade, como se ao trocar
de roupa no recesso do bosque tivesse recebido do marido uma
permissão ou uma garantia que a tivesse tornado mais confiante.
Entretanto, a melancolia da senhora Esther-Míriam só faz
aumentar, como se sua conhecida autoconfiança tivesse
desmoronado subitamente. Se tivesse um véu, ficaria aliviada de
esconder o rosto naquele momento, principalmente dos olhares do
marido, que com sua expressão de evidente felicidade a feria de tal
modo que fazia a morte lhe parecer desejável. De repente, ergue-se e
ruma para o bosque, como se quisesse achar um canto tranquilo para
atender às suas necessidades pessoais, como os demais já haviam
feito antes dela. Porém, andando por entre as grandes árvores, ela
experimenta um sentimento de vazio e não de plenitude, de fome e
não de saciedade, e assim continua a caminhar, embrenhando-se
mais e mais na mata. Não em linha reta, mas descrevendo um
grande círculo, tendo como centro a luz bruxuleante da fogueira, até
ouvir de repente o uivo assustado de um pequeno animal selvagem.
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Ela se detém e apoia em desespero a cabeça num tronco de árvore,
como se seu Deus tivesse sido irremediavelmente derrotado, e de
agora em diante devesse pedir misericórdia àquela divindade
silvestre.
Enquanto a senhora Esther-Míriam se deixa ficar, deprimida, por
entre as árvores, imagina a cena de seu marido, jovem e
entusiasmado, que no próximo verão irá empacotar suas bolsas e
sacolas, atá-las à sela e partir para a viagem de mil léguas rumo à
baía de Barcelona, para receber de seu tio-sócio não apenas os
objetos de cobre e especiarias, mas também o perfume da bigamia,
impregnado em suas vestes como o odor da canela. A sua ausência
prolongada desperta a inquietação de Abuláfia, que, girando em
torno da fogueira indeciso entre se lançar ou não à procura da
esposa, por respeito a ela, procura controlar a sua ansiedade.
Finalmente não consegue mais se conter e a chama, gritando seu
nome, à espera de um sinal de vida. Mas a mulher, que ouve o
chamado como um eco distante, reprime a resposta, não só por não
estar certa de que sua voz será suficiente para vencer a distância que
os separa, mas também pela certeza de que só a noite escura e
silenciosa do bosque verdejante e úmido poderá lhe dar a coragem
de pensar em alguma coisa que possa afastar a nova ameaça que
paira sobre ela.
Embora Abuláfia saiba em seu íntimo que sua Nova Mulher
silencia para aumentar um pouco a sua ansiedade, ele não tem
certeza se os perigos da noite permitirão que ela lhe pregue essa
pequena peça sem que ela própria saia prejudicada. Por isso, quando
o silêncio se prolonga, resolve sair à sua procura, movendo-se em
direção ao ponto em que ela se embrenhou no bosque, certo de que
ela deverá estar a dois ou três passos dali. Como depois de longos
minutos de procura os chamados permanecem sem resposta, ele
volta à fogueira, bastante aflito e angustiado, temendo que a perda
imaginada possa se transformar em perda real. Sem perder tempo,
Ben-Atar improvisa duas tochas com gravetos e folhas secas, uma
para si e outra para o jovem marido, que, já tendo perdido sua
Primeira Esposa nas ondas do mar, empenha, compreensivelmente,
todas as suas forças para não perder a Segunda entre as árvores da
floresta.
Todavia, a senhora Esther-Míriam não tem nenhuma intenção de
sumir, e na verdade não está muito longe nem da fogueira nem dos
dois homens que a procuram por entre as árvores, à luz vacilante
das tochas. Porém, não tendo avançado em linha reta e sim em
círculo, encontra-se naquele momento na direção oposta àquela em
que a procuram. Sentada ao pé da árvore contra a qual há pouco
apoiara a cabeça, pequena e encolhida sobre si mesma, as mãos
cruzadas contra o peito, mergulha numa reflexão profunda, e
aguarda o momento em que já terão desistido da procura para poder
retornar dignamente à fogueira, animada já com a nova ideia
salvadora que acabara de lhe ocorrer. Entrementes os dois homens já
se separaram e tomaram direções diferentes. Enquanto o esposo
continua na mesma linha reta, como se acreditasse realmente que a
esposa decidira voltar sozinha, direto para Paris, talvez orientada
pelas estrelas do céu, o tio, por ser mais velho e conhecer melhor a
alma feminina, toma o caminho curvo, pois sua fina intuição lhe diz
que aquela que o fez sacudir pelas ondas do oceano durante
incontáveis semanas devido ao seu repúdio também é capaz de
cuidar muito bem de si mesma.
A tocha, porém, já se desintegra em sua mão, e as últimas
fagulhas voam e se perdem por entre os arbustos. Quando Ben-Atar
tropeça na senhora Esther-Míriam, por um momento não sabe se se
trata de uma pessoa, ou quem sabe um animal europeu, macio e
desconhecido. Quando ele se inclina na sua direção e tenta levantá-
la, murmurando algumas palavras na língua sagrada para conferir
se não estava desmaiada, ela se dá conta de que um desmaio poderia
ser um bom álibi para seu desaparecimento e seu silêncio. Então ela
cerra os olhos com força e se imagina como a terceira esposa do
homem robusto que a ergue, sentindo todo o tremor e o vexame da
situação inusitada. Pela primeira vez em sua vida ela, que sempre
soubera manter a compostura e o sangue-frio, investe todas as forças
em embaralhar as ideias e tentar um pequeno desmaio de verdade.
No entanto, ao abrir os olhos e se perceber deitada ao lado da
fogueira, coberta com um manto desconhecido, ela se dá conta de
g
que aquele não fora um desmaio simulado. Sobre ela vê o rosto de
Abuláfia, que a observa, entre admirado e atônito, como se o
desmaio tivesse lhe revelado uma qualidade ainda desconhecida da
esposa. Embora estivesse muito curiosa para saber se teria sido o
marido, que tanto a examina, a reconduzi-la para junto do fogo, ou o
tio bígamo que a encontrara, bem sabe que não é o momento de
perguntar: todos os viajantes a cercam, cheios de carinho e aflição,
como se o desmaio a tivesse redimido de todos os pecados e ofensas
que seu repúdio fizera recaírem sobre ela. E é tão grande a
preocupação de todos pela sua saúde que a Primeira Esposa,
desfazendo uma das costuras de sua roupa de baixo, tira de uma
espécie de bolso macio e secreto um pequeno frasco contendo um
unguento de cheiro penetrante que Abu Lutfi costuma lhe trazer
todos os anos do deserto. Pelo ar de segredo com que ela lhe estende
o frasco, parece que contém a seiva extraída do cérebro ou dos
testículos de macacos, que, apesar de impróprios para a alimentação
dos judeus, são inteligentes e sábios. De qualquer modo, o cheiro da
essência é tão intenso e penetrante que uma única gota esfregada nas
têmporas pálidas de Esther-Míriam pela Primeira Esposa não lhe
deixa outra alternativa senão se pôr de pé no mesmo instante.
Capítulo 4

O estranho odor da gota de seiva do deserto que umedeceu a


testa da Nova Mulher se difunde com tal força dentro dela que a faz
imaginar que a inacreditável fragrância, ao expandir os limites da
sua alma, reforça a ideia que acaba de lhe ocorrer. A senhora Esther-
Míriam se ergue, sobe à carroça, aceitando apenas por cortesia o
braço de Abuláfia, mas recusando com firmeza o macio colchão de
folhas que as duas esposas haviam preparado para ela no fundo da
carroça, para que pudesse se refazer do seu desmaio. Neste
momento já tem claras as palavras que dirá ao marido quando se
encontrar a sós com ele no quartinho improvisado, preparado para
eles na ala do irmão.
A decisão em relação à guinada que pretende dar à sua vida já se
estabelece tão firmemente no coração desta mulher que a faz pensar
ser inútil consultar o irmão no seu retorno do vinhedo, até mesmo
pelo fato de, pela primeira vez na vida, sentir abalada a confiança
que sempre depositou no senhor Lavinas, cujas palavras muitas
vezes tiveram quase a força de um oráculo para ela. Até ali, na densa
escuridão que envolve a carroça a sacolejar pelo caminho que
atravessa as ruínas da cidade de Lutécia, ela não consegue esquecer
o quanto se sentiu ofendida ao surpreender o sorriso displicente
esboçado pelo irmão ao ouvir o perigoso discurso do rabino Elbaz,
no qual a angústia, a dor e a alegria do leito nupcial transformavam-
se em mero prazer. Como é possível, pensa a senhora Esther-Míriam
com amargura, que o irmão, tendo, como ela, crescido numa casa em
que se acolhia a verdadeira palavra da Bíblia, possa vir a acreditar
que qualquer ideia, desde que bem embalada em um ou dois
versículos apropriados, venha a ser considerada digna e aceitável
aos olhos da razão mesmo que a alma a abomine.
Porém o senhor Lavinas, cavalgando naquele momento de volta
a Villeles-Juifs, não pensa mais no discurso do rabino, nem se
preocupa com as divagações da irmã. Determinado a preservar o seu
bom nome, não tem outro desejo senão o de encontrar os escribas e
lhes pagar o valor combinado, e também o de procurar o
comerciante radanita para lhe propor uma quantia mais substancial
pelas duas pérolas indianas. Seria inimaginável que aquele
comerciante arguto não tivesse percebido o nexo entre a intervenção
definitiva e hostil do mercador durante o julgamento e o baixo preço
que lhe oferecera na véspera. No entanto, ao chegar à vinícola,
envolta nas sombras das parreiras àquela hora tardia, o senhor
Lavinas descobre que todos, tanto os proprietários como a pequena
comunidade de trabalhadores, já estão imersos no mais profundo
sono, como se tivessem se apressado a ir assistir, em seus sonhos, à
materialização da prodigiosa sentença proferida havia pouco. Como
os três escribas de textos sagrados estavam neste momento na velha
carroça a caminho de Chartres, e o comerciante da Terra de Israel
desaparecera sem deixar rastros, só resta agora ao senhor Lavinas,
que vaga por entre os tonéis de vinho, ouvir a conversa da velha
juíza, a quem os passos do visitante inesperado fazem surgir por
entre a pilha de peles de raposa que de qualquer modo não
logravam aquecê-la.
Assim, envolto numa velha pele de raposa, com um leve tremor
causado pelo frio do princípio do outono, o senhor Lavinas se instala
entre dois barris de vinho sobre o pequeno palco do julgamento, à
espera de que chegue a manhã para poder entregar pessoalmente ao
proprietário do vinhedo o pagamento dos escribas e tentar descobrir
o paradeiro do comerciante da Terra de Israel. Entrementes, presta
ouvidos ao tagarelar da velha que, fiel ao preceito bíblico "Não
converses demais com a mulher", não dá chance ao parisiense nem
sequer de abrir a boca, e o assalta com suas impressões
entusiasmadas sobre os judeus bronzeados vindos do Sul, a beleza
de suas mulheres, o encanto de suas túnicas maravilhosas, a
maestria com que o rabino floreia seu discurso e a doçura de seu
filho. Mas em particular ela louva a aparência vigorosa de Ben-Atar
que, sabe-se lá, fantasia a velha, poderá até vir a pedi-la em
casamento e embarcá-la como terceira esposa no navio quando
zarpar de retorno à sua terra ensolarada.
p
O senhor Lavinas se cala e fecha os olhos. Apesar dos calafrios
causados pelo cansaço, ele, como pessoa prática e equilibrada que é,
tenta assentar uma primeira e tênue linha de pensamento que
permita chegar a um compromisso entre a sociedade que acaba de
ressurgir por força de uma sentença enlouquecida, porém
irrefutável, e o amor-próprio da irmã. É possível que a torrente
monótona e incessante de palavras da velha, que não parece ter
nenhuma intenção de deixá-lo, já tenha começado a embotar sua
mente, quando arrisca considerar a viabilidade de participar como
quarto sócio no empreendimento renovado entre o Norte e o Sul
apenas para se colocar como intermediário entre o tio e o sobrinho
de modo a atenuar com sua personalidade sólida e confiável a
ameaça de bigamia que tanto apavora a irmã. Na obscuridade da
carroça, a senhora Esther-Míriam percebe o calor que emana do
corpo do marido em direção a ela como se, depois da derrota no
tribunal e do desmaio no bosque, o amor e o desejo de Abuláfia
tivessem se multiplicado sem cessar. A certeza desse amor aumenta
a sua segurança e ela está convencida de que não necessita mais da
aprovação do irmão mais jovem nem de nenhum novo estratagema
para anunciar ao homem, que dentro em pouco se despojará de suas
vestes diante dela, sua nova decisão.
Portanto ela apenas sorri e inclina a cabeça quando o rabino
Elbaz se aproxima e pergunta com esperta polidez pela sua saúde,
como se quisesse aferir a medida da sua contribuição, com sua bela
peça acusatória, para o desmaio. Quando, à meia-noite, chegam à
travessa La Harpe, próxima à estátua de um homem segurando uma
harpa, e o odor do rio lhes chega ao nariz, ela sorri de novo e se
surpreende numa leve atitude de reverência em relação a Ben-Atar,
enquanto este, imbuído de sua renovada autoridade de chefe de
família, confia-lhe suas duas esposas. Reassegurado, o mercador
norte-africano se precipita em direção ao navio para levar as boas
notícias ao preocupado ismaelita, e dizer que as orações a Alá não
foram em vão e que pela manhã já se poderá começar a desembarcar
a mercadoria. Só depois que a senhora Abuláfia sobe acompanhada
das duas mulheres, sacode as cobertas sobre a cama do rabino e
afofa seu travesseiro para que a proximidade das duas mulheres que
p q p q
entram em seu quarto não lhe traga insônia, ela ordena à velha serva
que aqueça a água para o banho no pequeno aposento que o senhor
Lavinas colocou à sua disposição.
Mergulhando numa grande tina de cobre ornamentada com
desenhos finamente cinzelados que Abuláfia lhe dera como presente
de noivado, o pequeno corpo rosado guarda um frescor
surpreendente apesar da idade, e a bela mulher de olhos azuis se
banha com o auxílio da serva pagã, não só para expulsar o aroma do
unguento do deserto que a impregnara, mas para voltar a ter o
aroma familiar de sua essência perfumada. Ao perceber que
Abuláfia deseja entrar no quarto e se despir, ela dispensa a criada,
ergue-se à sua frente em toda a sua beleza, e só então veste uma bata
mais leve. Quando este homem de cabeça cacheada, esposo e
sobrinho, repudiado e atraído, tradutor e acusado, vitorioso e
derrotado, começa a se despir, ela anuncia, com a certeza que só a
noite profunda concede, que, uma vez que o repúdio ao tio bígamo
foi extinto e a sociedade está prestes a ressuscitar, que de agora em
diante é uma mulher rebelada, que não mais deseja o marido. Pela
autoridade de uma lei antiga e poderosa, cuja origem não se
encontra nos estudiosos das escrituras ashkenazitas, mas sim nas
próprias academias dos sábios da Babilônia, considerados por todo o
mundo como os detentores da palavra definitiva em matéria de leis
rabínicas, à mulher rebelada que não mais deseja o marido será
concedido o divórcio imediato.
Porém o desejo que atordoa a alma de Abuláfia não o deixa
perceber a extensão e a gravidade do que lhe foi lançado no rosto.
Continua a se despir, como se as palavras não tivessem partido da
mulher desejada, cujo corpo resplandece lindo, convidativo e
perfeito diante dele, através da leve túnica, mas sim de outra
mulher, sombra oculta, raivosa e rebelde, que intenta espargir seu
sêmen ardente no chão frio. Assim, com a razão embotada de um
homem tomado pelo desejo, Abuláfia parece decidido a não dizer
uma palavra; continua a se desfazer das últimas vestes e observa no
pequeno espelho de vidro sobre o gaveteiro sua face escurecida pela
fumaça da fogueira e seus braços arranhados pela procura
aterrorizada daquela que, algumas horas antes, desejara decerto
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cometer no bosque o mesmo que a outra mulher cometera havia dez
anos, nas ondas do mar.
Apesar de a senhora Esther-Míriam ter recuado alguns passos, e
mesmo erguido as mãos para repelir seu jovem marido, que se
recusa a compreender toda a extensão e seriedade da rebelião que se
arma contra ele, é arrebatada brutalmente para os braços de um
homem nu, que anseia até por um novo desmaio para que possa
satisfazer naquele mesmo momento, e por completo, seu desejo
emocionado. Porém, eis que vindo em socorro da mulher em perigo,
que se debate não só contra o desejo do marido, mas também contra
o seu próprio, desperta por trás do cortinado o gemido alto e
obstinado da menina, que ainda busca pela ama ismaelita. Abuláfia
se vê agora lutando não apenas contra a rebelião tenaz, macia e
perfumada, mas igualmente contra o clamor fantasmagórico da
esposa morta que, por meio do grito gutural da filha, clama por
socorro das profundezas do mar.
A Nova Mulher consegue assim se livrar, como se o corpo de
Abuláfia, materializado na menina que se lamenta por trás do
cortinado, fosse mais importante para ela do que o corpo que se
atormenta à sua frente. Quando ela sai do quarto para socorrer a
menina, Abuláfia sente suas forças o abandonarem, pois, desde que
o tio distante aparecera na soleira da sua casa havia três dias, ele se
vira o tempo todo confrontado e instigado por forças amadas porém
conflitantes. E assim como está, nu, com o membro ereto como uma
lança em busca de um novo alvo, entra na tina onde há pouco se
banhara a mulher rebelada, à procura, na água espumante, do calor
e da fragrância do corpo que agora há pouco lhe escapara. Enquanto
o choro da pobre menina atravessa a cortina a seu lado, seus olhos se
fecham à aflição intensa de ver o sêmen que vem flutuar na
superfície.
Ainda mergulhado na água, sente a presença da mulher que, na
ponta dos pés, volta ao quartinho depois de ter conseguido acalmar
o humor alterado da criança. Fala com ele, docemente, cheia de afeto
e compreensão. Diz que, embora o veredicto de sete juízes
ignorantes não tenha, a seus olhos, mais valor do que o veredicto dos
sete barris de vinho em que se sentaram, ela não se permitiu pedir a
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anulação do processo, nem que tenha sido só por respeito ao rabino.
Mas não consegue esquecer as palmas entusiasmadas do viajante da
Terra de Israel, nem o sorriso feliz do próprio Abuláfia ao traduzir as
palavras do rabino uma a uma, nem, sobretudo, a curiosidade
metódica de seu irmão, carne da sua carne e sangue do seu sangue,
ao ouvir a apaixonada peça de acusação. Assim, não lhe resta outra
alternativa senão deixar sua alma mergulhar em dor e abandonar
tudo o que tem de mais precioso. E clama para que não seja uma
ofensa ao Deus de Israel se, pela primeira vez na vida, ela sente
inveja das mulheres cristãs que, quando atingidas pela desgraça,
podem abandonar tudo e ingressar num convento. Entretanto, como
para os judeus não existem conventos, só lhe resta sua cidade natal,
onde ainda permanecem seus parentes por parte do falecido esposo,
em especial seu cunhado, que após a morte do irmão a liberou dos
vínculos do casamento para que pudesse ir viver com seu irmão em
Paris. Com simplicidade e com as melhores intenções, ela se dirige
com estas palavras ao esposo mergulhado na água que ainda
conserva seu perfume: Meu repúdio fracassou e renovou-se a sua
sociedade. Portanto, de agora em diante, o senhor está de novo
liberado para trilhar as estradas do comércio, disfarçado de frade ou
de leproso, para ir ao encontro de seu amado tio e sócio respeitável,
com suas esposas e suas especiarias. Mas, antes disso, apenas me
conceda o divórcio, meu senhor, e não mais lhe causarei
aborrecimentos, não ao senhor nem a qualquer outra pessoa, pois
estou deixando não apenas o senhor e sua filha, como também o
meu irmão e sua família, para retornar ao rio de Ashkenaz, o rio de
minha infância, que é incomparavelmente mais largo e profundo do
que este rio que aqui se vê da janela.
Tomada pelo temor da recusa que certamente viria, ela se
apressa em mergulhar a chama da vela na tina de água que já esfria,
onde o atônito marido ainda se encontra. Na densa escuridão que cai
de súbito no pequeno quarto, ela veste um manto sobre a fina bata, e
em silêncio sai a percorrer os quartos dos hóspedes para verificar se
alguém necessita da atenção da dona da casa. Porém, os quatro
viajantes norte-africanos, exaustos e felizes em sua condição de
vitoriosos, não carecem da ajuda da hospedeira, cujo obstinado
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repúdio os fez viajar desde o fim do mundo. Depois de ter verificado
que as duas esposas dormem serenas, cada qual em sua cama, e que
as cobertas não escorregaram do jovem Elbaz, que dorme
enrodilhado como um feto, e também que a barba do rabino não se
emaranhou nos fios do bordado do travesseiro, ela vai à cozinha
verificar se há com que alimentar os visitantes na manhã que se
aproxima. Passado algum tempo ela volta em silêncio ao seu
quartinho e encontra Abuláfia vestido com seu manto de viagem,
dormindo numa cadeira ao lado da tina de banho vazia, com a
grande vela apagada no fundo. Não sabe se ele caiu no sono tão
depressa para se furtar à penosa discussão sobre a rebelião que se
erguera contra ele, ou se, já tendo alinhavado os argumentos para a
disputa que iria se travar e estando completamente exausto, acabou
por sucumbir ao sono.
Como renunciar a uma mulher cuja alta testa lhe confere a
expressão de um lindo e nobre animal, e por quem Abuláfia está
mais e mais enamorado a cada dia que passa, uma mulher, enfim,
que desmaiara havia apenas algumas horas com tão maravilhosa
doçura? Mas, por outro lado, como rejeitar o tio querido e fiel, que
afrontou rigores e perigos apenas para voltar a se reunir a ele, e que
está agora garantido pela sentença que o astuto rabino andaluz
produziu a seu favor? Assim, pensou Abuláfia com seu jeito
conciliador embora um tanto leviano, é melhor dormir um pouco,
deixando, como de costume, as contradições e alternativas de sua
vida se perderem em um sonho, até o retorno do senhor Lavinas, o
sensato cunhado, que com certeza encontrará uma solução.
Mas o senhor Lavinas não voltará tão cedo. Está estendido entre
dois grandes barris de vinho no salão da prensa de Ville-les-Juifs, e
também sonha, enquanto a velha, que o cobriu com mais algumas
peles de raposa, ainda resmunga a seu lado. No sonho o senhor
Lavinas caminha nu como nasceu, à beira-mar, para um encontro de
negócios com Ben-Atar, que agora possui as duas pérolas indianas
do mercador. Como o senhor Lavinas nunca vira a forma do mar em
toda a sua vida, ele imagina todos os mares à imagem do mar
Vermelho que aparece no Hagadá, livro que se lê na Páscoa judaica e
que relata o Êxodo do povo judeu do Egito, liderado por Moisés:
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uma extensão formada por pequenas colinas de água vermelha,
mostrando nos espaços secos que as separam homens justos a
caminhar desnudos ao encontro uns dos outros.
Todavia, Ben-Atar não tem tempo para participar nem do sonho
de Lavinas, nem do sonho de Abuláfia, nem mesmo do sonho de
Esther-Míriam que, sozinha e encolhida
na cama, tenta novamente reconstituir o momento do desmaio.
Entrementes, o dono do navio conversa com Abu Lutfi, ocupado em
acompanhar naquele momento o trabalho do escravo negro, que se
esforça em fazer o camelinho descer à terra firme, por meio de
cordas, para que possa roer um pouco da relva fresca da margem
setentrional. Apesar de Ben-Atar insistir em explicar ao sócio árabe o
triunfo obtido, esbarra com a grande dificuldade de Abu Lutfi de
entender o sentido da vitória, uma vez que jamais fora capaz de
atinar com o motivo da disputa. Mas uma coisa parece causar
grande alegria ao ismaelita: no dia seguinte, ao amanhecer, darão
início ao desembarque da mercadoria que, entregue às mãos do
comandante e da sua tripulação desde que Ben-Atar descera à terra
com sua comitiva, fora diminuindo dia a dia. Talvez, com a ausência
da autoridade silenciosa exercida pelo dono do navio, Abd el-Shafi
se sentira demasiadamente livre? Ou fora a falta do olhar suave das
duas mulheres a afrouxar as amarras? Ou, quem sabe, nem um nem
outro. Talvez tenha sido a falta do constante correr da pena do
rabino Elbaz sobre o papel, que parecia infundir um espírito de
moderação e santidade na tripulação.
Seja como for, é chegada a hora de tirar as mercadorias das mãos
ávidas da tripulação, descarregar os grandes sacos e cestos lacrados,
separar os pálidos favos de mel, dobrar os tapetes e as mantas. E,
mais importante, extrair do fundo de seus esconderijos as adagas
cravejadas de pedrarias e devolver-lhes o antigo brilho, que
despertará o desejo de comprá-las, ainda que não se tenha nenhuma
necessidade. Assim, os dois sócios se preparam para a semana de
negócios que os aguarda. Nos dois primeiros dias irão transportar a
mercadoria para a casa do terceiro sócio arrependido, para que a
examine com todo o cuidado. Nos dois dias seguintes, pensam
aproveitar a permanência na região das vendas para observar,
p p g p
discretamente, de modo a não ofender Abuláfia, a situação do
mercado e os preços praticados, a fim de terem uma ideia clara de
quanto do total do lucro chega para a divisão entre os sócios em
Barcelona através do sobrinho, e de quanto é despendido pelo
caminho. Nos dois dias restantes, irão se dedicar à pesquisa de
mercado para saber que tipo de produto poderá encher a barriga
esfomeada do navio na viagem de volta: se troncos de madeira, a
carga habitual dos navios ao desatracarem do porto de Barcelona, ou
se grandes ânforas de vinho local, como acaba de ocorrer ao
mercador judeu. Tão absortos estão nessa discussão sobre os planos
para os próximos dias que acabam por perder de vista o camelo e o
escravo. Mas, tão logo se dão conta do desaparecimento dos dois,
precipitam-se no seu encalço. Esforçando-se para abrir caminho pelo
matagal espesso que cresce na margem setentrional, chegam a um
terreno úmido e arenoso, onde, surpreendentemente, o rio Sena
criou uma segunda ilha, deserta. Ali, entre as hortas dos parisienses
não muito distantes do convento de Sainte Geneviève, descobrem o
pobre animal se fartando com nabos fresquinhos e doces beterrabas,
enquanto o jovem pagão se entrega a exaltadas prosternações diante
da nova estrela que acabara de descobrir no céu da íle-de-France.
Nesta hora tardia da noite, Ben-Atar não imagina nem de longe
que a vitória da antiga sociedade, que já considerava segura entre as
dobras do seu manto, está prestes a lhe escapar novamente das mãos
e que o momento de zarpar de volta para suas duas casas na costa
dourada de Tânger ainda se encontra muito distante. Como poderia
imaginar o abismo de dor em que mergulha o coração de Abuláfia
quando, despertado do sono breve e inquieto que lhe oferecera a
dura cadeira, lembra-se da rebelião da mulher? Convencido de que
ela já o evita, não percebe na escuridão reinante no quarto que a
senhora Esther-Míriam dorme encolhida numa extremidade da
cama, e sai a procurá-la por todos os cantos da casa. E só ao voltar
que, consternado, dá-se conta de quanto se precipitara em imaginar
a mulher já perdida para ele. Suas mãos acariciam levemente o corpo
amado, para sentir se a rebelião que viera de se anunciar já lhe
permeia os sonhos. Mas a senhora dorme tranquila um sono muito
profundo, como se desde o momento em que havia proclamado a
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sua separação e o retomo à terra natal, até mesmo a tormenta que se
apoderara de sua alma com a chegada intempestiva de Ben-Atar há
três dias tivesse se aquietado.
Teriam sido apenas três os dias decorridos? Abuláfia se espanta
na escuridão do quarto, estirando o braço dobrado de sua mulher
sobre a coberta, para que ela continue em seu sono tranquilo. No
entanto, a ausência de uma reação e o peso de seu braço despertam
uma nova angústia em Abuláfia: talvez a mulher não esteja
dormindo, talvez esteja desmaiada, como quando Ben-Atar a erguera
do chão e a levara até a fogueira. E o desejo, que ele julgara que
havia se evaporado, escoado na tina de banho, novamente o
arrebata, como se sua origem não se encontrasse dentro dele, mas no
amplo espaço vazio da casa que as esposas de Ben-Atar preenchem
com sua respiração tranquila. Jamais lhe concederei o divórcio, jura
para si mesmo, embora conheça bem a mulher e sua teimosia.
Apesar de ainda não saber o que o futuro lhe reserva, de uma coisa
ele está certo: não permitirá que o seu novo amor se perca entre as
árvores da floresta, da mesma forma como o antigo se perdera por
entre as ondas do mar. Incapaz de se conter, começa a acariciar e
beijar a mulher, para que ela acorde e veja com os próprios olhos a
determinação que ele está disposto a opor à sua rebelião.
Com extrema lentidão, Abuláfia deixa-se levar por seu desejo, e
o guia, o remete a ela, o segue, para despertar uma resposta. Mas por
um instante lhe parece que a mulher não desperta de propósito, para
que o ato de amor se realize num momento de semiconsciência,
entre a vigília e o sono. Não só para que depois não seja possível
dizer que a sua rebelião tinha gorado no nascedouro, mas também
para que possa ignorar sem remorso os gemidos da pobre criança
que, logo além do seu quarto, como de hábito, interferir na vida
amorosa do pai. Assim se consuma o ato de amor. O membro de
Abuláfia se recusa por longo tempo a separar-se dela, como se a
ereção prolongada pudesse esconjurar o novo repúdio que a
conduzirá a Ashkenaz, sua terra natal. O prazer que a invade é tão
intenso que, incapaz de se conter, ela une os seus gemidos aos
lamentos da criança triste e enfeitiçada que chora não longe.
O sol já vai alto no céu quando a senhora Esther-Míriam
desperta e, com a cabeça ainda pesada de sono, descobre, aturdida,
que uma verdadeira revolução ocorreu em sua casa enquanto
dormia. Ao lado da lareira e dos fornos da cozinha, as duas
mulheres de Ben-Atar, assumindo por completo as funções de donas
da casa, picam verduras e grelham carne, assam pães e mexem
caldos rosados, encantando, com sua tranquila autoridade, não só a
esposa de Lavinas e a velha serva, mas ainda Elbaz e seu filho,
convocados para provar todos os pratos e temperos e confirmar se
ficaram iguais aos da Andaluzia. Só Abuláfia não se encontra ali.
Chamado ao navio para assumir o seu lugar na sociedade, foi
encarregado de dirigir a operação de desembarque no pátio das
mercadorias, cujos fardos os marinheiros, cheios de entusiasmo,
descarregam no pátio da sua casa.
Do senhor Lavinas, não há nenhum sinal. Ainda em Ville-des-
Juifs, naquela manhã já havia enviado um portador especial ao
feudo de Chartres com os honorários de três escribas, e também
conseguira encontrar o mercador radanita, prestes a partir para
Orléans, e retomar a negociação das suas pérolas. Apesar de
continuar hesitante entre considerar a forma rara em que elas se
apresentam, semelhantes à de uma pêra, como algo que contribui
para aumentar ainda mais o seu valor, conforme assegura o
mercador, ou como um defeito, está disposto a aumentar a oferta,
desta vez de modo substancial. Fechado o negócio, a curiosidade a
incita a interrogar o mercador, embora com muitas mesuras e
rapapés, para descobrir se ele próprio mantém duas esposas ou
apenas uma. Mas o homem robusto e barbudo não parece nem um
pouco disposto a revelar seus segredos e se põe a caminho sem ter
dado nenhum resposta clara. Assim, depois de ter envolvido as duas
pérolas em um pano macio e ocultado o pequeno embrulho em sua
bata, o senhor Lavinas começa a considerar se colocará ambas à
venda na corte capetíngia de Paris ou se venderá apenas uma delas a
alguma das mais belas duquesas da corte, enquanto guardará a
segunda, esperando que a beleza da dona da pérola duplique, nos
próximos dias, o valor da pérola reservada.
Sozinho no começo da tarde, sedento e esfomeado, toma o
caminho de volta a Paris. De tempos em tempos pára o cavalo, extrai
as pérolas do interior de sua bata e as ergue à contraluz: não tanto
para compará-las, mas para descobrir que momento do dia melhor
ressalta a sua beleza invulgar, pois assim saberá qual a hora propícia
para realizar a venda. Imerso nessas considerações comerciais, o
senhor Lavinas chega à casa e se surpreende com a quantidade de
mercadorias que está sendo depositada no pátio pelos marinheiros
árabes, descalços e seminus, naquele momento transportando,
animados, grandes ânforas sobre a cabeça. O seu tio não demorou
nada para colocarem prática o veredicto, sussurra para Abuláfia que,
pálido e silencioso na soleira da porta da casa, devolve a observação
com um olhar gentil e cheio de inquietação para o cunhado, como se
o seu destino dependesse só dele. Porém ainda hesita em revelar ao
senhor Lavinas toda a extensão da ferida aberta em sua alma, para
que o aconselhe. Aguarda para ver se o jejum que se impôs desde o
começo da manhã consegue demover a mulher do seu duro intento.
Mas esta já se apressa em anunciar ao irmão a sentença de rebeldia
adotada por ela, para que assim possa escapar à humilhação e à
ameaça que rondam seu casamento em relação ao qual, ela agora
está disposta a admitir, a reserva do irmão, com o decorrer do
tempo, se mostrara não destituída de fundamento.
Mas o espírito prático do senhor Lavinas o impede de ir em
busca de culpas passadas quando o presente urge e o ameaça, a si e à
sua casa, sob a forma de pilhas de tapetes bordados, pesados sacos
de condimentos, grandes ânforas de cerâmica e utensílios de bronze
amarelo, que continuam a ser trazidos do navio árabe e que, já tendo
ocupado todo o espaço do pátio e do porão, começam a ser
descarregados no pavimento superior. Não só os ataques vindos de
fora ameaçam a casa, mas também os vindos de seu interior, pois as
duas esposas de Ben-Atar começam a ocupar agora a grande mesa
de refeições com toda sorte de bandejas, pratos e travessas repletas
de novas iguarias, de cores maravilhosas e aromas fantásticos, como
se toda a paixão pela boa cozinha, tão reprimida durante a longa
viagem por mar, tivesse explodido em todo o seu vigor.
Contudo, quando o senhor Lavinas se volta para Abuláfia e
implora que interrompa a invasão que vem do navio e ameaça
submergir sua casa com o contagiante entusiasmo comercial dos
sócios do cunhado, este lhe retribui o olhar com uma expressão de
completa perplexidade estampada na face pálida, os braços
estendidos no gesto desesperado e impotente do Cristo crucificado,
como se ele, desde a manhã, tivesse se transformado num mártir,
oscilando entre a vida e a morte. A alma deste homem, que
permaneceu essencialmente emotiva e superficial nos dez últimos
anos passados em viagens solitárias, vê-se agora dilacerada entre o
amor e o medo, o dever e a compaixão. Afligido por essa mistura de
sentimentos, à qual ainda vem se juntar a doce recordação da dupla
investida noturna, Abuláfia, que desde o começo da manhã não se
alimentara, é assaltado por uma súbita vertigem, sentindo-se a pique
de desmaiar.
Antes que isso aconteça, o senhor Lavinas se apressa a enviá-lo
ao navio dos sócios para que detenha de imediato o fluxo que jorra
ininterrupto do porão. Até Ben-Atar, apesar dos muitos dias e noites
passados a bordo do navio, fica espantado com a quantidade e a
variedade da carga que o sócio ismaelita conseguira acomodar no
interior da nave. Mas não só Abu Lutfi conseguira encher os porões
do navio até o limite, como ainda era capaz de se lembrar de cada
item, e assim, à medida que as mercadorias vão surgindo das
sombras para serem descarregadas em terra firme, acompanhadas
pelo canto viril dos marinheiros, ele controla cada particular. Dessa
forma, no encontro de verão do próximo ano, poderá cobrar o justo
valor por cada uma delas do terceiro sócio, reconduzido às suas
funções pela sentença de Ville-les-Juifs. Mas se Abuláfia de fato
reassumiu suas funções, por que grita agora da margem para eles,
para que interrompam a torrente que inunda sua casa e seu pátio?
Imediatamente Ben-Atar ordena a Abd el-Shafi que suste a
operação de desembarque, apressando-se a ir ao encontro do
sobrinho, rodeado por uma multidão de parisienses aglomerada
entre velhas casinhas de madeira da ponte denominada Ponte Nova.
Arrastando desesperadamente pelo manto o enérgico e determinado
tio, Abuláfia tenta afastá-lo daquela horda de curiosos, e, enquanto a
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luz do sol poente recorta retalhos de seda púrpura na superfície
tranquila do rio que descreve uma curva macia em direção ao sul, o
conduz para dentro da ilha, para as ruelas estreitas e apinhadas de
gente que a esta hora retorna a casa, alguns puxando por uma corda
um carneiro ou um porquinho para o jantar. Pela preocupação
estampada nos grandes olhos negros de Abuláfia, seu tio percebe
que uma nova angústia o atormenta.
Logo Abuláfia relata a rebelião que se instaurou em sua casa, e
as palavras da esposa que, em sua aflição, jurou retornar à sua terra
natal, às margens do Reno, e convocar um novo tribunal rabínico
para decretar o seu divórcio de Abuláfia. A notícia parece
surpreender o mercador magrebino, o qual, entretanto, entrevê nesta
nova situação uma bênção que talvez possa consolidar a sociedade
renascida à custa de um esforço tão grande. Quem sabe é chegada a
hora, diz Ben-Atar, com doçura, entre muitos rodeios, cingindo os
ombros do amado sobrinho, cuja pele clara realça ainda mais os
belos cachos negros. Quem sabe não é a mão de Deus, prossegue
Ben-Atar deixando as ideias correrem soltas, que o fez embarcar no
velho navio patrulha e alcançar esta ilha remota e minúscula, que
parece oscilar na corrente do rio, para resgatar "um prisioneiro
inocente". Além do mais, é muito fácil poupar à aflita rebelada as
privações de uma viagem até as terras de Ashkenaz, e simplesmente
pedir ao rabino Elbaz que execute o que determina a sabedoria dos
sábios da Babilônia e imponha à senhora Esther-Míriam o divórcio
que ela tanto almeja receber do marido. Dessa maneira, Abuláfia
estará livre para viajar não só até a baía de Barcelona, como até a
costa dourada da sua cidade natal, de onde fora arrancado. Agora,
depois de ter demonstrado a todos, e principalmente a si próprio,
que fora quebrada a maldição da solidão que lhe fora imposta, está
livre para encontrar em Tânger uma Nova Mulher a quem dedicar
seu amor, e mesmo uma segunda, se quiser amá-la também.
Mas Ben-Atar, ao expor os planos arrojados que reserva para o
sobrinho, não imagina a que ponto a alma do jovem mercador se
misturou na urdidura do amor à alma da Nova Mulher, e a tudo que
a rodeia, até mesmo às pedras do calçamento da escura viela de Paris
sobre as quais, muito enfraquecido pelo jejum, Abuláfia, com os
q q p j j
pensamentos completamente embaralhados, acaba de desabar por
entre os excrementos de porcos e cavalos, batendo a cabeça. É
providencial a inesperada aparição do rabino Elbaz, que tendo sido
enviado junto com o filho ao navio com a missão de buscar um
pouco de sal e azeite de oliva para as duas esposas, depara com o
comerciante norte-africano tentando erguer o jovem sobrinho, êmulo
da esposa de cabelos dourados no desmaio.
Alguns francos também correm a ajudar. A crucifixão no
Gólgota, impressa em suas mentes, confere a cada desmaio uma
aura de santidade, e assim apressam-se em aspergir sobre o rosto de
Abuláfia a água fresca de um poço vizinho, esfregando-lhe as
têmporas com vinho tinto, para em seguida derramar-lhe um pouco
da bebida na boca aberta. Ben-Atar, temendo assustar o jovem
desfalecido, já prestes a voltar a si, conduzindo-o diretamente para
sua casa na rua de La Harpe, decide levá-lo primeiro ao navio. Lá,
entre as jarras e os sacos ainda por descarregar, deitam o sócio
enfraquecido, que abre agora os belos olhos enquanto a sua boca se
arqueia num sorriso doce e triste a um só tempo. Ao ver o rosto do
obstinado tio curvado sobre ele, diz: Tio, se o senhor não tem
coragem para me matar, deixe-me livre, pois nunca desistirei dessa
mulher. E o rabino Elbaz, obrigado a ouvir novamente a história
toda, tanto do ponto de vista do desesperado Ben-Atar, que com
aquela frase vê de novo se perder o objetivo da longa viagem,
alcançado com tanto esforço, quanto do ponto de vista do jovem
sócio, consumido de amor, apressa-se em imaginar uma nova
solução de compromisso que agrade até mesmo à senhora Esther-
Míriam e ao senhor Lavinas.
Todavia, o rabino nada diz e, depois de ter feito os dois sócios se
levantarem, trata de voltar-se, junto com o filho, na direção da Cite
de Paris, a leste, a fim de fazer as orações da tarde da maneira pela
qual sempre foram feitas desde o início dos tempos. Mas Abuláfia,
que costumava gostar de entoar as melodias das orações, não
encontra forças nem mesmo para sussurrá-las. Há algo de atraente
nesses judeus meridionais, com suas túnicas brancas e seus
turbantes azuis, rodeados de másculos marinheiros em uma nave
árabe, marcada pelas cicatrizes ganhas na imensa travessia realizada
p g
até ali, que observam curiosos a pequena multidão de francos
reunida à beira do rio. Estes, fascinados, adiam por alguns
momentos o jantar, para não perder o espetáculo da mistura humana
a regurgitar à sua frente. Por um instante o rabino Elbaz é invadido
pela sensação de que no crepúsculo desta cidade, com a
aproximação do ano mil, não só se oculta uma sutil ameaça, mas
também a obscura promessa de uma grande e rara beleza de uma
harmonia inédita entre as duas margens.
Na margem setentrional, o convento de Sainte-Geneviève se
recobre de uma ligeira nuvem de vapor, alteando-se dos jantares que
estão sendo preparados na ilha, enquanto os judeus concluem a
oração "Verdade e Fé". Porém, o rabino ainda não quer revelar a
nova ideia que surgira em sua mente, por medo de uma recusa
imediata de Ben-Atar. Prefere reservar o momento após o excelente
jantar realizado pelas duas esposas africanas para expô-la.
Entusiasmado com a nova ideia, deposita grandes esperanças nessa
ceia, cujos preparativos acompanhara tão de perto, experimentando
sabores e sugerindo pratos.
A refeição preparada pelas esposas desperta em Ben-Atar uma
emoção especial, talvez mesmo pela angústia que o tomou ao ouvir a
súplica do sobrinho. Ou ainda por ver reunidos sobre uma única
mesa festiva os pratos que cada uma das esposas costumava
cozinhar para ele, os quais não experimenta há mais de quarenta
dias, desde que partiram. Abuláfia também esquece suas aflições por
um momento e de seus olhos brota uma lágrima de felicidade ao
sentir o perfume da comida norte-africana, não só pelo jejum, já
esquecido no desmaio, mas porque o aroma lhe traz a lembrança dos
pratos que sua Primeira Esposa costumava lhe preparar. Até mesmo
o senhor Lavinas, cansado e esfomeado, parece disposto a arriscar
provar os novos sabores, inclusive para não ofender as duas
entusiásticas visitantes que, tendo assumido o papel de donas-de-
casa, enchem repetidas vezes o seu prato. Só a senhora Esther-
Míriam permanece impassível, o semblante fechado diante do
banquete que se oferece à sua mesa. Consola-se com o pensamento
de que esta será a última refeição antes do seu retorno à terra natal.
Então o rabino Elbaz começa a interrogar a derrotada dona de
casa na língua sagrada, escandindo lenta e suavemente as palavras, a
respeito de sua cidade e dos estudiosos das escrituras que lá moram:
em que reside a sua importância e quais os seus méritos. Isso com o
propósito de sondá-la, no caso de os grandes e rigorosos sábios de
Vermaíza aprovarem a renovação da sociedade entre Ben-Atar e seu
marido, para saber se finalmente aceitaria o veredicto. Mas para
Esther-Míriam as perguntas do rabino são desnecessárias, pois não
tem a menor dúvida de que os estudiosos da terra de Ashkenaz não
apenas aprovariam o seu repúdio como, certamente não o julgando
suficiente, acabariam por impor a verdadeira excomunhão.
Entretanto, o rabino de Sevilha não se atemoriza com a ameaça
contida em suas palavras. Talvez, responde com um estranho
sorriso, pois aqueles estudiosos ainda não tiveram a oportunidade
de ouvir os argumentos baseados nas Escrituras, que foram
concebidos em Sevilha e polidos com minúcia durante os muitos
dias e noites passados sobre as ondas do oceano. Nem tudo fora dito
no salão da prensa de Ville-les-Juifs. Mantém reservados muitos
argumentos belos e engenhosos que não tivera ocasião de
pronunciar e que agora arde por fazê-lo. E o rabino Elbaz pousa a
mão no peito como para acalmar o ímpeto que o agita, acrescenta
com voz macia e um sorriso casual, por que não permite que nos
juntemos à sua rebelião, seguindo até o rio da sua infância para nos
submetermos a novo julgamento, desta vez sob a direção dos que a
senhora considera sábios e justos? Se o veredicto nos for
desfavorável, estaremos prontos a retornar cabisbaixos para o lugar
de onde viemos. Mas, caso contrário, o repúdio e a rebelião serão
definitivamente anulados e todos voltarão a se reunir em uma única
fraternidade: ela, ao esposo que a ama ardentemente, e o marido, ao
tio que não quer renunciar ao sobrinho.
A senhora Esther-Míriam fica tão perplexa com a
disponibilidade do rabino andaluz de convocar um novo tribunal
em sua cidade natal que, temendo que o hebraico ensinado pelo pai
tenha confundido o seu raciocínio, pede emocionada ao irmão, cujo
conhecimento da língua sagrada é maior do que o seu, que confirme
com o rabino se o que foi entendido foi exatamente o que foi dito. O
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senhor Lavinas se volta para o rabino Elbaz que, sem olhar para Ben-
Atar, repete com toda a clareza a sua proposta de modo que não
reste nenhuma dúvida e ele possa traduzir rápida e fluentemente
para o idioma local. Abuláfia, pálido e exausto, considerando
erroneamente que a nova e surpreendente proposta partira de Ben-
Atar, levanta-se, tomado de grande emoção, e se inclina
profundamente diante do perplexo comerciante.
Capítulo 5

Abuláfia se inclina em comovida mesura diante do tio, que


supostamente lhe permite vislumbrar uma nova esperança,
enquanto uma mão invisível fecha gentilmente a dolorosa ferida do
seu coração, ferida que ora se abre, lenta e quase
imperceptivelmente, no coração de Ben-Atar, como se fosse uma só,
movendo-se de um coração para o outro. No seu íntimo Ben-Atar
sabe que o verdadeiro e profundo motivo da surpreendente
proposta do rabino encontra-se na irresistível tentação de repetir o
discurso proferido no improvisado tribunal do vinho, só que, desta
vez, para os estudiosos dos textos sagrados de Vermaíza. Ben-Atar
também compreende que o rabino tenta uma nova abertura que
afaste definitivamente a ameaça de um novo rompimento com
Abuláfia, que forçosamente poria a perder tudo o que fora
conquistado até ali no curso da temerária jornada. E arrisca um olhar
preocupado e ansioso em direção a suas duas esposas que, sentadas
no outro extremo da mesa, parecem radiantes à vista das travessas e
pratos vazios, sem suspeitar o que lhes reserva o pequeno rabino
como agradecimento por aquela refeição. Novamente, como nos
momentos em que a tempestade açoitava o navio em alto-mar, o
coração de Ben-Atar se aperta ao pensamento das duas mulheres
sendo obrigadas a seguir adiante. E, embora não tema, como o
sobrinho, uma rebelião da parte delas, teme a dor que a saudade
possa trazer, causa de um envelhecimento precoce.
É portanto com cuidado que se dirige ao senhor Lavinas e
indaga sobre a qualidade da estrada que leva ao Reno, rio da
infância dos dois irmãos. O senhor Lavinas, que durante todo o
tempo permanecera sentado tranquilamente, alisando a pequena
barba e aspirando os aromas da cozinha magrebina ainda presentes
nos seus dedos, numa tentativa de entender o que se passava em
suas tripas, toma todo o cuidado para não deixar escapar nenhuma
palavra descuidada que possa parecer desencorajadora. Apesar de
considerar a ideia do enfrentamento com os sábios de Ashkenaz
uma aposta perigosa, tanto no aspecto físico como no espiritual,
compreende que só assim poderá se livrar dos hóspedes de pele
morena, que parecem querer criar raízes em sua casa, e desse modo
conceder-se uma pausa, ainda que breve, das intrincadas questões
trazidas pelo casamento da irmã, contra o qual ele tivera a prudência
de alertá-la.
É com tons claros e alegres que o senhor Lavinas trata de
descrever, guiando-se por velhas recordações, a estrada que leva da
França até os:confins da Lotaríngia, de Paris a Vermaíza. Embora
Ben-Atar pareça de início desapontado com o fato de o Criador do
Universo não ter tido tempo, nos seis dias da criação, de ligar os rios,
o Sena ao Reno, de modo a poder simplesmente ordenar a Abd el-
Shafi içar a vela triangular e conduzir docemente o navio até a casa
da infância da senhora Esther-Míriam, as descrições sugestivas do
senhor Lavinas sobre as aldeias e os burgos do caminho infundem
no comerciante a esperança de que uma viagem por terra não venha
a ser menos bem-sucedida do que a jornada marítima que lhe dera
origem. Com o coração comovido, ouve sobre a pequena aldeia de
Meaux, na estrada de Châlons, sobre o rio Marne e o Meuse, à
margem do qual se encontra Verdun, uma agradável cidade de
fronteira, de funcionários da aduana e mercadores de escravos, que
fica entre o condado de Champagne e o ducado de Lotaríngia. De lá
se estendem boas estradas que atravessam uma vasta faixa de terra
entre as aldeias de Me e Saarbrücken, entre os rios Moselle e Saar,
conduzindo a Vermaíza, à beira do Reno, em cujas margens
pantanosas se estabeleceram há cem anos algumas famílias de
judeus. Então Ben-Atar se volta para as duas esposas, que enquanto
isso vinham se esforçando, cada uma a seu modo, para decifrar o
que estava sendo dito, a fim de tentar acalmar o pânico que os
levíssimos movimentos dos véus deixam entrever.
Enquanto a Primeira Esposa, apesar de sua natureza calma e
tolerante, incapaz de se conter, lança um grito angustiado, a
Segunda Esposa se dobra em defesa daquele que nos últimos dias
vem repetidamente a seus pensamentos, o único filhinho, cuja
p p j
derradeira imagem — na praia, vestido com a pequena túnica
vermelha, as mãozinhas agarrando firmemente as do pai e da mãe —
não a abandonou nem um dia sequer durante toda a viagem, mas
permaneceu esvoaçando diante dos seus olhos em cada momento da
jornada. Embora Ben-Atar ainda desconheça o que germina no corpo
de sua mulher, percebe de imediato seu pânico e, sem se importar
com as pessoas sentadas ao seu lado, pousa discretamente a grande
mão sobre sua coxa. Esse leve toque tem o poder de endireitar as
jovens costas curvadas.
À noite, porém, ele é obrigado a percorrer muitas vezes o trajeto
entre um quarto e outro, sair de uma cama e se enfiar em outra,
explicar e seduzir, acalmar e consolar, prometer e ameaçar, de modo
que, logo ao alvorecer, graças à sua paciente sabedoria mediterrânea,
possa finalmente dirigir-se ao navio, que a cada dia lhe parece
menor, para dar novas ordens. Encontra seu fiel sócio sentado ao
lado do pequeno camelo que rumina, incessantemente, as verduras
da horta do convento de Sainte Geneviève, e com toda a diplomacia
o informa da nova viagem por terra. Todavia, com a obstinação
própria dos pagãos, Abu Lutfi insiste em não compreender o novo
movimento na guerra entre os judeus. Sabe também, por experiência
própria, que não há judeu no mundo que se renda aos argumentos
de outro judeu, apesar de todos encontrarem o maior prazer em
tecer infindáveis discussões. Assim, recebe a decisão da nova
viagem, desta vez por terra, com a tranquilidade de filho do deserto,
herdada dos pais, e dos pais de seus pais. E mais: para sua
satisfação, é informado que está dispensado dessa viagem.
De fato, Ben-Atar decidira deixar o ismaelita em Paris, para
defender o barco de seus marinheiros turbulentos, e para que
comece a venda das mercadorias desembarcadas. Em compensação,
parecia bastante decidido a levar consigo o capitão, para se
assegurar de que durante sua ausência prolongada os marinheiros
não teriam a ideia de voltar com o navio para o Norte da África. E
também por acreditar que aquele que navegou com segurança
absoluta pelas ondas do oceano, acabando por ancorar em frente à
casa do seu sobrinho, poderá fazer o mesmo por terra. Mas Abd el-
Shafi não vai consentir facilmente em trocar seu posto de capitão
p p
pelo de simples carroceiro. Assim, faz-se necessário não só
acrescentar uma considerável recompensa, como igualmente
consentir em levar um marinheiro dos mais robustos, para que o
capitão tenha a quem comandar também em terra firme.
Talvez tenha sido a presença de mais um ismaelita a inspirar o
mercador judeu a decidir partir para o Reno com duas carroças em
vez de uma só: uma grande e outra menor, às quais foram atreladas
duas parelhas de cavalos, escolhidos com cuidado para que sua força
não ficasse aquém da sua velocidade. A carroça menor, carregada de
especiarias aromáticas e de queijos amarelos, foi acolchoada com
cobertas de lã e tecidos macios e destinada não só às três mulheres,
reunidas em um único grupo para a viagem, mas também ao jovem
Elbaz, cuja presença infantil poderá talvez mitigar as saudades que
elas sentem de seus filhos distantes. A outra carroça, maior, é
destinada aos três homens judeus, e foi carregada com amostras de
mercadorias do navio: saquinhos de especiarias, preciosos tecidos de
seda, ânforas de louça cheias de azeite de oliva, favos de mel e
pequenos objetos de latão polido e dourado, capazes de encher os
olhos de possíveis compradores, até mesmo nas florestas mais
remotas. A Primeira Esposa, conformada com a continuação da
viagem depois de uma noite insone, pede que lhe tragam do navio
algumas peças de tecido grosso e escuro e, por sua própria iniciativa,
sem consultar ninguém, corta e costura, inspirada no modo de se
vestir do senhor Lavinas, duas túnicas negras para os marinheiros
ismaelitas, que assim poderiam esconder suas vestes puídas e
remendadas, e também, no devido tempo, virem a agradar aos
judeus de Ashkenaz.
Depois de alguns preparativos febris, tornados ainda mais
frenéticos com a aproximação dos Dias Terríveis — os dez dias que
permeiam o Rosh Hashaná e o lom Kipur, quando os judeus fazem
sua introspecção e se arrependem dos pecados cometidos durante o
ano —, que eles esperam passar, se tudo correr bem, às margens do
Reno, chega enfim, em meio a tumulto e confusão, o dia da partida.
Desde a noite anterior as duas carroças aguardam estacionadas na
entrada da rua de La Harpe, não longe da fonte de Saint-Michel, com
os dois marinheiros transformados agora em condutores de carroças.
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Antes do amanhecer, no último quarto da noite, Ben-Atar sai em
direção ao navio para despedir-se uma vez mais de Abu Lutfi e dar
as costas a algumas preocupações antigas, para que possa voltar sua
atenção para as novas, que já começam a surgir dentro dele. Pela
primeira vez desde que zarparam do porto de Tânger, há cinquenta
dias, ele encontra o navio imerso no mais profundo sono. Até mesmo
a pequena escada de cordas, que está sempre baixada no bordo
esquerdo do barco, desta vez se encontra recolhida sobre o convés,
para que nenhum estranho perturbe o repouso a bordo. Por alguns
momentos Ben-Atar permanece no molhe, em silêncio, com a
esperança de que os marinheiros sintam a sua presença sem que ele
tenha que chamá-los gritando.
De repente, dando-se conta do enorme cansaço que pesa sobre
ele, uma profunda inveja à vista da tranquilidade que reina no navio
o invade, como se ficasse evidente que só com a partida do patrão
judeu a tripulação pudesse realmente encontrar paz.
O que me faz insistir deste modo em reatar a sociedade? Por que
não consigo deixar que Abuláfia seja enfim absorvido por esses
judeus setentrionais, e esquecê-lo de uma vez por todas? Por que o
repúdio daquela mulher miúda de olhos azuis deve perturbar desta
maneira a minha paz e trazer tanta aflição à minha alma? Quando
me submeto a ir à sua terra natal enfrentar um novo tribunal, estou
tacitamente admitindo sua superioridade, mesmo que eu saia
novamente vitorioso. E, pensando bem, o que nos falta no Sul, que
nos faz imaginar que possamos encontrar nos nossos irmãos judeus
ashkenazitas? Nós não deveríamos nem encontrá-los antes da vinda
do Messias filho de Davi, e quando Ele vier todos seremos redimidos
e não seremos mais os mesmos... Será o prejuízo causado à
sociedade e às mercadorias o que me leva a enfrentar mais esta
viagem repleta de incertezas? Ou será que eu tenho, como insinuou
o rabino Elbaz, a gana de submeter a uma prova ainda mais dura o
meu duplo amor, por não estar bem seguro de sua legitimidade?
O ruído de um peixe a saltar e mergulhar na água desperta o
mercador de seu devaneio. Do fundo do porão do navio surge o
escravo negro que, encontrando seu dono postado imóvel no cais à
sua frente, apressa-se em descer um barquinho para ir buscá-lo. De
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repente Ben-Atar sente o impulso de tocar aquele crânio negro que
Abu Lutfi coloca às vezes entre as suas pernas para acalmar-lhe os
instintos. Veja só, sorri Ben-Atar para si mesmo, o que podem saber
aqueles judeus, que vivem mergulhados em seus estudos em salas
distantes e fechadas, sobre uma nobre criatura negra como esta? Não
seria conveniente levar também o escravo como mais um exemplo
de mercadoria, como uma réplica em miniatura de toda a África,
para mostrar àqueles estudiosos intolerantes e obstinados, que
fazem questão de se cercar de muralhas de leis e cânones, o quanto é
vasto e variado este mundo por onde vagam seus irmãos, filhos de
seu povo? Sem pensar, ele acaricia pela primeira vez a cabeça negra
e brilhante do jovem que, tomado de fervor pelo amo, sente os olhos
embaçarem e a cabeça rodar diante de tal honraria.
Com o impulso caprichoso de um homem forte e autoritário,
Ben-Atar decide levar consigo na expedição que parte para o Reno o
farejador do deserto de sentidos atilados, que se prostra agora quase
desacordado a seus pés. A julgar pela tristeza e os protestos de Abu
Lutfi, fica evidente que lhe foi roubado não só o servo fiel, mas
também o amante secreto. O que só vem reforçar a opinião de Ben-
Atar de que, assim como a inclusão do capitão na viagem terrestre
tem por finalidade evitar a traição e a fuga por mar, a inclusão do
jovem negro evitará a traição e a fuga do sócio ismaelita por terra.
Desse modo ele garante que ao voltar da nova aventura deverá
encontrar as coisas em seus devidos lugares. Pela manhã a Primeira
Esposa ainda conseguiu cortar com uma adaga afiada uma de suas
vestes usadas e transformá-la em uma túnica verde para o jovem
viajante, de maneira a cobrir sua negra nudez. Após o desjejum e as
despedidas, os dois carroções transportando dez passageiros
começam lentamente a passar da margem meridional para a
setentrional, prosseguindo por um par de horas na direção sudeste,
até que, de repente, o Sena parece se desdobrar à frente deles.
Abandonam então o braço que conduz para o Sul e seguem ao longo
do Marne, que se volta para a direção nordeste. Talvez tenha sido
apenas neste momento que, em seu quartinho, a pobre menina, por
pura exaustão, tenha calado seus uivos, pois desde a partida dos
viajantes ela se debatera sem cessar contra a ama cristã que fora
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deixada para cuidar dela. Deste ponto em diante as duas carroças
passam a percorrer os caminhos do vale do Marne, regurgitando de
carruagens e de caminhantes que acenam alegremente uns para os
outros à luz brilhante do meio-dia.
Como o aspecto estrangeiro dos viajantes meridionais chama menos
atenção em terra firme, não só pela grande experiência que Abuláfia
demonstra em percorrer estes caminhos, como também pela
simpatia e as palavras amáveis que a senhora Esther-Míriam
distribui aos passantes em pura língua franca, pode-se conversar
livremente com todos, peregrinos, camponeses ou mercadores, que,
contrariando as piores expectativas dos que abraçam outras
religiões, encaram a aproximação do ano mil, ameaçador pela sua
santidade, cheios de tolerância e compaixão uns para com os outros
e igualmente para com os estrangeiros que possam vir pedir ajuda.
O pedido de ajuda, por enquanto, refere-se somente à indicação
do caminho correto a seguir, pois já perceberam que, às vezes, uma
vereda poeirenta, ziguezagueando por entre campos de trigo recém-
ceifado, pode, de repente, por um pequeno erro de orientação
anterior, acabar à porta de alguma cabana de camponeses, com seu
quintal fervilhante de patos selvagens, porcos e carneiros. Assim é
preciso prestar muita atenção na escolha do caminho e não se deixar
seduzir por aqueles que parecem amplos
e cômodos. Devem ser feitas paradas frequentes em estalagens de
estrada, à beira de riachos, e voltar a anunciar bem alto o nome do
próximo destino — Meaux, e também do seguinte, Châlons — para
receber boas indicações sobre o melhor caminho a seguir. Todos se
apressam a dar conselhos úteis, e oferecem por preço razoável trevo
fresquinho para os cavalos, às vezes um grande anel de pão
perfumado ou um galo gigantesco de crista bem vermelha, cujas
patas amarelas o jovem pagão se apressa a amarrar ao seu lado, no
assento do condutor da carroça, para conversar com ele durante todo
o dia em tom de grande reverência. Depois de abatido, o escravo o
depena e se prostra diante da carcaça que jorra sangue, colocada à
sua frente na posição de crucificado, antes de passá-lo à Primeira
Esposa, que agora insiste em preparar o jantar para os dez
passageiros, como se seu talento de dona-de-casa, que permanecera
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entorpecido no encantamento monótono das ondas do mar, tivesse
em terra despertado para a vida.
O espantoso é que a Segunda Esposa, e a Nova Mulher também,
não só permitem que essa dona-de-casa renascida assuma o
comando e faça tudo conforme a sua vontade, como refreiam seus
impulsos de ajudá-la. A inércia pensativa que as duas demonstram
ante a atividade febril da Primeira Esposa diante da fogueira as une
numa espécie de nova camaradagem, embora sem palavras, pois elas
não têm, e nunca haverão de ter, um idioma comum. Mas a Segunda
Esposa tem a atenção toda voltada para o minúsculo ser oceânico
que flutua dentro dela, e que às vezes lhe parece ter penetrado em
seu útero não por meio do órgão sexual de Ben-Atar, e sim por uma
pequena fenda que o mar possa ter aberto debaixo da sua cabine,
situada no mais fundo do casco do navio. Ela tenta se esquivar do
olhar azul e inquisitivo desta mulher, superior a ela em anos e em
sabedoria, a senhora Esther-Míriam, que, com o coração cheio de
alegria pelo próximo encontro com a sua cidade e confiante no
veredicto do próximo julgamento público, esforça-se por reprimir
qualquer sugestão de repúdio e trata não apenas de ser amável com
todos, como, além disso, tenta conhecer intimamente a Segunda
Esposa, como se nela, e só nela, residisse o segredo do duplo
casamento.
Assim convivem harmoniosamente, entre uma parada e outra,
seguindo pelos caminhos corretos e descortinando já no horizonte o
ano 4760, que na sua imaginação parece ser o prolongamento do
longo chicote que Abd el-Shafi improvisou com estais do barco, e
que agora agita sobre as cabeças dos cavalos, como que levando um
sopro de vida a uma grande vela invisível.
Se a princípio Abuláfia e Ben-Atar pensaram pernoitar em
estalagens ao longo da estrada, por causa do frio e da escuridão, logo
descobriram que o céu claro da Champagne conserva um pouco de
calor também nas horas da noite. Quando, à chegada na primeira
estalagem na província de Meaux, deparam com o forte cheiro de
ranço e bolor reinante no dormitório apinhado de peregrinos cristãos
suarentos e observam como são finas as divisórias que separam os
homens das mulheres, Ben-Atar decide, de comum acordo com
Abuláfia, passar as noites ao ar livre, sob o firmamento estrelado do
céu da Champagne. Não longe da estalagem, estacionam as duas
carroças,
uma de frente para a outra, e amarram os quatro cavalos juntos.
Depois aprontam leitos macios para as três mulheres, às quais vem
se juntar o filho do rabino a fim de interpor seu corpo magro como
uma espécie de fronteira, ainda que simbólica, entre Norte e Sul. Em
seguida os três homens judeus se ajeitam como podem em meio às
mercadorias da carroça grande, deixando que os marinheiros
carroceiros se estendam entre as duas grandes rodas, prontos a
despertar ao menor movimento do veículo, enquanto o escravo
negro é incumbido de passar as noites vigiando para espantar algum
eventual passante disposto a vir perturbar-lhes o sono.
A senhora Esther-Míriam, assim, vê-se muito próxima das duas
esposas do tio vindo do Sul. A sua respiração paira no ar junto com a
delas, e os sonhos delas se entremeiam aos seus. Por vezes ela se
surpreende pensando que talvez Ben-Atar, incapaz de conter seu
desejo, possa sair no meio da noite de sua carroça e vir levantar o
toldo da carroça pequena para pedir o amor até mesmo daquela que
não o deve a ele. Com um movimento de repulsa, afasta-se daquele
triplo leito, para ir ao encontro dos cavalos silenciosos, apavorada,
quase como quem implora proteção. Mas logo surge das trevas o
jovem escravo e sem uma palavra lhe estende uma tigela contendo
um chá feito de plantas do deserto, amargas e saborosas, que
devolvem a tranquilidade à sua alma.
Na noite seguinte, no decorrer da segunda parada noturna sob a
abóbada celeste perto de uma estalagem chamada Dormans, após
terem percorrido uma longa porém agradável estrada entre
vinhedos esparsos por pequenas colinas, e terem mesmo sido
convidados por um expansivo vinhateiro a visitar uma de suas
adegas, a senhora Esther-Míriam volta a despertar, sem saber se é a
proximidade das duas esposas de um único homem o que lhe rouba
o sono, ou se é a mistura de alegria e temor que a inquieta à
aproximação do encontro com a sua cidade natal e os parentes do
primeiro marido, a família Kalonymos. De novo ela vem para junto
dos cavalos tranquilos, perguntando-se onde estará aquela fogueira
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ao calor da qual o escravo negro lhe prepara discretamente a bebida
das ervas amargas, que a cada noite lhe parece mais e mais
necessária.
No dia seguinte, perto do anoitecer, a caravana chega aos negros
muros de pedra da cidade de Châlons. Sob a chuva fina que começa
a cair, Ben-Atar parece decidido a entrar na cidade e procurar uma
pousada para que possam descansar sob um teto de verdade. Acaba
desistindo e conduz os dois carroções para um pequeno bosque,
onde se iniciam os preparativos para o repouso da noite. Todavia, o
som da chuva sobre o toldo não o deixa adormecer e o mercador
abandona o leito para ver se os dois condutores ismaelitas estão
precisando de mais cobertas. Mas os encontra imersos no mais
profundo sono. Em contrapartida, é a presença da senhora Esther-
Míriam, trêmula e ensopada, com a tigela de infusão nas mãos, que o
surpreende. Inclina-se levemente em uma saudação gentil e antes de
deixá-la, em obediência às disposições rabínicas sobre a proximidade
entre pessoas do sexo oposto, para voltar à carroça dos homens e ao
seu lugar próximo ao esposo da mulher postada à sua frente, não
deixa de lhe dirigir algumas palavras corteses na língua sagrada,
mas com o cuidado de não deixar escapar nenhuma entonação mais
áspera que revele a dor e o sofrimento que aquela mulher vem lhe
causando já por quase um ano.
Pela manhã fica evidente que fora excessiva a preocupação em
transpor durante a noite os muros que rodeiam a cidade, que,
embora toda cheia de labirintos, mostra-se amigável neste primeiro
encontro com Abuláfia e Ben-Atar. Incapazes de resistir ao seu
instinto de comerciantes, já às primeiras luzes da manhã os dois
cruzam os portões da cidade para oferecer saquinhos de
condimentos e pequenas jarras de cerâmica com azeite de oliva.
Apesar da hora matinal, há muitos fregueses para as mercadorias, e
o pagamento recebido, em alimentos e bebidas, é extremamente
compensador. Assim aos dois sócios, nos quais volta a despertar o
espírito da antiga e fraterna sociedade, só resta lamentar a pouca
mercadoria trazida e a longa estrada que os espera. Entretanto, Ben-
Atar fica com a impressão de que as reduzidas porções de suas
mercadorias desérticas só fizeram aumentar seus encantos e duplicar
seu valor.
Logo depois da primeira refeição do dia, a pequena comitiva
retoma a estrada que segue para os confins da Lotaríngia, parando
os passantes para perguntar pelo melhor caminho para Verdun. Mas,
franzindo a testa, todos parecem unânimes em mencionar
insistentemente um outro nome, Somme, um lugar que,
aparentemente, a caravana deveria cruzar antes de tomar a estrada
que leva a Verdun. E logo fica claro que Somme não é uma cidade ou
um vilarejo, mas sim um conjunto de florestas, grandes e densas,
onde a terra, que até então se mostrara macia e entremeada de um
sem-número de cursos d'água, parece se tornar dura e árida,
desfazendo-se em um pó cinzento sob as patas dos cavalos. O dia
transcorre num contínuo ascender por ásperas encostas, os viajantes
escalando os gigantescos degraus que se sucedem no caminho para a
Lotaríngia, enquanto o solo, até então calcário, começa a tomar uma
coloração amarelada à medida que sobem. Até a roupa das pessoas
da região parece mudar de feitio e de cor: a cor púrpura predomina
tanto nas calças dos homens, que também se tornam mais largas,
como nos aventais das mulheres, que se alongam. De vez em quando
os viajantes descem e prosseguem a pé, não só para poupar os
cavalos como também para admirar o amplo panorama onde
brilham os reflexos nas águas do Meuse, que serpenteia entre as
colinas até alcançar os muros da cidade de Verdun. Para alcançar
esse burgo é necessário transpor o portão fortificado de uma cinta de
muralhas, através do qual transitam, além de mercadorias, filas de
escravos eslavos de cabelo claro e olhos azuis, presos uns aos outros
por finas correntes. Fora dos muros da cidade, um pouco adiante da
ponte de madeira sobre o rio, soldados fazem guarda, severos e
reluzentes em suas armaduras de ferro, acariciando as largas e
pesadas bainhas de suas espadas, e levantando a viseira de seus
elmos para melhor ouvir, divertidos, uma mulher judia dizer quão
intensa é a saudade que ela tem da terra renana, a ponto de ter
contagiado com ela parentes próximos e distantes.
Apesar da simpatia em relação aos judeus novos e antigos que
queiram entrar nas terras da Mosela e do Reno, os soldados da
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guarda não estão dispostos a abrir mão do tributo devido pelas
mercadorias que enchem a carroça maior. Os judeus tentam ser
espertos e argumentar que não são mercadorias, mas sim pequenos
presentes e lembranças à família numerosa que os espera em
Vermaíza; o comandante da guarda se confunde por um instante,
mas logo se refaz e ordena que a carroça dos presentes, juntamente
com a mulher judia que retorna à sua terra natal, sejam levadas a um
castelo próximo, para que se encontre uma solução definitiva para
uma questão crucial: como diferençar mercadorias de presentes?
Agora é tarde para retroceder, e Abuláfia se vê constrangido a
subir na carroça grande para que sua esposa não se apresente
sozinha à presença dos irredutíveis lotaríngios. Enquanto o
carroceiro Abd el-Shafi, de quem ninguém imagina a alta patente
como navegador, debate-se com dois soldados que tentam à força
arrancar-lhe as rédeas das mãos, Ben-Atar ordena ao segundo
marinheiro que também suba na carroça que já se afasta, para
protegê-los de qualquer propósito pouco claro, eventualmente
camuflado sob a alegada inspeção. Assim Ben-Atar e as esposas, o
rabino e o filho permanecem junto à muralha da cidade de Verdun,
sob um céu cinzento de outono, numa campina verdejante, recortada
por pequenos córregos, e que acaba numa curva do rio. Ben-Atar,
diante do escravo negro obrigado a se despir completamente para,
nu como no dia em que nasceu, permitir aos guardas verificarem até
onde vai o negro da sua pele com a ponta dos punhais, desvia o
olhar, enquanto de trás dos muros da cidade, onde se ergue o
convento de Saint-Anne, com suas duas torres redondas, chega um
canto ao qual faz eco o triste mugido de um animal. Os soldados,
porém, não parecem fazer caso daquela música que, ao contrário, até
os diverte. Mas, aos poucos, vão sendo conquistados pela melodia
límpida e envolvente, terminando por deixar em paz o jovem nu,
que no mesmo instante torna a vestir a túnica verde, sobra da veste
da Primeira Esposa. Tremendo de frio e vergonha, o jovem adorador
de ídolos vem se juntar aos cinco judeus, cuja angústia pela sorte de
Abuláfia e da esposa, conduzidos ao distante castelo, os impede de
desfrutar aquele canto que ecoa na claridade cinzenta do início da
tarde.
Apenas a Segunda Esposa presta ouvidos ao canto. No instante
em que as primeiras notas se elevaram no ar, sentiu um aperto no
coração como se a magia da melodia pudesse reuni-la ao seu único
filho, que ficou na casa dos avós, no longínquo continente. De
repente, abandona sua atitude submissa e, não conseguindo mais se
conter, ergue-se e implora a Ben-Atar que a conduza para junto da
fonte da música que a emociona tanto, como se lá pudesse encontrar
alívio para sua angústia Ben-Atar, temendo dispersar o grupo de
viajantes, primeiro tenta recusar o estranho pedido da esposa e
serenar seu ânimo Mas a jovem, fascinada pela música
desconhecida, não se dispõe a renunciar, e se ajoelha a seus pés, para
beijá-los, chorando, até que, confuso, ele se dirige aos soldados que
observam a cena curiosos e com gestos largos implora que façam
cessar o canto que enlouquece a esposa.
Porém os guardas lotaríngios não querem nem podem fazer
calar a música que agora, parece, os alegra Assim, se Ben-Atar deseja
acalmar a tempestade de emoções que subitamente transtornou o
espírito de sua Segunda Esposa, a única alternativa é levá-la para
dentro dos muros da cidade Ordena à Primeira Esposa, que
acompanha a cena de olhos arregalados, que tome seu lugar na
carroça, pede ao rabino e ao filho que sentem a seu lado e ao escravo,
que suba e se instale no lugar do condutor e mantenha as rédeas
numa das mãos e o chicote na outra, para que, se porventura alguém
vier importuná-los durante a sua curta ausência, possa chicotear os
cavalos e levar a todos para bem longe, pela estrada aberta à sua
frente Depois de tentar mais uma vez explicar aos guardas, com
gestos amplos e sorrisos cativantes, o que pretende fazer e o que está
entregando em suas mãos — o pequeno grupo de viajantes —, ele
toma resoluto o braço esbelto e trêmulo da mulher e juntos cruzam
os muros da cidade de Verdun, caminhando com passos hesitantes
em direção àquela melodia.
Agora, há mais de sessenta dias da partida para aquela viagem
audaciosa e admirável por mar, oceano, no e terra, é a primeira vez
que Ben-Atar sai em público com apenas uma das esposas, como
costuma fazer pelas praias de Tânger. Lança um olhar de compaixão
à jovem que caminha com passos pequenos e rápidos, às vezes a seu
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lado, outras vezes atrás dele. Ela não nota, ou não quer notar, que,
tomada pela emoção, deixou cair o véu que esconde seu rosto
moreno, desenhado pela mão singela porém precisa de um Artista.
Ben-Atar não sabe se foram os sons da música que a encorajaram a
exigir dele que a acompanhasse, só a ela, ou o empenho em estar
afinal a sós com ele, não mais como a mulher que se debate e se
entrega numa cama estreita e na mais completa escuridão, mas sim
sob o amplo céu cinzento, e entre canteiros arados de terra, sobre os
quais se espalham muitas lápides simples e tão parecidas que se
poderia mesmo pensar que os que ali estão enterrados morreram e
foram sepultados todos ao mesmo tempo. Junto ao muro do
convento de Saint-Anne, vêem-se de repente diante de uma casa
solitária. Para grande surpresa dos viajantes, à frente da porta aberta
estão, não um coro, mas apenas dois músicos, um homem e uma
mulher, que cantam em dueto e se acompanham com o dedilhar das
cordas de alaúdes. É desse conjunto singelo que vem um som tão
intenso.
Enquanto Ben-Atar hesita, a Segunda Esposa já se liberta dele e
segue em direção aos músicos, chegando até a soleira da casa. Na
penumbra, entre dezenas de jarras, frascos e vasos cheios de pós,
ervas e poções, distinguem um médico, ou farmacêutico, de cerca de
trinta anos de idade, em pé, a cabeça descoberta e a barba aparada,
que ouve a música que tocam para ele. Às suas costas se vê
pendurada uma escultura em argila do Crucificado, que mil anos
após o nascimento continua mergulhado em tormentos.
Parece que os dois músicos se alegram à presença da ouvinte
recém-chegada, embora de aparência bizarra, e em sua homenagem
fazem a música crescer de intensidade.
Porém o dono da casa, ao ver pela porta aberta a silhueta esguia da
túnica da mulher, se apressa a interrompê-los com um gesto e sai
para ver quem vem dividir com ele o pagamento pela consulta
médica que acabara de dar aos dois músicos. Conforme as suas
prescrições, ambos engoliram as poções tiradas da algibeira repleta
de medicamentos, e só então se confessaram paupérrimos, sem
tostão para pagar a consulta. Então, notando os dois viajantes
estrangeiros, talvez também precisando de uma consulta, o médico
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inclina a cabeça e se apresenta, primeiro no idioma teutônico, depois
no franco e, finalmente, em latim. Embora perceba que não há língua
em comum, ele insiste, e por meio de gestos gentis consegue extrair
dos visitantes inesperados não só seus nomes e os nomes de seus
pais, como também os dos lugares por onde passaram na
extraordinária viagem, desde o continente africano até seu novo
destino.
Nem Ben-Atar nem a Segunda Esposa, que agora abre bem os
estreitos olhos cor de âmbar, podem saber se esse médico de Verdun,
que se apresenta, com um misto de orgulho e humor, com o nome de
Karl-O o Primeiro, consegue apreender não só a vasta distância
percorrida pelos viajantes, como também sua antiga linhagem. De
uma coisa, porém, estão certos: do grande fascínio que exercem
sobre o médico vestido de preto e de barba aparada, que, com um
gesto impaciente dispensa o restante dos honorários que iam sendo
pagos pela dupla de cantores à frente de sua casa, para poder se
dedicar inteiramente aos dois estrangeiros, que está ansioso por
convidar a entrar em sua casa, mesmo não estando doentes nem
necessitados de suas poções curativas.
Enquanto Ben-Atar, que está todo o tempo angustiado com a
sorte dos que ficaram à espera ao lado da muralha, insiste em
recusar o convite, a Segunda Esposa, entristecida pelo fim da música
que a encantava, é atraída como por artes mágicas para dentro da
casa desconhecida. Com a segurança que lhe dá a sua temporária
condição de única mulher, não se volta para o marido para pedir
permissão, deixando-se atrair pela penumbra úmida, até quase
esbarrar na grande escultura atormentada do Filho de Deus, cujos
olhos injetados de sangue contemplam com indiferença as centenas
de poções e medicamentos guardados nos frascos que o rodeiam.
Ben-Atar se apressa em puxar de novo com força o braço delgado da
esposa voluntariosa, que vem emagrecendo nos últimos tempos,
para que não prossiga na direção da porta aberta pelo médico
entusiasmado. Esta porta dá para um aposento, ainda mais escuro,
seu consultório provavelmente, iluminado por uma grande vela ao
lado de uma cama recoberta por uma colcha amarelada de lã de
carneiro. Aos pés da cama, uma bacia sem água, contendo alguns
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alvos seixos do rio, e sobre uma mesinha estão dispostos uma faca,
serra e fórceps, feitos do mesmo metal polido e cinzento dos
pequenos crucifixos que também neste quarto se espalham por todo
canto, para que o médico possa, durante o tratamento, pedir perdão
e misericórdia pela falta de habilidade de suas mãos e pela
imperfeição de seus pensamentos.
Com firmeza o norte-africano consegue quebrar o encanto que a
casa do médico parece exercer sobre a sua mulher,
surpreendentemente rebelde, e depois de ter voltado a prender, com
as próprias mãos, o véu que caíra do seu rosto e se agitava como
uma flâmula, arrasta-a rapidamente consigo, de volta ao grupo dos
companheiros de viagem. Todavia, o médico parece não querer
renunciar aos dois hóspedes e os segue escondido e perturbado até o
portão da muralha, recolhendo no caminho, por entre as lápides,
dois meninos pequenos com grandes cruzes de ferro penduradas no
pescoço. Quase como se, tendo falhado na tentativa de atrair os dois
pitorescos viajantes como médico, quisesse conquistá-los pela sua
condição de pai de duas lindas crianças, que se persignam ao passar
pelos soldados de guarda e tocam com todo cuidado as caudas dos
cavalos.
Mas o que quer esse lotaríngio obstinado? Por que não desiste?
Qual o alvo de sua curiosidade? São perguntas que Ben-Atar faz
para si próprio, com certa irritação, após constatar que durante sua
ausência todos continuaram como os deixara, sem sair de suas
posições, exceto o jovem Elbaz, que trocara o lugar que lhe fora
destinado, entre o pai e a Primeira Esposa, pelo banco do condutor,
ao lado do escravo pagão, que ainda segura firme, como se fosse
esculpido em pedra, o chicote numa das mãos e as rédeas na outra.
Quando Ben-Atar percebe que o médico de barba aparada e
roupagem negra tenta extrair novos detalhes do comandante da
guarda, pede ao rabino Elbaz que sonde, em latim, quais seriam as
intenções secretas do irredutível cristão.
O bom latim do médico compensa as lacunas do latim hesitante
do rabino de Sevilha e, assim, o cristão pode satisfazer a sua grande
curiosidade em relação à viagem daqueles israelitas estrangeiros e
distantes, que se materializaram na soleira da sua porta. Todavia
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Elbaz ainda não sabe se é o caso de explicar a esse incircunciso a
natureza do doloroso conflito entre hebreus setentrionais e
meridionais, que dificilmente poderá resolver-se com um veredicto
único e aceito por todos, pois parece que a diferença de origens,
acentuadas pela diáspora do povo judeu, permite no máximo chegar
a um compromisso provisório. Entrementes, eis que do portão da
cidade surge uma pequena mulher ashkenazita, que se lança, pálida,
em direção aos dois meninos a se divertirem entre as patas dos
cavalos. Elbaz sente que o seu coração para de pulsar por um
momento à vista da esposa do médico, pois, a não ser pela pesada
cruz que pende sobre a túnica, revela uma extraordinária
semelhança, no aspecto e no modo de proceder, com a senhora
Esther-Míriam. Assombrado, move os lábios sem proferir um som e
volta os olhos para o marido de barbicha aparada. Na verdade as
palavras se fazem desnecessárias, visto que o médico percebe de
imediato a suspeita estampada nos olhos do pequeno rabino e, com
um leve sorriso a que não falta um laivo de dor, faz um gesto
afirmativo de cabeça, confirmando a surpreendente verdade. Agora,
o rabino sabe que poderá completar sem temor toda a narrativa da
viagem, pois está certo de que seu ouvinte saberá compreendê-la.
Capítulo 6

O céu cinzento desperta do seu torpor e começam a cair sobre


Verdun os grossos pingos de uma chuva morna e incessante.
Apequena esposa do médico se apressa a reunir as crianças e
desaparece com elas pelo portão da muralha, enquanto o marido,
emocionado com a história da disputa sobre a legitimidade da
bigamia que o rabino de Sevilha abrira diante dele como um grande
leque colorido, não consegue se desprender daquela narrativa
extraordinária. Quem sabe tenha sentido despertar dentro de si o
desejo de conhecer um tipo novo e diverso de judeu? Ou seria
apenas a tentação de surpreender a outra esposa, escondida dentro
da carroça, para poder compará-la à mulher jovem e morena que se
materializara na soleira da porta da sua casa, a retê-lo ali? Mas
quando a senhora Esther-Míriam, retornando do castelo, desce da
carroça maior e lança ao renegado a mirada azul do seu duro olhar
investigador, adivinhando de imediato a verdadeira condição do
médico, este se sente percorrer por um calafrio, como se aquele
intolerante repúdio, do qual o pequeno rabino lhe falara havia
pouco, pudesse também recair sobre ele. Sem uma palavra, afasta-se
do grupo de judeus, persigna-se discretamente e vai se misturar com
os soldados da guarda lotaríngia, com os quais troca alguns gracejos,
desaparecendo finalmente pelo portão, sem se preocupar em saber
como esses viajantes norte-africanos, que há apenas dez semanas
navegavam pelo fulgor do azul intenso, prosseguirão agora seu
caminho por entre a neblina, a chuva e a lama, rumo ao Leste, em
direção ao vale do Reno.
Nem o próprio oficial da aduana, no castelo, soube distinguir
presentes de mercadorias. No entanto, como suspeitava, da mesma
maneira que o comandante da guarda, que os judeus tinham a
intenção de enganá-lo vendendo ao longo do caminho para
Vermaíza todos os supostos presentes, anotou em um grande
pergaminho o inventário completo de tudo o que havia na carroça,
incluindo até roupas e objetos pessoais dos viajantes, e enviou o
pergaminho por um veloz mensageiro ao governador de Vermaíza
para que, à chegada dos judeus, este pudesse se certificar de que não
faltava nada e de que todos os "presentes" seriam devidamente
encaminhados a seus destinatários. Só assim o ducado de Lotaríngia
podia dormir em paz.
Contrariados pela esperteza dos cristãos, que superara a sua, os
judeus temem agora não só que o pergaminho que os precede,
seguindo na direção do Reno, tenha transformado em presentes
todas as suas mercadorias, mas ainda que se vejam na contingência
de ter de readquirir suas roupas e posses na medida em que, pelo
inventário, estarão obrigados a entregá-las como "presentes". Mas ao
cair da noite, durante a parada sob urna maciça ponte de madeira
nas cercanias da cidade de Me , Ben-Atar nota que a Primeira
Esposa, tendo por iniciativa própria esvaziado um pequeno saco de
condimentos, põe-se a cortar o tecido em duas metades para com
elas costurar dois sacos, salvando assim uma parte de transformar-se
em presente obrigatório, ao duplicar dessa forma a mercadoria.
Assim ela prossegue até a próxima parada noturna, duplicando,
além dos saquinhos de condimentos, peças de tecidos e até os
pequenos e pálidos favos de mel.
Mais uma vez Ben-Atar tem a impressão de que quanto mais as
mercadorias do deserto diminuem de tamanho, tanto mais
aumentam o seu valor e o poder de atração aos olhos ávidos dos
viajantes e dos habitantes das aldeias entre o Meuse e o Moselle, e
entre o Moselle e o Reno. Pelo novo e diminuto tamanho dos
saquinhos de especiarias, não é mais necessário que sejam
aproximados de tempos em tempos do nariz para sentir seu aroma,
podendo ser levados diretamente às narinas para que todo o aroma
singular de um continente misterioso e longínquo possa ser
experimentado sem esforço, continuamente. Entretanto, com a
ameaça do pergaminho que voa adiante da caravana, Ben-Atar e
Abuláfia, resguardando-se contra a possibilidade de virem a ser
acusados de comerciantes que vendem seus "presentes"
multiplicados em mercadorias, resolvem enviar à frente o idolatra
p
negro com uma bandeja repleta dos melhores artigos, para vendê-los
como seus, oferecendo-os por sua própria iniciativa e risco, como se
os judeus que o seguem fossem apenas seus consultores para
assuntos comerciais.
Por serem os lotaríngios mais avarentos do que os francos ou os
bordaleses, são facilmente atraídos por essas novas e desconhecidas
mercadorias, que, de tão pequenas, desaparecem rapidamente,
fazendo-os esquecer depressa todo o arrependimento pelo gesto
impulsivo da compra. Os dois veteranos e experientes comerciantes
já podem sentir para onde e com que força sopram os ventos do
comércio nas terras de Ashkenaz, e se põem a discutir a preparação
do encontro, embora ainda incerto, que terá lugar no próximo ano, o
tão falado ano mil, na baía de Barcelona.
Assim, entre pancadas ligeiras de uma morna chuva outonal, a
caravana prossegue lentamente em direção à cidade de Vermaíza,
subindo colinas e descendo vales por estradas enlameadas que, de
tempos em tempos, passam por castelos cinzentos ou ruínas de
antigas fortificações romanas. De quando em quando os cascos dos
cavalos mergulham em poças que logo se transformam em vastas
áreas de lama amarelada nas quais as rodas das carroças poderiam
facilmente se afundar se Abd el-Shafi não se mantivesse sempre tão
atento em evitá-las. Volta e meia a comitiva é obrigada a fazer uma
pausa para consertar uma roda amassada em um declive rochoso, ou
forrar os arreios dos cavalos para que recobrem a maciez, ou esperar
algumas horas para que uma balsa retorne da outra margem do rio,
ou ainda para discutir com algum camponês teimoso a travessia pelo
seu extenso campo de espigas. Mas, de todo modo, parece que o
entusiasmo e a ligeireza da marcha levam a melhor sobre os atrasos
e empecilhos. Quando os cocheiros sentem o sopro de um vento
constante, e na direção certa, não conseguem ignorar sua natureza
de homens do mar, e pedem permissão ao chefe da expedição para
converter as coberturas das carroças em pequenas velas negras que,
esfraldadas, aliviam os cavalos de parte do esforço.
Não é de espantar, portanto, que o rabino Elbaz, transportado e
embalado pela recordação da viagem por mar pelos ventos que
inflam as estranhas velas içadas sobre os carroções, mergulhe de
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novo na antiga embriaguez poética, que aos poucos o afasta da
realidade, fazendo-o esquecer a passagem do tempo. De fato,
enquanto os obstinados contendores avançam lentamente através
dos vales da Lorena pelo arrastado final do mês de Elul, eis que já se
aproxima, dissimuladamente, o jovem e astuto mês de Tishri, o
primeiro mês do ano. Os viajantes judeus percebem então que pode
acontecer de chegarem à santa comunidade de Vermaíza depois do
toque do shofar, que anuncia o Ano Novo. A senhora Esther-Míriam,
habituada a registrar a passagem do tempo, tenta apressar, delicada
mas firmemente, o andamento da viagem. Mas a vontade de realizar
bons negócios com os presentes duplicados que a Primeira Esposa,
auxiliada pela Segunda, produz todas as noites fascina os dois sócios
temporários, fazendo-os atrasar a marcha a fim de aproveitar cada
momento que possa prolongar essa sua condição temporária.
Já as carroças vão penetrando na região do Saar, avançando ao
longo do curso de um rio de águas rápidas, transparentes e geladas,
por entre grupos de altas colinas, cujos topos, modelados pelo vento
como negras cúpulas, revelam a sua antiga origem. Ali, entre
carvalhos e nogueiras, delineia-se o corpo de uma igreja octogonal
com suas paredes escuras, que a senhora Esther-Míriam reconhece
com grande emoção: a igreja de Alter Torm. De agora em diante,
gritando o nome "Reno", não se recebe dos passantes apenas uma
vaga indicação do caminho a seguir; já é possível, ao mencionar os
nomes das cidades de Spira, Vermaíza e Magen a, obter não só um
sinal de confirmação da sua existência, conhecida de todos, como até
um gesto seguro, mostrando a direção exata. Então, à preocupação
constante da viajante loura, temerosa de se ver obrigada a ouvir o
som do toque do shofar da boca de um pagão negro no fundo de
uma floresta escura, soma-se agora o mergulho nas lembranças
nostálgicas despertadas pela pureza do ar frio e pelo perfume da
relva que cresce em sua terra natal, esmagada pelas patas dos
cavalos. A emoção crescente e irreprimível da senhora Esther-
Míriam se transmite ao marido, e até a Ben-Atar e ao rabino Elbaz,
que anseiam por chegar à cidade às margens do Reno, para dar as
boas-vindas ao novo ano, o 4760 segundo o calendário hebraico, que
cem dias depois dará à luz, de seu velho útero, ao jovem e selvagem
ano mil dos cristãos.
Todavia as carroças, percorrendo agora a planície deserta que se
estende em declive suave até o vale do Reno, não apressariam a
marcha se não fosse a repentina e inesperada aparição do senhor
Lavinas em pessoa, cavalgando um belíssimo animal. Ao que parece,
contrariando as expectativas, o jovem e sensato irmão não conseguiu
encontrar sossego em sua casa em Paris após a partida da irmã e dos
hóspedes do Sul. Assim, tratou de transferir os familiares, inclusive a
pequena órfã sem juízo, para a guarda de seus amigos de Ville-les-
Juifs, para que pudessem passar na companhia da família do
vinhateiro os dias de perdão e de penitência que se aproximam.
Depois, apresentou-se à bela duquesa, apreciadora de gemas raras,
para oferecer-lhe a primeira pérola indiana em troca do mais nobre
puro-sangue dos estábulos ducais Um cavalo que, ligeiro como um
cervo, o conduzisse pelos caminhos mais curtos até sua cidade natal
de Vermaíza, para que pudesse se assegurar, discretamente, antes da
chegada da caravana, de que o contratempo ocorrido no sombrio
salão da vinícola não voltaria a se repetir ali, às margens do no que
corre em Ashkenaz. Assim, os contendores seriam recebidos por um
tribunal rabínico irrepreensível, composto por eminentes estudiosos
das leis, capazes não só de enunciar, mas ate mesmo de cantar o
veredicto correto.
Contudo, transcorridos dois dias em conversações quase secretas
em sua cidade natal, notando que a caravana de Ben-Atar demorava
a chegar, enquanto a noite o som das preces e lamentos que
antecedem o dia do Perdão se faz ouvir com mais intensidade, o
senhor Lavinas começa a recear que algum imprevisto, ou alguma
nova ideia tenha feito o comerciante bígamo mudar de ideia e bater
em retirada. Por essa razão, decide abandonar a clandestinidade e ir
ao encontro da caravana para conduzi-la mais rapidamente para a
armadilha que lhe havia preparado. Para sua surpresa descobre que,
a apenas três dias das Grandes Festas, as duas carroças norte-
africanas ainda estão a vinte léguas da cidade de Spira, que não tem
um único judeu. Então, na qualidade de nativo da região, o senhor
Lavinas propõe guiar a caravana a seu destino, renunciando a
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parada noturna. Contagiado pelas preocupações da senhora Esther-
Míriam, Ben-Atar aceita as sugestões do sagaz irmão e dá ordens a
Abd el-Shafi, habituado a conduzir o navio no escuro, que prenda a
primeira carroça à segunda com grossas cordas, e ambas por uma
corda mais longa à sela do cavalo do senhor Lavinas, para garantir
que os viajantes cheguem como um só homem ao seu destino.
As duas carroças passam a percorrer a terra argilosa do vale do
Reno atadas uma à outra, e guiadas por um cavalo nobre e
inteligente O jovem e refinado senhor Lavinas demonstra
entusiasmo e determinação em manter atados a sua sela, de modo a
rebocar por dias e noites, os judeus norte-africanos para que não se
atrasem, Deus não permita, para a cerimônia solene do Ano-Novo
em sua cidade natal. Mas como é grande a diferença entre viajar
durante o dia e repousar à noite, e viajar dias e noites sem parar, os
viajantes logo se mostram exaustos, são assaltados por náuseas e
acabam amontoados uns sobre os outros, como uma pilha de trapos.
Até mesmo os carroceiros ismaelitas, lobos-do-mar calejados,
acostumados às vigílias prolongadas de dias e noites seguidos de
tempestades, deixam-se ficar sem forças sobre os assentos, e, se não
fosse o jovem escravo prosseguir brandindo o chicote sobre os
cavalos, para mantê-los sempre a galope, as duas carroças atadas não
teriam chegado, no crepúsculo do último dia do mês de Elul, ao beco
dos judeus em Vermaíza, para deter-se entre pequenas casas tortas,
apoiadas sobre grandes estacas já bem desgastadas.
Quase desmaiados, os viajantes descem das carroças, e teriam
desfalecido ali mesmo se os habitantes de Vermaíza, sobretudo os
membros da fiel família Kalonymos, já informada sobre a chegada
da pequena caravana, não tivessem acorrido para recebê-los e levá-
los para casa, onde poderiam, no curso das vinte horas que restam
antes do início das festividades, repousar o corpo exausto e refazer o
espírito esgotado. Com eficiência e sem muitas perguntas, os
homens são separados das mulheres, os judeus dos ismaelitas, os
cavalos das carroças, e seus anfitriões tratam de cuidar de cada tipo e
espécie com a dedicação e a presteza adequadas É surpreendente
como os membros da família Kalonymos tratam a senhora Esther-
Míriam como se também fosse uma forasteira desconhecida vinda
do Sul, e não a dispensam de nenhum dos deveres exigidos dos
demais. Com delicada firmeza, vê-se conduzida, junto com as duas
esposas de Ben-Atar, para a purificação do banho ritual na grande
bacia d'água da instalação que outrora servira como terma para as
legiões romanas, e que ainda conserva pequenas cabines revestidas
de mármore esverdeado. A senhora Esther-Míriam entra em uma
delas para tentar em vão ocultar sua alva nudez dos olhares curiosos
e espantados das duas litigantes. Depois que as três mulheres
retornam do banho, enxutas e viçosas, e são devidamente
encaminhadas às suas respectivas hospedagens, entram na piscina o
tio e o sobrinho, sócios temporários, e também o rabino Elbaz que
arrasta consigo, até esse abismo de masculinidade explícita e
abundante, o filho que esperneia furioso.
Enquanto isso, em um pequeno pátio aos fundos, é oferecida aos
três ismaelitas uma refeição preparada de acordo com as normas
judaicas, para deixa-los de bom ânimo antes de também serem
convidados a se purificar em honra das festividades do Ano-Novo,
não no rio, mas nas águas represadas em um tanque. Como o tempo
é curto e há muito trabalho a ser feito, especialmente porque neste
ano de 4760 os dois dias de comemorações do Ano-Novo são
precedidos pelo Sábado da Penitência, em que se guarda repouso,
outros judeus de Vermaíza, ansiosos por participar em alguma
medida do sagrado dever da hospitalidade, tentam reanimar, com
afagos e muita aveia, os cinco fieis cavalos, que não foram poupados
no esforço para reunir os judeus viajantes a comunidade local em
uma única sinagoga no dia de uma festa tão especial.
Não só com presteza, mas igualmente com amor, os habitantes
do lugar recebem os visitantes e os misturam à trama de sua própria
existência. Como às vésperas dos Dias Terríveis não havia quem não
desejasse ser distinguido com a honra de receber em sua casa esses
visitantes tão sábios e extraordinários, vindos do outro lado do
mundo para submeter sua querela à sabedoria e à justiça da
comunidade do Reno, mesas são postas e camas são arrumadas nas
casas de dez famílias, para que cada uma receba ao menos um
hóspede, não importa de que tipo, seja mulher, criança, ismaelita, ou
até mesmo um jovem adorador de deuses Os viajantes, que durante
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os longos dias de jornada se habituaram a fazer parte de um aflito e
confuso ajuntamento humano, a ponto de começarem a sonhar os
sonhos uns dos outros, vêem-se no meio da noite, não só limpos e
saciados, mas separados uns dos outros, afundados em macias
cobertas e almofadas que deixam escapar duas ou três plumas de
ganso, cada qual deitado em leito estrangeiro, cercado por uma
cortina redonda, tendo à sua volta um espaço negro e vazio que
impedirá a partilha dos sonhos.
A senhora Esther-Míriam, porém, não deseja sonhar, e até
mesmo se empenha em não adormecer. Apesar da escuridão que a
circunda, reconheceu, com enorme emoção, o quarto da sua
juventude. É ali que os membros da família Kalonymos, que até
agora não lhe dirigiram mais que algumas palavras, a instalaram no
quarto onde seu primeiro marido, o suave erudito, tentara em vão,
com ela, trazer uma criança ao mundo, ate morrer de desespero.
Teria sido por acaso?, pergunta-se a senhora Esther-Míriam. Ou
quem sabe os familiares de seu falecido esposo teriam imaginado
quanta saudade ela sentia deste quarto querido que, segundo a
tradição, serviu de pousada para as primeiras gerações de judeus
vindos da Itália em virtude de um edito real? Estes trouxeram
consigo, recolhidos ao longo do caminho através dos Alpes, alguns
servos pagãos, louros, de olhos azuis, que de tão fiéis e dedicados
com o tempo abandonaram seus deuses bizarros para receber a fé de
seus patrões judeus Quem teria cedido aquela grande cama7, pensa
a senhora Esther-Míriam, com uma emoção à qual se mistura uma
ponta de inquietação. É possível que este seja o leito de seu cunhado,
o senhor Isaac Ben-Kalonymos?, pergunta-se, e recorda como sua
sogra não concordou, após a morte do primogênito, em fazer a
mulher estéril aguardar até que o irmão atingisse a idade
apropriada, determinando que ela tirasse o pequeno sapato diante
daquele jovem atraente e cuspisse no chão, como exige a lei, antes de
ir consolar-se com o irmão em Paris.
De fato, a senhora Esther-Míriam conhece muito bem, a julgar
por si mesma, o temperamento dos habitantes de sua cidade, que
lançam mão da severidade e da dureza para disfarçar melhor os
sentimentos mais cândidos e amorosos. Mesmo assim ela está
decepcionada e perplexa, pois esperava uma recepção muito mais
calorosa. Por ingenuidade, supunha que as pessoas de sua cidade
iriam admirar sua lealdade e ousadia em arrastar aqueles obstinados
judeus estrangeiros por tão longos caminhos, para se submeterem à
justiça local. Era essa mesma justiça que a senhora Esther-Míriam
imaginava, nos muitos anos de ausência, como o supra sumo da
perfeição. Esquecera, contudo, que a grande força dos judeus de
Vermaíza consiste justamente em nunca terem considerado perfeita
sua capacidade de julgar, esforçando-se, ao contrário,
constantemente, para melhorá-la Assim, às vésperas do duplo toque
do shofar, não julgam dever demonstrar admiração pela mulher que
trouxe à sua presença uma disputa tão apaixonante, mas, ao
contrário, sua tendência é encará-la com suspeita e ceticismo,
seguindo o exemplo dos juízes mais eminentes que, antes de cada
julgamento, exercitam a própria imparcialidade considerando cada
uma das partes envolvidas potencialmente culpadas.
É isso que percebe a senhora Esther-Míriam, de volta à sua
cidade, nos gélidos olhares lançados pelos membros de sua antiga
família À noite, na cama das vãs tentativas de procriação que haviam
acendido o seu desejo e a paixão do seu falecido marido, seu coração
experimenta um mágoa tão intensa que apenas uma gota a mais
poderá fazê-lo transbordar de angústia. De repente lhe parece que
até o impossível pode se tornar possível, e talvez no lugar que
sempre considerou o mais perfeito e seguro possa vir a encontrar-se
diante de uma nova surpresa, já que um desejo excessivo de
imparcialidade, uma eventual compaixão pela ingenuidade daqueles
hebreus meridionais que percorreram com tanto esforço uma
enorme distância e as enganosas palavras do rabino de Sevilha
poderão, de fato, como na vinícola de Ville-les-Juifs, induzir em erro
os sábios da sua cidade, ao fazer com que eles pronunciem um
veredicto favorável ao seus adversários, reatando para sempre a
sociedade com uma dupla chancela de aprovação, tanto do Norte
como do Sul.
Agora, ela anseia por despertar o irmão para expor-lhe seus
novos temores, mas não sabe onde ele dorme. Sente-se invadida por
uma súbita raiva contra a afronta silenciosa dos habitantes da
cidade, que ousaram separar dessa maneira os viajantes, isolando-os
em diferentes casas, como se fossem criancinhas desajuizadas. Por
um instante se arrepende de ter consentido em se submeter a um
novo processo e, tal como o rabino Elbaz que procurou seu caminho
às apalpadelas na profunda escuridão da sua casa em Paris para
escapar dali há duas semanas, também ela se livra dos acolchoados
de penas de ganso e tenta encontrar a saída desta casa inclinada,
toda de madeira, que, embora lhe seja tão familiar, de repente lhe
parece um navio adernado sobre um banco de areia. Mas ao pelejar
contra uma aldrava pesada e desconhecida instalada na porta
externa, provavelmente em virtude da ameaçadora aproximação do
milênio, é ouvida pelo dono da casa, o jovem Kalonymos, irmão de
seu falecido esposo, que, não ousando se aproximar dela a sós na
escuridão, apressa-se a acordar a esposa para que tranquilize sua
aflita ex-cunhada.
Esta jovem e encantadora senhora Kalonymos, em cujos olhos
um remoto antepassado acendeu uma centelha verde-esmeralda,
consegue não apenas acalmar as inquietações da senhora Esther-
Míriam, mas ainda infundir-lhe uma esperança confiante,
sentimento que deve animar a todos nesta véspera das orações de
perdão. Suavemente ela conduz de volta ao quarto aquela mulher
que, por sua esterilidade, foi proibida de ser a primeira, mas única
esposa de seu cunhado No velho leito nupcial, piedosamente, ela a
cobre com um acolchoado que fora atirado ao chão num repente de
angústia, para que tenha mais duas ou três horas de sono tranquilo,
antes que a despertem para o serviço divino na sinagoga exclusiva
para mulheres que fora erigida na cidade de Vermaíza nos últimos
anos, e onde as orações são acompanhadas pelos trinados de uma
cantora sacra, que chega a colocar tfilim pela manhã, antes do
"Escuta, ó Israel".
Como se tivesse sido tocada por uma mão mágica, a
surpreendente notícia de uma sinagoga de mulheres acalma a
angústia da senhora Esther-Míriam. A esperança de que as mulheres
de Vermaíza, sua cidade natal, consertem com seu bom senso o que
as mulheres descalças e ignorantes do vinhedo próximo a Paris
estragaram vem mitigar seu pessimismo e seu desespero, e trazer o
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repouso tão ansiado pelo corpo. Assim, não surpreende que quatro
horas mais tarde a senhora Rachel Bat-Kalonymos tenha muito
trabalho para tirar aquela hóspede querida e ilustre das profundezas
do sono, para que não perca o serviço matutino no Frauen Shul, a
casa de orações das mulheres, que pedem, na aurora do derradeiro
dia do ano, perdão e remissão não só pelos próprios pecados, mas,
quem sabe, pelos pecados de muitas outras mulheres, onde quer que
estejam.
Por exemplo, das duas esposas de Ben-Atar, que, na escuridão
do último quarto da noite, em meio ao vento e ao nevoeiro que vêm
do no, não tendo sido dispensadas da oração pelos implacáveis
habitantes de Vermaíza, são levadas, cada uma da casa em que
estava hospedada, envoltas em pesados mantos negros, com o rosto
descoberto e sem argolas no nariz, a um pequeno aposento, contíguo
à sinagoga dos homens, que chegam agora, vindos de todas as
direções, como sombras espectrais, para as orações da Penitência
Entre eles os demais viajantes, que parecem tomados de profunda
exaustão Abuláfia, Ben-Atar e o rabino Elbaz, que só agora se lembra
de indagar pelo paradeiro de seu filho. Todos eles agasalhados, por
obra e graça de seus hospedeiros, com pesados sobretudos negros,
em parte para proteger as costas meridionais do vento cortante que
sobe do no, em parte para esconder as roupas de viagem, puídas e
rasgadas. Ainda tontos e confusos, recém-saídos do sono profundo,
mas ainda insuficiente, e do jantar de sabores insólitos, têm a
princípio dificuldade em reconhecer uns aos outros, como se a
separação que lhes fora imposta à noite pelos hospedeiros já os
tivesse transformado por completo.
Eis que o senhor Lavinas também surge para as orações, bem-
disposto, alerta e mostrando grande segurança. Corre os olhos com
simpatia pelos seus conterrâneos, cujo fervor religioso não dispensa
nem mesmo os três ismaelitas, que fizeram sentar num banco no
pátio da sinagoga, para que alguns respingos de santidade que
venham a se desprender das orações dos judeus possam iluminar e
afastar as trevas em que vivem suas almas gentias. Mas a vista das
mulheres conduzidas para a oração por entre as ramagens das
árvores e dos arbustos espessos, o coração de Ben-Atar se consome
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de pena. Suas belas faces, agora expostas a toda gente, não o fitam
com expressão de raiva ou revolta, e sim de pasmo, quase como se
quisessem dizer será que sua alma não terá sossego enquanto não
submeter, até aqui, nestas paragens gélidas e cinzentas, o seu duplo
amor à última e definitiva prova?
É nessa prova que o pequeno rabino andaluz não cessa de
pensar desde o momento em que cruzou os portões do muro da
pequena cidade. Ao ver agora a senhora Esther-Míriam, sua
oponente no processo, envolta num manto de pele e rodeada pelas
mulheres da aldeia que a acompanham com respeito e devoção até a
pequena sinagoga, onde, talvez para lhe fortalecer o ânimo, atam em
seu braço as tiras dos filactérios, ele percebe, com sua perspicácia,
que aqui deverá se precaver não somente contra as mulheres, mas
contra toda a congregação, unida e retemperada em sua profunda
religiosidade Portanto, ao contrário do que ocorreu em Ville-les-
Juifs, o mais indicado aqui não será exigir um júri numeroso, mas
um único juiz, cuja sabedoria e sensibilidade permitam ver, das
profundezas dos pântanos do Reno, o que ele, o rabino Elbaz, já
enxerga há muito tempo por entre os jardins floridos da Andaluzia.
Capítulo 7

Durante o "Shema' Israel", a oração matutina, depois de


terminadas as preces de penitência feitas à noite, o rabino Elbaz se
volta para observar os semblantes dos fiéis, resolvido a encontrar um
homem que possa assumir o encargo de juiz único na segunda
rodada da batalha prestes a se iniciar no coração dos pântanos que
margeiam o no ashkenazita A surpreendente vitória em Ville-les-
Juifs ensinou ao rabino andaluz uma regra bem simples aquele que
escolhe o júri garante o veredicto, e isso sem necessidade de
qualquer peça acusatória muito elaborada nem de citações das
Escrituras Elbaz ainda não esqueceu de que modo, naquele sombrio
salão da prensa, à luz trêmula de uma tocha que iluminava os
pequenos pés femininos manchados pelo sangue das uvas, ele
conseguira assombrar a todos, inclusive si próprio, com seu discurso
bilíngue Nas noites da viagem por terra, indo de um no a outro, ele
tentara aperfeiçoar aquele discurso guardado na sua memória Mas
também se recorda das palavras atribuídas ao grande imã da
mesquita de Córdoba Nunca repita a tática que venceu a última
guerra. Pois o discurso que soube arrebatar os corações dos judeus e
judias sensíveis e embriagados de île-de-France não terá êxito com os
judeus circunspectos do vale do Reno, que agora examinam, por
entre as franjas de seus xales de oração, o novo rabino de Sevilha,
não menos do que ele próprio os examina.
Assim, antes ainda de encontrar a nova estratégia capaz de
eliminar de uma vez por todas qualquer restrição à sociedade
estabelecida entre o Norte e o Sul, obrigando por fim a Nova Mulher
a aceitar a bigamia praticada na costa dourada do Norte da África, o
rabino tem a intenção de conhecer melhor a alma destes estudiosos
das Escrituras que rezam ao seu lado, para poder escolher entre eles
o homem cujo espírito paire, liberto, acima da tirania exercida pela
comunidade. Por isso está decidido a recusar o convite de seus
hospedeiros para voltar para a cama ao final das orações, como os
outros viajantes, a fim de recuperar o sono perdido e ganhar forças
para o serviço divino que terá lugar à noite. Em vez disso, pede que
o deixem ir, assim como está, com seu gasto manto sevilhano,
passear pelas ruelas e becos enlameados de Vermaíza, para que
possa sentir bem o lugar e tudo o que nele vive: judeus e gentios, a
sinagoga cinzenta e a igreja sombria.
Ben-Atar está indeciso entre acompanhar o rabino curioso em
seu passeio por entre os muros da cidade, banhada agora por uma
luz leitosa, ou exigir a devolução de suas duas esposas, que ao final
da oração das mulheres, mais curta que a dos homens, retornaram às
famílias que as acolheram. Eis que de repente entram na sinagoga
dois cavaleiros armados. Trazem à mão o pergaminho enviado pelo
chefe da alfândega de Verdun, com a lista das mercadorias que
foram isentas de taxas, para supervisionar sua distribuição não só
entre os descendentes dos assassinos do Filho de Deus, mas também,
conforme uma nova e generosa interpretação das autoridades
ducais, entre os que O veneram. Assim, as duas carroças,
estacionadas em frente à sinagoga, vão sendo rapidamente
esvaziadas não só das pilhas de sacos e peças de tecidos que foram
duplicados graças à iniciativa previdente da Primeira Esposa, como
também de todos os demais pacotes e objetos pessoais dos
passageiros que, segundo o magnânimo decreto, se transformaram
em presentes. Por isso, na noite festiva em que se comemorou a
entrada do novo ano, os habitantes locais puderam temperar seus
grelhados de porco e seus cozidos de carne de veado com os novos
condimentos vindos do deserto, e espargir sobre suas saladas o
azeite proveniente dos olivais de Granada. Nas paredes puderam
dependurar retalhos de seda colorida bordados com fios de ouro,
rasgados dos vestidos das esposas de Ben-Atar, e meninos travessos
puderam desmanchar na praça da igreja as grandes sandálias dos
marinheiros ismaelitas e com elas tecer uma longa corda. Mas os
judeus de Vermaíza, por sua vez, se apressam a compensar os
atônitos acusadores norte-africanos com outros presentes. Em lugar
das túnicas, mantos e capas em cores brilhantes, que foram rasgados
em tiras pelos cristãos excitados, os mediterrâneos, judeus e
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ismaelitas envergam agora chapéus pontudos e longos sobretudos
escuros atados por faixas negras e brilhantes, arrematadas por
franjas, de modo que não é fácil distingui-los dos judeus locais, que
dentro em pouco voltarão os olhos para o céu em busca da lua
nascente, que deve trazer em sua esteira dourada não só um novo
mês, mas também um novo ano.
Então, quando aparece no céu a primeira foice da lua, passando
rápida entre as nuvens escuras à hora do crepúsculo, os israelitas de
Vermaíza dão um suspiro de alívio ao ver que a contagem do tempo,
que ainda é feita a partir das colinas de Jerusalém, continua correta e
precisa. Entrementes, respeitam o pedido do rabino e o levam a dar
uma caminhada por entre as muralhas da cidade, respondendo com
toda a paciência às suas perguntas e esclarecendo suas dúvidas.
Esses estudiosos dos livros sagrados, que no decorrer do passeio
pelas ruelas sinuosas vão se familiarizando com a maneira árdua e
estranha pela qual o rabino tira o hebraico do fundo da garganta,
convidam-no para uma sala reservada na sinagoga, onde se encontra
uma arca cheia de restos de pergaminhos e pedaços retorcidos e
amarelados de chifres de carneiro, para ouvi-lo desenvolver um
pequeno sermão sobre a santidade do dia que se aproxima, a fim de
poderem avaliar a sutileza do pensamento do Sul, sobre a qual o
senhor Lavinas há tempos já os havia alertado.
Mas Elbaz hesita, a princípio dividido entre o desejo de distrair a
atenção de seus adversários do perigo que ele representa e o de
exibir diante de seus olhos um esboço da profundidade do campo de
batalha que os espera. Assim, limita-se de início a proferir
considerações genéricas e banais sobre os versículos que tratam do
sacrifício de Isaac, porém se estende um pouco mais ao descrevera
forma peculiar dos chifres pequenos e cinzentos do verdadeiro
carneiro originário da Terra de Israel, que veio para ser sacrificado
em lugar do filho amado, mas não único. Como que para despertar a
simpatia dos judeus locais para com os ismaelitas que participam da
viagem, acrescenta aos ouvintes atentos e curiosos algumas frases
afetuosas acerca do filho primogênito de Abraão, que mesmo com
sede foi lançado para trás de um arbusto no deserto da Terra
Prometida, onde no dia da redenção final se encontrarão todos os
descendentes de Abraão, quer queiram, quer não. Com essas
palavras o rabino dá por encerrada sua curta homilia, depois de
perceber que a referência ao encontro messiânico com os ismaelitas
numa terra desértica impressionara bastante os seus ouvintes.
É impossível, porém, aprofundar-se mais no tema, pois o serviço
festivo já se aproxima, e se faz necessário preparar o corpo, para que
não venha a perturbar o espírito durante as orações. Contudo, um
dos estudiosos que ouviram a pequena exposição ainda não se dá
por satisfeito e não deixa em paz o andaluz, pois quer saber mais e
mais sobre a forma dos chifres pequenos e escuros do carneiro
original da Terra de Israel, que os hebreus devem sacrificar a cada
ano por esta época e cujo grito, ouvido no sacrifício, deve ser
repetido pelos judeus de todos os tempos na lua nova do início do
mês de Tishri. Há uma razão especial para a curiosidade
demonstrada por esse estudioso de barba ruiva, pois é ele quem, do
púlpito, oficia as orações e faz soar o shofar, o chifre do carneiro.
Assim, não é de estranhar que a história do chifre originário da Terra
de Israel, simples, pequeno e escuro, que produz o som sem precisar
de espirais elaboradas, tenha capturado a sua imaginação.
De repente Elbaz tem uma ideia. Quem sabe se justamente esse
homem curioso poderá ser o árbitro no processo de bigamia. Decide
então lhe dedicar atenção especial:
leva-o até um canto e tira de um bolso escondido nos recônditos
mais internos de sua larga calça um shofar pequeno e escuro,
tomado emprestado no último instante, antes de embarcar, da
sinagoga do porto de Cádiz, pois, pelas contas feitas antes da
viagem, se não houvesse o acréscimo por terra, o shofar seria tocado
no caminho de volta, sobre as ondas, em algum lugar entre a
Bretanha e o golfo de Biscaia. Enquanto o estudioso de Vermaíza
examina com as mãos muito brancas o pequeno shofar andaluz —
que pelo tamanho reduzido deve ter sido tirado não da cabeça de
um carneiro, mas sim de um bode —, muito diferente dos chifres
portentosos, dourados e espiralados encontrados na nobre e soberba
cabeça dos carneiros do Norte, o rabino Elbaz procura sentir o
temperamento do jovem, propondo discretamente algumas questões
bem direcionadas para esse objetivo, que por enquanto deve ficar
bem escondido, até que se aconselhe com Ben-Atar.
Mas onde está Ben-Atar? E onde estão os outros viajantes, judeus
e ismaelitas, brancos, morenos e negros? Engolidos pelas casas de
madeira dos judeus de Vermaíza, chegam agora, pela noite chuvosa,
para se reunir na sinagoga, que, embora ainda em construção,
faltando-lhe uma parede inteira do lado ocidental, parece ser tão
querida pela congregação como se já estivesse pronta. Lá os fiéis se
juntam fraternalmente em uma comunidade unida e orgulhosa, com
seus trajes de festa, e elevam o olhar feliz às três grandes janelas
retangulares, que se abrem para pequenas aberturas redondas, como
escotilhas de navio, guarnecidas por grossas placas de vidro
amarelo. Sem nenhum ornamento — nem anjo, nem homem, nem ao
menos uma pequena flor —, essas aberturas circulares irradiam no
salão escurecido da sinagoga a magia de três sóis brilhantes.
O senhor Lavinas exige que o rabino andaluz, junto com o filho
que reapareceu com um chapéu pontudo na cabeça, tome lugar junto
à parede oriental, ao lado da arca sagrada, para que possa observar a
virtude da comunidade disposta à sua frente, comunidade que irá
purgar os pecados na quinta e na sexta-feira, continuando ainda a
purificação durante o shabat do Arrependimento. Depois, na noite
do sábado, haverá uma pequena pausa para anunciar a sentença que
julgará quem tem razão entre o Sul e o Norte, entre Abuláfia e Ben-
Atar. Tio e sobrinho, sentados um ao lado do outro, comprimidos
entre os fiéis que rezam à sua volta e tremendo ligeiramente por
causa do vento frio e úmido que costuma acompanhar a oração
vespertina do Ano-Novo na Europa, recordam com tristeza como,
em Tânger, sua cidade natal, sua chegada é sempre comemorada sob
um céu cálido, juncado de estrelas.
A primeira noite do Ano-Novo, Ben-Atar passava sempre em
companhia da Primeira Esposa. Mas costumava quebrar o jejum,
após a ultima oração do lom Kipur, com a Segunda. Na festa dos
Tabernáculos, após a entrada do novo ano, construía sua sucá —
cabana provisória onde os judeus devem residir durante a semana
da festa, ou ao menos fazer nela uma refeição diária, acompanhada
de uma bênção especial — ao lado da casa da Primeira Esposa,
p p
porém, na Festa da Alegria pelo recebimento da Torah, levava a
pequena Bíblia para a casa da Segunda Esposa. Assim, por todas as
festas ao longo do ano, cuja duplicidade natural convida, e mesmo
exige, pelo menos duas esposas, que estejam sempre viçosas e
joviais, e prontas a auxiliar o marido, cujos múltiplos e complexos
deveres religiosos poderiam mesmo levar à exaustão.
Esta noite, porém, na penumbra da sinagoga situada às margens
do Reno, onde as orações seguem o padrão abreviado estabelecido
pelo rabi Amram Gaon, e não o padrão babilônio completo de
Saádia Gaon, os fiéis têm todo o tempo para se deter sobre as orações
e repetir os versículos mais queridos. Como conhecem de cor todas
as partes, não sentem falta de uma luz mais forte, mas Ben-Atar se
cansa lendo os pergaminhos que lhe foram dados, difíceis de serem
interpretados mesmo à luz do sol, quanto mais na sombra densa que
domina o recinto da sinagoga. Embora tenham transcorrido muitas
horas desde que se separou de suas esposas, não sente nenhuma
urgência em reunir-se a elas, nem ao menos em ter notícias. Talvez,
em parte, por não ter dúvidas de que estão sendo tratadas com
respeito e generosidade, como ele próprio. Ou, talvez, porque, pela
primeira vez na vida, sente certo alívio em não tê-las junto a si, como
se estivesse enfastiado delas.
Verdade que durante os setenta dias passados desde que
iniciaram a jornada não houve um dia sequer em que ambas as
esposas não estivessem ao alcance de suas mãos, ou pelo menos de
seu olhar. O casamento duplo tem por princípio permitir que cada
um dos cônjuges se isole de tempos em tempos, para que possa
estimar com calma tudo o que lhe foi oferecido antes de voltar a
desejar novamente. Porém, na meia obscuridade da carroça
oscilante, mantida no rumo pelos braços tatuados de Abd el-Shafi,
ao longo das intermináveis estradas que ligavam o Sena ao Reno,
vendo suas duas esposas exaustas deitadas lado a lado, e por vezes,
a um solavanco mais violento, unidas num só abraço, ele começou a
temer considerá-las, dali em diante, no delírio da paixão, uma única
entidade. Por isso, é oportuno que agora ele permaneça separado de
ambas, sem vê-las nem saber onde se encontram. Quem sabe se do
outro lado da parede, na pequena sinagoga das mulheres? Ou talvez
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prisioneiras entre os cortinados das casas de madeira, que se
equilibram sobre estacas, prestando ouvidos, para além da janela, ao
coro dos sapos coaxando no meio dos extensos pântanos do Reno?
Coaxar intenso e insistente, que o cantor trata agora de superar
com voz forte e decidida, conduzindo a cerimônia com firmeza, sem
se render aos desejos dos fiéis que tentam apressar ou retardar, saltar
ou voltar às partes já passadas. O rabino Elbaz cada vez mais se
convence de que aquele que está habituado a liderar, dia após dia, as
cerimônias religiosas de uma comunidade tão devota e erudita
poderá também ser o árbitro único e definitivo na disputa jurídica
que os aguarda, ainda que não seja o mais conceituado dentre os
estudiosos de Vermaíza. Assim, sente-se cada vez mais próximo do
"seu escolhido", com sua barba dourada e seus olhos injetados, como
se tivesse encontrado sua alma gêmea. Ao final das orações,
contudo, quando o senhor Lavinas se apressa em ir ao encontro do
rabino e de Ben-Atar, exibindo no rosto um sorriso de expectativa,
ansioso por ouvir dos litigantes do Sul elogios e palavras de
assombro quanto à excelência espiritual de sua cidade natal, o rabino
se acautela e não revela ao seu adversário, nem pelo mais leve
indício, sua intenção de pleitear o tribunal de um único juiz, em
lugar de um júri. Contenta-se, por enquanto, em fazer uma pergunta
singela sobre o caráter e as qualidades do cantor das preces, que
dobra agora devagar o seu talit, com evidente falta de vontade, como
se lamentasse que o serviço divino tenha chegado ao final.
É o próprio senhor Lavinas quem, por conhecer perfeitamente
cada um dos membros da comunidade, fornece todas as informações
acerca deste homem, o rabino Yossef, que, embora seja chamado de
Kalonymos, como a maioria dos habitantes de Vermaíza vindos da
Itália em decorrência do decreto do imperador Oto, é um meio
Kalonymos, apenas pelo lado paterno, enquanto por parte da mãe
descende de uma família local muito antiga, cujo patriarca é citado
nas lendas como tendo se alistado nas legiões de Júlio César para vir
combater nesta região há mais de mil anos. Conta ainda que o rabino
Yossef enviuvou, mas, ao contrário do rabino Elbaz, não permaneceu
viúvo por muito tempo, logo tratando de se casar com uma viúva de
sua própria família para que cada um pudesse cuidar dos órfãos do
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outro. Talvez justamente por ser a sua casa cheia de crianças foi que
o senhor Lavinas a escolheu para abrigar o mais jovem dos viajantes.
Agora está claro para o rabino por que seu filho não tira os olhos
desse homem, e por que o pequeno chapéu pontudo que traz na
cabeça está inclinado exatamente no mesmo ângulo que o chapéu do
seu anfitrião. Sente como se a mão invisível de um anjo bom o
tivesse tocado, e se apressa a confirmar para si próprio o acerto da
escolha. Sua peça acusatória será apresentada a um juiz que conhece,
assim como Ben-Atar, o gosto de ter duas esposas, embora no seu
caso em épocas diferentes. Por um momento o rabino Elbaz pensa
em acompanhar o filho e fazer uma visita à casa do "seu escolhido"
para observar de perto os pontos fracos de seu raciocínio e sua
personalidade. Mas acaba por desistir, temendo que a excessiva
aproximação venha a despertar suspeitas. Entretanto, decide lhe
oferecer, para a oração da manhã, no dia seguinte, o pequeno shofar
escuro para que possa conhecer, no decorrer da cerimônia, o som do
Sul, mais baixo e delicado.
No entanto, antes que os norte-africanos se dirigissem cada qual
para a casa que os acolhera, para participar da ceia festiva, o rabino
se apressa em expor sua nova ideia a Ben-Atar, e pede que concorde
em submeter a disputa a um único juiz, escolhido por eles. O
comerciante parece surpreso com o pedido. Até ali, considerando o
modo pelo qual as coisas foram se encaminhando, sempre foi
obrigado a admitir que as decisões tomadas pelo rabino se revelaram
boas. Assim, depois de uma breve reflexão, dá o seu consentimento,
já que ele também percebe que os entusiasmo daquele tribunal
inculto de um vinhedo próximo a Paris se viu substituído, ali, pela
grande erudição de uma comunidade segura de si mesma. Portanto
é preferível que o processo seja julgado por um só juiz, mas que seja
um homem de caráter, acostumado a conduzir as orações com a
congregação às suas costas, e não à sua frente.
O rabino Elbaz se aproxima do senhor Lavinas, cujos olhos
correm pelas mulheres que deixam agora a sua sinagoga, em busca
da irmã. E dá a ele a primeira indicação, não em seu nome, mas em
nome do litigante, de sua intenção de serem julgados em Vermaíza
por um tribunal rabínico reduzido a ponto de ser constituído por um
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único juiz. Ao ouvir essas palavras o esperto senhor Lavinas passa a
dedicar toda a atenção a Elbaz, pois bem se lembra da amarga
experiência da Ville-les-Juifs, que também a ele ensinou que aquele
que escolhe o júri tem a sentença nas mãos. Um pouco temeroso,
pergunta ao rabino andaluz que, com a toga preta jogada sobre os
ombros e o chapéu pontudo, parece exatamente um judeu local: Um
único juiz? Por quê? É preferível aproveitarmos a soma das
inteligências de vários juízes.
Todavia, o rabino Elbaz parece determinado. Ao contrário,
exatamente por ser esta comunidade formada por tantos estudiosos,
que aprendem uns com os outros, mas também vigiam uns aos
outros, é preferível que seja um único juiz a se responsabilizar pela
separação definitiva entre tio e sobrinho, entre Norte e Sul. Mas
quem será esse juiz?, pergunta Lavinas com crescente inquietação,
agora na discreta companhia da irmã, que após as orações da noite
parece refeita e radiante entre seus conterrâneos. Também aqui,
como em Paris, caberá ao menino sortear? Fica sabendo, porém, que
o rabino desta vez não pretende lançar mão de nenhum sorteio, mas
sim do direito de escolha que tem. Em todas as instâncias de justiça e
ética rabínicas, esse é um direito reservado aos acusadores, que, pela
certeza que têm de seus argumentos, não hesitaram em afrontar o
oceano revolto para virem defendê-los ali. E, mesmo depois de terem
vencido um primeiro processo, consentiram com generosidade em se
submeter a um segundo julgamento, nas profundezas pantanosas e
sombrias das terras de Ashkenaz, numa cidade humilde e escura,
habitada por uma parentela instruída e sagaz. Portanto, manda a
lógica e a justiça que lhes seja concedido o direito de escolher quem
decidirá em ultima instância.
Assim, em face de argumentos tão fortes e incisivos, não houve
da parte do senhor Lavinas nenhuma tentativa de resposta. Mas ele
ainda espera que sua irmã, em cujos olhos claros perpassa um leve
sorriso, perceba a intenção oculta nas palavras do rabino andaluz,
que apresentou seus argumentos na língua sagrada com grande
entusiasmo. Durante a ceia festiva na casa de seu anfitrião, o velho
rabino mor de Vermaíza, o rabino de Sevilha, considerando aceito
seu direito de escolher o juiz, dedica-se a continuar o exame do seu
j
candidato. Entre um e outro versículo das Escrituras, tenta extrair
mais detalhes acerca do rabino Yossef Ben-Kalonymos. Quando
ouve, num comentário incidental, que há muitos anos seus pais
quiseram casá-lo com a jovem Esther-Míriam, da casa de Lavinas,
cujos rigorosos pais, entretanto, preferiram o Kalonymos completo
ao Kalonymos pela metade, sente uma leve vertigem, como se a mão
do anjo bom não apenas o tivesse tocado, mas também o acariciado.
É possível que nessa escolha venham a convergir duas soluções, pois
a justa sentença poderá ser reforçada pelo desejo de vingar-se da
humilhação sofrida no passado.
No dia seguinte, durante a oração matinal, o rabino Elbaz não
revela a ninguém o segredo da escolha do juiz, nem mesmo a quem
o contratara, postado agora em meio aos fiéis ao lado de seu querido
sobrinho, seu sócio temporário, o jovem de cabelos encaracolados
cuja musicalidade permite juntar sua voz agradável às demais, até
mesmo nas modulações mais complexas das orações, entoadas
segundo a versão dos judeus do Reno, a tal ponto que o cantor das
orações, o rabino Yossef Ben-Kalonymos, parece ter encontrado um
rival. Porém, quando os rolos da Torah são tirados da arca e abertos,
e o rabino Yossef Ben-Kalonymos coloca nos lábios finos o shofar
amarelo, gigantesco e espiralado, e faz soar os três toques rituais, um
temor contido assalta o rabino Elbaz, como se o som roufenho,
enérgico e insistente do chifre do carneiro de Ashkenaz lhe trouxesse
um novo e urgente sinal de alerta. Mas ele se contém e se refaz, em
especial depois que os rolos da Torah são recolocados na arca. O
rabino Yossef Ben-Kalonymos dirige-se então a ele com o pedido de,
ao prosseguimento da cerimônia, conceder a honra de fazer soar o
pequeno e escuro shofar vindo do Sul, que o rabino soube tão bem
ocultar dos olhos do oficial da aduana em Verdun.
Assim, de forma lenta, com uma emoção contida, sob uma
chuvinha fina e persistente, transcorreu o primeiro dia de festa,
seguido calmamente pelo segundo, no qual a parte final da oração
vespertina se uniu docemente à oração noturna do shabat. Ben-Atar
ainda não sabe, e talvez nem queira saber, em qual daquelas casas
escuras e tortas, apoiadas em grandes estacas irregulares, estão
abrigadas suas duas esposas. Como se o céu outonal de chumbo que
g p q
pesa sobre a cidade ashkenazita houvesse sugado todo o desejo
duplo e inesgotável do mercador norte-africano, enchendo sua alma
de um vago desespero que vem embotar seus pensamentos. Até que
por um instante lhe ocorre deixar tudo para trás, ir até o estábulo
situado nos fundos da sinagoga, escolher o melhor e o mais forte dos
quatro cavalos que os trouxeram lealmente do Sena até o Reno, e,
sozinho, galopar da Europa até a África.
Se no início o intuito de Ben-Atar era demonstrar, como fez em
Paris, sua serena capacidade de cumprir de forma integral e
equânime seus deveres de esposo e de usufruir de seus direitos, logo
compreendeu, talvez pela maneira como os judeus locais desde o
primeiro momento o mantiveram isolado de suas esposas, que não é
da parte do homem que se espera aqui qualquer prova, mas sim da
parte das esposas. Mas provar o quê?, voltava sempre a pensar,
enquanto via as esposas repetidamente se dirigindo ao portão da
sinagoga das mulheres nos dois dias de orações. Seria a devoção
religiosa absoluta?, pensa o marido com certa irritação. Ou talvez
haja aqui a intenção de impregnar a alma das esposas de temor, ou
mesmo de culpa, como se o grande amor, que lhes deu tanto prazer
e continua a lhes dar, tivesse sido ilícito desde o princípio?
A partir do momento em que o senhor Lavinas apresenta à
comunidade a exigência inapelável do rabino Elbaz de colocar a
responsabilidade pela sentença nas mãos de um único juiz, altera-se
o bom humor dos judeus de Vermaíza, que já há alguns dias
acalentavam a esperança de escapar à tristeza habitual no término
das festividades com a alegria de participar de um bom debate sobre
o destino das três mulheres. Assim, reúnem-se após a oração final do
shabat na sinagoga, não na qualidade de uma congregação investida
do poder de julgar, mas apenas na condição de espectadora passiva,
à espera de conhecer o escolhido pelo pequeno e enérgico rabino.
Aqueles hebreus nem de longe imaginam que Elbaz se prepara para
surpreendê-los de novo, exigindo com firmeza um julgamento a
portas fechadas, de maneira que, no caso de o juiz ousar decretar a
definitiva separação entre o Norte e o Sul, não possa contar com o
apoio de uma congregação fanática e exaltada para aliviar o próprio
remorso.
É contra a sua vontade que os fiéis são solicitados a estender um
duplo cortinado na sinagoga, para que o espaço destinado ao
público fique separado do espaço do tribunal. Porém, nem mesmo o
teimoso rabino consegue evitar que sejam acrescentadas velas e
lanternas à iluminação, para que consigam desfrutar da visão dos
litigantes ao entrarem no pequeno espaço ao lado da arca sagrada. É
bem verdade que, ao contrário do recinto espaçoso da Ville-les-Juifs,
onde as tochas projetavam grandes sombras fantasmagóricas nos
cantos do salão, a ponto de parecer aos juízes acomodados sobre os
barriletes de vinho estarem flutuando em pleno inferno, onde todos
os seres vivos, homens e mulheres, são cindidos em duas partes,
aqui em Vermaíza o rabino andaluz resolve demarcar um pequeno e
bem iluminado espaço, onde se reúnam os acusados, os acusadores e
as testemunhas, e também o juiz, que finalmente será retirado da
congregação dos judeus que vai aos poucos preenchendo a sinagoga.
Embora o provável juiz, o rabino Yossef Ben-Kalonymos, esteja
candidamente sentado a um canto, ouvindo distraído o burburinho
de vozes ao redor, parece que já pressentira sua escolha, não apenas
pela maneira casual com que entrega sua vela ao homem sentado a
seu lado e a agilidade com que se põe em pé, mas em especial pelo
talit que continua a envergar desde a última oração da noite. É
possível que essa seja a maneira de desculpar-se por sua escolha
perante seus companheiros, como se a cadeira reservada ao juiz, que
ele é agora chamado a ocupar, fosse uma extensão natural do
púlpito que ele ocupa habitualmente, sempre muito considerado
pela comunidade, conduzindo as orações e fazendo soar o shofar,
sem nunca falhar.
Um murmúrio desapontado perpassa a comunidade quando
percebe como, graças a uma fina intuição, o visitante andaluz soube
escolher entre todos um juiz condescendente e pouco perspicaz que,
embora se distinga pela dedicação com que entoa as orações no
púlpito, mas não pela inteligência ou erudição, não poderá ser
recusado, pois quem poderá dizer que o membro da congregação
que se apresenta no púlpito diante dessa congregação e conduz os
seus rituais não possa também se postar diante dessas mesmas
pessoas investido da função de juiz de um tribunal rabínico? Porém
p j
alguns, e entre eles, claro, o senhor Lavinas, são tomados por um
novo temor, recordando que o escolhido não apenas é um viúvo que
conheceu o corpo de duas mulheres, ainda que uma após a outra e
não ao mesmo tempo, mas também foi candidato rejeitado ao
casamento com a acusada, a senhora Esther-Míriam, e que aquilo
que lhe foi recusado no passado pode vir a influenciá-lo
negativamente no presente.
O senhor Lavinas se precipita na direção do cortinado, onde o
rabino Elbaz está conduzindo o atônito rabino Yossef Ben-
Kalonymos, convidando ainda Abuláfia e Ben-Atar a tomarem lugar
um de frente para o outro, com a intenção de aproveitar o momento
de pasmo geral para dar início ao processo, que parece destinado a
ser um processo-relâmpago, e que transcorrerá apenas na língua
santa. Apavorado, o senhor Lavinas se dá conta da gravidade da
situação e da possibilidade de que o excesso de autoconfiança, seu e
de sua irmã, venha a permitir que o esperto rabino de Sevilha
consiga novamente um veredicto favorável em pleno coração de sua
terra natal. Assim, para ganhar tempo — um tempo precioso — e
confundir o rabino de Sevilha, profere um violento discurso no
dialeto local, ao qual se misturam palavras em hebraico, dirigindo-se
com veemência ao único juiz, que não pára de apertar com
apreensão, durante todo o tempo, o talit de listras cinzentas.
O discurso intempestivo e apaixonado do senhor Lavinas visa
obter a satisfação de uma única e simples exigência: que sua irmã, a
senhora Abuláfia, venha participar do tribunal, pois ela se considera
não menos parte litigante do que seu marido. Uma exigência que
provoca um tremor no coração do rabino Yossef Ben-Kalonymos,
que prefere remetê-la ao rabino estrangeiro, que o escolheu: é
possível que a esposa, de fato, estranha à sociedade, venha participar
do julgamento? Por um momento o rabino Elbaz parece perplexo. E,
mesmo não vendo a menor possibilidade de recusar o pedido, não
está disposto a dar seu consentimento sem nenhuma contrapartida.
E, num relance, sem mesmo saber o motivo, ele exige que a presença
da mulher no julgamento seja compensada pela presença dos três
ismaelitas, pois não apenas pela graça de Deus, mas também pela
graça da dedicação desses três marinheiros carroceiros, os litigantes
conseguiram chegar até ali sãos e salvos.
Agora toda a comunidade de Vermaíza se põe de pé, eletrizada,
para ver os três ismaelitas, convocados às pressas para virem à
sinagoga, entrarem no salão e serem conduzidos, um de cada vez,
para além do cortinado Enquanto todos os presentes murmuram
com devoção a bênção "Bendito seja o Criador dos seres diversos" à
passagem do jovem negro, já a senhora Esther-Míriam se esgueira
por uma porta lateral para além do cortinado O senhor Lavinas, que
por um momento se arrepende de ter permitido ao rabino Elbaz
encher de empregados gentios o pequeno espaço do tribunal, está
convencido de ter feito, apesar de tudo, a coisa certa, pois havia
muito tempo não via sua irmã tão sedutora e radiante quanto nesta
noite de sábado, postada ao lado da arca sagrada, o cabelo preso por
uma fina rede de seda Não foi só a noite dormida em seu antigo leito
nupcial que dissipou o cansaço da viagem e a raiva em relação aos
hóspedes meridionais que viraram sua vida de cabeça para baixo
Também as fervorosas orações, que encheram de alegria o ar úmido
e pantanoso de sua cidade natal, conseguiram suavizar suas rugas e
devolver o brilho às faces rosadas e aos olhos azuis, que agora
sorriem com amabilidade para o juiz de cabelos vermelhos, o qual se
recorda muito bem de como, vinte anos antes, os pais dela, que Deus
os tenha, recusaram concedê-la em casamento a ele.
Mais uma vez, como no sombrio salão do vinhedo, o senhor
Lavinas se investe do papel de mestre de cerimônias, convocando
antes de mais nada o acusador, Ben-Atar, para expor a queixa que
tão obstinadamente trouxe do distante Magreb Como desta vez o
próprio acusado não poderá servir de tradutor, pois em suas viagens
comerciais nunca chegou até estas paragens e portanto desconhece o
idioma local, o senhor Lavinas não tem outra alternativa senão
concordar que o rabino Elbaz traduza do idioma dos ismaelitas para
o dos israelitas, e vice-versa, embora sabendo muito bem que o
esperto rabino devera aproveitar todas as oportunidades para
reforçar e enfeitar as palavras no sinuoso caminho que vai de língua
a língua.
Mas quando Ben-Atar abre a boca e inicia seu discurso de
acusação, todos os presentes se espantam, e até o rabino tradutor fica
perplexo No lugar das conhecidas lamentações desfiadas no salão da
prensa de uva acerca do sofrimento do sócio muçulmano, da aflição
pelas mercadorias perdidas e da traição do sócio, que procurou o
pretexto dos sábios para engordar os lucros, o pertinaz mercador
passa a se referir, de repente, a fatos passados, como se não
houvessem existido os doze dias da difícil viagem por terra, do Sena
ao Reno, e como se este segundo processo não fosse senão a
continuação direta e lógica do primeiro Assim, o norte-africano
decide retomar a amarga e cruel linha argumentativa da senhora
Esther-Míriam, sua verdadeira adversária, que afirmara, no sombrio
salão de Ville-les-Juifs, que não fora a vergonha e a desgraça
advindas da maldição e do feitiço engendrados em seu ventre que
levaram a infeliz Primeira Esposa de Abuláfia a amarrar os pés e as
mãos com fitas coloridas para auxiliar as ondas em sua tarefa, mas
sim a ameaça velada de uma segunda esposa, justamente a mesma
ameaça para a qual ele procura agora a aprovação da sagrada
congregação.
Apesar de sua pouca experiência, o rabino Yossef Ben-
Kalonymos consegue entender por entre os meandros e floreios da
tradução do rabino Elbaz que este acusador moreno e robusto, o
sócio vindo do fim do mundo, quer começar tudo de novo aqui em
Vermaíza, e, ao preço da revelação de um velho segredo, erguer-se
em defesa não só do seu duplo casamento, mas da própria
instituição da bigamia, atacada que fora com arrogância pela esposa
do sócio, a qual, sem ser para isso solicitada, partira numa defesa
tardia da mulher suicida, para vingá-la. Subitamente, para surpresa
geral, ficou claro que a decisão de Ben-Atar de empreender a viagem
por terra firme e vir enfrentar um novo tribunal nas terras do Reno
não fora tomada em consequência do desespero de Abuláfia, ou em
virtude do desejo do rabino de reapresentar sua maravilhosa peça
acusatória, mas, antes de mais nada, para refutar, no coração da
cidade natal de sua adversária, as duras calúnias proferidas diante
da comunidade de Ville-les-Juifs.
Sim, pois quem melhor do que Ben-Atar poderá dar testemunho
das verdadeiras intenções daquela pobre pecadora? Naquele
infausto dia em que a pobrezinha veio à loja de tecidos deixar a filha
aos cuidados de Abuláfia para gozar de um pouco de liberdade e
procurar por entre as barracas dos nômades do deserto algum
talismã que pudesse lhe trazer bênçãos, ou consolo, não se dirigira
logo, como todos estão convencidos, dos muros da cidade até a
beira-mar, levando o anzol de cauda de elefante que comprara, ela
passara antes na loja de Ben-Atar com a intenção de apanhar a filha.
Porém, ao saber que nem mesmo durante sua curta ausência,
Abuláfia, o pai, conseguira permanecer ao lado da filha, e a deixara
sozinha entre os fardos de tecido, com a desculpa de estar sendo
esperado para as orações vespertinas na casa de estudos de Ben-
Guiat, a mulher fora presa de uma tristeza e de um desespero tão
profundos que não se conteve e retirou o véu para enxugar as
lágrimas diante de Ben-Atar, o querido tio. De fato, não só aquela
mulher jovem e bonita não temia que seu marido tomasse uma nova
esposa, como, pelo contrário, durante suas últimas horas de vida,
chegara mesmo a propor a Ben-Atar que a tomasse como segunda
esposa, para com isso facilitar ao marido a separação, pondo fim ao
temor de gerar mais um demônio enfeitiçado. No entanto, Ben-Atar
sabia muito bem que Abuláfia, com seu amor arrebatado, jamais
dana a ela seu consentimento, e assim recusou gentilmente a
proposta bizarra. Contudo, para acalmá-la, sugeriu que até a volta
de seu esposo da casa de orações ele próprio tomaria conta da
"amaldiçoada", enquanto ela voltaria ao mercado na tentativa de
encontrar um talismã melhor. Mas como poderia ele imaginar que,
em vez de ir ao mercado, ela iria diretamente para o portão dos
muros da cidade encontrar consolo entre as ondas do mar?
As últimas palavras do norte-africano caem sobre o piso da
sinagoga e se transformam em pequenas serpentes A senhora
Esther-Míriam, a mulher hostil, e o senhor Lavinas, o sábio irmão,
esboçam um novo movimento de desaprovação. Apenas Abuláfia —
que, em meio aos pântanos do no Reno, ouve, pela primeira vez na
vida, a terrível história de sua Primeira Esposa —, permanece
petrificado no lugar, com os lábios pálidos O confuso juiz, que não
p g p j q
sabe se o que foi ouvido corresponde de fato ao que foi dito, percebe
nitidamente a paralisia provocada pelo acusador no pequeno
tribunal, e, sem saber como agir, ergue-se do seu lugar e se aproxima
do cortinado, como se fosse pedir à congregação que lhe desse um
conselho salvador. Mas o rabino Elbaz se apressa em frustrar-lhe a
intenção, e num gesto cortês pousa a mão no ombro do perplexo juiz
para lhe transmitir alguma segurança Na sua opinião, ele ainda
continua a ser o homem certo, de quem se pode esperar que
confirme o primeiro veredicto, ali em Vermaiza.
Ao delicado toque do pequeno rabino, o rabino Yossef Ben-
Kalonymos resolve voltar ao seu lugar. Os mesmos olhos injetados
que antes foram tímidos demais para fitar a mulher que lhe fora
recusada contemplam-na agora em sua angústia diante do choque e
da paralisia que acometeram seu marido. Choque e paralisia que o
rabino Elbaz resolve aproveitar de imediato para comover o coração
do juiz, de maneira diversa e original. Pois, embora sentindo muita
vontade de voltar ao brilhante discurso do salão do vinhedo, que
fora proferido inclusive para o gordo mercador de Israel, de quem
sente bastante a falta, o rabino sabe que uma casa de orações de uma
congregação tão conservadora não deve ser o melhor lugar para
defender um homem rebelde e obstinado, que consegue abrigar em
sua alma a figura de uma Segunda Esposa de um modo tal que
nenhum edito rabínico poderá destruir. Assim, muda de repente o
rumo e vira a proa para o horizonte distante. Para materializar e
fortalecer a sua ideia, faz entrar os dois ismaelitas e o pagão negro,
que até agora se mantiveram calados e sem nada entender diante da
arca santa dos judeus.
De fato, reflete o rabino, se todos são judeus, como aqueles em
murmurante silêncio por trás da cortina, cuja fé é tão forte a ponto
de poder pela força de sua vontade férrea conseguir banir da
imaginação até mesmo as pontas dos dedos dos pés de uma Segunda
Esposa, isso vem demonstrar apenas sua vontade de dar um lugar
digno à figura do Amado Redentor, o Rei Ungido, que não necessita
de mil anos para juntar-se ao seu povo, mas tão-somente de novos
preceitos. Vejam, começa o rabino com entusiasmo a desenvolver
uma nova ideia que a rigor seria destinada apenas ao acuado juiz
q g p j
sentado à sua frente, mas que pelo volume da voz evidencia o desejo
de atingir a comunidade do outro lado da cortina, que prende a
respiração para não perder nenhuma palavra, meus mestres e meus
senhores, sagrada congregação, logo estaremos todos nós
retornando à Terra Prometida, terra de leite e de mel, onde não
existem pântanos borbulhantes e não se ouve o coaxar dos sapos,
mas sim os nos límpidos e a música dos rouxinóis. Lá se reunirão no
dia do Juízo Final, que se aproxima, não apenas judeus distantes
como vós, mas também, como está escrito e prometido, todos os
habitantes da Terra, também os gentios sedentos da palavra de Deus.
E os primeiros, naturalmente, serão os vizinhos mais próximos,
ismaelitas e maometanos, que no intento de agradar aos judeus
escolhidos e redimidos, que mantêm apenas uma esposa — como se
ela fosse o próprio Deus —, poderão se apressar a expulsar de casa
qualquer esposa em excesso, seja ela a segunda, terceira ou quarta.
Agora o rabino se volta para os três robustos navegadores, aos
quais os casacões negros e os chapéus pontudos que os judeus da
cidade os fizeram vestir não melhoraram em nada o seu aspecto nem
lhes abrandaram o espírito, só, ao contrário, os tornaram mais
selvagens. E, num tom lamentoso, ele pergunta e logo responde a si
próprio. Será justo macular a glória da redenção com o desgosto, a
dor e o sofrimento de tantas mulheres ismaelitas que se verão de
repente sozinhas e inconsoláveis? Como poderemos convencer
nossos bons vizinhos, ansiosos para participar da nossa redenção,
sem trair seus costumes e contrariar sua própria natureza, se não
provarmos a eles que existem alguns judeus, bons, suaves e justos,
que também mantêm duas esposas, e cuja integridade não depende
dos pensamentos de outros?
Neste ponto o cortinado vermelho se mexe levemente e o jovem
Elbaz, que ouviu de longe a voz possante do pai, dobra com cuidado
a barra do talit, entra sem ruído no recinto do tribunal e se coloca
entre seu pai e o rabino Yossef Ben-Kalonymos, seu anfitrião, como
se quisesse mediar entre os dois. O rabino Elbaz observa com
assombro o filho, que ajeita na cabeça o pequeno chapéu pontudo de
um jeito engraçado, um pouco extravagante. E volta os olhos para o
juiz, que dá um leve sorriso à entrada do menino. Agora, pensa o
j q g p
rabino Elbaz com esperança, deve ser agora o momento certo de
concluir e não dizer mais nada para conseguir tirar do coração do
sorriso desse juiz ashkenazita uma sentença iluminada e tolerante,
que permita à sociedade natural voltar a existir, seja por força da
antiga fraternidade, seja pela esperada redenção.
Na verdade, o leve sorriso que ilumina o juiz, o rabino Yossef
Ben-Kalonymos, à visão do filho do rabino, demonstra claramente
que a irritação e a angústia se dissipam em sua alma, e que o novo
encargo que lhe foi atribuído não só cessou de afligi-lo, como chega
mesmo a lhe agradar Pois está claro, pelo seu entendimento, que, se
o acusado Abuláfia persistir em seu silêncio e não tomar sua própria
defesa, ele será forçado a pronunciar, apesar de sua convicção, uma
sentença simples, lógica, que não poderá ser diferente daquela saída
do salão da prensa nas cercanias de Paris Portanto, aqui se faz
necessário adotar um novo procedimento Ele determina ao senhor
Lavinas que traga as duas esposas de Ben-Atar, a Primeira e a
Segunda, para um interrogatório secreto de testemunhas.
TERCEIRA PARTE

A viagem de volta ou a Única Esposa


Capítulo 1

No início do inverno daquele ano, em meados do mês de Shevat,


alguns dias depois de o advento do ano mil começar a fascinar com
toda intensidade a Europa cristã, o rabino Yossef Ben-Kalonymos
sofreu uma queda, e em pouco tempo deixou este mundo. Sua
esposa, então duas vezes viúva, repetia a todos os que a vinham
consolar, com uma insistência que beirava o desrespeito à memória
do morto, que o mal penetrara em sua casa no dia em que, num
momento de fraqueza, o marido, atendendo ao convite daquele
estranho rabino estrangeiro, tinha se disposto a servir de juiz no
maldito caso de bigamia do longínquo Sul. Desde aquele dia o
rabino Yossef perdeu para sempre a tranquilidade, seu espírito se
enfraqueceu e, por longas semanas depois da partida dos litigantes
de Vermaíza e da terra de Ashkenaz, perambulava como se afligido
por pesadelos, até que por fim os céus se apiedaram de sua alma e o
levaram.
Teria sentido remorsos pela sua sentença? Ou talvez estivesse
convencido de ter ido longe demais no intento de agradar à mulher
que em outro tempo lhe fora negada, como se a sua presença diante
dele na condição de ré, submetida a seu julgamento, tivesse
despertado sentimentos conflitantes que acabaram por se tornar
incontroláveis? A essa pergunta, a viúva inconsolável não poderia
responder, pois o marido nunca lhe contou, nem a ela nem a
nenhuma outra pessoa, o que na verdade ocorrera naquele
interrogatório conduzido com as duas norte-africanas a portas
fechadas. Talvez por ele próprio, até o dia de sua morte, não ter se
convencido de que as palavras que ouvira delas foram mesmo ditas,
e que o que elas expressavam fora bem compreendido.
Assim, depois que o rabino Elbaz, ladeado pelos robustos
marinheiros e pelo escravo negro, tentou impressionar o rabino
Yossef Ben-Kalonymos com a visão sombria dos dias de Juízo Final
atormentados pelos lamentos de mulheres ismaelitas abandonadas,
o perplexo juiz voltou a aproximar-se da congregação reunida além
do cortinado para sentir sua reação e, dessa forma, saber como
proceder e o que dizer. Porém, quando o pequeno Samuel apareceu,
vestido com suas novas roupas, usando o chapéu pontudo que lhe
conferia, malgrado a cor morena da pele, o aspecto de um
verdadeiro menino de Vermaíza, em tudo semelhante aos que
moravam ali havia muitas gerações, o rabino Yossef Ben-Kalonymos
de súbito compreendeu que não precisava do apoio da comunidade
postada além do cortinado, e que deveria encontrar em si mesmo a
sabedoria profunda e a autoridade que lhe permitissem fazer face
àquela situação A partir desse momento sua confiança se fortaleceu
de tal modo que a curiosidade de ver com os próprios olhos as duas
esposas tornou-se um dever imperativo.
Antes de mais nada, um dever para com a senhora Esther-
Míriam, radiante em sua angustiada beleza Embora não saiba se a
recusa em aceitá-lo em casamento partira apenas de seus pais ou se
também dela própria, o rabino Yossef não pode ignorar a sua
angústia, muito agravada neste momento pelo prolongado silêncio
do jovem marido de cabelos cacheados, de quem teme a traição.
Portanto, como um juiz imparcial, ele se sente na obrigação de dar
uma oportunidade à mulher que expressara o repúdio, e que voltara
à terra natal em busca de um julgamento justo. Ele não tem a
intenção de favorecer o amor de sua juventude, mas tampouco
pretende ignorar aquela face linda e delicada, cuja palidez lhe corta
o coração. Por fim ele pede ao senhor Lavinas que a faça sair junto
com todos os demais de sua presença, e introduza no pequeno
recinto do tribunal, iluminado pelas grandes velas, as duas esposas
do comerciante para um interrogatório a portas fechadas.
Parece que as mulheres da congregação de Vermaíza
aguardavam por este momento, pois mantinham as magrebinas
isoladas num estranho retiro desde a primeira noite, quando as
fizeram descer quase desmaiadas da carroça. Rapidamente as duas
mulheres foram conduzidas para a sinagoga, por ruelas diversas, e
Ben-Atar sentiu um aperto no coração ao deparar com as esposas
metidas em grosseiros casacões negros, os rostos descobertos, sem os
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pós que lhes escureciam os cílios ou os cremes que lhes azulavam as
pálpebras, sem os brincos ou as joias, como se as mulheres locais
tivessem se empenhado em privá-las do fascínio dos detalhes que as
diferenciavam urna da outra, mostrando-as iguais na sua nua
essência feminina, de modo a sublinhar com ironia a condição de
iguais no duplo casamento. Mas quando o comovido Ben-Atar se
precipita com um gemido em direção às esposas, espoliadas de seus
encantos, as mulheres de Vermaíza lhe atalham os passos com
firmeza, impedindo-o de se aproximar delas, como se sua intenção
fosse influir em seus testemunhos e não apenas lhes dizer algumas
palavras de carinho.
Assim, sem ao menos uma palavra de explicação, ambas são
conduzidas ao pequeno recinto do tribunal, esvaziado dos
contendores, e as fazem sentar uma ao lado da outra, de frente para
o juiz, que à vista daquela duplicidade explícita é tomado de grande
emoção e apenas com muito esforço consegue se conter para não se
levantar e sumir no seio de sua erudita comunidade, que continua a
acompanhar todos os seus movimentos por trás do cortinado opaco
Por não saber se o decreto rabínico que proíbe a permanência a sós
de homens e mulheres prevê o caso de duas esposas, ele mantém
junto a si o pequeno visitante, o jovem Elbaz, que servirá também
como tradutor.
De fato, mesmo sendo difícil levar adiante um interrogatório a
portas fechadas em que não haja um idioma comum, o rabino Yossef
Ben-Kalonymos está firmemente decidido a dispensar a tradução
fluente do rabino Elbaz por temer que o esperto andaluz possa
distorcer e manipular as respostas das mulheres e acabar por alterar
a verdade Prefere, portanto, contentar-se com o pequeno tradutor,
delgado e ingênuo, que reportará fielmente, ainda que sem grande
precisão, apenas as perguntas e as respostas, passando do hebraico
das orações ao ismaelita dos mercados. Ainda mais porque, depois
de uma longa viagem em comum, as mulheres e o menino devem se
conhecer bem, o que torna possível, mediante os gestos de seus
braços magros e as expressões do seu semblante, extrair da dupla
temerosa postada diante dele o testemunho incriminador que irá
substituir com vantagem o silêncio obstinado do acusado Abuláfia.
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Embora o cantor das orações da sinagoga de Vermaíza nunca
tenha interrogado uma testemunha em toda a sua vida, os escritos
do sinédrio lhe ensinaram que antes de mais nada se deve deixar a
pessoa bem à vontade, para amaciar a casca a fim de removê-la com
mais facilidade, de modo a expor o alvo miolo. Em tom calmo e
cordial pergunta a cada uma delas o seu nome, mas, não satisfeito
com isso, pergunta também os nomes de seus pais, de suas mães,
dos irmãos e irmãs, dos filhos e filhas, dos tios e tias, sem fazer
nenhuma distinção entre os nomes de vivos e mortos, ou entre
parentes próximos e distantes. Logo o espaço da sinagoga de
Vermaíza se enche de uma pequena congregação mediterrânea, que
paira, gêmea e no entanto adversária, sobre a congregação
ashkenazita, a sussurrar por trás do cortinado.
Entretanto, o rabino Yossef Ben-Kalonymos não se contenta
apenas com nomes e quer saber a idade de cada uma das pessoas
citadas. Essa é uma tarefa muito mais difícil, pois é preciso
considerar que não só a contagem exata dos anos de uma vida é
sempre velada de incerteza, mas também que a longa viagem por
mar, à qual se acrescentou um não pequeno trecho por terra, tornou
ainda mais vago o que, por sua própria natureza, já é tão incerto e
cheio de dúvidas. De tal maneira se misturaram os tempos, que
chegou a parecer, por momentos, que a Primeira Esposa era mais
jovem do que a Segunda, não fora o pequeno intérprete ter
conseguido recolocar as coisas nos devidos lugares. Assim, o curioso
juiz de Vermaíza pôde, embora por intermédio da frágil ponte que a
língua sagrada meio esquecida e os gestos exaltados de um menino
entusiasmado oferecem, penetrar no interior de duas casas
separadas, na paisagem da costa africana do Mediterrâneo, com seus
móveis e objetos, camas e cobertas, e procurar, para além dos
perfumes das flores, dos odores das especiarias e da algazarra das
crianças, o segredo infame e vergonhoso da bigamia.
Para isso o juiz pede à esposa mais jovem que se afaste, para que
possa ficar a sós com a Primeira — pois, ingênuo e inexperiente
como é na função de juiz, pareceu-lhe que ela seria o elo mais frágil e
vulnerável —, com a esperança de obter dela alguma queixa de dor,
alguma declaração de arrependimento, de mágoa ou de vergonha,
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de modo que a sentença a ser proferida pareça não apenas a
consequência natural do que foi exposto, mas até mesmo um
verdadeiro ato de salvação Todavia, o rabino Yossef Ben-Kalonymos
hesita em fazer a Segunda Esposa sair do recinto, antes de enfrentar
sozinho a ira da Primeira, que, agora ele sabe, tem a mesma idade
que sua esposa, e é da mesma altura, como pode ver. Hesita não só
por não saber se a presença de um menino que ainda não atingiu a
maioridade definida pelos preceitos basta para anular o edito de
proibição de proximidade, mas sobretudo pelo temor de que da
angústia da alma da Primeira Esposa possa prorromper diante dele
uma maldição mortal, secreta ou explícita, contra aquela mulher alta,
morena e esbelta, cujo rosto lembra o de um homem belo e delicado,
de olhos cor de âmbar nos quais por vezes cintilam reflexos de
esmeralda.
Parece então que a bigamia vinda do remoto Sul para se
defender ali nas terras do Reno contagia também o rabino Yossef
Ben-Kalonymos, que não consegue encontrar forças dentro de si
para retirar do recinto a Segunda Esposa, e a faz afastar-se apenas
alguns passos da Primeira. Como não pode colocá-la dentro da arca
sagrada, dá ordem, com a ajuda dos gestos do pequeno tradutor, de
retirar-se para um estreito nicho entre a arca sagrada e a parede
oriental e para cobrir a cabeça com um velho retalho de cortina
encontrado numa gaveta, a fim de que não ouça o que dirá contra ela
a suposta rival.
Porém, para sua surpresa, o rabino Yossef Ben-Kalonymos não
consegue extrair da Primeira Esposa nem sequer uma palavra de
crítica à Segunda, mesmo sabendo que esta não pode ouvi-la. Pelo
contrário, se até agora o amor pela outra permanecera distante, por
não terem tido ocasião de se conhecer melhor, no curso dos quarenta
dias de navegação em sua companhia a bordo do velho navio
patrulha e das doze jornadas de viagem em uma pequena carroça,
suas almas se uniram a ponto de poder declarar, sem sombra de
dúvida, que o duplo casamento, que veio ao coração da Europa
defender sua própria existência, retornará à pátria norte-africana
mais sólido e mais unido que antes Nem mesmo será mais
necessária sua separação em duas casas, lhes bastará apenas uma.
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Uma só casa?, espanta-se o juiz, que no mesmo instante pensa em
sua própria casa, torta, de madeira, com fardos de palha sobre o
telhado numa tentativa de contrabalançar sua inclinação, apoiada
sobre pilares de madeira escura, em cujos aposentos bem poderia vir
se abrigar mais uma esposa, de cabelos dourados, para que ele
pudesse reivindicar aquilo que havia vinte anos lhe fora negado.
Pelos sussurros que crescem por trás do cortinado, o
interrogador principiante adivinha que o público começa a dar sinais
de impaciência diante do seu zelo excessivo. Qualquer membro da
comunidade, ainda que guindado a alturas inesperadas embora
duvidosas, tem a obrigação, por sua natureza e educação, de conter
seus impulsos e não exceder os limites, e assim a congregação,
separada de sua arca santa, espera que o cantor que conduz as
orações e faz soar o shofar não esqueça que a sua límpida voz e o seu
conhecimento da ordem das orações não concedem à mediocridade
do seu juízo o direito de se desviar de suas obrigações.
Mas o rabino Yossef Ben-Kalonymos não esquece suas
obrigações e pede à Segunda Esposa que tome o lugar da Primeira
para que ele possa completar a tomada de testemunhos. Surpreende-
se, no entanto, quando percebe que ao dever vem se juntar certo
prazer, como se às duas judias estrangeiras, postas nesta noite em
suas mãos, viessem se unir outras, que foram parte de sua vida.
Como por exemplo a bela litigante que aguarda fora do recinto, ao
lado do marido, ou sua esposa, que o espera em casa, e até mesmo
sua primeira mulher, falecida, há muito tempo entregue à argila do
pequeno cemitério à margem do Reno, e que seu coração nunca
esqueceu. Por um instante parece que nos membros do rabino Yossef
Ben-Kalonymos formiga não só uma longínqua bigamia, mas
também uma poligamia real e verdadeira, e este é um momento
delicado. Assim, ele ordena ao menino, por meio de gestos, que
remova o velho retalho de cortina da cabeça da Segunda Esposa.
Embora preocupado com o edito rabínico da proximidade, supera
sua timidez, encaminhando a Primeira Esposa para trás do cortinado
e pede que a Segunda se aproxime para tentar obter ao menos um
grão de testemunho incriminador, que lhe torne mais fácil proferir
um veredicto no espírito dos sábios de Ashkenaz.
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Aparentemente essa esperança não era infundada, pois, ao
contrário da Primeira Esposa, parcimoniosa em suas palavras e
cautelosa no exprimir-se por temor de macular ou difamar o duplo
amor tão caro a seu marido, brota da boca da Segunda Esposa um
sussurro no idioma ismaelita, tão rápido e prolixo que o jovem
tradutor fica completamente desorientado e agarra com sua
mãozinha a arca sagrada, como se quisesse ali procurar um refúgio
Aos poucos se materializa a ideia de que nos porões do navio, além
do feto que prospera na barriga da jovem, também tomou forma,
silenciosamente, não uma súplica ou uma queixa, mas uma
exigência completa e rica, provinda de um sonho. E foi suficiente a
simples pergunta inicial do juiz de Vermaíza para que a ideia viesse
à luz, e aos borbotões preenchesse o pequeno espaço do tribunal,
que por um momento parece a ela ser imenso como o próprio
mundo.
Desde que o véu lhe fora tirado ela compreende, a julgar pelos
olhares que as pessoas lhe dirigem, não mais pelas costas, mas agora
também para o seu rosto, que ela não está só, e que tem muitos
parceiros em seu sonho. Embora não fosse instada a falar sobre ele,
ela se apressa em contá-lo ao rabino Yossef Ben-Kalonymos, que em
poucos momentos irá perder todo o autocontrole.
Assim como as mulheres de Vermaíza a despiram de seu véu de
seda fina na noite de Rosh Hashaná, ela se permite agora, na
despedida do shabat da Penitência, aliviar os ombros do peso do
manto negro imposto por aquelas mulheres sectárias e
intransigentes, e postar-se diante do juiz atônito, esbelta, com as
faces coradas, em sua túnica colorida de fino tecido bordado, um
pouco desbotada pela água do mar. Por entre a mistura ismaelita
judaica que brota de sua boca pequenina, aos poucos se revela a
verdade surpreendente vinda de uma mulher jovem de que ela não
apenas está disposta a ser uma das partes do duplo casamento, como
também deseja contrair um casamento duplo, e portanto, como ela
não abriga o menor ressentimento em relação à Primeira Esposa,
mas, pelo contrário, aprendeu a conhecer e estimar sua paciência e
seu coração generoso durante a viagem marítima e a terrestre, sua
alma se inflama com um ciúme terrível de um marido único,
possuidor de duas esposas, enquanto elas possuem um único
marido.
Neste exato momento o juiz curioso entende que talvez tenha
ido longe demais em seu zelo investigador, ao qual todavia não
consegue mais pôr um freio. É verdade que o rabino Yossef Ben-
Kalonymos não está nem um pouco seguro de que o jovem
intérprete, que se empenha na língua sagrada com gestos vigorosos
valendo-se de fragmentos de palavras lembrados do livro de
orações, esteja conseguindo traduzir corretamente as palavras
daquela mulher postada à sua frente com expressão corajosa. Ao
mesmo tempo percebe a raiva e a amargura que enchem o pequeno
recinto do tribunal e compreende que não é a bigamia o que ameaça
a Segunda Esposa, mas justamente a monogamia. Não conseguindo
conter a onda de curiosidade que o domina, e perdendo o
autocontrole, é levado a propor uma pergunta estranha. Um
segundo marido? Como quem, por exemplo? Enquanto se arrepende
da pergunta desnecessária, o jovem tradutor já se apressa a
responder, seja por iniciativa própria, seja por ter captado o sentido
na torrente de palavras em árabe, que jorra à sua frente: Como o
senhor, como o senhor, por exemplo...
A resposta é uma verdadeira flecha lançada contra ele, que o
atinge com uma estranha alegria, mas também o envenena com um
novo temor. Como se só agora o rabino Yossef conseguisse
realmente compreender a origem profunda e o fundamento da nova
proibição que uma comunidade inteira tenta lhe transmitir do outro
lado do cortinado- Não há duplicidade sem multiplicação. E não há
multiplicação que tenha um limite. Um tremor se apossa de todo o
corpo do rabino Yossef, e seu rosto empalidece à ideia de que a
mulher possa tentar transformar em ato sua ousada reivindicação,
que é no entanto correta à luz de sua própria lógica, e despir
também sua túnica mediterrânea. Assim, sem hesitar muito, ele se
apressa em recolher do chão o manto negro, e, embora sentindo
muita pena, envolve com decisão os ombros estreitos da jovem como
quem veste um doente perigoso. Depois, com toda força, puxa para
baixo a cortina que o separa de sua comunidade.
Como se tivesse chegado o momento de se levantar para a
oração, toda a congregação desperta por trás do cortinado que
desaba e se põe de pé. O rabino Elbaz se precipita em direção ao
rabino Yossef Ben-Kalonymos, e a ele vão se juntar, ainda um pouco
hesitantes, Ben-Atar e o senhor Lavinas. Só Abuláfia, o rosto
impenetrável, continua pregado no seu lugar, embora não abrigando
a menor dúvida de que é chegado o momento da decisão. O juiz,
com a face afogueada, pede ao rabino de Sevilha que empreste o
pequeno shofar escuro, antes de anunciar o veredicto. Apesar de
hesitar por um momento, como que pressentindo o pior, Elbaz não
pode recusá-lo a quem, havia menos de uma hora, nomeara juiz.
Com grande agitação, o cantor agarra o escuro chifre de carneiro
andaluz, que surge do bolso escondido por entre as dobras da túnica
puída. De olhos fechados, aproxima dos lábios o pequeno shofar,
como se quisesse antecipar e reforçar o veredicto iminente com
aquele som celestial. Foram ouvidos três toques mediterrâneos,
longos, suaves e tristes, seguidos de um breve silêncio que precede a
sentença, pronunciada sempre com os olhos fechados, com temor e
reverência: sentença não só de repúdio ao sócio vindo do Sul, mas
também de anátema e proscrição.
O rabino Yossef Ben-Kalonymos se exprime em duas línguas
para se fazer entender por todos. Primeiro volta-se para os seus
concidadãos, encorajando-os no idioma do lugar, lamacento e
marcial, misturado a algumas poucas palavras hebraicas,
fragmentadas e lamuriantes. E depois na própria língua sagrada,
com uma eloquência que não dá margem a nenhuma dúvida. Por
fim encerra o discurso com um rápido toque do shofar, antes de
devolvê-lo a seu atônito proprietário. Só então o silêncio opressivo é
quebrado por murmúrios de aprovação, em que se pode perceber
um sinal de reconhecimento a este modesto cantor das orações, que
ousou conduzir o seu rebanho até um horizonte longínquo, porém
claro. Enquanto o irado rabino Elbaz sussurra rapidamente em árabe
o significado da nova sentença para o comerciante cabisbaixo,
Abuláfia é tomado por uma vertigem e cai ao chão, desmaiado
Quando a senhora Esther-Míriam chama por socorro, o senhor
Lavinas toma o cuidado de se interpor rapidamente, à luz do novo
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decreto, entre ela e o tio renegado, ainda sem saber se o anátema
imposto havia pouco, e de maneira tão definitiva, engloba também
as duas mulheres, que voltaram a permanecer juntas.
Contudo, antes que os verdadeiros estudiosos das leis rabínicas
da congregação tentem descer às últimas implicações desse
veredicto, contra o qual, segundo a tradição, não existe nenhuma
possibilidade de apelação, os judeus de Vermaíza preferem separar,
ainda nesta mesma noite que se aprofunda à sua volta, o hóspede
banido do resto do mundo. Parece haver entre eles um estudioso
previdente que em uma das ruelas, não distante da torre da igreja, já
alugara um pequeno quarto na casa de uma viúva gentia para o
litigante derrotado. Nas trevas noturnas, à luz de uma tocha e ao
som do coro dos sapos do no, Ben-Atar é conduzido diretamente
para lá, em companhia do escravo negro, o jovem adorador dos
deuses, que aos olhos da congregação parece ser a pessoa mais
apropriada para acompanhar um renegado. Porém o rabino Elbaz, o
acusador furioso e desesperado, não está disposto de nenhuma
maneira a se separar do dono do navio destinado a levá-lo de volta à
terra de Sefarad, e o segue pela vacilante escada de madeira, não só
para consolá-lo e trocar ideias, mas para demonstrar publicamente
haver aqui um desprezo absoluto pelo boicote que fora imposto, a
ponto de lhe ocorrer o propósito vingativo de impor a sua proscrição
contrária sobre toda aquela congregação.
Entretanto, no pequeno quarto da velha gentia de olhos azuis e
cabelos grisalhos, que oferece ao pária judeu apenas uma cama e um
pedaço de pão macio, o rabino se sente na obrigação de dar de
imediato a seu patrão norte-africano, que nele confiou, trazendo-o da
Andaluzia para o auxiliar na renovação da sociedade rompida, um
conforto mais palpável do que as explosões públicas de raiva e as
loucas antevisões de vingança. Embora ainda não saiba exatamente,
apenas imagine o que se passou ao lado da arca, atrás do cortinado,
no decorrer do interrogatório secreto da Segunda Esposa, Elbaz
parece já ter encontrado uma solução aceitável para o mercador
proscrito, deixado sozinho, com um navio abarrotado de
mercadorias no coração desta Europa deserta e selvagem. Uma
solução talvez temporária, mas que permitirá, apesar de tudo,
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renovar a sociedade com o sobrinho querido, a quem a notícia da
proscrição precipitara ao chão como se ele próprio fosse uma jovem
donzela.
Como pode o pequeno rabino andaluz, que neste momento se
move às apalpadelas por um quarto torto e mergulhado em trevas
espessas, de apenas três paredes, onde, sabe-se lá, talvez ainda se
veja, pendendo de uma delas, a imagem do Crucificado, ousar expor
o expediente que concebera para ser usado apenas como recurso
extremo de salvação, ainda antes de ter persuadido Ben-Atar a sair
para o segundo turno do embate, às margens do Reno? Lágrimas de
comiseração e de revolta, mas também de secreta paixão, brotam
agora dos olhos do rabino Elbaz, ao pensamento desconcertante
porém generoso de libertar o renegado daquele duplo casamento
que o torna tão vulnerável, não só revogando o matrimônio com a
Segunda Esposa, como tomando-a ele próprio como esposa para
conduzi-la a Sevilha, salvando-a desse modo da infâmia e do
desamparo.
No entanto, enquanto o rabino Elbaz hesita, revolvendo em
segredo o pensamento daquela nova proposta, Ben-Atar pede que vá
logo à procura dos judeus de Vermaíza exigir que lhe devolvam as
duas mulheres que lhe foram tiradas Sua intenção é reuni-las a ele
sem demora, ainda que no pequeno quarto daquela casa gentia. O
pensamento do mercador renegado não está, de fato, voltado para si
ou para sua mercadoria, mas somente para as duas esposas que
ficaram sozinhas, talvez angustiadas com o temor de que o marido
tenha a intenção de renunciar ao seu duplo amor. A voz com que
Ben-Atar ordena ao rabino perplexo e desapontado soa tão dura e
autoritária que se tem a impressão de que, a partir do momento em
que o homem de Deus fracassou na sua missão, passou a não valer
mais aos olhos do mercador norte-africano do que o escravo negro
que neste momento retira os seus sapatos.
Capítulo 2

No terceiro turno da noite parece à Segunda Esposa ter ouvido o


som abafado do shofar, e seu coração se enche de medo. Enquanto
tenta se recompor no novo, estranho silêncio que a circunda, vê
pairar diante de si os olhos injetados do juiz de Vermaíza, a quem,
num momento de fraqueza, abriu o coração, revelando seus
segredos. E volta a se martirizar, não pelo que disse, mas pelo que
não chegou a dizer. De fato, o rabino Elbaz, que no princípio da
noite tivera não pouco trabalho para convencer os anfitriões
intransigentes das mulheres do Sul a devolvê-las ao marido
renegado, tentou acalmá-la e consolá-la pelas palavras proferidas no
tribunal, de cujo teor tomou conhecimento vagamente pelo filho, o
jovem tradutor. Mas à Segunda Esposa pareceu que o rabino havia
pronunciado apenas algumas poucas palavras de consolo, sem
muita convicção. Será que no fundo ele tinha a intenção de reuni-los
em um pacto de culpa? Elbaz sabia que deveria responder não só
pelo fracasso do seu discurso apocalíptico, mas igualmente pela
escolha equivocada do juiz, um homem que camuflou a sua fraqueza
com uma sentença apressada e cruel. Ou quem sabe brotou em seu
coração o propósito de, por meio de palavras tranquilizadoras,
encorajar a jovem a prosseguir expondo sua ideia da contra bigamia,
que reivindicava para si mesma, somente para ver até onde ela seria
capaz de chegar?
De qualquer maneira, as palavras de consolo só conseguiram
confundi-la ainda mais. Agora, levanta-se silenciosa da enxerga de
palha que a hospedeira cristã providenciara para as visitantes
inesperadas, apressa-se em vestir o pesado manto negro que lhe fora
oferecido pelas mulheres do lugar, e passa pelo marido, que dorme
encolhido como um grande feto, entre duas imensas toras de
madeira trazidas do canto do quarto. Ultrapassa a Primeira Esposa,
entregue a um sono de pedra, com as mãos juntas, encostada numa
fina e comprida coluna de ferro que, mesmo inclinada, sustenta o
teto do cubículo triangular, e entra no quarto vizinho. Não é só a
praga rogada pelo interdito que a Segunda Esposa pretende anular,
pretende também reparar aquilo que arrumara com suas palavras
impensadas. Ela não calça as sandálias, leva-as na mão, e sai sem um
ruído, descalça, burlando a vigilância da dona de casa cristã, que
passou a noite sentada numa ampla cadeira, enrolada numa pele de
urso negro, cuja cabeça empalhada está pendurada na parede sob a
imagem do Crucificado, que parece suportar grandes tormentos até
mesmo durante a noite.
A velha percebe aquela sombra furtiva e por um momento abre
os olhos. Mas não chega a se perturbar pela fuga da judia
estrangeira, que agora desce a escadinha de madeira, oscilante e
barulhenta, para se dirigir às ruelas estreitas e escuras da cidade
adormecida, que não aguardam nenhum transeunte, muito menos
aquela estrangeira, surgindo da proeminente sombra da igreja
envolta em neblina amarelada. Corajosamente, a Segunda Esposa
persegue o seu objetivo encontrar entre as pequenas casas do lugar a
moradia dos cordiais hospedeiros que a cumularam de atenções
desde sua chegada a Vermaíza, há quatro dias, para que a levem à
casa do juiz, a fim de que ela possa implorar que ouça aquilo que ela
não teve tempo de lhe dizer. Talvez assim o rabino Yossef Ben-
Kalonymos anule o veredicto adverso, pelo qual ela é a única
responsável. Apesar da escuridão e dos miasmas dos pântanos que
confundem a seus olhos os becos da pequena aldeia, ela reconhece a
porta certa, onde bate sem hesitar.
Porém ninguém ouve, nem nesta casa nem nas casas vizinhas, as
batidas débeis da Segunda Esposa, pois os judeus de Vermaíza
dormem agora o sono profundo de quem por fim encontrou a paz,
depois dos dias tumultuados por que passaram Como se houvessem
conseguido, pelo banimento e a proscrição, varrer de seus corações
as novas e maravilhosas sugestões de pecado trazidas à sua cidade
pelos que vieram do Sul, em busca de justiça Assim, à Segunda
Esposa, cujos chamados não são atendidos, não resta outra
alternativa senão encontrar sozinha o caminho para a sinagoga,
primeiro a pequena e modesta sinagoga das mulheres, onde se
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ajoelha durante longo tempo, como fazem os ismaelitas, no intuito
de manifestar total submissão antes de apresentar qualquer pedido.
Então se ergue e entra com passos hesitantes na sinagoga dos
homens pela parede ocidental ainda inacabada. Esgueira-se por
entre os bancos vazios, e por fim é atraída pelo espaço estreito entre
a arca sagrada e o muro oriental.
É possível que o coração atormentado da norte-africana tenha
adivinhado que também ao juiz, o rabino Yossef Ben-Kalonymos, o
sono abandonaria nos meandros desta noite? E que em parte por ter
recobrado as forças, em parte por um resquício de remorso, não se
contém e, na agonia trêmula do terceiro turno da noite, levanta-se e
vem até o púlpito de orações preparar-se para o shaharit do jejum de
Guedália, mas também para reunir-se, de corpo e alma, ao lugar
onde ainda ontem três mulheres aguardavam ansiosas as palavras
que haveriam de sair de sua boca? Depois de ter recolhido do chão o
cortinado vermelho e unido suas pontas, para beijar longamente,
com unção, as letras bordadas em fio dourado sobre o veludo
esmaecido, dobrando-o em seguida com todo cuidado para recolocá-
lo no lugar, o rabino Yossef Ben-Kalonymos não deixa escapar
nenhum grito de espanto ao deparar com a presença inesperada da
testemunha da véspera. Quase como se fosse natural esperar, após
um veredicto tão duro, as súplicas da parte derrotada — a jovem
estrangeira que se ajoelha agora à sua frente qual uma pagã
ignorante.
Seus olhos de âmbar procuram encontrar os olhos avermelhados
do rabino, que esvoaçaram sobre ela nos pesadelos, e sem demora a
Segunda Esposa começa a falar. Mas como desta vez não há nenhum
tradutor que a possa auxiliar, ela entremeia ao rápido ismaelita que
flui de sua boca duas ou três palavras que se repetem nas orações de
Rosh Hashaná. Por um momento imagina que o cantor das preces da
congregação, ao se inclinar para ela e ouvir suas palavras,
compadecido e atento, possa também entender, às primeiras luzes
da manhã que atingem as janelas amareladas, a natureza e o espírito
da contra bigamia que ela reclama, não apenas para si própria mas
para todas as mulheres. Pois enquanto o homem procura a
duplicação do corpo, a mulher procura a duplicação da alma, até
mesmo na forma da minúscula alma abrigada agora em seu útero.
Será que um homem confuso e temente poderia, ainda que
tivesse ao seu lado o mais perfeito dos tradutores, entender, ao raiar
da aurora, uma nova explicação para aquele testemunho obscuro
que lhe fora dito à noite? E o medo de que apareçam agora na
sinagoga os membros madrugadores da congregação, para os quais
três dias intensos de festividades religiosas não bastaram, e
encontrem aquele que encaminha suas preces postado diante da arca
sagrada em atitude de total intimidade com a esposa de outro
homem, embora apenas com uma das duas? Por essa razão, o rabino
Yossef nem se aventura a compreender o que a Segunda Esposa
tenta lhe dizer em seu idioma ismaelita; antes de mais nada, apressa-
se a levantá-la delicada mas firmemente, e a fazê-la sair do local
sagrado, que lhe é interdito.
Porém a Segunda Esposa resiste e, com braços que ainda
revelam o bronzeado intenso dos longos dias de sol passados no
mar, ela se agarra com todas as forças ao púlpito, até ficar claro para
o juiz que o julgamento ainda não terminou. Apesar de
constrangido, ele é obrigado a empregar a força para separar os
braços da jovem. Ao notar que ela ainda persiste, e que mesmo
separada à força do púlpito continua ajoelhada, abraçada aos seus
joelhos, o rabino Yossef é atacado por um tremor convulsivo, e com o
rosto ruborizado empenha todas as forças para tentar se libertar. Em
vão. Ao sentir a força com que a mulher continua se aferrando,
decide tirá-la do recinto que lhe é vedado, saindo dali em pequenos
passos e arrastando-a consigo para o pátio lateral de um velho
estábulo. Só ali, entre um céu opressivo e o odor dos excrementos,
ele consegue afinal se desvencilhar da obstinação de seus braços e
pernas, que vieram arranhando o assoalho de madeira áspera da
sinagoga durante todo o caminho. Gaguejando na língua sagrada,
ele pede não apenas o perdão dos céus, mas também o perdão da
jovem, por tê-la arrastado e por ter ousado tocá-la. Como as
expressões de perdão e remissão estão presentes em quantidade nas
orações do Ano Novo recém-festejado, a Segunda Esposa pode
adivinhar o teor das palavras daquele estrangeiro que lhe fala com
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grande emoção. Mas seu intuito é apenas de se desculpar, sem
arrependimento e sem pedir a sua compreensão, quando a deixa só
na neblina da manhã impregnada de frias gotículas da nova chuva.
Exausta e abandonada, as mãos e os joelhos arranhados no piso
de madeira escura, a Segunda Esposa começa a fazer seu caminho de
volta por entre as casinholas de madeira da aldeia, tortas e
parecendo um pouco irreais. Embora o casaco, dado pelos habitantes
locais, a proteja das rajadas da chuva, ela não consegue esquecer a
humilhação imposta ao pequeno feto, que há pouco fora arrastado
junto com ela, e, ainda não podendo aceitar palavras de perdão de
ninguém, por um momento parece exigir da jovem mãe que o
vomite agora mesmo de dentro dela Acometida de fraqueza, ela \ ai
se esconder entre as colunas de madeira que sustentam uma das
casas, e lá, à sombra dos arbustos daninhos e do mato que vice;a na
terra pantanosa, ao lado de um córrego que traz em sua água gelada
toda sorte de objetos usados e trastes velhos, a Segunda Esposa
começa a vomitar para o mundo tudo o que há dentro dela,
determinada porém a reter a pequena alma que foi concebida pelo
desejo de um homem em seu constante ir e vir entre a popa e a proa
de um velho navio patrulha.
Aquele homem, contudo, que ainda não sabe o que foi por ele
concebido. continua mergulhado num sono profundo, que, embora
insuficiente para anular a proscrição que pesa agora sobre ele, pelo
menos a atenua. A Primeira Esposa, que já despertou e nota a
ausência da Segunda, hesita em acordar o marido, que teima em
manter o rosto enfiado no colchão de palha seca, mas fresca. Apesar
de passados mais de vinte anos desde sua noite de núpcias, e já
tendo podido observá-lo muitas vezes em pleno sono, nunca seu
coração se apiedara tanto como agora, ao vê-lo, pela primeira vez,
com o rosto enterrado na palha do colchão. Ela olha pela porta
aberta e aguça os ouvidos para escutar os passos da Segunda Esposa
que retorna, para que possa assim despertar o marido para uma
aflição apenas, e não duas.
Porém os passos da Segunda Esposa não surgem, e a Primeira
Esposa começa a entender que é necessário apressar-se e fazê-la
parar, antes que se precipite a um ponto de onde não há retorno. Ela
p q p p p
fita Ben-Atar com piedade, e ainda lhe concede alguns momentos de
inocência antes de começar a retirar, com mão leve e cuidadosa, os
fragmentos de palha que lhe restam na barba e no cabelo. Por um
instante, o vermelho dos olhos do mercador norte-africano que se
abrem se parece com o vermelho dos olhos do juiz que o julgou com
tanto rigor. Mas, ao que tudo indica, ele se lembra muito bem do
lugar onde está, e não esquece o motivo que o trouxe para cá Tão
logo se ergue da cama seus olhos alertas dão por falta da Segunda
Esposa. Ela saiu responde a Primeira Esposa, em voz contida, para
não alarmá-lo. Esperei por ela, mas não voltou.
O comerciante de Tânger, em cuja memória ainda persiste o
repentino desaparecimento de uma jovem, sabe que deve se apressar
para contê-la antes que ela se aproxime da margem do no, como é o
dia do jejum de Guedália, não é necessário deter-se para considerar
se o pedaço de pão preto oferecido pela dona da casa gentia é ou não
kasher. Ben-Atar faz apenas uma leve mesura de agradecimento e
recusa. Veste o casacão negro sobre a túnica clara e sai em busca da
mulher desaparecida. Não precisa ir muito longe para encontrar
judeus que se apressam para o serviço matutino, e que se espantam
ao deparar, à primeira luz da manhã, com o visitante renegado.
Apesar do constrangimento e da pressa que os levam a evitá-lo, não
conseguem ignorar o pânico verdadeiro estampado na face do
homem que se dirige a eles na língua santa claudicante e pede ajuda
com gestos frenéticos.
Entretanto, como evitam qualquer conversa com ele, conversa
que poderia quebrar a proscrição ainda tão recente, os judeus
apavorados não se aproximam. Apertam os passos e se esquivam
dele, mas não o ignoram, pelo contrário, apressam-se a avisar o
rabino Elbaz para que atenue, com suas virtudes e sua erudição
andaluzas, o anátema imposto pela região do Reno, e lhes explique o
que está perturbando a tranquilidade daquele judeu do Sul, de quem
muito se compadecem. Ao saber pelos homens de Vermaíza do
desaparecimento da Segunda Esposa, toda a comunidade é tomada
de pânico e solidariedade, e passa a exigir que a oração matutina seja
apressada, para que se possa reunir um grupo grande para sair à sua
procura e devolvê-la ao marido. Mesmo sendo ela a causa do
p
anátema e da proscrição, a notícia de seu desaparecimento alcança a
sinagoga e galga o púlpito, compelindo o rabino Yossef Ben-
Kalonymos a encurtar de vez os seus floreios e confessar sem
hesitação aos seus companheiros tudo o que se passara havia pouco
diante da arca sagrada.
Os judeus se animam um pouco, pois, pelo modo como as coisas
se apresentam, fica excluída a possibilidade de um sequestro — algo
que fisga todo coração judeu com um duplo terror. Resta então a
possibilidade de ela ter se perdido, ou fugido. Como não transcorreu
muito tempo desde o encontro da madrugada entre a mulher e seu
julgador, surge a esperança de que ela não tenha ido muito longe.
Mas antes de dar início à procura, alguns judeus mais rigorosos
desejam estar certos de que o anátema pronunciado recaiu apenas
sobre o marido, e não sobre as esposas, caso contrário eles estariam
procurando por algo proibido. Neste caso seria melhor envolver na
busca alguns gentios, talvez até mesmo os visitantes ismaelitas, que
ainda não despertaram para sua oração matinal. Assim, para maior
segurança, eles também são chamados. Primeiro são trazidos, das
casas que os hospedaram, os dois másculos carroceiros, Abd el-Shafi
e seu companheiro. Depois, trazem o jovem pagão, que no mesmo
instante, e sem nenhuma hesitação, segue o rastro da desaparecida,
cuia fragrância se fizera muito familiar para ele nos longos dias da
viagem. Não se passa muito tempo até que ele consiga localizar o
ponto em que caiu a Segunda Esposa, um espaço sombrio, com um
mato alto e cheio de trastes velhos, entre os pilares de madeira que
sustentam uma das casas.
Encontram-na muito enfraquecida mas sã e salva, apesar de
alguns arranhões profundos nos braços e nas pernas. Embora o
jejum de Guedália ia tenha começado, os judeus de Vermaíza
querem pensar-lhes as feridas, dar-lhe de beber, e as mulheres
insistem em conduzir a pobre jovem para dentro da casa sob a qual
ela se refugiara, para alimentá-la e fazer com que restaure as forças
antes de tomar o caminho de volta. Porém Ben-Atar não permite que
ninguém toque em sua Segunda Esposa, e, como a proscrição proíbe
que se dirijam a ele com palavras, torna-se impossível convencê-lo.
Ele permanece ereto, altivo e impávido, e ordena aos seus ismaelitas
p p
que se apressem a preparar as carroças e arrear os cavalos. Por um
momento parece que não foram aqueles judeus que lhe impuseram o
anátema, mas, pelo contrário, foi ele que o impôs à congregação. Pois
ele parece evitar até mesmo fitar os olhos daqueles que o rodeiam,
incluindo os olhos claros do senhor Lavinas, cujo sorriso permanente
lhe desapareceu do rosto no momento em que o chamaram. Mas
onde estão Abuláfia e sua nova esposa? Será que foram proibidos de
vir até aqui? Ou quem sabe querem apenas poupar-se da tristeza da
despedida definitiva do tio derrotado e soturno, porém firme em sua
decisão de se pôr a caminho agora mesmo?
É impressionante ver a rapidez e a perfeição com que se prepara
a pequena caravana. Foram suficientes dois ou três comandos do
judeu meridional para levar os três ismaelitas a uma ação febril e
coordenada, e sacudir o rabino Elbaz para que se ponha à procura
do filho. Os judeus de Vermaíza, exaustos pelo início do jejum de
Guedália e confusos com aquela manhã singular, rodeiam os dois
carroções e lamentam que lhes sejam tirados aqueles visitantes
extraordinários e pitorescos, que trouxeram tantas emoções e
alvoroço com sua presença. Pode-se mesmo dizer que, no fundo do
coração, teriam gostado imensamente de conservar seus morenos
visitantes pelos dez dias de penitência, e quem sabe até passar com
eles os dias festivos. No entanto sabem muito bem que o veredicto
de uma corte rabínica, ainda que proferido às pressas, será válido
para sempre, sem direito à apelação. Quem sabe então se não é
melhor que o renegado e sua comitiva tomem logo o caminho de
volta, aliviando-os da aflição da despedida.
Até que Ben-Atar se ponha a caminho e a aflição seja esquecida,
os moradores de Vermaíza se apressam a encher os carroções dos
norte-africanos com todo tipo de comida e bebida, cobertores e
agasalhos, velas e utensílios, pequenos castiçais de prata e vinho
para as bênçãos e os rituais. Ainda que o anátema os proíba de tocá-
los e de lhes dirigir a palavra, eles se esmeram em trazer pequenos
presentes para as mulheres, e acrescentam sacos de cevada para os
cavalos, que já farejam com suas largas narinas os ares da estrada
que se estende à sua frente Mas onde está Abuláfia? A esse
pensamento o coração angustiado de Ben-Atar estremece. Onde se
p g
terá ocultado o sócio querido? E onde está a esposa de olhos azuis,
que conseguiu transformar o seu repúdio em ruptura definitiva?
Será que estão sabendo, neste momento em que a névoa sobe do rio
próximo e penetra a Floresta Negra, que seus tios os estão deixando
para sempre, que logo desaparecerão do horizonte ocidental,
prosseguindo rumo ao Sul?
O senhor Lavinas considera seu dever avisar a irmã da súbita
partida de Ben-Atar e seus companheiros, e também se apressa em
obter de um brilhante estudioso das Escrituras, o rabino Kalonymos
Ben-Kalonymos, permissão especial para uma rápida despedida
particular de Abuláfia com seu tio renegado Abuláfia, porém, rejeita
essa oferta generosa E não apenas se recusa a sair do quarto, como
permanece deitado no antigo leito nupcial de sua esposa, recusando-
se mesmo a vir até a pequena janela onde Esther-Míriam, de repente,
sente-se sufocar pelas lágrimas ao ver como Ben-Atar implora aos
judeus de Vermaíza que cessem de trazer mais e mais presentes e
oferendas, de tudo de bom que há no mundo, às duas carroças que já
atolam na argila macia das proximidades do Reno.
Ainda que o desejo de Abuláfia seja abraçar longamente seu
querido tio e suplicar perdão ao sócio que retorna agora de mãos
vazias às praias azuis de sua terra natal, a alma deste homem de
cabelos cacheados, que ainda não colocou os tfilim nem disse a
oração vespertina, anseia por um novo encontro com a segunda tia,
pois só ontem, na confissão inesperada e melancólica de seu tio Ben-
Atar, pôde afinal Abuláfia penetrar o segredo que ela guardava.
Mesmo que a Segunda Esposa de Ben-Atar volte a cobrir o rosto com
o véu, e que se cubra com dois ou três casacões, não poderá nunca
mais ocultar de Abuláfia a visão que se aninhara nela a da figura de
uma mulher adorada e infeliz, amada pecadora, que se afogou,
desnuda, condenando-o, como vingança, ao exílio em uma terra
distante. Portanto ele deve investir todas as forças em permanecer
pregado a este velho leito nupcial que range sob seu peso, pois bem
sabe que, se for a derradeira despedida de seu tio, talvez não consiga
se conter, e tal como se sente, triste, sensível e melancólico,
arrancaria de Ben-Atar a Segunda Esposa para extrair de dentro dela
aquela silhueta, e arremessa-la, se não a água salgada do mar de sua
cidade, ao menos à água doce deste rio da sua nova esposa.
Abuláfia sabe que é melhor aguardar até que o chiado das rodas
dos carros de Ben-Atar desapareça no ar. Esse mesmo chiado intriga
o carroceiro-chefe. Abd el-Shafi, que tem uma sensação
desconhecida, como se o solo estivesse segurando as rodas das
carroças. Assim, quando chegam naquela mesma tarde a praça do
campanário da cidade de Spira, onde não vive um único judeu,
decidem aliviar os carroções da sobrecarga e colocar à venda, para os
habitantes locais que os rodeiam curiosos, boa parte dos presentes
com que foram cumulados pela compaixão de uma comunidade
inteira. Ainda que a distância que separa Vermaíza de Spira não seja
maior que algumas léguas, os presentes da aldeia vizinha despertam
um interesse muito grande, e são logo transformados em
mercadorias Ben-Atar se surpreende com sua própria habilidade, ao
ver como consegue, mesmo desconhecendo o idioma, os hábitos e os
costumes da região, vender roupas usadas dos judeus de Vermaíza,
frascos de mel, candelabros de cobre opaco, garrafas de vinho ritual,
e receber em troca, seguindo o conselho de Abd el-Shafi, uma mula
velha mas robusta, sobre a qual é colocado o jovem negro, para que
siga à frente do comboio e fareje o caminho certo, aquele que há
duas semanas os viu passar no sentido contrário.
Estão agora sozinhos numa região desconhecida, sem contar
com o idioma teutônico nem o franco da senhora Esther-Míriam, e
sem a experiência acumulada por Abuláfia em estradas e viagens. Só
podem contar com o pouco latim do rabino Elbaz, o olfato do jovem
escravo, aguçado no deserto, e o conhecimento que os dois lobos-do-
mar têm dos ventos e da trajetória das estrelas. O lom Kipur, que já
vem brilhando diante deles qual uma tocha negra e ameaçadora, os
induz a acelerar o passo para cruzar a fronteira entre a Lotaríngia e a
Franquia a tempo de buscar refúgio entre os judeus de Rheims, aos
quais a notícia da proscrição, assim esperam, ainda não alcançou.
Não há razão para o patrão da pequena comitiva não conseguir
levar a cabo esse modesto plano, pois a carga nos dois carroções
diminuiu bastante, não só pela ausência dos dois passageiros que os
baniram, mas também pelos presentes que foram vendidos com
p p q
maestria, e logo transformados naquela mula de pelos longos que
lidera o comboio com grande garbo, levando no dorso a figura
esguia de um perito batedor que fareja, feliz e orgulhoso, o caminho
a seguir. Apesar de tudo, Ben-Atar ainda sente uma carga nova e
desconhecida prender as rodas que vão sulcando, entre campos e
colinas, o desfiladeiro prateado do vale do Saar. Mas a verdade é que
fica difícil explicar o que, ou quem, os atrapalha em seu avanço.
Primeiro suspeitaram dos ventos outonais que por vezes trazem a
chuva fina e prolongada. Parece no entanto que essa chuva só ajudou
a elevar o ânimo dos marinheiros carroceiros, que logo estalam o
chicote sobre o pelo molhado dos cavalos.
Apenas na terceira parada para o repouso noturno, próximo à
aldeiazinha de Saarbrücken, não longe da igreja octogonal que a
emocionada senhora Abuláfia reconhecera como sendo o portal para
a região de sua infância, foi que Ben-Atar conseguiu entender que o
enigmático retardamento do seu comboio não estava no movimento
dos aros das rodas pela terra molhada, nem no afrouxamento do
ritmo dos cavalos, mas sim numa causa espiritual. Primeiro cogitou
que o motivo fosse a depressão causada pelo anátema e pela
proscrição, que, embora já previstos e considerados passíveis de
acontecer, o abateram muito pela forma com que foram impostos, de
um só golpe, e por uma pessoa tão simplória. Contudo, aos poucos
foi se consolidando nele a ideia de que aquilo que os prende não é
algo que esvoaça sobre os carroções, é algo que se encontra bem
dentro deles, como o silêncio permanente da Segunda Esposa,
deprimida e aninhada junto à lateral da carroça, metida em dois
casacões negros, e que insiste com teimosia, noite após noite, em não
provar da comida preparada pela Primeira Esposa. De fato, a
princípio está bem clara a causa de sua melancolia — dois arranhões
profundos que sulcam suas pernas esbeltas, sinalizados por
pequenas pérolas de sangue coagulado. Mas será apenas a dor física
o que a impede de tomar parte no jantar em companhia dos demais
viajantes, ou quem sabe também a humilhação e o ressentimento
pelo ocorrido?
Mesmo que não revele o testemunho secreto prestado naquela
turbulenta noite do processo, ela suspeita que a verdade já tenha
p p q j
sido revelada a seu marido, seja por Elbaz, seja por seu filho, o
pequeno intérprete, que, demonstrando grande compaixão, traz para
ela, da fogueira, uma bandeja fumegante com o cozido de carne. No
entanto, o olhar lançado pela Segunda Esposa ao pequeno
mensageiro é alheio e distante. Ela se agasalha ainda mais,
apanhando o manto negro da Primeira Esposa sobre o banco ao seu
lado, e o coloca sobre os dois casacões de Vermaíza que já está
vestindo. Teima em manter a boca cerrada, não só para não provar
dos pratos que lhe são preparados pela Primeira Esposa, como para
não deixar escapar nenhum grito de desespero pelas palavras
proferidas atrás do cortinado naquela noite terrível. E ainda pelas
que tentou acrescentar pela manhã, no mesmo lugar e para o mesmo
homem, cujo dever era ouvi-la, e não feri-la.
Para quem poderá revelar aquilo que dali em diante não será
mais compreendido? Talvez só para o minúsculo ser concebido sobre
as ondas do mar, que naquele momento, envolto pela membrana do
útero, reclama veementemente por mais calor de sua mãe, a qual,
tiritando de frio, tenta com todas as forças buscar mais calor dentro
de si, para seu feto e para ela própria. Novamente, neste momento,
como em todos os outros desta jornada, vem aos olhos da sua alma o
rosto inocente daquele que em alguns meses deixará de ser seu
único filho, a criança querida que deixou sob a guarda de seus pais
em Tânger, e que talvez não tenha ainda esquecido sua mãe. Mas
com certeza já esqueceu o pai, que levanta agora o toldo da carroça
para saber como vai a Segunda Esposa, e se provou da comida que
lhe foi servida Ao notar que a bandeja permanece intocada, ali
mesmo onde a colocaram, seu espírito se revolta Todo o
ressentimento e a culpa que ele nutre contra ela por causa da contra
bigamia que ela ousou reivindicar para si própria — duplicidade de
corpos, supõe ele erroneamente, e não duplicidade de almas —
explodem contra a recusa da jovem em provar do cozido que lhe
fora servido.
Agora ela entra em pânico, pois parece que ele já se dispõe a
alimentá-la com suas próprias mãos, e contra sua vontade, o que
jamais acontecera. Ela começa a soluçar, mas baixinho, para não ser
ouvida pelo pequeno grupo reunido à volta da fogueira, e
p p q g p g
especialmente pela Primeira Esposa, que pede que Abd el-Shafi lhe
explique o movimento das estrelas no céu. O jovem Elbaz, porém,
ouve o choro abafado vindo da carroça fechada, e seu coração se
aperta no peito, e antes que seu pai, o rabino, possa impedi-lo, ele já
levanta a ponta do toldo para ver como o dono do navio e
comandante da expedição ajuda sua Segunda Esposa a sentar-se e a
alimenta com a carne preparada pela Primeira Esposa, que de
repente se cala.
Porém altas horas da noite, quando todos os viajantes estão
mergulhados no sono mais profundo, a Segunda Esposa se levanta e
se afasta em direção a uma árvore, onde está preso por uma corrente
enferrujada um pequeno filhote de chacal, que se aproximou no dia
anterior para comer os restos da refeição da caravana e foi apanhado
pelo escravo negro, com o consentimento tácito de Ben-Atar, para
servir de mascote em lugar do camelo que ficara no barco. O
animalzinho, que já se familiariza com os viajantes, uiva e abana a
cauda à aproximação da Segunda Esposa e, sem hesitar, lambe tudo
o que ela vomita do cozido que fora forçada a engolir. Só então ela se
sente aliviada. Muito pálida, lutando contra as sucessivas ondas de
frio e calor que a percorrem, ela respira o ar gelado da noite outonal,
e observa uma fogueira distante, de outra caravana, numerosa, que
transporta escravos do Oriente para o Ocidente.
Por fim ela retorna a seu lugar na carroça, volta a vestir todos os
agasalhos empapados de suor, fecha os olhos buscando um pouco
de descanso, sem imaginar que seus passos tenham despertado o
rabino de Sevilha, que acompanhou seus movimentos pelas frestas
no toldo da segunda carroça. Por um instante Elbaz cogita em
despertar Ben-Atar de seu sono e contar-lhe sobre um jantar que não
atingira seu destino. Mas se contém, como se não quisesse se
antecipar e mencionar para qualquer pessoa, nem mesmo o próprio
marido, os débeis primeiros sinais da doença que se revelaram na
noite profunda e encheram seu coração, no meio da Europa sombria,
com as antigas e nostálgicas recordações dos últimos dias de sua
falecida esposa. Pela manhã, entretanto, ao lavar o sono dos olhos no
pequeno riacho, ele depara com a Segunda Esposa ocupada em lavar
sua túnica, e não se furta a perguntar com tímida simpatia como ela
p g p
está, e mesmo recebendo dela um sorriso agradecido, como se não
abrigasse nenhuma inquietação, ele percebe pelo rubor que se
espalha pelo seu rosto sincero que a febre voltara a arder em seu
corpo.
Sim, desde que as mulheres de Vermaíza as obrigaram a despir
os véus do rosto, as magrebinas não se apressaram a recolocá-los.
Não apenas por ter visto como as mulheres podem, de cabeça
erguida, expor a face até mesmo na presença do próprio Deus, mas
sobretudo por ter o grupo de viajantes, na viagem de volta,
estreitado ainda mais os laços, vindo a se transformar numa grande
família, que dispõe de três servidores e um rabino, que pode ser
considerado um parente próximo, um irmão Atai ponto o rabino
Elbaz se preocupa com o bem-estar da Segunda Esposa que insiste
com Ben-Atar para que divida a viagem em trechos menores, de
modo que ela possa descansar, como se não os esperasse uma
sinagoga no lom Kipur que se aproxima, mas sim um cemitério
Assim a viagem se torna mais lenta, e com a oração da noite do
quarto dia, Ben-Atar se vê perscrutando um horizonte, no qual a luz
rósea do poente lança seus últimos fulgores sobre os muros da
cidade de Me , a cidade onde planejara passar a noite que se
aproxima. Mas pode ele se dar o direito de ignorar aquela febre?
Basta colocar a mão na fronte de ambas as esposas para compará-las
e perceber a ameaça que pesa sobre a Segunda Esposa. Sobre o seu
belo rosto, não obstante os esforços para dissimular o mal-estar e os
amáveis sorrisos que dirige ao marido e a todos que perguntam pela
sua saúde, é impossível não notar o singular tom azulado, sintoma
de um mal provocado pelos excrementos sobre o chão do velho
estábulo, que infectaram o seu sangue ao penetrar pelos arranhões
profundos nas pernas.
Na manhã do quinto dia, na véspera do dia da expiação que se
aproxima, depois de horas insones ao lado da fogueira que envolveu
com fumaça sua profunda inquietação, Ben-Atar toma uma decisão
arriscada. Em vez de ficar dando voltas, humilhado e embaraçado,
entre os judeus da cidade de Me , que se aproxima, para saber se a
notícia do anátema o havia precedido, trata de prosseguir com
energia para a cidade seguinte, a pequena cidadezinha fronteiriça de
g p g p q
Verdun, de maneira a encontrar-se próximo, em caso de necessidade,
da casa daquele estranho médico renegado que havia mostrado
tanto interesse pela disputa dos judeus do Sul e do Norte durante a
viagem para o Reno. Talvez até seja possível ouvir diante da casa
solitária do médico, próxima à igreja, reflete Ben-Atar tratando de se
reconfirmar no acerto de sua decisão, a maravilhosa melodia a duas
vozes, que naquele dia encantou a Segunda Esposa com a sua
harmonia e talvez possa agora elevar-lhe o ânimo. Mas como o
norte-africano não está seguro de que exista em Verdun uma
quantidade de judeus suficiente para o minian, divide sua pequena
comitiva em dois grupos a carroça menor, com a esposa que arde em
febre e aquela que goza de saúde, ele próprio conduzirá até a
cidadezinha da fronteira, enquanto o rabino Elbaz e seu filho serão
enviados para Me , a cidade favorita do rei Carlos Magno, para
reunir, em troca de moedas de ouro, e também como forma de
mi vá, oito judeus dispostos a completar o quorum de dez homens,
necessário à realização das orações, tal como os oito judeus que
Benveniste costumava levar em Tish'á beAv desde Barcelona até as
ruínas da velha estalagem romana. Dessa maneira o dia sagrado
poderá ser comemorado em uma comunidade particular, embora
temporária, obtida com o melhor de seu dinheiro, e que nenhum
anátema poderá perturbar.
Em pleno sexto dia, véspera do lom Kipur do ano 4760 da
criação do mundo pela contagem dos judeus, no nono mês do ano
999 do nascimento daquela maravilhosa e sofredora criança, que
com sua morte foi destinada a magnetizar tantos corações, o
mercador norte-africano já identifica a ponte de pedra sobre o no
Meuse, que em sua margem oriental lambe as muralhas de pedra e
cal da pequena Verdun. Ainda que a notícia da proscrição tivesse
precedido a sua chegada, Ben-Atar não teria nenhuma razão para
temer o médico, que não aguardou até que os judeus intolerantes o
expulsassem, antecipando sua própria expulsão. Enquanto os
cavalos estacionam no mesmo local onde estacionaram na viagem de
ida, a alguns passos das sentinelas lotaríngias reluzentes em suas
armaduras e suas espadas, ele dá ordens ao marinheiro carroceiro e
ao jovem negro que guardem zelosamente as duas mulheres, que se
j g q g q
acomodam recostadas às rodas da carroça, para descansar da
extenuante jornada e respirar um pouco do ar frio do outono.
Depois, sem muitas mesuras, entra pelo portão da muralha,
atravessa o campo repleto de sepulturas de escravos que vieram
encontrar ali sua morte e se apressa a chegar à casa isolada ao lado
da igreja, a do médico Karl-O o Primeiro, cuja condição simultânea
de gentio e não-gentio lhe confere grande vantagem aos olhos do
judeu mediterrâneo, que acredita serem suficientes algumas poucas
palavras na antiga língua santa para convocar seu socorro.
E o socorro é urgente e necessário. Pelos calafrios que percorrem
a Segunda Esposa, e que ele sentiu ao ajudá-la a desembarcar da
carroça, o marido emocionado se dá conta de que não foi só ele que
não dormiu a noite passada, mas também a doença, com a qual ele
trava combate. Portanto, se há ali alguém que se considera médico,
que apareça logo, mesmo se possuidor de pouca competência. E de
novo, como da outra vez, ele encontra a porta da casa aberta. Na
penumbra da sala dupla, debaixo da imagem de cerâmica do
persistente Crucificado, ele volta a observar a longa fileira de frascos
cheios com pós e poções multicoloridos, e de tenazes e pinças de
ferro cinzento, como se tudo ali estivesse às ordens e pronto para vir
a seu socorro, exceto pelo próprio médico renegado, que ainda não
se encontra.
Mas a esposa do médico está presente, e sem esforço identifica o
estrangeiro de túnica branca, pois apenas duas semanas se passaram
desde que esteve ali. Novamente perpassa por Ben-Atar um tremor à
semelhança desta mulher com a senhora Esther- Míriam, que lhe
impôs uma derrota definitiva. O que não o impede de saudá-la com
respeitosa mesura e pronunciar o nome do médico, de que se
recorda. A mulher faz um gesto de assentimento, para confirmar que
sim, seu marido, o médico, está vivo e passa bem, e a expressão de
seu rosto é de tristeza, como se ainda não houvesse se reconciliado
com a deserção. No entanto Ben-Atar não tem tempo para meditar
sobre os remorsos alheios, só para o pedido urgente de socorro.
Estende a mão em direção à estrada de onde veio, fecha os olhos,
pende a cabeça para uma cama imaginária e dá um leve suspiro,
como o de uma mulher doente. A esposa do médico arregala os
p g
olhos e acompanha emocionada seus gestos, mas ainda não reage.
Então o mercador norte-africano dá mais um passo em sua direção,
aponta para o sol que brilha no meio-dia, e em seguida aponta para a
direção onde o sol vai se pôr, e sussurra num hebraico perfeito, em
um tom de quem implora, Véspera de lom Kipur, e volta a sussurrar
mais e mais vezes, lom Kipur, lom Kipur e tampa a boca com a mão
para indicar à mulher o que será em breve proibido àqueles que não
renegaram sua religião, caso ela houvesse esquecido aquilo que já
conhecera. Com certeza porém, não havia esquecido, pois logo faz
um gesto de assentimento e se apressa a colocar uma capa sobre os
ombros, faz entrar na casa os dois filhos que brincam fora e os tranca
com uma grande chave, e conduz o viajante vindo do Sul ao centro
da pequena Verdun, ao encontro de seu marido, o médico.
Ben-Atar segue as pegadas da mulher pelas ruelas estreitas de
Verdun, e em seu caminho passam por um grande mercado de
escravos, onde guerreiros e agricultores regateiam o preço de eslavos
pagãos, louros e de olhos azuis, amarrados a uma grande pedra. Os
habitantes locais sorriem para a esposa do médico e indicam uma
grande casa, na qual ela não hesita em entrar em companhia do
visitante. É uma mansão de nobres, que os recebem com
demonstrações efusivas de carinho e apreço e os conduzem ao
pavimento superior, para um salão forrado de tapetes, em cujas
paredes pendem inúmeras espadas. No centro há um grande e largo
sofá, onde está sentado um venerável cristão, as mãos cruzadas
sobre o peito e os olhos fechados, ouvindo com toda atenção e um
sorriso nos lábios as palavras do médico convertido, ocupado em
extrair sangue de seu pescoço enquanto conversa.
O comerciante judeu pensa que talvez seja esta a salvação de sua
Segunda Esposa extrair dela um pouco de sangue para tentar
acalmá-la. E dá um passo em direção ao médico, para poder
observar melhor seu trabalho. Mas o médico, que já vira a esposa e
seu acompanhante, lhes faz um sinal discreto, indicando que sabe da
urgência que os trouxe em busca de socorro, e, assim que terminar o
trabalho, descerá para encontrá-los Ben-Atar lhe faz uma profunda
mesura, mas desiste de tentar descrever sua aflição na língua
sagrada. Em vez disso fecha os olhos, inclina a cabeça para uma
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cama imaginária, estremece e dá um leve suspiro, como o de uma
mulher doente. Em seguida, aponta para o horizonte, em direção ao
poente, onde logo estará o sol, e volta a dizer lom Kipur, lom Kipur.
Capítulo 3

Ainda não está claro se foi a aproximação do dia do Perdão ou


apenas a curiosidade em rever aqueles judeus tão diferentes dos que
provocaram sua deserção e que tanto o emocionaram no encontro
anterior que o fez adiar uma nova sangria que estava marcada em
outra mansão de nobres e apressar-se a ir ao encontro da doente que
o espera fora dos muros da cidade. De fato, a cena da jovem
recostada na roda da carroça lhe faz ver que o temor de seu esposo é
bastante justificado. Durante sua curta ausência seu estado piorou
não só o leve tremor dos ombros não cessou, como até mesmo a luz
suave do outono europeu já a incomoda, fazendo-a pedir à Primeira
Esposa que procure o véu de seda esquecido e lhe cubra o rosto e os
olhos. Ao levantá-la para que seja examinada pelo médico de
Verdun, Ben-Atar nota que suas costas magras enrijecem um pouco
entre suas mãos.
Os olhos do médico não se voltam de imediato para a enferma,
antes procuram o rabino andaluz que poderá traduzir em língua
culta a descrição dos males da mulher norte-africana, quedando-se
com a cabeça ligeiramente inclinada para aliviar a dor, e que
também poderá lhe contar como terminou a grande disputa com os
judeus do Reno, ajudando-o assim a compreender o que aconteceu
com a jovem. Porém o rabino andaluz desapareceu sem deixar
rastro, e também a carroça maior e a mulher do repúdio, delicada,
mas de olhar penetrante e expressão severa, que mostrou desprezar
sua nova fé, enfurecida por tudo o que ele abandonara. Assim não
resta ao médico outra alternativa senão tentar entender por
intermédio da velha e trôpega língua das orações de seus
antepassados que dores afligem a jovem esposa, cujos olhos
vermelhos indicam claramente quão melhor seria para ela não estar
num descampado, à margem do rio Meuse, sob o olhar das
sentinelas, mas repousar em um leito, na penumbra de um quarto,
pois não há dúvida de que algo ou alguém provocou um
envenenamento do sangue.
Embora não seja conveniente para um cristão convertido receber
judeus em sua casa, mesmo se acometidos de doença grave, o
renegado não consegue reprimir a piedade que sente por esta
mulher, nem tampouco o desejo de aprofundar e estender seu
conhecimento acerca desses judeus tão diferentes e interessantes.
Propõe então a Ben-Atar que a levem à sua casa, pois ali lhe será
mais fácil combater a doença com a ajuda dos pós, poções e
instrumentos preparados para salvar a vida humana, que por vezes
parece ser apenas uma sombra furtiva ou um sonho fugaz. E melhor,
na opinião do médico, que a Primeira Esposa também os acompanhe
para poder lhes preparar uma refeição de acordo com os preceitos
judaicos, visto que em toda Verdun não é possível encontrar um
único judeu.
Ben-Atar, vendo como eram justificadas suas próprias
preocupações, fica aliviado ao ouvir os conselhos do médico que, na
sua opinião, não foi diminuído nem em autoridade nem em
humanidade pela deserção. Por não acreditar, desde o início, que o
rabino Elbaz seja capaz de convencer, mesmo em troca de moedas de
ouro, oito judeus da comunidade de Me a deixar suas famílias e
sua casa de orações, em plena noite de lom Kipur, para percorrer as
trinta milhas que os separam de uma cidadezinha fronteiriça, a fim
de compor uma congregação temporária à beira da estrada em
resposta ao pedido de um judeu estrangeiro cuja esposa caiu doente,
decide que não há mais sentido em aguardar fora dos muros, já que
o rabino andaluz recebera a clara instrução de não se apressar a
voltar caso não conseguisse cumprir a missão de que fora
incumbido. Será melhor para ele passar o dia do Perdão ao lado do
filho no seio de uma santa comunidade, arrependendo-se dos
próprios pecados, purificando-se por meio das orações e
conclamando todos a acompanhá-lo nas súplicas ao Todo Poderoso,
para que restabeleça a saúde da enferma e conceda serenidade
àquela que tem saúde, pois sem dúvida as orações do defensor de
um renegado devem ser mais eficientes do que as do próprio
renegado.
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Ao entardecer, quando o sol declina lentamente, indo das terras
da Lotaríngia em direção à região da Champagne, também o
comandante da guarda se apieda da jovem enferma e concede
permissão à carroça estrangeira para transpor os portões da cidade.
Lentamente os dois cavalos vão avançando por entre as lápides dos
eslavos pagãos, mortos na escravidão, e com extremo cuidado o
marinheiro carroceiro conduz a carroça até a praça da pequena
igreja. Na entrada da casa, a esposa do médico observa os recém-
chegados, enquanto sob o seu amplo avental escondem-se os dois
filhos, que parecem verdadeiros lotaríngios, porém um pouco mais
tristes. Com firmeza, Ben-Atar recusa a ajuda do vigoroso ismaelita e
do jovem pagão, aceitando apenas o amparo dos fortes e cálidos
braços da Primeira Esposa para carregar a mulher doente, em cujos
lábios aflora um sorriso leve e triste ao ver a casa que há apenas duas
semanas tanto a encantara. Por um momento seus passos hesitam,
como se esperasse ouvir novamente aquela melodia de duas vozes
distintas, embora mescladas em uma única, que foi cantada na
soleira desta mesma porta em pagamento a uma cura bem-sucedida.
Com extrema lentidão a Segunda Esposa é introduzida na casa
do médico e delicadamente deitada sobre uma cama estreita, da qual
aproximam a bacia de ferro, onde cintilam grandes seixos do rio.
Enquanto Ben-Atar cobre a esposa com os dois casacos negros com
que os judeus de Vermaíza os presentearam, o médico não perde
tempo e vai espargindo ervas medicinais aromáticas em torno dela e
fazendo-a beber uma poção amarela como gema de ovo. A jovem,
sem esboçar nenhum gesto de rebeldia, bebe o líquido amargo até o
fim. Pela primeira vez desde que deixaram Vermaíza, um belo
sorriso aflora em seus lábios, como se quisesse dizer a todos que a
rodeiam: Agora nós todos ficaremos bem. Profundamente comovido,
Ben-Atar retira-se a um canto escuro do quarto para enxugar as
copiosas lágrimas de gratidão que lhe assomam aos olhos. A
penumbra e o silêncio parecem fazer bem à enferma, e também a
bebida amarela parece surtir efeito, pois os espasmos nos ombros
começam a ceder. Aliviado, o mercador já se dispõe a oferecer ao
médico de Verdun um adiantamento de seus honorários, sob a forma
de uma pequena pedra preciosa. Mas este, sabendo que diante dele
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está um judeu generoso, e de posses, que não tem intenção de pagá-
lo com melodias, sejam de uma ou de duas vozes, declina, por
enquanto, com um sorriso tranquilo, o adiantamento que reluz na
meia obscuridade, como que dizendo: Na hora certa.
Enquanto isso, no pequeno campo atrás da igreja, o ismaelita e o
jovem pagão não descansam, e preparam para os judeus a última
refeição antes do jejum. Uma fumaça esverdeada sobe dos ramos e
espinhos da fogueira, sobre a qual a Primeira Esposa prepara um
caldo rosado em um grande caldeirão. Ben-Atar se apressa a ir ao
mercado da cidade para ver se ainda consegue comprar alguns
pombos brancos, a fim de que os arrulhos de suas pequenas e puras
almas possam expiar os crimes e os pecados de todos. De novo a
garganta se aperta e correm lágrimas à lembrança do sorriso da
esposa enferma, que o aguarda solitária na casa do médico em quem
deposita toda a confiança, quase como se fosse um membro da
família, ainda que viesse a se revelar um charlatão. Sim, murmura
para si mesmo o surpreso Ben-Atar, como se fosse um membro da
família, volta a dizer em tom de amargo desafio, como se o
obstinado fantasma do anátema que o segue desde Vermaíza
pudesse transformá-lo um pouco, a ele também, de repente, em um
renegado.
Mas não a ponto de se furtar a cumprir, com todo o rigor,
mesmo nestas circunstâncias tão difíceis, os preceitos deste dia
santificado e terrível que desce lentamente sobre o mundo. Assim,
no mercado de Verdun, Ben-Atar apalpa atentamente a carne das
pombas lotaríngias, que se debatem apavoradas em suas mãos.
Depois de ter enchido uma cesta com uma dúzia dessas aves
destinadas ao sacrifício expiatório, bem amarradas umas às outras,
ele segue ao encontro da carroça, experimentando um momento de
intensa angústia à vista dos tirantes caídos no chão, sem os cavalos.
Será possível que os dois pagãos tenham se aproveitado de sua
ausência e fugido com os animais? No entanto a segurança e o
espírito confiante, que o envolvem como uma saudável placenta
envolve o feto no ventre da mãe, levam-no a se tranquilizar: seus
ismaelitas não sumiriam com os cavalos, apenas os levariam a pastar
em algum prado próximo. Sem hesitar, segue para o pequeno campo
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atrás da igreja, onde, sob a luz de chumbo de um céu ameaçador,
avista a Primeira Esposa, sozinha, descalça, curvada sobre o fogo,
com a veste amassada e enegrecida pela fumaça, a mexer
pacientemente, com uma grande colher de pau, o caldo preparado
pelos pagãos, enquanto o calor das chamas colore com um vivo
rubor o rosto seno e triste, chegando quase a queimar uma mecha
que se solta do cabelo.
Passaram-se mais de setenta dias desde que o velho navio
patrulha, que navegou veloz e valentemente pelo oceano imenso e
bravio em direção a uma cidade perdida chamada Paris, zarpou do
porto de Tânger No decorrer desse tempo. mesmo levando em conta
todos os temores e transtornos que assaltaram os viajantes durante a
longa travessia, tanto por terra como por mar, Ben-Atar não
conheceu momento mais amargo e triste do que este. Banido, no
coração de uma terra estrangeira, longe da embarcação repleta de
mercadorias atracada no porto de Paris, o mercador encontra-se
sozinho, sem rabino nem fiéis para as orações, sem sócio e sem
sobrinho, sem empregado nem capitão, nem cavalos, nem
comunidade, nem sinagoga Tudo isso a algumas horas somente da
noite de lom Kipur, em um terreno dos fundos de uma igrejinha
construída com toras de madeira cinzenta Ah, naquele pátio,
observa, com o coração partido, a companheira de sua juventude
lutar com um caldeirão fumegante como se fosse uma serva, e pensa
na Segunda Esposa, que, naquele momento, sofre na casa escura de
um médico renegado Embora deseje, com todas as suas forças,
infligir-se uma punição pelo que o seu obstinado empenho causou
com a insistência em provar ao mundo inteiro o seu grande amor
pelas duas mulheres e pelo sobrinho de cabelos encaracolados, sente
que não tem o direito, nem no momento do fracasso nem no da
vitória, de subestimar a força do destino que o acompanha, para o
melhor e para o pior, desde o dia em que nasceu.
Sim, não obstante sei este o desejo do seu coração, o mercador
norte-africano não é pretensioso a ponto de atribuir a si mesmo toda
a culpa e a completa responsabilidade pelo que aconteceu, como se
fosse o único e verdadeiro senhor de seus atos Além disso, sabe
muito bem que, ainda que se ajoelhasse diante da Primeira Esposa,
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batendo no peito e confessando a própria culpa, isso apenas a
deixaria confusa e aflita, sem saber o que fazer nem com a culpa nem
com o culpado Ao contrário, se continuar a condenar o destino cego
e fortuito que às vezes fere e maltrata, e que outras, beija e acaricia,
ela irá assentir e saberá como reconfortá-lo. Sem raiva, rancor ou
arrependimento, ela recordará, na noite santa, a doçura e a pureza
da luz da sua cidade natal mergulhada no azul, e a alvura das
roupas de seus dois filhos, que após a ceia serão levados à sinagoga
do velho tio Ben-Guiat. E se aquele mesmo destino quiser, é possível
que dentro de alguns dias todos eles embarquem no navio atracado
no porto daquela cidade pequena e perdida, para empreender a
viagem de volta à terra natal, enquanto a água do grande oceano os
irá purificando de toda proscrição ou da proscrição imposta pelos
judeus da Floresta Negra, tão seguros de si mesmo sendo tão
poucos.
Assim falaria a Primeira Esposa, se Ben-Atar fosse capaz de
vencer o seu orgulho para pedir-lhe que o console. Palavras que
poderiam aliviar um pouco a angústia que o acompanha, causando-
lhe grande perturbação, desde que deixaram a região do Reno. Com
o coração cheio de amor, Ben-Atar se aproxima da mulher robusta e
descalça, curvada sobre o caldeirão, cinge-lhe os ombros cheios e a
afasta gentilmente do fogo, que por um instante parece querer segui-
la.Tira então da bolsa uma pomba branca, corta com os dentes o fio
que a prende às outras, segura-a pelos pés avermelhados e a faz
girar sobre o cabelo emaranhado da Primeira Esposa, que cerra os
olhos em gratidão. Esta é a tua substituta. Esta é a tua permuta. Esta
é a tua expiação. Esta pomba encontrará a morte e tu encontrarás e
trilharás o caminho de uma vida longa e feliz, e terás paz. A seguir,
assim como o ilustre tio Ben-Guiatse encarregava de degolar, de um
golpe, com uma lâmina afiadíssima, o cordeiro sacrifical diante dos
membros da família purificada, assim também Ben-Atar empunha
sua faca e decepa a cabeça da pomba, entregando o corpo, de onde
ainda corre sangue, à Primeira Esposa, que espera até que cesse o
bater das asinhas para depená-la e prepará-la como parte da refeição
que antecede o jejum, junto com as pombas que expiarão os outros
membros de sua pequena família. Já uma pomba é colocada por Ben-
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Atar entre as dobras de sua túnica, e mais uma vai se juntar a ela,
pois a mulher doente, ao encontro de quem ele se dirige, necessita de
um duplo sacrifício de expiação.
Ah, no quarto escuro, Ben-Atar encontra a Segunda Esposa da
mesma maneira que a havia deixado, mergulhada em um sono
tranquilo e profundo, como se a poção amarela que o médico
renegado a tinha feito beber já tivesse surtido efeito. Mas ele hesita
em puxar dos recessos de sua túnica as pombas que havia preparado
para a expiação da mulher doente, pois ao lado de sua cama
encontra, para seu espanto, não apenas o médico, mas também um
padre vestido de negro, que a notícia da chegada dos viajantes
judeus à casa do discípulo converso fez vir às pressas, para impedir
o cristão-novo de recuar, ou de se arrepender. Assim o médico Karl-
O o Primeiro deve demonstrar a seu mestre catequizador que não
foi nenhuma atração oculta por sua antiga fé que o fez acolher
aqueles judeus em sua casa, mas tão-somente um puro e simples
senso de dever como médico em relação a uma jovem que sofre e
que por casualidade pertence a uma comunidade de judeus
Contudo, estes são judeus bem diferentes, súditos de longínquos
ismaelitas, que não têm a menor intenção de se fixar em Verdun nem
em qualquer outro lugar, desejando, ao contrário, deixar a Europa o
mais rápido possível e ir para muito longe dali.
Porém nenhum sacerdote, e muito menos este, de aparência
severa e olhar arrogante, poderia crer, e nem lhe seria permitido, na
existência de outro tipo de judeu, mesmo que sua origem se encontre
em um continente negro e distante. Considerando que todos os
judeus são iguais no seu entender, segundo o princípio que os criou,
ele deve manter uma vigilância permanente e rigorosa para que seu
protegido, que abandonou por vontade própria a crença daquela
seita de cegos e vagabundos, assassinos de Deus, por uma fé de
redenção e piedade, não seja levado a acreditar que poderá haver
redenção para estes judeus. Nem mesmo para os que exibam o ar
nobre e triste do norte-africano moreno que, entrando no quarto,
sabe dispor de pouco tempo, a julgar pela luz cinzenta que se filtra
pela janela, para despertar, com doçura mas com firmeza, a Segunda
Esposa, erguendo-a no leito e fazendo girar, primeiro sobre a cabeça
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da jovem, depois sobre a sua própria, como um pagão selvagem,
duas pombas brancas, enquanto diz a antiga bênção. Estas são
nossas substitutas. Estas são nossas permutas. Estas são nossas
expiações. Estas pombas encontrarão a morte e nós encontraremos e
trilharemos o caminho de uma vida longa e feliz, e teremos paz.
Não, não há tempo para se deixar intimidar pelo olhar atônito e
aterrorizado do médico, nem pelo leve sorriso desdenhoso que se
insinua no rosto do sacerdote. É necessário executar o ritual até o
fim, cortando, uma após a outra, as cabeças emplumadas. Os
olhinhos ainda piscam, curiosos, quando Ben-Atar as atira, vertendo
sangue, ao piso de terra negra, na frente da cama, na certeza de que
possuem, não menos do que aquela cintilante fileira de frascos
multicores sob a imagem do Crucificado, a faculdade de curar.
A jovem mulher continua sentada na cama, aturdida e
ruborizada, a argola dourada rebrilhando em seu nariz como uma
pequena estrela na penumbra, e ela ainda está incerta se aquele
sacrifício comum pela expiação dos seus pecados e os do marido
deve ser considerado um sinal de desespero ou, ao contrário, de
grande esperança. Obediente, segura nas mãos o odre de pele de
cabra que ele lhe entrega, cerra os olhos e sorve devagar a água,
anuindo com um ligeiro sorriso de aprovação à notícia, sussurrada
em árabe ao seu ouvido, de que está prestes a ser servida a refeição
preparada pela Primeira Esposa, refeição que não se destina apenas
a saciar a fome e alegrar a alma, mas, antes de tudo, a devolver a
todos, e principalmente a ela, mulher tão amada, as forças que a
abandonaram quando, em Vermaíza, foi proclamado o anátema,
sentença que aparentemente só dizia respeito ao marido bígamo,
mas que na realidade recaiu sobre todos eles.
Ben-Atar não se demora à cabeceira da Segunda Esposa, embora
sua vontade seja de permanecer e acompanhar sua recuperação.
Deve ir entregar à Primeira Esposa as duas pombas sacrificadas,
para que as acrescente ao cozido que fumega sobre as chamas da
fogueira e já deixa sentir seu aroma. Lá fora as nuvens se abrem,
deixando entrever o sol pálido da tarde, cujos raios brincam sobre
ele por alguns momentos. De repente desponta uma lágrima nos
olhos do mercador norte-africano, como se um novo raio de
esperança iluminasse sua angústia e desespero. Uma esperança
despertada não apenas pelo meigo sorriso que aflorou no rosto
afogueado da Segunda Esposa, ou pela antevisão da ceia que vai
quebrar o jejum, e que está sendo preparada pela Primeira Esposa,
mas também à vista dos dois cavalos e da mula que retornam do
pasto e chegam ao descampado atrás da igrejinha de madeira
cinzenta. O coração do chefe da caravana bate aliviado ao ver seus
dois servidores trazerem de volta os animais que lhe pertencem,
como se realmente tivesse tido medo de que pudessem ter fugido
com eles. Por sua cabeça passa a singular ideia de cumprir um
sacrifício também para os dois pagãos, fortalecendo-os assim para o
dia do Julgamento que se aproxima, no caso de as forças celestiais se
confundirem, e os tomarem também por judeus. Ordena então que
se aproximem e inclinem a cabeça diante dele, tira da grande bolsa
mais duas pombas, segura-as pelos pés e dá três voltas sobre a
cabeça negra, semelhante a um ovo, do jovem idólatra, e mais três
sobre o imundo turbante azul do marinheiro carroceiro. Para que
não se pense que sua intenção foi a de submetê-los a algum tipo de
feitiçaria secreta com fins malignos, volta a girar três vezes as
mesmas pombas, desta vez sobre a sua própria cabeça, traduzindo
no mais puro árabe uma versão abreviada da antiga bênção, antes de
cortar rapidamente as cabecinhas e lançá-las ao novo chacal, que as
devora com grande voracidade.
É surpreendente como, apesar do seu sentimento de solidão e
abandono, Ben-Atar se sente em paz consigo mesmo, e o amor que
experimenta por tudo o que o rodeia o consola e fortalece diante da
nova e nunca antes tentada, em seus quarenta anos de vida,
experiência de conduzir ele próprio as orações da cerimônia do dia
do Perdão. Embora ainda seja cedo e faltem três horas completas
para que o sol venha tocar o topo das árvores, Ben-Atar decide dar
início à refeição norte-africana, a fim de que sua alma, liberta das
exigências da fome, possa dedicar-se inteiramente às orações e às
súplicas pelo restabelecimento da Segunda Esposa. Sentado próximo
à fogueira, ele molha sua fatia de pão no caldo fumegante preparado
pela Primeira Esposa, e com vagar se serve de mais e mais fatias, até
que uma ligeira sonolência começa a enevoar seus pensamentos. Por
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entre as pálpebras semicerradas vê o sacerdote sair da casa do
médico e transpor a porta da igreja cinzenta, seguido pelo próprio
médico, que leva na mão uma pasta de couro. O cansaço e a lassidão
que acompanham a saciedade se abatem sobre ele, e o odor da
fumaça o deixa mais atordoado ainda. Então, deita-se no chão, estica
as pernas e observa, já mergulhando no sono, com um sentimento de
gratidão, a Primeira Esposa, que despeja uma porção do caldo
perfumado numa tigela, junto com pequenas porções de pomba
cozida, para levá-lo à Segunda Esposa que talvez tenha necessidade
de ajuda para ser alimentada.
Porém dorme por pouco tempo. Pouco depois o relinchar de um
cavalo irrompe em meio aos seus sonhos, e a voz querida de Samuel,
o filho do rabino, o desperta. Abre os olhos e se vê rodeado de
homens desconhecidos que parecem judeus. Logo adiante avista a
carroça grande, com seus tirantes no chão, enquanto Abd el-Shafi e o
escravo negro conduzem os cavalos ao descampado atrás da igreja.
Antes que possa se levantar, o rabino Elbaz já o abraça efusivamente,
sorrindo orgulhoso, e o coração de Ben-Atar transborda de alegria,
não apenas porque seu grupo está de novo unido, tendo sido, além
disso, encontrados judeus dispostos a integrar a comunidade que, no
dia do Julgamento, se apresentará completa diante do Criador do
mundo, mas sobretudo porque agora pode expulsar da mente a nova
e terrível dúvida que o vinha atormentando: que até o rabino tinha
intenção de deixá-lo.
Parece que mais uma vez a sorte muda de direção e sorri de
novo para o obstinado viajante. Os judeus de Me , a quem a notícia
da proscrição imposta por seus irmãos do vale do Reno ainda não
atingira, dispuseram-se a sair, simplesmente em nome do
cumprimento de um preceito, para fornecer o número de fiéis
necessário à realização dos ritos de lom Kipur por um viajante judeu
cuja cunhada, a irmã de sua esposa, caiu doente. De novo, como em
Rouen, o rabino Elbaz preferiu atribuir às mulheres um vínculo mais
comum e aceitável, de forma a não suscitar considerações
desnecessárias. Só uma pequena nuvem turvou a alegria: no
caminho, um dos judeus se arrependeu e voltou a Me , deixando
apenas sete homens em vez de oito. E se não for encontrado mais um
judeu em Verdun, como se completará o número necessário?
Mas o sol em sua trajetória não poderá esperar até que nasça um
novo judeu em Verdun, e chegue aos treze anos, pois da índia à
Abissínia, e da Babilônia a Sefarad, todos os judeus do mundo
aguardam o pôr-do-sol para iniciar a cerimônia solene. Enquanto os
sete judeus de Me se apressam a se purificar com as pombas que
restaram, cortando-lhes a cabeça e as depenando, para juntá-las ao
grande cozido que fumega na fogueira, já está claro para o arguto
rabino andaluz de que forma será inventado um décimo judeu,
mesmo que temporário, para a oração festiva. Como sempre, sem
revelar nenhuma de suas intenções a Ben-Atar, que entra agora na
casa do médico para apressar a Primeira Esposa, a qual, por alguma
razão, permanece em companhia da Segunda, o rabino deixa o
grupo e vai ao descampado atrás da igreja cinzenta onde pastam os
cavalos avisar ao sensato Abd el-Shafi, o intrépido capitão
transformado em enérgico cocheiro de carroças, que, para que sejam
aceitas no céu neste dia sagrado as súplicas pela recuperação da
jovem enferma, não há outra alternativa senão a de transformar, por
um dia apenas, o negro africano em judeu.
Ben-Atar vai se juntar à Primeira Esposa e à esposa do médico
renegado, que tentam, ambas, a primeira por palavras doces, a
segunda por olhares tenros, persuadir a Segunda Esposa a provar,
mesmo que um pouquinho, do caldo rosado. Enquanto isso, no
pasto verde, já Abd el-Shafi e o rabino de Sevilha despem o jovem
escravo de sua túnica verde e o imergem, em sua escura nudez, num
pequeno remanso de água, formado por um canal do rio Meuse.
Como o previdente Abd el-Shafi já tratara de encurtar-lhe o prepúcio
ainda antes do embarque no velho navio patrulha para que os
marinheiros não tentassem fazê-lo por conta própria, ao rabino
Elbaz não resta senão converter o pagão ao judaísmo com uma dupla
imersão na água do canal. A primeira para livrá-lo da visão dos seus
deuses e a segunda para purificá-lo para sua admissão no seio do
povo escolhido. Logo os outros judeus são chamados a unir-se ao
banho purificador e a confessar uns aos outros seus pecados, reais
ou imaginários, e se possível fazer um ato de contrição antes da
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oração da tarde, quando se reunirão todos em volta da fogueira para
a ceia que precede o jejum: oito judeus natos e um convertido, que
esperam o chefe da caravana para completar o número necessário.
Porém o chefe da caravana ainda não pode deixar sua Segunda
Esposa sozinha e, depois de ter feito sair as duas mulheres, tenta,
com palavras suaves e amorosas, na penumbra do quarto, fazê-la
comer a carne macia da pomba, cuja morte deverá remir sua alma, e
também voltar a lhe dizer que o desespero e o sentimento de culpa
não têm outra intenção senão a de envenenar o mundo. Uma nova
esperança brota agora na mente de Ben-Atar: de que tudo o que lhes
aconteceu se desfaça como pó ao vento, e o anátema e a proscrição,
que não os alcançaram em seu rápido caminho no Ocidente,
retornem envergonhados à sua origem e se enterrem na argila mole e
úmida em volta da sinagoga de Vermaíza. A Segunda Esposa ouve
com grande atenção as palavras de Ben-Atar e cede às suas súplicas
para provar um pouco da sopa rosada de feijão e pedaços cozidos da
tenra purificadora dos seus pecados. Para animá-la a comer, o
marido se une a ela. Embora de quando em quando as costas da
doente ainda sejam percorridas por um calafrio, Ben-Atar insiste, até
que esvaziem juntos a terrina.
Apenas ao entardecer Ben-Atar sai do quarto para completar,
com sua presença, o número necessário de fiéis, que estão
unicamente à sua espera. Então não há mais motivo para prorrogar o
início da oração, inclusive porque a Primeira Esposa, com sua sábia
presença de espírito, já havia encontrado entre os pertences do
mercador um talit para o novo judeu negro, invadido por
sentimentos de emoção e medo ao se dar conta de que foi agregado à
fé dos judeus justamente no momento que lhes é mais sagrado e
mais terrível. Embora Abd el-Shafi trate de acalmá-lo explicando-lhe
que sua conversão é momentânea e fugaz, mesmo assim o coração
do escravo estremece quando os judeus estrangeiros, rodeando-o
por todos os lados, voltam-se para o Oriente. Pela cadência das
primeiras falas, fica claro para o grupo de fiéis que se encontram
diante de duas versões distintas das orações que deverão se fundir
no transcorrer do dia sagrado. Uma, dos judeus que vivem nos
principados cristãos e seguem a versão abreviada, porém densa, do
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rabino Amram Gaón, que inicia as orações de lom Kipur com as
palavras: ó nosso Deus e Deus de nossos pais, que nossa oração
chegue a Ti, e que não rejeites nossas súplicas por sermos arrogantes
e obstinados... E a outra, a dos judeus vindos das terras do califado
ismaelita, acostumados a uma versão mais brilhante e detalhada,
compilada pelo rabino Saádia Gaón, que abre a liturgia de lom Kipur
com as palavras: Tu que conheces todos os mistérios do mundo e os
segredos mais ocultos dos seres vivos. Tu que procuras em todos os
recônditos do ventre e enxergas o âmago do coração. Nada se pode
ocultar de Ti e nada se esconderá de Teus olhos...
Assim, num clima de deferência e respeito recíprocos, as duas
versões vão se entretecendo, e até o canto e a melodia se fundem
docemente, com harmonia e sobriedade. Isto não só para não
despertar a atenção dos habitantes de Verdun, entrementes reunidos
para suas orações na igreja cinzenta de Notre-Dame, mas também
para não perturbar as orações dos dois marinheiros ismaelitas,
impelidos a prostrar-se por terra pelo ardor religioso que vibra ao
seu redor, para provar aos outros, mas antes para si mesmos, que
eles também têm um profeta, surgido com certo atraso, é verdade,
mas justamente por isso mais jovem e vital. Diante de todo esse
fervor religioso, o médico renegado, recém-chegado das visitas aos
pacientes e das sangrias, não mostra nenhuma urgência em juntar-se
à comunidade reunida para a celebração da missa na igreja,
preferindo sentar-se na escuridão, nos degraus da entrada da sua
casa, abraçando com força os dois filhos pequenos e observando,
sem distinguir muito bem, os vultos dos judeus que se encontram
entre as árvores de um bosque não longe dali.
Será que nossa reza desperta nele o remorso ou o ódio?, pensa o
rabino Elbaz, que, ao fim das preces noturnas, enviado por Ben-Atar
para reanimar a Segunda Esposa com uma oração especial, encontra
o médico ainda sentado num canto sombrio dos degraus da casa,
com os filhos pequenos ao lado, como se quisesse impedir o acesso
da casa aos judeus, que a transformaram, e ao descampado vizinho,
em seu território. Mas ao notar que o rabino inclina a cabeça com
humildade, retraindo-se diante dele, o médico renegado se
arrepende de ter talvez ferido os brios do pequeno homem de Deus,
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levanta-se rápido, tira as crianças do caminho e convida o rabino a
entrar na enfermaria interna, talvez, quem sabe, na esperança de
retomar a conversa que haviam tido no encontro anterior, no
caminho para o Reno, interrompida pelos olhares de desprezo da
mulher de olhos azuis. A enfermaria interna está imersa em
profunda sombra, e, a não ser por uma pequena vela que arde sobre
um crucifixo, não há outra fonte de luz no quarto. A esposa do
médico está sentada ao lado da Segunda Esposa, deitada
placidamente na cama, com a cabeça um pouco inclinada para trás,
como se puxada por uma corda invisível.
Ao ver o rabino, uma centelha de vida passa pelos seus estreitos
olhos de âmbar, ela se ergue um pouco na cama e em puro ismaelita
implora a Elbaz que peça ao médico para apagar a vela, pois sua luz,
ainda que débil, fere-lhe os olhos. Embora tendo estranhado o
pedido, ele o traduz em seu latim incerto para o dono da casa que
está ao seu lado, o qual não se surpreende: pelo contrário, meneia a
cabeça afirmativamente, como se confirmasse a si mesmo o
diagnóstico da doença, que o pedido vinha confirmar. Mas não ousa
apagar a vela que brilha sobre a cabeça do Crucificado: entrega o
crucifixo à esposa, para que o coloque em algum lugar apropriado,
no outro quarto. Agora na escuridão que se espalha pelo quarto,
apenas a luz da lua penetra pela pequena janela, e a Segunda Esposa
a olha espantada, como se não pudesse entender como ainda não
havia notado, e se perguntasse se era possível também diminuir a
sua luz, ou melhor, extingui-la de vez. Ela se volta para o rabino de
Sevilha, e um sorriso muito leve lhe sobe aos olhos injetados de
sangue, como que surpresa pela própria ideia de pedir a ela que
diminua a luz da lua. Ele lhe devolve um sorriso amplo e generoso,
talvez o primeiro desde que se conheceram sobre o convés do velho
navio patrulha. O cheiro adocicado que emanava da cama de sua
falecida esposa volta a lhe penetrar as narinas, até que as lágrimas
começam a escorrer lentamente pelo seu rosto. De repente, não
conseguindo se conter, sussurra uma pergunta em hebraico antigo
para o renegado: Ela vai viver?
Mas o médico não responde, como se a língua em que oraram e
suplicaram os seus ancestrais se tivesse apagado por completo de
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sua memória. Só quando o rabino traduz a pergunta para seu latim
hesitante, o médico se dispõe a responder. Sim. Ela é jovem. Ela
viverá. Se nos apressarmos em tirar o veneno de seu sangue. O
coração do rabino se agita emocionado, como se por um momento
pudesse volver no tempo e no espaço e retornar à sua pequena casa
em Sevilha, para encontrar viva sua esposa já morta. Uma lágrima de
pura felicidade turva seus olhos e, enquanto hesita entre iniciar uma
oração pelo restabelecimento da jovem e aguardar que as palavras
sagradas envolvam piedosas o fluxo de sangue drenado, ouve-se um
tumulto vindo da porta. O esposo, ofegante e agitado, empurra para
o interior do pequeno quarto os sete judeus e o novo fiel, o escravo
ainda todo confuso, exigindo categoricamente que o rabino
contratado inicie sem demora uma prece pelo restabelecimento da
Segunda Esposa, de acordo com todos os rituais e liturgias, de modo
a não dar nenhuma desculpa ao céu para se furtar às suas obrigações
de se apiedar de um ser humano que não conhece o pecado.
Assim, para sua grande aflição, o médico renegado, que em
nome da caridade cristã se manteve fiel ao juramento dos médicos
acolhendo em sua casa uma jovem judia enferma e ainda por cima
estrangeira e esposa de um bígamo, vê-se, no pequeno espaço de sua
sala, imprensado entre judeus das mais diversas linhagens, vindos
para reforçar as orações do pequeno rabino que, das profundezas do
seu coração aflito, recita uma breve série de súplicas, como
costumava fazer em Sevilha, durante os anos da prolongada
enfermidade da esposa. A mulher prostrada à sua frente passeia
seus belos olhos cor de âmbar alternadamente de Ben-Atar ao rabino
Elbaz, como se este houvesse se tornado seu segundo esposo. Mas o
médico renegado não permite que o judeu de Sevilha se entregue
por inteiro às suas preces fervorosas, que não somente lhe parecem
desacreditar a sua qualidade de médico, como ainda lhe soam tal
qual uma tentativa velada de solapar a sua adesão à fé cristã para
arrastá-lo de novo ao destino do qual havia fugido. Ele ergue as
mãos para silenciar os judeus que invadiram a sua casa, vai buscar
uma longa e grossa agulha e uma faquinha e ordena a todos que se
afastem dali, pois é chegado o momento de agir, e não mais de
conversar. Tanto mais que, depois da sangria do sangue
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envenenado, terá necessidade apenas de uma oração de
agradecimento.
Foram então afastados do quarto todos os judeus, exceto Ben-
Atar, que insiste em manter o rabino a seu lado, para que prossiga
em suas súplicas, mesmo silenciosas, enquanto o médico desnuda o
ombro da Segunda Esposa e começa a extrair dela um fino jato de
sangue, cuja cor, à luz da lua, parece velada por um novo e
misterioso tom cinzento. Os cílios da Segunda Esposa já lhe cobrem
os olhos, como se o fluir de seu sangue não apenas lhe trouxesse
conforto, mas até mesmo certo prazer e alívio há muito desejados. O
rosto belamente desenhado, emagrecido nos últimos dias, ganha, na
meia-luz do quarto, uma espécie de dureza masculina, que parece
reforçar a tenacidade com que ela se agarra à vida. O coração dos
dois homens de pé, ao lado dela, parece pulsar em uníssono
enquanto observam os gestos do médico que recolhe o sangue em
uma pequena bacia de ferro, até que cubra os seixos brancos do rio
que lhe forram o fundo. Não seria talvez o momento de conter o
sangramento?, pensa Ben-Atar, e arrisca um pequeno passo em
direção ao médico, o qual não parece menos fascinado pela sangria
do que os que o observam. Mas Karl-O o Primeiro parece esperar
que os pequenos seixos brancos fiquem completamente tingidos,
para só então decidir retirar, delicadamente e sem nenhuma dor
para a paciente, a grossa agulha da espádua descoberta da jovem
mulher, nesse entretempo mergulhada em um sono profundo, como
se o sangue envenenado extraído de seu corpo fosse a barreira a se
interpor entre ela e a paz de espírito.
Só agora o marido se aproxima, para cobrir com uma manta o
corpo frágil, pedindo ao rabino andaluz que passe a entoar suas
preces em voz alta, para que até mesmo os mais sonolentos anjos do
céu possam ouvir as últimas súplicas pela cura desta jovem tão
amada. Concluída a prece, Ben-Atar abandona o quarto levando
consigo o relutante rabino e depara com a esposa do renegado, na
qual a angústia pela deserção é mais evidente do que no marido. Ela
vem tomar seu lugar à cabeceira da enferma. Ela viverá?, volta a
perguntar o rabino Elbaz, em seu estranho latim, ao médico que
acompanha os dois homens para respirar um pouco do ar gelado da
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noite lotaríngia. Depois de refletir um pouco, ele anui com a cabeça.
Sim, ela viverá, responde com a seriedade e a segurança absoluta de
médico experiente. Em seguida, tocando de leve com a ponta da bota
o filho do rabino, que adormeceu ao lado das brasas da fogueira
onde se reuniram os judeus, completamente apagada antes do início
do dia sagrado, diz inesperadamente: E também esta criança viverá...
E ao notar o espanto do rabino ele acrescenta: E também você viverá,
e também o mercador e os de sua família viverão. Hesita muito antes
de continuar, quase num sussurro, apontando os vultos dos sete
judeus que se ajeitam, à luz da lua, ao lado da carroça que os trouxe
de Me , para passar a noite. Mas aqueles não viverão.
Como, não viverão?, pergunta o rabino de Sevilha,
impressionado. Ao notar que o médico desvia o olhar, pensativo, e
se cala, como que arrependido pelo que deixara escapar da boca, o
rabino insiste, perplexo: Por que não viverão? Não resta ao médico
outra alternativa senão segurar de leve o braço do insistente rabino
estrangeiro e caminhar com ele alguns passos, até alcançar a igreja
escura. Lá, no campo que recende a trigo recém-ceifado, ao lado de
uma pequena fogueira que seus filhos estão em vias de acender, o
médico sussurra ao ouvido do rabino uma lúgubre e singular
profecia acerca do dever que será imposto aos cristãos, ao término
do ano mil: ao constatar que o Filho de Deus não desceu do céu para
redimi-los, serão obrigados a matar todos os judeus que se
recusaram a se converter. Mas afinal de contas Ele não descerá do
céu?, espanta-se o rabino andaluz, com um misto de temor e alegria
diante da revelação deste judeu convertido que profetiza o futuro
com tanta segurança, como se os segredos mais ocultos lhe fossem
revelados junto com o sangue extraído nas mansões dos enfermos
aristocráticos. O médico meneia afirmativamente a cabeça. Sim, pois
quando os fiéis são tão numerosos e dispersos, cada visita do
Salvador só poderá provocar inveja e ruptura. Portanto, é justo e
natural que não seja o Senhor a visitar seus fiéis, mas que sejam estes
a ir ao seu encontro, no lugar onde será mais provável encontrá-Lo: a
sepultura que se encontra em uma terra distante. A Terra de Israel?,
adivinha logo o rabino, e é evidente que a notícia de que os cristãos
deverão afluir para lá, e quem sabe, até mesmo antes que Ele chegue,
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causa-lhe tristeza e decepção. Sim, para lá, confirma o médico. E
para que a Europa não fique só e abandonada, à mercê dos judeus,
que restarão aqui sozinhos, deverão os fiéis matá-los a todos.
Até mesmo as crianças?, pergunta chocado o rabino, que não
perde uma única palavra da revelação tétrica e apocalíptica do
médico, sempre o conduzindo em direção
à fogueira que os filhos acendem. Sim, até mesmo as crianças, diz
ele, mas não estas. E acaricia amorosamente as cabeças raspadas de
seus filhos, que vêm abraçá-lo. E também não os seus filhos, e não os
filhos dos filhos que virão depois. O rabino se queda parado e tenta
desviar os olhos da chama que crepita alegremente no coração
sombrio do sagrado dia do julgamento. Embora sabendo muito bem
que nem suas mãos nem as de nenhum outro judeu contribuíram
para alimentar essa fogueira, é acometido de um leve tremor, como
se o mero conversar com um renegado já carregue consigo a
transgressão. Assim, cuidadoso e educado, ele se afasta e prepara
um lugar macio para dormir ao lado do filho, a quem abraça
delicadamente, à procura de um pouco de calor. Por entre as
pálpebras que vão se cerrando tremula a imagem de um novo judeu,
ainda que temporário, o jovem bárbaro de pele negra, que continua
desperto entre os que dormem, e, envolto em seu novo talit,
permanece em meditação intensa, tentando compreender de que
maneira os antigos deuses poderão se agregar aos novos.
No mais profundo da noite a Segunda Esposa sente um espasmo
nos rins e inclina a cabeça para trás, numa tentativa de minorar a
dor. À sua volta, apenas a treva espessa, pois a lua também
desaparecera da janela. Depois de um dia de emoções intensas e de
tantas atribulações, sente-se mais tranquila no silêncio e na escuridão
que a envolvem, não fosse a dor a puxá-la, como a mão de uma
insistente anãzinha tentando fazê-la arquear-se na cama. Volta a
assediá-la a imagem dos sete judeus estrangeiros, com seus chapéus
em forma de chifre de carneiro, que vieram reforçar as preces do
rabino andaluz, tão atraído pela sua cabeceira. Seria apenas a aflição
pela sua doença o que comove o pequeno rabino, ou quem sabe ele
procura demonstrar que a pequena demanda particular feita por ela,
a de ter dois maridos, não é menos fundamental para ele do que a
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veemente demanda proferida entre os barris do vinhedo próximo a
Paris?
Se é assim — e na mente desesperada da Segunda Esposa uma
visão toma forma — e se ela puder fazer jus às preces e súplicas dos
judeus que rezaram pelo seu restabelecimento erguendo-se do leito
de sua doença, quem sabe se o rabino Elbaz não consentiria, embora
só metaforicamente, em tornar-se seu segundo esposo, reforçando
assim a novidade trazida pelos filhos do Sul aos filhos do Norte, mas
continuando a servir ao primeiro esposo como rabino erudito e hábil
advogado para qualquer novo processo que possa surgir? Essa ideia
surpreendente a alegra a ponto de seus lábios já se abrirem num
ligeiro sorriso àquela história extraordinária, concebida na
escuridão. Assim, no caminho de volta desembarcariam todos no
porto de Cádiz, em plena Andaluzia, e iriam para a casa do rabino
em Sevilha para recolher todos os seus objetos, roupas e livros
sagrados, embarcando-os a seguir no velho navio patrulha, para
navegar juntos até a pequena casa bem-cuidada, de onde se
descortina a linha de conjunção entre o grande oceano e o
Mediterrâneo. Apesar da mão cruel da anã, que insiste em lhe
retorcer os músculos das costas, a história alucinante parece reforçar
sua determinação de se curar. Ela desce da cama e fica de cócoras
para fazer as necessidades na bacia manchada de sangue
envenenado, e vê o vulto robusto do marido a se esgueirar furtivo no
quarto, para vigiá-la.
Ben-Atar a ergue da bacia e a ajuda, com todo cuidado, a se
deitar. Mesmo sabendo que o médico e sua esposa possam ter
ouvido seus passos furtivos, ele não abre mão de seu direito, o
direito do esposo que ama, de lhe acariciar a face e lhe beijar os pés,
para encorajar seu espírito e aliviar seu sofrimento. Se esse não fosse
um dia sagrado, no qual é vedado o uso do leito, teria lhe dado
provas irrefutáveis de que ela não está envenenada a seus olhos, nem
é imperfeita, mas é, sim, uma mulher saudável, digna de todo o
amor de que a idade e a condição de esposa a fazem merecedora.
Ainda que o marido norte-africano esteja certo de que apenas
um ato de amor poderia acelerar a cura, os espasmos não concedem
trégua à jovem, cuja cabeleira negra, solta e desgrenhada é lançada
g j j g g
juntamente com a cabeça para trás, como se ela tentasse, com suas
costas estreitas, fazer uma ponte viva sobre aquela cama estreita
oferecida por um renegado em Verdun. Se o marido lhe desse a
permissão de tomar um segundo consorte, talvez esta esperança
concedesse algum alívio para o seu corpo atormentado. Pois essa
jovem mulher, muito cedo tirada da casa paterna, está convencida,
do fundo de seus sofrimentos, de que há nela muito amor, suficiente
para encantar e satisfazer dois esposos.
Todavia, nem mesmo com toda a força do seu amor tão solícito
Ben-Atar pode supor que aquela mulher sofredora queria ver
realizado naquele momento o seu desejo de bigamia. Portanto não
cogita em lhe trazer um segundo esposo, mas apenas o médico, que,
acordado em seu quarto pelo sussurrar dos beijos de Ben-Atar,
resolve vir observar o estado de sua paciente. Ao vê-la se contorcer
em espasmos de dor, de imediato lhe dá de beber sua poção amarela,
e esparge a seu redor ervas curativas; ao vê-la mais calma, abaixa um
pouco a sua túnica, pousando o ouvido sobre o peito, para escutar a
pulsação do sangue envenenado em suas veias. Depois apalpa seu
pequeno ventre e, ao sentir o odor de seu umbigo, um enigmático
sorriso lhe vem ao rosto. Então aproxima-se silenciosamente da
janela para verificar se nenhum estranho os espia de fora, e, vendo-
se sem outro recurso que o de tentar buscar no mais fundo recesso
da memória algumas palavras na antiga e esquecida língua sagrada,
exorta Ben-Atar, que torce as mãos, a duplicar e multiplicar seu amor
e seus cuidados pela jovem esposa, pois ela não mais está só: ela
abriga dentro de si mais um ser, dotado de um débil sopro de vida.
Qual uma faca a notícia atinge Ben-Atar, não só duplicando, mas
triplicando seus temores. Seu desespero chega a tal ponto que chega
a parecer, por um instante, que é capaz de tirar o feto do útero da
mulher enferma, que já dorme um sono profundo, para confiá-lo à
proteção provisória do útero da Primeira Esposa, até que a sorte seja
decidida.
Para que pensamentos deste tipo não o deixem completamente
fora de si, ele pede, ao amanhecer, quando o rabino Elbaz entra no
quarto para fortalecer-lhe o espírito, que corra a despertar a Primeira
Esposa para que ela venha com o grupo de fiéis que se reuniu a eles
p p q g p q
na comemoração do lom Kipur compor uma barreira em torno da
Segunda Esposa, de maneira a impedir o seu caminho rumo ao outro
mundo.
Capítulo 4

E disse para si mesmo: Ela está só e abandonada.


Está só e abandonada. Frio é o tecido de sua túnica.
Segunda Esposa, morta. Diante do esposo desesperado.
Sua cama é um barco. A perna, um remo desnudo.
Viagem errante e tenebrosa, cujo fim ainda é um enigma.
Sua amada submerge, vagarosa, no pó.
A visão se esvanece, arrebatada e profanada.
Não foi perdoada, a pomba não a remiu.
Derrama vingança. Veneno entre sorrisos.
Seu amor se esvai. Carícias encobertas.
Um pé querido, sonho coroado, fugidio.
Mesmo ao receber o esposo, ali não estava só.
Eis que revela um segundo amor, e o desejo se esgueira, trêmulo.
Cinzenta, Verdun te rodeia. Estranha cidade cristã.
Distante é Tânger, e o mar esbraveja em amarga tempestade.
Não peças respostas do enlutado. Jamais as terá.
Chora como chora um segundo marido. Furtivo desejo
malogrado.
Anátema e proscrição — como cães raivosos,
Os cães da lei cruel lhe trouxeram terrores ao coração.
Para sempre rompida a antiga aliança,
Tu e tua amiga, a Primeira Esposa, exemplar.
Agora para ti a viagem se retorce,
Envolve em lamúrias o fogo que arde mas não consome.
Viúvo de uma Segunda Esposa. Perene reflexão.
Aguarda, esposa, e seguirei teus passos.
Fiel é o homem diante da morte.
Capítulo 5

Já durante a oração matutina do lom Kipur os sete judeus vindos


de Me , notando a intensa preocupação do norte-africano em
relação à saúde da jovem recolhida à pequena casa, imaginaram o
quanto aquela mulher é importante para ele e o quanto é cara ao seu
coração. Mas, não sabendo explicar o que apenas intuíram,
pensaram tratar-se nada menos que de um caso de incesto, algo
como o caso de uma cunhada que na verdade é uma amante, secreta
e muito querida. Logo procuraram esclarecer o assunto, e
conseguindo soltar a língua do jovem Elbaz, foi-lhes revelada a
verdadeira condição da mulher enferma, que não é nem cunhada
nem amante, mas sim uma Segunda Esposa. Dentro da legalidade,
mas segunda. Porém, o que realmente perturbou o repouso do
grupo de Me não foi a verdade enfim revelada, mas justamente a
mentira que o rabino lhes pregara ao convidá-los.
Antes de concordarem em acompanhá-lo nas orações do dia do
Perdão, na variante por ele adotada, a ampla e rica versão elaborada
pelo genial rabino babilônio, foi convocada uma assembleia no
fundo do bosque, não longe do muro do convento, na qual ficou
decidido que o pequeno rabino andaluz seria chamado a explicar as
circunstâncias de sua mentira. No princípio o rabino Elbaz esquivou-
se um pouco das perguntas, fazendo rodeios, temendo revelar aos
judeus de Me os fatos sobre a proscrição imposta, pois isso poderia
incentivá-los a fazer coro com seus irmãos de Vermaíza; dessa forma,
o minián seria desfeito em pleno dia sagrado, e eles partiriam,
levando de volta o livro da Torah que haviam trazido. Visto que o
rabino Elbaz não tinha certeza se o perdão concedido pelo lom Kipur
valeria também para absolver as mentiras produzidas durante as
próprias orações, rendeu-se, afinal, e revelou toda a verdade, ainda
que de maneira seca e sucinta.
Os sete judeus de Me , que ouviram atônitos mas também um
tanto divertidos o relato da intransigência de seus irmãos
ashkenazitas que habitam as margens lodosas do Reno, temem então
que os ritos cumpridos até aquele momento com um judeu proscrito
e um rabino mentiroso possam ser considerados nulos. Mas, como
bem sabem, não é possível duplicar o sagrado embora fugaz dia da
expiação a fim de remediar o que andara errado até ali. Assim,
preferem fingir que compreenderam mal o que lhes foi dito, adiando
o esclarecimento definitivo do assunto para depois do término da
celebração, que pretendem retomar sem mais hesitações. Entretanto,
para completar o número necessário de fiéis falta exatamente o
proscrito, que aproveitou a pequena pausa nas orações para correr
até o leito da Segunda Esposa, impaciente para se inteirar do seu
estado. Desde a madrugada a Primeira Esposa está sentada à
cabeceira da enferma. Ben-Atar, contudo, não está de todo
convencido de que seja o rosto dela a última imagem que a jovem
deverá contemplar no caso de o anjo da morte dela se aproximar.
De fato, desde a meia-noite que Ben-Atar não mais se ilude e
pensa no inimigo desleal que se insinuou para dentro de sua família
com um astuto estratagema. Nesta primeira hora da manhã parece-
lhe que ali, em Verdun, existe não apenas um anjo destruidor
esvoaçando à sua volta, mas um bando completo de anjos perversos.
Anjos que pairam com facilidade na gélida neblina cinzenta,
percorrendo ruelas e casas, seguindo por vales e campos, vindo se
reunir, furtivos, ao quorum dos judeus ali reunido, e juntando-se ao
redor do judeu noviço e temporário, enrolado em seu talit, que ouve
com profunda seriedade as estranhas palavras evocando a cerimônia
sagrada do Santo dos Santos que ocorria no destruído templo de
Jerusalém, onde o Sumo Sacerdote colocava as duas mãos sobre o
bode expiatório e dizia assim: Ó Senhor, eu pequei, eu cometi
iniquidades, eu transgredi diante de Ti, eu e os de minha casa
violamos Tuas leis. Suplico que perdoe os pecados, as injustiças e as
transgressões que eu e os de minha casa cometemos contra Ti. Como
está escrito na Torah de Moisés, Teu servo, que fala em Teu nome:
neste dia os expiarei, redimirei e purificarei de todos os pecados ante
o Senhor.
Mas Ben-Atar não consegue se conter e aguardar até que o
rabino Elbaz termine de modular, em sua voz macia, toda a
profissão de fé do Sumo Sacerdote, e escapa para a casa do médico,
que resolveu deixar a enferma judia à própria sorte e sair para suas
visitas às casas de camponeses e de nobres, quem sabe para não
despertar suspeitas ao conceder atenção especial e prolongada ao
grupo de judeus mergulhados em orações ao lado de sua casa. Nas
sombras do quarto, cuja janela foi velada por um talit, os olhos do
marido bígamo se encontram apenas com os da Primeira Esposa,
temerosa de deixar escapar palavras de lamentação ou desespero na
presença deste homem bom e dedicado, que logo ao entrar no quarto
percebe uma nova piora no estado da jovem esposa.
Além da cabeça que a dor puxa para trás, os olhos protegidos da
luz pelo véu, os ouvidos tapados por cera, acrescenta-se a respiração
pesada, e o coração de Ben-Atar transborda num pavor terrível, pois
não sabe o que dirá, e como irá se justificar perante o pai dela, seu
companheiro de infância, que nele confiou e lhe entregou essa meiga
jovem na flor da idade. Agora eis que ele não pode lhe dar em troca
nem sequer uma sepultura e uma lápide onde possa se prostrar e se
lamentar. E de que modo confortará seu filho? Não o feto que está
em seu útero, mas seu irmão mais velho, o que ficou com os avós em
Tânger, e que cobrará do pai os muitos dias em que sonhou,
antevendo o retorno da mãe, quando ela já havia desaparecido de
entre os vivos.
O comerciante norte-africano perscruta o rosto da dona da casa,
a esposa do médico, que entra silenciosa no quarto, e que talvez
possa dizer, por viver nesta casa, se é justificado o terrível desespero
que o invade agora. Mas os olhos da mulher miúda e pálida não dão
nenhum indício de saber alguma coisa, e só fazem lembrar o azul
dos olhos de outra mulher, mais jovem, cujo humilhante repúdio
trouxe a morte que agora se esgueira, lenta, e tateia o caminho em
direção à cama da Segunda Esposa. Pela primeira vez desde que
Ben-Atar teve conhecimento, numa fogueira da baía de Barcelona, da
existência daquela mulher, ele se dá conta do quanto é pesado o ódio
que sente por ela em seu coração, e há tanto tempo, e quão profundo
é seu anseio de vingança. Contudo, em vista da santidade do dia do
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Perdão, ele se esforça por refrear os sentimentos que rebentam dento
de si e se aproxima, sereno e misericordioso, do leito de sua enferma.
Lá, ao lado dos frascos de poções coloridas, ele retira o fino véu
do rosto puro e extenuado da esposa doente, para que ela possa ver
a compaixão e a angústia em seus olhos, e tira a cera que lhe tampa
os ouvidos para que escute o som das preces que se elevam do
pequeno bosque vizinho à casa. Tudo isso para que esteja certa de
que nem ele, nem qualquer um do grupo pretendem abandoná-la à
própria sorte nesta hora terrível; pelo contrário, reúnem todas as
forças do corpo e do espírito na luta contra o anjo da morte que se
quedará imóvel, mesmo que se aproxime da casa, no seu umbral, a
ouvir, atônito, como o resto dos fiéis ashkenazitas, a narração
brilhante e esplendorosa, plena de imagens poéticas, que o rabino
Elbaz faz dos ritos oficiados pelo Sumo Sacerdote nesse dia
santificado e terrível.
Para não faltar ao seu dever de completar o minián reunido
especialmente para ele, Ben-Atar interrompe as palavras de consolo
e carinho ditas à Segunda Esposa e, numa expressão de imensa e
silenciosa gratidão, faz sinal à Primeira Esposa, que volta a cobrir
suavemente os olhos da enferma com o fino véu e a tapar seus
ouvidos com cera macia, e se apressa a sair da penumbra do
pequeno aposento e reunir-se aos que rezam. Foi bom que tivesse se
apressado, pois é necessário dar um reforço meridional ao rabino
Elbaz, que faz ver aos sete judeus do Norte por ele reunidos em Me
que não devem esmorecer nem se satisfazer com um mero ajoelhar
educado, à maneira dos cristãos, mas devem se prostrar por terra
num ato de profunda devoção como se a arca sagrada houvesse se
materializado na casa do médico e o pequeno bosque tivesse se
transformado no átrio do Templo Sagrado e Verdun, na amada
cidade de Davi. Assim poderão se sentir reunidos não apenas em
espírito, mas também em seus corpos à memória dos sacerdotes e do
povo que se reúne no átrio sagrado, e que ao ouvir o Nome sagrado
e terrível pronunciado pelo Sumo Sacerdote em sua pureza e sua
santidade, se ajoelhavam e se prostravam e caíam sobre suas faces, e
diziam: Bendito seja Seu santo Nome e bendita seja Sua majestade,
para todo o sempre.
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A princípio os judeus do Norte hesitaram um pouco em
acompanhar as inclinações do rabino Elbaz e de seu filho, de Ben-
Atar e do jovem bárbaro, que se lançavam por terra, ágeis e elásticos,
como os muçulmanos em suas orações. Aos poucos, porém, suas
almas foram sendo conquistadas pelo esplendor dos versos rimados,
modulados no canto melodioso, anuindo aos pedidos do exaltado
rabino para esfregar a testa, vezes seguidas, embora a princípio com
cuidado, na terra avermelhada de Verdun, na esperança de que essas
profundas reverências e amplas prosternações ao lado de um judeu
mentiroso, de um judeu proscrito e de um judeu negro,
extremamente suspeito, somadas às privações do jejum e da
penitência, fortaleçam o ato já em si virtuoso de terem completado o
minián. E que assim seja aumentada sua pureza neste estranho dia
do Perdão, e multiplicada sua coragem no ano recém-inaugurado, o
ano judaico ainda tenro, e que oculta dentro de si o assustador ano
mil.
Como que para reforçar a nova aura de virtude a envolver os
judeus ashkenazitas que se dispersam após o fim da cerimônia para
descansar sob as árvores do bosque, o cinzento do céu se abre de
repente, e um sol outonal expõe uma nesga de um doce azul, que de
imediato faz pulsar no coração de Ben-Atar uma saudade incontida
de seus filhos, de seus parentes e amigos em Tânger, que talvez neste
exato momento estejam desfrutando do repouso da tarde, reclinados
em claros divãs, em quartos amplos e silenciosos. Nas narinas do
norte-africano penetra o estranho odor de fritura de carne proibida,
que sobe em espirais da chaminé da pequena casa. Estaria a esposa
do médico renegado aguardando sua chegada e lhe preparando sua
refeição diária?, pergunta-se Ben-Atar, enquanto se apressa a
alcançar o canto do muro do convento para tentar surpreender
algum sinal da chegada do médico, tão esperado. Eis que surge ao
longe a figura de Karl-O o Primeiro, como se denomina o médico,
caminhando apressado para casa, sobraçando uma valise. Ben-Atar
se apressa a ir ao seu encontro, aparentemente para atalhar seus
passos, mas provavelmente, e sem se dar conta, para tentar retardar
ao máximo seu próprio retorno ao pequeno quarto, à sua mísera arca
sagrada, onde talvez já estejam começando os ritos da agonia.
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Esta mulher viverá?, volta a sussurrar o rabino Elbaz em seu
latim truncado, e sob grande comoção. Sim, ela viverá, garante o
médico com a mesma segurança demonstrada no dia anterior. Mas, e
eles?, insiste o rabino, e aponta os judeus de Me que cochilam sob
as árvores. Eles não viverão, nem eles, nem os filhos. Seus lábios se
retesam numa expressão de sombria certeza; entra em sua casa e
abraça os dois filhos com toda força, talvez para mitigar a aflição de
ter convertido um dia tão sagrado em um mero dia de trabalho.
Depois lava as mãos da poeira das estradas e do sangue de nobres e
camponeses extraído durante a manhã, as enxuga com uma toalha
macia, e se dispõe a comer a carne assada preparada pela esposa.
Porém o olhar de Ben-Atar o constrange, ele pousa a faca, levanta-se
e vai ao quarto interno, onde pede à Primeira Esposa para afastar-se
da cabeceira da jovem, que ainda tem a cabeça pendida para trás e a
boca toda aberta, como se o ar lhe faltasse.
Por um momento o médico parece hesitar sobre o que deve
fazer, mas logo remexe sua pequena maleta de madeira e dela tira
uma espécie de flauta feita de caule de papiro macio, que introduz
com cuidado na garganta da Segunda Esposa, e por ela verte sua
beberagem amarelada, que possui a propriedade evidente de mitigar
a dor. No mesmo momento o arco tensionado das costas se desfaz, e
os olhos de âmbar se abrem bem abertos. Aos poucos as pestanas se
fecham exaustas, e os lábios formam um leve sorriso, como se agora,
no auge do sofrimento, ela desfrutasse de um intenso momento de
prazer. O médico, atento, decide aproveitar esse instante de graça, e
antes que ela mergulhe no sono, traz a faca e a grande agulha e
desnuda o belo ombro torneado, para de novo extrair e verter na
bacia, onde já se encontram seixos brancos novos, mais um pouco do
sangue envenenado.
É como se o corpo da Segunda Esposa voltasse a se reconciliar
consigo mesmo. Os espasmos violentos se aquietam, engolidos pelo
abismo do sono. Ben-Atar sente que é uma boa ocasião para deixar
para trás os odores do almoço que a esposa do médico serve ao
marido convertido e ir juntar-se ao repouso dos demais judeus no
pequeno bosque, até que a luz do sol já tenha declinado o bastante
para que se possa dar início à oração da tarde. Neste momento Abd
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el-Shafi e seu companheiro trazem de volta do pasto os cinco
animais, abanando a cauda orgulhosos, limpos e luzidios, depois do
descanso e do trato que lhes foi dado neste dia santificado.
Novamente o médico deixa a casa para mais uma sessão de sangrias
entre os muros de Verdun, e Ben-Atar vai erguer o jovem escravo, o
judeu temporário, que durante todo o tempo se manteve ajoelhado
diante do rolo da Torah, posto sobre os galhos de uma árvore, e o
leva para o lugar onde o rabino já concita os fiéis a entoar em uma
melancólica melodia a súplica que abre a oração vespertina e atinge
o peito de Ben-Atar com um no\ o terror. Pereceram aqueles que
creem. Vieram com a força de sua fé, com sua coragem, seus escudos
e suas armaduras, afastaram a calamidade em suas súplicas. Eis que
eles eram para nós como muralhas fortificadas, e como um refúgio
nos tempos de ira e de aflição. Eles aplacam o ódio e a fúria com suas
súplicas. E antes que Te invocassem, Tu lhes respondeste, pois eles
conhecem a súplica e a conciliação... O consolador murmúrio da
prece vespertina dos judeus entra pela janela da pequena casa do
médico e penetra na consciência enevoada da Segunda Esposa. Com
ele voltam a despertar os espasmos em sua espinha e sua cabeça de
novo a se inclinar para trás como um arco. Com enorme esforço ela
consegue abrir os olhos, nos quais já se reflete a cabeleira do anjo da
morte, que se esgueirou imperceptível por trás da Primeira Esposa,
aproveitando-se do seu leve sono.
Inesperadamente, porém, uma nova tranquilidade parece descer
sobre a Segunda Esposa, como se as orações distantes dos homens,
que entoam suas melodias no bosque próximo, tivessem vindo
aliviar o medo que a deixa aterrada. No auge dos espasmos, que a
esmagam nas suas tenazes como uma morsa, brota o lampejo
repentino de uma suave nostalgia da casa de orações das mulheres
de Vermaíza e da mulher que se erguia para entoar os cânticos,
envolta no talit e com os tfilim enrolados no braço. Veja, agora não te
perturbarei mais e poderás me tirar deste mundo. Oprimida pela dor
e por um sentimento de piedade por si mesma, milagrosamente
suavizados por um ligeiro assomo de orgulho, a Segunda Esposa
tenta compreender a quem se refere aquela ideia que irrompera em
sua mente enevoada e que não a abandona — "poderás me tirar".
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Será que se refere ao marido? Ou seria ao juiz de cabelos ruivos aos
pés do qual se ajoelhara? Ao pequeno rabino de Sevilha, que lê com
voz rouca e fatigada as orações de penitência? Ou então ao
rechonchudo anjo da morte, que tomou o aspecto da Primeira
Esposa, e se curva agora com afeto em sua direção, e anui, não só
compreendendo aquele pensamento, belo e novo, mas ainda o
aprovando?
A Segunda Esposa luta com todas as forças para tirar de dentro
de si e afastar para bem longe aquela alma que ameaça sufocá-la
quando um débil raio de luz, coado através da cortina, acende uma
centelha de prazer nos seus olhos cintilantes diante do soluçar do
seu anjo da morte. Naquele mesmo momento saem do convento
beneditino duas jovens freiras, enviadas pela madre superiora a fim
de cuidar para que os judeus não se deixem transportar pelas suas
preces, tornando impuro, com pensamentos vãos, o lugar que os
circunda e que se prepara para a missa vespertina do domingo
sagrado. É surpreendente como a simples aparição, orgulhosa e
confiante, das duas mulheres basta para interromper as preces dos
judeus, que já ouvem uma clara ordem no idioma local para que se
afastem do pequeno bosque e sigam para o campo aberto, semeado
de lápides, e também para que eles emprestem o jovem escravo, cuja
esbeltez e negror da pele o tornam adequado para descer ao poço do
convento e buscar um balde perdido. Os judeus de Me , que sabem
muito bem com quem estão lidando, nem mesmo se preocupam em
traduzir para o rabino e Ben-Atar o estranho pedido das duas freiras
e, por sua própria iniciativa, recusam, de maneira polida porém
firme, o empréstimo desse judeu temporário, cuja presença paciente
e solícita é indispensável para completar o número de dez fiéis Em
seu lugar, propõem os dois másculos ismaelitas, ocupados naquele
momento em reforçar as rodas das carroças com vistas ao
prosseguimento da viagem.
Porém as duas freiras, que trocam sorrisos ao ouvir a generosa
proposta, bem sabem que é inteiramente inaceitável a ideia de
introduzir dois homens tão viris em um convento de mulheres que
travam uma luta permanente contra a ilusão e a fantasia, e acabam
por desistir de sua exigência inoportuna, desaparecendo pelo portão
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do convento, mas não sem antes terem se assegurado de que os
participantes realmente levaram o livro da Torah ao se dirigirem
para o descampado das lápides, onde concluirão as orações.
Quando os últimos raios do sol empalidecem por trás dos cimos
das árvores do bosque distante, os sete judeus de Me são tomados
por sentimentos de terror e angústia à aproximação da hora em que
se fecham os portões da cidade e pedem para interromper o canto do
rabino meridional, de maneira a prosseguir na importante oração do
encerramento do culto segundo a versão e a melodia da sua distante
e amada congregação. Ben-Atar faz um discreto sinal ao rabino de
Sevilha para não resistir à proposta e passar a condução das preces
para um judeu local, cuja súplica poderá talvez até esconjurar a
terrível ameaça que paira sobre ele. Ao jovem africano ele ordena
que se coloque a seu lado, para que possa buscar consolo no aroma
do deserto que emana do seu corpo negro: perfume de arbustos
secos e de fumo de antigas fogueiras, que a longa viagem pelo
oceano e por terra firme ainda não conseguiu apagar.
Enquanto o cantor das preces ashkenazita começa a entoar as
orações em melodias bem diferentes, O que será dito em Tua
presença, ó Senhor do Universo, e o que Te contaremos, ó Altíssimo,
pois Tu conheces tudo o que é oculto, Ben-Atar compreende,
balançando o corpo, angustiado, que dali para a frente deverá
multiplicar sua fé em Deus, pois a Primeira Esposa, a mulher de sua
juventude, surge, exausta e pesada, da casa do medico renegado, e
cai de joelhos sobre os degraus da entrada fazendo um silencioso
sinal para o marido, concentrado na oração, de maneira a deixar
claro que o seu duplo casamento está encerrado.
O mercador norte-africano sabe que a confissão da prece final
não tem poder suficiente para apagar sua culpa pela morte da
esposa, causada não pela teimosia em empreender a jornada
destinada a provar o amor duplo, e sim pela tentativa desesperada
de confirmá-lo Todavia, ainda não se afasta dos demais judeus,
imersos em preces, para se precipitar em direção à cabeceira da
esposa morta, insiste em importunar o Senhor do Perdão para que
tenha piedade e inscreva no Livro da Vida a única esposa que lhe
restou, que em breve deverá não só consolar pela morte da
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companheira, mas também realizar uma nova promessa em seu
nome.
Só ao término da prece noturna, que encerra o dia do Perdão —
que neste ano coincide com o final do shabat, quando se deve
acender o fogo, aspirar o aroma das ervas aromáticas e proferir as
bênçãos do vinho doce para marcar com clareza a fronteira que
separa o sagrado do profano —, é que Ben-Atar se dirige à pequena
casa No umbral se encontra a esposa do medico, que segura os filhos
para que não entrem e corram o risco de encontrar-se em plena
escuridão diante de uma mulher morta Ao seu lado, a certa
distância, esta Abd elShafi, comandante de navio e carroceiro-chefe,
consternado, que espera respeitosamente pelo patrão com os olhos
molhados de lágrimas Ele bem sabe como a viagem dali por diante
será triste e dura com a ausência da Segunda Esposa Abraça o
mercador judeu e murmura palavras de consolo, descrevendo como
é bom e maravilhoso o destino daquela que palmilha agora, com
seus pequenos pés descalços, os degraus dourados do Paraíso, e
quão dura a sorte daqueles que devem continuar em meio às aflições
dos árduos caminhos deste mundo Tendo observado que durante
todo o dia os judeus se impuseram o jejum absoluto, ele obriga Ben-
Atar a provar um pequeno pedaço do pão quente que ele e o
companheiro assaram para o grupo, antes de irem dizer adeus
àquela que desapareceu sem pedir permissão.
Em silêncio, mergulhado em completa escuridão ao lado do
corpo da jovem esposa, Ben-Atar contempla longamente a linha
cinzenta do seu perfil, detendo-se por instantes no arco petrificado
das costas, na forma da boca aberta e estarrecida, e medita sobre
aquela última despedida, no leito estreito de uma casa estranha, em
uma cidade cristã de fronteira, triste e sombria, cuja lembrança,
ainda que jamais retorne, acompanhará o mercador por toda a vida.
De repente ele pensa também em Abuláfia, o amado sobrinho,
que não imagina, neste momento, onde quer que esteja, que o fim da
união espiritual e física, contratada pelo tio para expiar a culpa da
mulher afogada, renovará a partir daquele momento, com raiva e
furor e com redobrado vigor, a sociedade comercial interrompida,
anulando não apenas o banimento e a proscrição de Vermaíza, mas
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até mesmo o repúdio de Paris. De súbito Ben-Atar sente na escuridão
a presença do rabino ao seu lado, que retira da janela o talit
pendurado como cortina, não para que a luz suave da lua venha
afagar a mulher morta, imersa nas trevas, mas para ocultar sob o
tecido do xale o rosto que aos poucos se torna lívido, e desse modo
começar a separar a Segunda Esposa de seu marido.
Com expressão grave, Ben-Atar fita o pequeno rabino e anuncia
que não tem a menor intenção de realizar ali, naquela Verdun
amaldiçoada, nem o serviço fúnebre nem o enterro, pretende levar o
corpo de sua amada Segunda Esposa até Paris, para demonstrar de
maneira incontestável à teimosa mulher que os repudiou e a seu
irmão, o senhor Lavinas, que aquele que está à sua frente é dali em
diante um sócio legítimo e legal, esposo de uma única mulher, e que
portanto será possível renovar, embora pela ira e pela dor, a
sociedade rompida, e mesmo consolidá-la para todo o sempre com o
testemunho de um túmulo e uma lápide erguidos no meio do pátio
de sua casa.
Ben-Atar sente a comoção e a fúria do rabino crescerem a ponto
de, quase ignorando os laços de fidelidade que o unem ao patrão,
dirigir-se a ele com duras palavras de crítica contra o propósito
insensato que irá macular a dignidade da morta. Mas Ben-Atar se
recusa a ouvir qualquer objeção, mesmo que sustentada por alguma
citação da Bíblia ou lei rabínica. Tira da prateleira o frasco que
contém a poção amarelada, engole de uma só vez todo o conteúdo, e
sai cambaleante da pequena casa. Na porta de entrada dá de
encontro com o médico convertido, que vem em companhia de seu
conversor, o sacerdote, e tomado do mais completo desespero, sem
dizer uma palavra, afasta-os da frente, com um empurrão, para
dirigir-se como um sonâmbulo em direção aos judeus de Me que,
apavorados, tentam comer em silêncio a sua refeição frugal. Então,
Ben-Atar mergulha no interior do pequeno bosque, e, lá, suas pernas
vacilam e ele se deixa cair pesadamente entre as árvores, desejando
não a morte, mas apenas o sono, e uma vez mais o sono.
Ela morreu, diz o rabino em tom de amarga censura ao médico,
que não parece nada espantado nem tenta se desculpar pela falsa
esperança suscitada inúmeras vezes nos últimos dias. O médico se
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dirige ao padre e lhe transmite com calma a notícia da morte, a fim
de que o homem da igreja constate que não houve nenhuma
parcialidade no atendimento prodigalizado à viajante, e sim do
simples respeito ao seu dever de médico, e que não só cristãos
expiram em seu leito, mas judeus também.
Para dar uma última demonstração de sua boa-fé, convida o
culto rabino a entrar novamente em sua casa, no quarto banhado
pela luz da lua, para lhe mostrar a enferma, de quem o anjo da morte
se apiedara e abreviara os sofrimentos. Preocupado, o pequeno
rabino andaluz o segue para se assegurar de que os dois não se
aproveitarão da mulher inerme — cuja cabeça o médico agora segura
entre as mãos —, para realizar qualquer ato indigno ou desonroso,
como um sinal-da-cruz, ou alguma estranha oração de corpo
presente. Mas não parece que o sacerdote pense ter o poder de
converter um morto para abrir-lhe as portas do paraíso e, assim, seu
interesse não está tão voltado para a alma da infiel, que já voou ao
encontro do seu destino, mas muito mais para a causa fisiológica da
morte e para o mistério daquele intenso espasmo, que na douta
língua dos antigos gregos o médico denomina tétanos, como se
assim pudesse acrescentar à doença, além da gravidade, beleza e
importância.
O rabino Elbaz, com o coração despedaçado à vista dos
pequenos pés imóveis da mulher defunta, censura o médico, com a
voz embargada pelas lágrimas, a ofensa das promessas falazes,
embora desta vez não no latim precário aprendido dos cristãos de
Sevilha, mas sim na antiga língua dos judeus, que tem o poder de ser
extremamente comovente quando se trata de cólera e decepção.
Perturbado pela roupagem antiga com que se reveste a condenação
emocionada que lhe é dirigida de novo, e tentando talvez defender o
anjo da morte, que parece ter se enganado em sua empreitada,
aproxima-se da janela, abre-a de par em par e observa os sete judeus
de Me , cansados e perplexos, em torno da Primeira e agora única
Esposa, que lhes oferece os pães assados pelos ismaelitas. Com um
claro sinal ele os aponta a todos, e volta a dizer, desta vez não em
latim, mas num hebraico estranho e fragmentado, a segunda parte
de sua maldita profecia: Aqueles não viverão.
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Embora já tivesse ouvido essas mesmas palavras mais de uma
vez, o rabino é tomado por um tremor violento, como se justamente
o malogrado restabelecimento da Segunda Esposa, que o médico
dava por certo, conferisse maior força àquele presságio funesto e
cheio de ira. Mas vendo que seu filho, o órfão abandonado, queda-se
imóvel na entrada do quarto, os olhos negros cravados na mulher
morta, a mesma que ocupava a pequena cabine do navio separada
apenas por uma cortina do nicho onde ele costumava procurar a
doçura do sono, o rabino cai em si e retira-se do quarto com o rapaz,
para que não misture as lágrimas vertidas pela mãe com as vertidas
pela morte de outra mulher. Leva-o para a Primeira Esposa, para que
também possa receber sua parte do pão escuro e ainda quente
preparado pelos bons ismaelitas. Mesmo não sentindo nenhuma
fome, o rabino se obriga a provar do pão levemente ácido, para
recobrar um pouco as forças. Agora que o seu patrão caiu em tão
profundo sono, o rabino andaluz se verá obrigado a passar de
conselheiro para sócio e, talvez, a novo comandante.
Mas como o mercador norte-africano não tem nenhuma dor ou
espasmo que possam arrancá-lo do sono, a infusão amarelada do
médico de Verdun age com eficácia redobrada, e ele dorme, imóvel,
já há horas, no pequeno bosque vizinho ao convento, chegando a
parecer que está dominado por uma espécie de estupor divino. Na
manhã seguinte, quando Abd el-Shafi atrela, como prometido, dois
cavalos à carroça grande para reconduzir os sete judeus de Me à
sua comunidade, o rabino Elbaz decide, de improviso, e por sua
própria iniciativa, retirar com todo cuidado dois delgados braceletes
de ouro dos tornozelos frios e lisos da mulher morta e oferecê-los aos
sete fiéis. Não, Deus o livre, como pagamento por um preceito
cumprido — que deve ser entendido, como tal, como um ato
virtuoso sem nenhuma recompensa, mas apenas como sinal de
agradecimento. Ciente de quanto Ben-Atar está determinado a
impedir o sepultamento da amada mulher em um descampado
qualquer, ele ordena ao negro judeu temporário, único remanescente
do grupo desmanchado de fiéis, que recolha do pátio do convento
algumas tábuas cinzentas para com elas construir um caixão forte e
bem fechado, onde o corpo da Segunda Esposa possa ser conduzido
com dignidade e segurança até o cemitério de Paris.
Só o bater dos martelos naquela tarde de domingo consegue por
fim arrancar Ben-Atar do abismo do sono, induzido pela poção
amarelada. Em meio à nebulosa doçura do despertar lhe parece que
jamais havia içado velas e empreendido nenhuma viagem pelo
oceano, nem com a Primeira nem com a Segunda Esposa, e que está
agora reclinado em sua ampla cama no quarto de teto azul, e que os
sons vindos do pátio interno indicam que seus filhos mais velhos se
apressam a cumprir o preceito que determina a construção de uma
cabana. Rapidamente se desfazem em torno de seus olhos os últimos
vestígios de sono, e Ben-Atar já começa a sentir a dureza do chão,
enquanto entre as folhas em tons de vermelho a esvoaçar por toda
parte entrevê o céu cinzento da Europa, que conseguiu transformar o
repúdio em proscrição, e a proscrição em morte.
De um golpe é atingido pela lembrança, e uma dor intensa, pela
fome e pela morte, atravessa o seu cérebro. Ergue-se e vai a um
regato próximo lavar o rosto, enquanto seu nariz lhe traz o odor de
uma fogueira. Volta-se e vê a mulher viva, que decerto permaneceu o
tempo todo a seu lado, cuidando para que ele dormisse sem ser
perturbado, sucumbindo ela também, por fim, ao sono. Dorme
agora, em sua túnica descomposta, ao lado das chamas sobre as
quais se encontra um prato aquecido para ele. No silêncio do
bosque, sem sair à procura do rabino ou de qualquer outra pessoa,
ele se atira sobre a comida como um animal esfaimado, fartando-se
do prato um pouco queimado, ao qual a fome de dois dias e duas
noites confere um tempero maravilhoso. Sem despertar ainda a
mulher da sua juventude, ele vai em primeiro lugar à casa do
médico, de onde sai uma fumaça azulada, para ver se, quem sabe,
ocorreu o milagre de uma ressurreição.
Ben-Atar entra mais uma vez na casa onde nos dois últimos dias
entrou e saiu com toda desenvoltura, como se fosse sua própria casa.
Junto ao fogão, sob a chaminé, encontra a esposa do médico
mexendo o jantai com uma grande colher de pau. Seus pequenos
olhos azuis o observam com um brilho de censura, como se dissesse:
já era tempo de despertar. Ele curva a cabeça sentindo-se culpado, e
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com o coração opresso entra no quarto, e se surpreende ao encontrar
a Segunda Esposa embalada como um pacote pronto para ser
despachado. Surpreso, não sabe de quem foi a ideia ousada de
embrulhar assim a sua amada sem consultá-lo. Pode ter sido o
médico, ou talvez o rabino andaluz, impaciente para retomar logo a
viagem.
Sem mais demora ele fecha rápido a porta do quarto atrás de si e
febrilmente liberta a Segunda Esposa de sua prisão. De novo
contempla o rosto formoso, cujos traços se tornaram muito mais
marcados durante a noite, a ponto de se assemelhar aos de um
grande e estranho pássaro. A mão trêmula hesita em abrir um pouco
as pálpebras, e surpreender pela última vez o brilho de esmeralda,
conhecido e amado, que sempre lhe fez estremecer o coração.
Enquanto se despede, com um beijo e um afago, daquele corpo que
lhe deu tanto prazer e alegria, ele ouve atrás de si o rabino Elbaz,
entrando sem bater à porta para olhar com total liberdade a mulher
estirada à sua frente, como se a morte o tivesse transformado, por
fim, em seu segundo esposo.
Logo ele faz a Ben-Atar um relato das decisões tomadas no
transcorrer do dia, sem pedir desculpas nem se justificar, como se
fosse normal e esperado que ele assumisse o comando durante o
sono do patrão. Assim como no episódio da decisão de partir para
um novo julgamento em Vermaíza, Ben-Atar se assombra com a
ousadia do pequeno rabino, não apenas em retirar com as próprias
mãos, por sua conta e risco, os braceletes dos pés de sua esposa para
com eles presentear os judeus de Me , cujo fim talvez esteja
próximo, como também por sua iniciativa de dar ao médico a mula
comprada em Spira em pagamento pelas ervas medicinais, o
tratamento, a poção amarela, as sangrias, bem como pela
hospedagem do corpo. Mas Ben-Atar não diz uma só palavra de
censura, pois ouve agora que, para sua alegria e gratidão, o rabino
Elbaz concorda em adiar o enterro, e mesmo já deu ordens expressas
aos ismaelitas que se apressem a construir um caixão forte e bem
fechado.
A caravana norte-africana não se demora mais entre as muralhas
de Verdun, e já é meia-noite quando Abd el-Shafi retorna de Me
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com a carroça grande. O caixão é colocado sobre ela, e o rabino e
Ben-Atar preparam assentos confortáveis de ambos os lados, para
que possam acompanhar a esposa morta durante a viagem com
versículos dos Salmos, que encorajem e tranquilizem sua alma a
caminho da última morada. Os dois carroceiros ismaelitas, nesse
ínterim, reforçam as ferraduras dos cavalos e ajustam os arreios,
enquanto o pequeno Elbaz lubrifica os eixos das rodas. Entrementes,
o jovem africano, que Abd el-Shafi ainda não teve tempo de libertar
dos vínculos de seu judaísmo, organiza, sob a vigilância da Única
Esposa, alimentos e utensílios de cozinha, colocando-os na carroça
pequena. Quanto ao médico, parece que tenta em vão se resignar à
partida dos viajantes judeus e, depois de ter amarrado a mula à
árvore ao lado da casa, não se cansa de perambular entre eles,
riscando vezes seguidas na terra o melhor e mais seguro caminho até
Paris, enquanto em seus olhos brilha uma lágrima furtiva. Ao
despontar do dia, quando se ouve o estalar da primeira chicotada, o
médico irrompe de repente e exclama emocionado Vós vivereis!, e
em perfeito latim garante aos viajantes: Vós retomareis aos vossos
ismaelitas, e lá vivereis, e repete as últimas palavras na língua
sagrada, Lá vivereis!
Ao movimento vagaroso das rodas dos carroções que partem na
direção oeste, a alma de Ben-Atar se vê colhida pela dor da separação
definitiva do lugar onde os lábios da Segunda Esposa se abriram
para o seu último sorriso. E às palavras do rabino, que começa a
entoar uma oração propiciatória para a viagem, correm dos olhos do
esposo as primeiras lágrimas. Ergo meus olhos para as montanhas,
de onde virá meu socorro? Meu socorro virá do Eterno, o Criador
dos céus e da terra. Não permitirá que teus pés fraquejem, nem que
adormeçam tuas sentinelas. E eis que não adormecerá nem será
levado pelo sono o Guardião de Israel. O Senhor é tua sentinela. O
Senhor te acompanha como tua sombra à tua direita. De dia, não te
molestará o sol, nem a lua, à noite. O Senhor te guardará de todo mal
e protegerá tua alma. O Senhor te guardará ao saíres e ao voltares,
desde agora e para todo o sempre.
Assim viajam de Verdun a Châlons, de Châlons a Reims, de
Reims a Meaux, de Meaux a Paris. Por um caminho bem gravado na
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memória dos cocheiros e nas narinas do idolatra. Como as noites são
frias, e por vezes também fustiga a chuva do outono, preferem
pernoitar nas estalagens ou nas casas dos camponeses, não deixando
jamais que o caixão com a Segunda Esposa fique apenas à guarda
dos ismaelitas, mas sempre acompanhado por um judeu, seja Ben-
Atar ou o rabino, a Única Esposa ou o jovem Elbaz. No terceiro dia,
véspera da festa de Sucót, já se pode sentir o odor sufocante e
adocicado que emana do caixão fechado, e quem erguer a cabeça
para o céu observará uma águia negra que sobrevoa pacientemente a
caravana já há algumas horas. Portanto, pela dignidade da morta
querida, que anseia por retornar ao pó, o rabino de Sevilha decide
exercer o direito rabínico de transmudar a terra firme em mar, e a
carroça em navio, de modo a não ter de interromper a marcha para
os festejos de Sucót e poder recitar as orações e cumprir os preceitos
no decorrer da própria viagem, acelerando desse modo, depois de
ter reduzido o tempo das paradas para as refeições e o repouso, a
marcha para a île-de-France. Até mesmo quando Abd el-Shafi
descobre com um dos camponeses ao longo da estrada uma nova
forma de arado, com uma segunda lâmina encurvada, que despeja
para o lado a terra saída do rego recém-aberto, tornando-o assim
mais largo e mais profundo, Ben-Atar não permite que ele se
detenha para observar melhor a inovação e copiá-la num desenho, o
que muito ajudaria os camponeses de Tânger e redondezas, mas
insiste na decisão de manter firmes as chicotadas nos cavalos para
incitá-los a seguir.
No amanhecer do segundo dia da festa de Sucót, ao cruzar a
ponte do rio Marne durante a oração matinal, e tomar o rumo do
Ocidente, seguindo a movimentada margem setentrional do rio
Sena, já podem remover e dobrar o toldo negro que cobre a carroça
grande, e expô-la ao mundo, para que o fresco perfume da vegetação
da margem do no os alivie um pouco dos maus odores que dela
emanam. Embora essa exposição os obrigue a espantar a águia e um
ou outro corvo que vêm pousar sobre o caixão, o espírito dos
viajantes se anima com a bem conhecida vista da ilha e da
cidadezinha franca, com seus telhados, suas torres e campanários,
que surgem com muita graça no meio do rio. À entrada de Paris, os
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norte-africanos sentem-se envolvidos por um agradável calor, como
se a breve estada de trinta dias antes bastasse para lhes infundir no
coração um sentimento de pertença. E quanto mais se aproximam
dela, no rumo do sol poente, mais se animam e se inquietam à
procura, por entre os navios ancorados no porto, da bandeira verde
do velho e bojudo navio patrulha.
Todavia, enquanto os cavalos não estacam bem à sua frente, os
viajantes que retornam não conseguem reconhecê-lo. Mesmo o
capitão se queda boquiaberto à vista da transformação radical por
que passou o seu navio. Durante os trinta dias em que estiveram
ausentes, o sócio Abu Lutfi, que ficou entregue ao ócio mais
completo, resolveu por conta própria se tornar, de sócio comprador,
sócio vendedor, para ter uma ideia melhor do valor das mercadorias
do deserto aos olhos dos habitantes locais. Para isso adornou o velho
navio patrulha com uma profusão de retalhos coloridos e vestiu os
cinco tripulantes de maneira bem vistosa, para encantar os
parisienses. E entre as jarras de azeitonas e os montes de frutas secas,
entre os favos cheios de mel e as pilhas de bandejas de cobre
cinzelado, os cinco vigorosos marinheiros se movimentam
febrilmente, como ágeis vendedores, envoltos em véus de seda e
com turbantes multicoloridos, e parece mesmo terem conseguido
aprender algumas expressões melífluas no idioma língua local.
Também é possível que Abu Lutfi, de sua parte, tenha tido
dificuldade em reconhecer seu sócio judeu, postado, com a sua
comitiva, na margem do rio de Paris, pálido, magro, as roupas
gastas, pois o ignora, prosseguindo, do convés, em uma animada
discussão com um comprador local. Mas ao toque da mão tépida do
escravo negro, que escalou agilmente o costado do navio, ele perde a
respiração, solta das mãos a jarra de cobre, cai de joelhos e se prostra
imóvel, agradecendo ao Deus dos judeus por não ter atrapalhado o
grande Alá em seu mister de trazer de volta seus queridos amigos,
tanto os judeus quanto os ismaelitas, da sombria cidade ashkenazita.
Após as mesuras e as reverências, os beijos e os abraços, e após as
comovidas palavras de graças ao destino que os pôs a salvo dos
aventureiros, parece que Abu Lutfi não está nem um pouco
interessado em se informar dos resultados da empreitada, e se o
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sócio judeu teve êxito em derrotar os adversários com o auxílio do
rabino no segundo julgamento, no Reno. Tudo indica que o ismaelita
anda persiste na opinião de que toda aquela grande viagem, por mar
e por terra, é inútil em sua essência, pois os judeus não são capazes,
pela sua própria natureza, de chegar a uma decisão final e definitiva.
No intuito de relatar a Abu Lutfi a decisão a que, apesar de tudo,
se chegou, embora não pela virtude das palavras, Ben-Atar o conduz
à popa do navio e lá, entre sacos de condimentos e caixas de frutas
secas, ante a portinhola que leva à cabine abrigada da mulher que
não retornou, ele narra, pausadamente, o duro golpe desferido sobre
eles pelo braço do anjo da morte, e aponta o caixão fechado que
repousa sobre o cais, tendo a seu lado, como uma pequena sentinela,
o jovem Elbaz. Embora Ben-Atar houvesse previsto como o impacto
da notícia da morte da jovem esposa seria duro e terrível para seu
sócio, que ano após ano se empenhava em encontrar entre as tribos
do deserto um presente refinado e especial para ela, não imaginara o
quanto a notícia poderia ser devastadora para Abu Lutfi, que agita
as mãos no ar e segura a cabeça em desespero, como se a morte que
ousou tirar deste mundo uma companheira tão querida fosse
igualmente capaz de levar aquela cabeça grande, de farta cabeleira
negra. Ao deparar com a angústia do árabe, que saca uma pequena
adaga do cinturão para dar um talho em seu próprio manto, em sinal
de solidariedade, explode em Ben-Atar, pela primeira vez, o terrível
grito da ruptura, que até ali estivera contido.
Mas o sol cálido do outono parisiense não se detém no céu para
esperar que se aplaquem todos os sentimentos de dor e tristeza, de
carinho e esperança que se misturam no grande encontro que tem
lugar sobre o convés do navio, e já o rabino Elbaz dá sinais de
impaciência à cena que se repete, por vezes seguidas, dos dois sócios
que tentam se consolar mutuamente, como se tivessem sido os dois
maridos de uma única mulher; portanto ele declara sem efeito todas
as licenças que ele próprio concedera para o adiamento do enterro
desde a partida de Verdun e, firme em seu intento, coloca-se frente a
frente com Ben-Atar e exige que o enterro seja realizado de imediato.
Para tanto é preciso ir sem demora à casa que fica na margem oposta
do rio, avisar aos parentes responsáveis pelo repúdio e o banimento
p p p p
que tudo o que consideraram resolvido e selado virou pelo avesso, e
intimá-los a providenciar nesta mesma noite um local para o enterro
da mulher desaparecida.
Imediatamente, porém, surge a pergunta se os parentes já
retornaram a Paris, ou se resolveram permanecer por mais algum
tempo nas margens do Reno, para passar o lom Kipur e a festa de
Sucót em Vermaíza e comemorar com a sagrada congregação o
sucesso da proscrição que foi imposta. Enquanto o rabino Elbaz
cogita em enviar em missão secreta seu esperto filho, em companhia
de um dos marinheiros, para descobrir quem se encontra na casa da
margem oposta, Abu Lutfi afirma que nada disso é necessário, pois
dois dias antes ele identificara entre os parisienses que passeiam
sobre seu convés a figura de Abuláfia, pálido e tristonho, disfarçado
de velha camponesa.
Assim, diz Abu Lutfi, habituado aos engenhosos disfarces do
jovem sócio desde os tempos da Marca da Espanha, não há mais o
que esperar, não vê motivo para não se porem imediatamente a
caminho. Fica decidido que à frente do cortejo fúnebre irá o próprio
rabino Elbaz, e que o esposo banido ficará oculto, à distância, para
evitar um novo e irreparável repúdio. Logo se pede aos cinco
marinheiros vendedores que se desfaçam de suas vestes
multicoloridas e se vistam com mantas limpas e discretas, para que
possam carregar dignamente o caixão de madeira cinzenta pelos
becos da Cite até a casa dos judeus na margem sul que, pela direção
da corrente do rio, é a margem esquerda. Na rua de La Harpe, a "rua
da harpa", próximo à estátua de Davi que olha para a fonte Saint-
Michel, nas últimas luzes do crepúsculo, entra o rabino andaluz,
sozinho, pelo portão de ferro grosseiro, difícil de abrir, como se
recorda bem. No canto do pátio interno, ao lado do poço, encontra
um pequeno tabernáculo feito de ramos, e seus adversários reunidos
para o jantar festivo, à luz de um pequeno lampião. Mas ele não se
aproxima, apenas tosse levemente para se fazer notar. E a primeira a
ouvir é justamente a senhora Esther-Míriam, que espia da entrada do
tabernáculo, porém não reconhece o visitante. Assim, ela chama
Abuláfia, que aparece, tendo na cabeça o chapéu de veludo em
forma de chifre de carneiro, à moda de Vermaíza, vestido de preto,
p
como se antecipando o luto que iria se abater sobre ele. Apesar da
escuridão, Abuláfia reconhece naquele estrangeiro não convidado o
rabino andaluz, e um tremor se apossa de seu corpo, como que
pressentindo que algo havia acontecido. Sem hesitar, avança na
direção do pequeno rabino, e lhe dá um abraço de boas-vindas.
Desta vez, contudo, Elbaz não quer saber nem de abraços nem de
boas-vindas, mas tão somente da localização do cemitério judeu,
santificado e próximo, onde possam enterrar o caixão que trouxeram
até aqui. Caixão?, pergunta Abuláfia, temeroso. Que caixão? E o
rabino o leva até a rua, até os cinco tripulantes do navio que rodeiam
o caixão, agora colocado sobre o calçamento da ruela.
O que contém?, sussurra Abuláfia com angústia, a voz opressa,
pois é possível que também às suas narinas chegue o terrível e
adocicado odor. O rabino se enche de piedade à vista do terror
estampado no rosto do frágil sócio, que se queda imóvel e trêmulo
diante do grande caixão, e receia ficar sabendo que contém o corpo
de seu tio renegado. Neste momento se aproxima a Nova Mulher, a
senhora Abuláfia, que vem saber o que é que atrai e retém seu jovem
esposo. Parece que ainda não se dá conta do caixão e dos
marinheiros que permanecem postados no centro da ruela, mas
apenas da presença do rabino Elbaz. Seu rosto pequeno e delicado
enrubesce de prazer à vista do sábio de Sevilha que a venceu uma
vez, mas foi por fim derrotado, e ela o cumprimenta com uma leve
mesura, em sinal de respeito, e pergunta com um sorriso cordial:
Voltaram?
Entretanto, a situação já passa dos limites para o mercador norte-
africano, e ele surge da sombra, cabelo e barba revoltos, a túnica aos
andrajos, os olhos fundos, e, antes que a senhora Esther-Míriam
possa recuar, ele responde à pergunta com toda clareza: Voltamos,
mas não todos nós. Com uma expressão de turvo desespero, a que
não falta a alegria da loucura, ele se lança sobre o caixão e arranca
uma tábua, para oferecer uma prova irrefutável de que é possível,
dali em diante, renovar a velha sociedade sem contestar qualquer
novo edito rabínico. Enquanto Abuláfia se apoia no muro para não
desmoronar, Ben-Atar crava seus olhos negros diretamente naqueles
olhos azuis, bem abertos, e pergunta num tom agressivo: Ficou
satisfeita agora a Nova Mulher?
Capítulo 6

A atitude enérgica do rabino de Sevilha teve êxito, e naquela


mesma noite a Segunda Esposa foi enterrada num pequeno
cemitério fechado, entre um belo vinhedo, propriedade do príncipe
Galaand, e uma pequena capela dedicada ao desventurado são
Marcos. A princípio Ben-Atar exigiu que a Segunda Esposa fosse
sepultada no próprio pátio interno da casa de seu sobrinho, para que
sua família pudesse vigiar e conservar o túmulo. O emocionado
Abuláfia se dispôs de imediato a cumprir a vontade do tio, mas o
senhor Lavinas refutou delicadamente a proposta, por lhe parecer
uma ideia apenas vingativa, conseguindo convencer o mercador, e
em especial o rabino andaluz, a não abandonar a morta no pátio de
uma família judia, que hoje pode estar aqui e amanhã ter ido para
outro lugar, e sim sepultá-la em um cemitério de verdade, ao lado de
outros mortos, para que não seja esquecida no dia do Juízo Final.
Enquanto os marinheiros, agora transformados em coveiros, limpam
o mato e cavam uma cova grande e profunda, Ben-Atar, triste e
exausto, ouve distraído as palavras do senhor Lavinas, que no
momento exalta as vantagens do lugar onde o norte-africano enterra
a esposa. E estranho que o senhor Lavinas, um judeu culto e
esclarecido, que a custo suporta ouvir as histórias populares dos
judeus, e menos ainda as dos cristãos, abra uma exceção para contar
para o norte-africano a saga de Marcos, o caçador, que, depois de ter
matado cruelmente uma corça e seu veadinho sob o olhar
aterrorizado de um veado, o viu abrir a boca e lhe rogar uma terrível
praga em língua humana, dizendo que aquele que não teve piedade
de uma mãe e de sua criatura terá por destino matar
involuntariamente a própria esposa e filho. Para evitar a realização
dessa cruel profecia, Marcos se refugiou em uma cabana entre
antigos túmulos merovíngios, colocou uma robusta porta de ferro
com trancas, e também uma reforçada grade na janela, e dali em
diante se alimentou tão-somente da generosidade dos peregrinos
que partiam pela estrada de Saint-Jacques rumo aos santuários dos
países do Sul. Por ter conseguido escapar dessa tremenda profecia
graças apenas à sua força de vontade, seu erro foi transformado em
mérito, seu pecado em exemplo de santidade, e sua casa em capela,
que passou a assinalar o ponto de partida para os peregrinos que
iniciam sua longa jornada.
O marido enlutado ainda não consegue entender o verdadeiro
sentido dessa estranha história narrada pelo senhor Lavinas.
Contudo, desde que iniciaram o cortejo fúnebre noturno se reforça
nele a convicção de que a morte de sua Segunda Esposa vem, com
certeza, anular a proscrição e o anátema que lhe foram impostos em
Vermaíza pelo juiz de cabelos ruivos, o cruel e poético cantor das
orações. Pois não só Abuláfia, com o coração esmagado de pesar e
culpa pela morte da jovem, não abandona por um instante o
desolado tio com a submissão de um escravo a seu senhor, como até
mesmo o reservado senhor Lavinas não consegue permanecer
indiferente ao infortúnio que se abateu sobre os derrotados, tanto
pelas leis como pela própria vida, e assim se esforça para ouvir com
indulgência e simpatia o relato da agonia e morte da jovem,
infortúnios que o rabino Elbaz expõe para ele com intensa emoção.
O rosto da senhora Esther-Míriam, o belo rosto de raposa, já
deixa transparecer não só compaixão e solidariedade, mas
igualmente os primeiros sinais de uma nova inquietação. Enquanto
seus pés afundam na terra recém-escavada à beira da cova, ao ouvir
as palavras da prece fúnebre entoada pelo rabino, ela se dá conta de
que a longa e audaciosa jornada empreendida pelo tio norte-africano
atingiu, apesar de tudo, seu objetivo. Com o corpo esbelto envolvido
numa mortalha de seda verde, que parece escorregar por suas
próprias forças para seu último descanso entre a capela e o vinhedo,
cai por terra, também, o último obstáculo que deveria impedir seu
marido de alma errante de pôr-se novamente a caminho.
E se, pensa com ânsia, ela insistisse em tomar também o cajado
dos andarilhos e seguir junto com o marido? Será que ele
concordaria em levá-la como acompanhante? Ou a obrigaria a ficar
em casa e cumprir a promessa de zelar por sua pobre filha, que ela
p p p p q
mesma se apressou em arrancar da ama ismaelita e tomar aos seus
cuidados? Sendo assim, insiste a senhora Abuláfia nas suposições
dolorosas, quem aquecerá seus pés frios à noite, agora que ela já se
acostumara à suavidade das mãos daquele homem vindo do Sul?
Quem lhe concederá o último vislumbre de esperança de ver
fecundada a sua esterilidade, ainda que apenas para demonstrar à
inflexível sogra em Vermaíza que não fora sua a culpa?
Mas até que se esclareça o rumo que a disputa irá tomar dali por
diante, ela tenta apaziguar o espírito de Ben-Atar, pois nem mesmo a
escuridão da noite consegue ocultar a magnitude do ódio que ele
nutre por ela. Ao final do enterro, a senhora Esther-Míriam reúne
coragem e se aproxima do tio de seu marido, murmurando palavras
de condolência e convidando-o gentilmente a ir para sua casa com a
Primeira Esposa, e única, tia querida e importante também para ela,
para que ambos, assim como o digno rabino e seu filho, sejam
recebidos com todo respeito como hóspedes honoráveis e possam
cumprir o preceito de permanência na cabana da festa de Sucót, pois,
se no passado ela não hesitara em hospedar a família dupla, agora
ainda havia mais motivos para convidá-los.
Ben-Atar, contudo, em cuja túnica o pequeno rabino executou
um talho extenso e cruel, faz com a mão um gesto de recusa, e se
nega a ir à casa dos Lavinas, visto que deseja voltar logo ao navio e
se fechar com seu luto, justamente na pequena cabine de popa, a
última casa da amada esposa morta. Não há a menor possibilidade
de que as súplicas da mulher loura ou os pedidos do sobrinho o
façam mudar de ideia. Assim ele ordena com voz gélida e autoritária
aos tripulantes que subam o caixão vazio e retornem ao velho navio
patrulha, e somente no navio ele se dispõe a receber aqueles que
quiserem lhe fazer uma visita e lhe dizer palavras de condolências,
conforme determina o preceito de conforto aos enlutados.
Ás primeiras luzes da manhã, após uma longa noite de insônia, a
senhora Esther-Míriam escolhe bebidas e alimentos da melhor
qualidade, ordena a uma serva teutônica que os leve, e
acompanhada de Abuláfia vai fazer uma visita matinal de
condolências ao navio que ostenta sinais de luto, embora o luto
recaia apenas sobre uma pessoa a bordo, pois a Primeira Esposa,
p p p p
mesmo que assim o deseje, não pode ser considerada enlutada pela
morte de uma segunda esposa, por não serem consanguíneas. No
posto de comando da proa do navio, entre os marinheiros que
despertam, Abuláfia e a mulher vão ao encontro da Primeira Esposa,
cujo rosto franco mantém uma expressão séria enquanto lava com
todo cuidado as duas finas túnicas de seda da esposa morta, que
Ben-Atar pretende deixar como herança ao órfão, para que, chegado
o momento, vista com elas a sua noiva, e talvez assim tenha um
pouco de consolo por ter ficado sem mãe, e sem sequer uma
sepultura ou lápide onde possa chorar, Abu Lutfi recebe os
visitantes madrugadores com uma reverência, agradece à serva
gentia que lhe entrega os alimentos e bebidas num grande saco de
pele e conduz o renovado sócio e sua comovida esposa à popa do
barco.
Esta é a primeira visita ao navio magrebino para a senhora
Esther-Míriam, que avança com dificuldade, em passos incertos,
sobretudo quando desce lentamente pela escada de cordas ao espaço
escuro do porão do navio, onde as primeiras luzes da manhã se
misturam aos aromas das diversas mercadorias do deserto, que
permaneceram tanto tempo imobilizadas entre o Sul e o Norte em
razão do obstinado repúdio. A nova hóspede, ainda estupefata com
a capacidade da pequena nave, sobressalta-se ao zurro do
dromedário que se ergue sobre as suas longas pernas, com nobreza e
mansidão, para dar as boas-vindas à mulher nascida entre o coaxar
dos sapos e o uivo dos lobos, saudando-a com sua cabeça pequenina.
A Nova Mulher encontra uma serenidade sedutora e desconhecida
neste animal do deserto, com suas pernas tão compridas, tão suave e
paciente, cujo pequeno crânio pode talvez atestar pouca inteligência,
mas não mau caráter.
Por fim a ashkenazita adentra a cabina inclinada da Segunda
Esposa, cuja alma ainda persiste em esvoaçar pelos cantos, e onde
seu esposo Ben-Atar decidiu receber as condolências, ali nas sombras
do porão, ao som do marulhar das águas do rio sob o piso, entre
paredes que se desconjuntaram em velhas e esquecidas batalhas
navais e foram recompostas pelo capitão e seus marinheiros para
esta viagem. Por ter, nos meses de convivência durante a viagem
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para Ville-les-Juifs e depois para Vermaíza, conseguido se inteirar do
sentido de algumas palavras em árabe, a senhora Esther-Míriam
compreende que a conversa entre o tio e o sobrinho não versa sobre
o sofrimento da mulher perdida, nem sobre a recordação das suas
virtudes, mas vai direto aos planos e às esperanças no futuro da
sociedade renovada. Até Abu Lutfi, o tranquilo sócio ismaelita,
parece se deixar levar pelo entusiasmo e com gestos expressivos
descreve as qualidades e as quantidades de cada um dos artigos à
venda, que já há quase três meses anseiam por sair do porão escuro e
espalhar-se pelo mundo iluminado ao seu redor. Diante daquela
explosão de loquacidade comercial árabe, os olhos azuis da senhora
Abuláfia se velam de tristeza. Deixa a pequena cabine e vai percorrer
as fileiras de grandes ânforas e sacos abarrotados de condimentos,
pousar as mãos macias sobre as pilhas de peles e tecidos, fazendo
soar com a ponta do sapato as bandejas polidas de cobre, até se
colocar silenciosa diante do jovem Elbaz, que junto com o negro
adorador dos deuses alimenta o filhote de camelo com um dos
pãezinhos que ela trouxera para os viajantes do navio.
Talvez tenha sido neste momento que tomou forma dentro dela
uma estranha ideia, a qual, a despeito de tudo, poderá fazer surgir,
depois das festividades de Sucót, uma nova realidade. Desde o dia
anterior a senhora Esther-Míriam não cessa de imaginar de que
forma poderá defender seu casamento tardio das renovadas
andanças do marido. Isso não só para privar seu irmão do sorriso
vitorioso de satisfação em ver confirmadas as advertências que lhe
fez no ano 4756 em relação ao capricho de insistir no casamento de
uma viúva já madura com um tipo errante e incerto, vindo das terras
do Sul, mas sobretudo por lamentar dolorosamente cada noite
perdida em perseguir o sonho que ainda palpita nela. Assim, depois
de voltar à cabine, onde se lamenta a morte, e se despedir de Ben-
Atar, que parece agora atenuar um pouco seu desdém, ela recebe do
marido permissão para voltar sozinha para casa e deixá-lo em
companhia de seus sócios reconquistados, para que conversem à
vontade.
A senhora Esther-Míriam, entretanto, não tem a menor intenção
de ficar quieta no seu canto à espera de que o marido retome as suas
q p q
peregrinações. Antes, deseja provar a si mesma que uma simples
faísca é capaz de provocar um incêndio. À tarde, ao ver que o esposo
demora a voltar, ela decide ir novamente até o navio, levando
bebidas e alimentos, como prescreve a norma da visita aos
enlutados, e, também, a pobre menina, banhada e vestida com uma
ampla e bela túnica. Embora o andar da atônita criança seja pesado e
desajeitado, ela consegue arrastá-la pelos meandros das ruelas da
ilha, entre os parisienses que se apressam para o jantar. Sem maiores
transtornos, ergue a menina, atravessa a nova ponte e segue até o
navio ancorado na margem setentrional. Porém não encontra o
marido, que saiu junto com Abu Lutfi para oferecer suas
mercadorias no mercado de Saint-Denis; assim não tem alternativa
senão, agitando os braços com energia, chamar a atenção do pagão
que está sozinho na ponte de comando, com os olhos voltados para o
Oriente, para pedir-lhe que a ajude a erguer a pesada menina ao
convés e depois a leve ao porão do navio, por imaginar que o
encontro com o nobre e triste animal vindo do deserto possa
acalmar, ainda que brevemente, sua alma desesperada.
Embora a menina trema de medo e agarre com força a túnica da
mãe postiça, a senhora Esther-Míriam percebe, pela sua experiência
e sensibilidade, que, não obstante o medo, a menina sente o odor de
sua infância magrebina e, ao ver o camelinho, reconhece algo de seu
mundo perdido, pois cessa o tremor e ela fixa seus grandes olhos
negros no rabinho que balança pacificamente. E talvez bem aqui
esteja a solução do problema que me atormenta, exclama de repente
a alma da Nova Mulher, ainda sem distinguir com clareza qual seria
essa solução, nem mesmo qual seria o problema a exigir solução.
Então se ouve no convés a voz de Abuláfia, que conversa em árabe
com Abu Lutfi, ambos retornando ao navio, e o riso e a alegria de
viver que permeiam sua conversa em alta voz indicam que a morte
da Segunda Esposa não fez com que se repetisse seu antigo
sofrimento; pelo contrário, o libertou dessa angústia, e parece
mesmo que uma nova felicidade vem alegrar a alma do jovem
esposo, que de agora em diante, disso ela tem certeza, saberá se
proteger de qualquer nova investida contra sua querida sociedade.
Quando os dois descem ao bojo do navio, Abuláfia descobre a
filha, que, postada tranquila diante do camelinho, tenta lhe dar de
comer com sua mão gorducha uma fatia de pão preto. Uma
exclamação irrompe de seus lábios ante a grande semelhança com
sua querida esposa, que no entender de Abuláfia pretende assim
atrair o maldito feitiço que encantou sua filha e transferi-lo da alma
da filha para a alma do camelo. Embora não se saiba se aquele
obstinado diabinho será seduzido a trocar o corpo macio de uma
menina pela pequena corcova arredondada de um animal paciente,
já se pode notar no pai um olhar renovado de carinho e esperança,
pois pela primeira vez desde o término do período da velha ama
ismaelita, enviada afinal para Barcelona em seu lugar com a missão
de dar fim à sociedade, ele percebe de novo que um sorriso alegre
percorre aquela face que fora destinada a ser formosa como a da mãe
que a gerou, sem ter alcançado esse destino.
Assim, na penumbra do porão de um velho navio patrulha, entre
sacos de condimentos e ânforas de azeite, despontam novos afetos,
não só entre um camelinho e uma estranha menina, mas também
entre Abuláfia e sua esposa, uma vez que desde que a expedição
norte-africana tomou posse de sua casa parece ter se tornado difícil
para os dois, até mesmo no ato do amor, olhar nos olhos um do
outro. No dia seguinte é o próprio Abuláfia quem leva a filha e a
desce à barriga do navio que vai se esvaziando de sua carga, e pede
ao jovem Elbaz e ao escravo que fiquem atentos para que a amizade
que se consolida entre a menina e o animal não traga nenhum dano à
criança.
Enquanto isso o esposo enlutado permanece sentado, vestido
com sua túnica rasgada de ponta a ponta, na cabine escondida no
fundo do navio, cumprindo seu luto silencioso, apesar da interdição
imposta pelas datas festivas que transcorrem. De tempos em tempos
desce até ele a Primeira Esposa para lhe oferecer algo de comer ou
beber, friccionar seus pés e mãos com óleo de nozes, e falar das
virtudes da esposa morta. Também o rabino, que embora discorde
daquele luto subterrâneo, que se opõe à alegria da festa da colheita e
à obrigação de habitar nesses dias a sucá, lhe faz algumas visitas
para dizer palavras de advertência. Ben-Atar ouve e meneia a cabeça,
p p
os olhos baixos e inexpressivos, e o rosto de quem gostaria de morrer
um pouco. Mas quando os sócios, Abuláfia e Abu Lutfi, vêm visitá-
lo, ele esquece a melancolia para dizer uma frase curta, pertinente e
certeira, seja sobre o preço alcançado por uma bandeja de cobre ou a
necessidade premente de encontrar alguém na capital do reino
capetíngio que os liberte do encargo de manter o pequeno camelo.
Antes de ser posto à venda, porém, é preciso deixar o
animalzinho respirar um pouco de ar fresco e tomar sol, levando-o a
pastar nos campos e hortas viçosos do duque de Tuilleries, que
fazem divisa com um denso bosque denominado Louvre pelos
habitantes da região por causa das matilhas de lobos que o
procuram, atraídos por suas grutas. Assim, perto do fim do período
festivo, na sétima noite de Sucót, um dos marinheiros, sentado em
um prado, segura nas mãos a ponta de uma corda presa à
mercadoria de longo pescoço, que rói delicadamente as suculentas
verduras de Paris. De vez em quando suas orelhas curiosas se põem
de pé para escutar um menino judeu e um jovem pagão que
conversam na língua do deserto, e os uivos da menina atormentada,
a quem o som do idioma árabe faz lembrar a ama que lhe fora
arrebatada.
Já é outono e de quando em quando sopra sobre a île-de-France
uma brisa gelada. Os dois jovens, que sabem que dentro de poucos
dias serão chamados a subir a bordo do navio para se pôr a caminho
e que durante muitos dias e noites serão embalados apenas pelo som
monótono do panejar da vela ao vento, aproveitam agora para se
divertir bastante com o farfalhar das primeiras folhas avermelhadas
que recobrem o solo. Como o filho do rabino tem confiança absoluta
na capacidade do filho do deserto de trazê-los sempre de volta ao
ponto de partida, em especial se é tão simples e claro como a
margem direita de um rio, ele propõe a seus companheiros levá-los
em uma pequena excursão terrestre ao topo de uma colma que se
divisa ao longe, e que sem dúvida é a mesma de onde ele e Ben-Atar,
os primeiros a descer à terra, tiveram uma ampla visão daquela
cidade encantadora.
Porém o jovem não percebe que está desorientado e confunde a
colina do arco em ruínas, a oeste, com outra colina, ao norte, que lhe
q
parece mais baixa devido à mancha branca que cobre seu topo.
Como a menina muda que levam consigo caminha um pouco a
esmo, exigindo uma constante correção de rumo, o garoto andaluz,
transformado de improviso em guia de uma pequena expedição, se
pergunta se vale a pena prosseguir naquela subida que percebe ser
muito íngreme, ou se seria melhor dar meia-volta e retornar rápido
ao navio, antes que a garoa fina que os acompanha se transforme em
chuva de verdade Nesse meio tempo a chuva aumenta, colando a
roupa ao corpo, até que não lhes resta alternativa senão procurar
abrigo ao lado de uma grande choça que antes haviam evitado, pois
de sua chaminé saíam espirais de fumaça negra. Enquanto se
protegem da chuva, silenciosos sob a cobertura de palha que se
projeta do telhado da cabana, irrompe do demônio que habita a alma
da menina seu velho uivo, que supera o rufar da chuva e traz de
dentro da casa silenciosa duas mulheres sorridentes, envoltas em
vestes coloridas que, para espanto do garoto, eram feitas do tecido
de seda verde trazido no navio, trocado por ovos e queijo à época da
viagem a Vermaíza.
Ao verem os jovens visitantes comprimidos contra a parede
externa de sua cabana, as mulheres se enchem de grande alegria,
como caçadoras que encontram afinal uma bela presa Enquanto o
jovem e o escravo negro cogitam fugir, elas já alcançam a menina e a
fazem entrar na cabana. A seus amigos só resta acompanhá-la, e
talvez conseguir salvá-la. Eles se veem num grande aposento com
piso forrado de palha grosseira. Num canto arde uma pequena
fogueira, e sobre ela gira um espeto com um porquinho enfiado, que
espalha seu aroma, de olhos fechados, como se meditasse algo de
suma importância. Quando a alma do menino se enche de temor
pelo encontro próximo com aquele animal impuro e abominável, o
africano descobre, emocionado, uma fileira de estatuetas de madeira
pintadas em cores vivas, todas elas, com pequenas variações,
representando a imagem de um mesmo jovem, de face impassível,
barba curta e os braços bem abertos, a ponto de não estar claro se é
esse um gesto de quem pede socorro, ou de quem abraça o mundo
inteiro. O embaraço dos dois jovens desperta a hilaridade das duas
mulheres, que dão gostosas risadas, às quais não falta certa ousadia.
q g q
Eis que se abre a porta de um quarto e aparece uma terceira mulher,
trazendo nos braços uma criança muito magra, seguida por um
homem magro e muito velho, porém de movimentos ágeis e olhos
perspicazes, com as vestes manchadas de tinta, cujo nome, Pigalle,
os jovens visitantes têm dificuldade em entender.
Assim como o pagão se queda atônito à vista das estatuetas
enfileiradas diante de si, o dono da casa se queda impressionado à
vista do negro filho do deserto surgido em sua casa, e o puxa com
firmeza para perto de uma janela, onde faz um exame detalhado de
seus traços. As mulheres já podem perceber o desejo urgente que
irrompe no velho ágil e, como num acordo tácito, elas sorriem aos
visitantes, e lhes fazem demonstrações ainda maiores de
hospitalidade. Primeiro elas os ajudam a se desfazer das túnicas
molhadas e sugerem que se desfaçam também das largas calças, para
que venham secar-se junto ao fogo. Enquanto isso, rápidas, cortam
para si algumas fatias finas do traseiro do leitão que cochila sobre o
fogo.
O único filho do rabino de Sevilha já não suporta a ideia da
desgraça que lhe está reservada, e num salto se põe em pé para se
afastar da fatia de presunto que lhe é oferecida na ponta de uma
faca. Mas não consegue evitar que a menina, cuja nudez está coberta
agora apenas por uma pele de carneiro, aceite a carne recusada e a
enfie na boca. Quanto ao africano, embora não se saiba ao certo se já
se reconverteu do judaísmo temporário ao paganismo permanente,
sofre um ataque de fome e sede compulsivas, pois o velho magro
não desvia os olhos do jovem, que, já liberto das calças, expõe agora
sua negra nudez, e lhe oferece mais e mais doses de vinho vermelho,
talvez no intento de embotar-lhe a mente e dissolver-lhe as
resistências do corpo. Parece que o vinho franco cumpriu à perfeição
sua missão, pois o jovem negro, depois de dar graças pela refeição
com uma profunda mesura a uma das estatuetas, se deixa levar pelas
mulheres ao quartinho, onde o deitam na cama. Com movimentos
graciosos elas lhe dobram uma perna e acariciam com mãos suaves
seu jovem órgão sexual, para que fique ereto e possa fitar com seu
estreito olho o artesão emocionado, que já semicerra os olhos e traça
uma primeira linha de cor púrpura sobre um quadro de madeira.
p p p q
Os jovens são mantidos cativos desses anfitriões estranhos mas
bem-intencionados, que conservarão trancada a porta da choça até
que o velho artista termine seu estudo em linha e cor de tudo o que
de novo poderia apreender do corpo desnudo do jovem de raça
estrangeira deitado à sua frente. No entanto, em meio ao silêncio das
horas que passam vagarosas, explode o velho uivo da pobre criança,
que ameaça se tornar um grito, e as mulheres acorrem e a fazem
calar por meio de fatias finas e perfumadas da carne do leitão, que
ainda mantém sua expressão pensativa e melancólica. O menino de
Sevilha, conhecendo bem suas fraquezas, sabe que a rude fome que
o corrói poderá fazê-lo perder o controle. Então ele fecha os olhos e
os cobre com os braços, e tenta imaginar, com todas as forças, o que
pensaria seu pai se estivesse em seu lugar. Não transcorre muito
tempo até que chega a uma simples conclusão, no espírito da lógica
cristalina que rege os inflamados discursos do pai: 5se o Eterno, que
a todos observa e de todos cobra por seus atos, não se apressa em vir
arrebatar a alma da menina judia que come sem parar,
empanturrando-se da carne proibida do porquinho, talvez seja
apenas para adverti-lo de que, em vez de se deixar arrastar pela
fome, que em pouco tempo o fará desmaiar, é melhor recobrar as
forças para que possa escapar e buscar socorro.
Tomada a decisão, ergue lentamente a cabeça que mantivera
prisioneira entre os seus braços, abre os olhos e nota ao redor um
grande silêncio, pois a menina satisfeita dorme aos pés de uma das
mulheres, e, do quartinho, ouve-se apenas o soar dos golpes da
goiva num tronco de madeira. O jovem se põe em pé e começa a
andar pela sala com fingida indiferença, e o seu rosto se ruboriza ao
ver o bebê mamar no seio redondo da mulher mais moça, que o
observa com um olhar tranquilo. Então, como se nada fosse, vai até o
que sobrou do leitão ainda suspenso sobre os restos da fogueira e,
enchendo-se de coragem, examina a cara do animal e tenta entender
o segredo de sua obstinação em manter-se visceralmente impuro e
proibido. De súbito sua face se ilumina e ele decide punir aquela
teimosia. Corta um naco de carne vermelha, aproxima-o
cuidadosamente da boca e arrisca uma lambida com a ponta da
língua. Fica surpreendido com o sabor, mais parecido com manteiga
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salgada do que com carne. E, para que não sobrevenha a náusea,
enfia o pedaço na boca para mascá-lo rapidamente. Antes que sua
impureza surta efeito, ele corta mais um pedaço e o enfia na boca, e
mais um pedaço e em seguida mais outro, e ainda o último, para
revigorar seu espírito ante o terrível ato que acabara de perpetrar. Só
então vai até a porta, ergue a aldrabã e escapa, sem se importar com
os gritos das mulheres que tentam impedi-lo.
Pelo tom róseo que tinge agora o céu, parece que a prisão foi
muito longa e o anoitecer não tardará. Ele vai direto ao rio, que deve
estar bem à sua frente. E, pela primeira vez desde o início da viagem,
está completamente sozinho, nos campos desabitados que rodeiam a
pequena ilha parisiense. Toma todo o cuidado para não se
aproximar das choças que pontilham o caminho, e dá uma grande
volta para passar bem longe de uma muito grande, e com muitas
janelas, de onde vem o som alto de vozes que cantam, como se o
jovem Elbaz também andasse torto, como a menina, perdendo o
caminho. Suas pernas se confundem pelas trilhas e tomam por fim o
rumo do oeste, e não do sul, até que em pleno crepúsculo ele se
encontra não à margem do no prateado, mas no topo da pequena
colina da estrela, junto às ruínas do arco romano, onde estivera
naquela primeira tarde com o chefe da expedição. Então, o corpo do
jovem é acometido por um tremor, e ele dá graças, aliviado por ter
afinal encontrado o caminho. Sem conseguir vomitar o que havia
comido, cai de joelhos como aprendera do pagão negro e jura expiar
por jejuns e orações o pecado que cometera. Como as sombras da
noite engolfam as últimas cintilações irisadas do crepúsculo, no
coração do no os parisienses já começam a acender as luzes que
indicarão a direção exata ao jovem caminhante. Ele escolhe
novamente a avenida que o conduz à grande praça que margeia o
rio, e, surpreso, descobre em seu ponto central o pequeno marco
feito de pedras que ele próprio havia construído naquela tarde
longínqua, e que ainda se dispõe a indicar o caminho de volta.
Ao alcançar, finalmente, o navio, o jovem não se surpreende ao
saber que o escravo negro e a menina já haviam chegado, tendo sido
levados por Abuláfia à sua casa, na margem oposta. Espanta-se,
contudo, ao saber que seu pai não o havia aguardado ansioso, e
q p g
aceitara o convite de Abuláfia de fazer a oração noturna na sucá.
Será que a menina muda conseguira lhe contar sobre o pecado da
carne abominável, e seu pai resolvera ignorá-lo? Uma grande tristeza
se apossa do garoto, que tenta expelir, comendo figos secos com uma
pitada de canela, a carne impura presa em seu corpo. Porém a
doçura aromática que se espalha pela boca não consegue aquietar
sua alma, e ele decide buscar alívio com Abu Lutfi e Abd el-Shafi,
pois talvez estes, por sua natureza gentia que considera a impureza
com naturalidade e sem nenhuma culpa, consigam compreender o
pecado que lhe corrói as entranhas.
Para seu espanto ele os encontra na velha ponte de comando,
cochichando em atitude conspiratória com um terceiro homem, um
desconhecido, envolto numa túnica de feitio local. Emudecem por
completo ao ver o jovem que se aproxima, e que também se detém,
pois lhe ocorre que a vida de impurezas vivida por eles, que é
extensa como o próprio mar, não inclui o porco e seus pecados, e se
por acaso o odor do leitão atingir suas narinas corre o perigo de
torná-los duplamente furiosos, pela agressão simultânea a duas
religiões. Sendo assim, vai até a popa do navio e desce ao porão, que
no transcorrer do dia vomitou sua carga e a espalhou pelo mundo, e
agora se abre diante dele como um amplo espaço, novo e escurecido,
onde o camelinho de pelo amarelado passeia como se estivesse no
próprio deserto.
Ao percorrer esse espaço imerso em sombras, uma grande
saudade da Segunda Esposa invade sua alma, pois só ao lado da
cortina que dividia sua pequena cabine é que ele conseguia se
entregar às longas horas de sono profundo. Ele desce às apalpadelas
ao fundo do casco, para de novo mergulhar nos aromas da cabine
abandonada. Lá, à luz de uma pequena lanterna, descobre o
enlutado dono do navio em companhia da Primeira Esposa,
sentados juntos sobre uma coberta estendida no chão, jantando em
silêncio, no mais fundo do navio, ao suave marulho do rio que passa
sob o casco. Ben-Atar e a esposa parecem apartados e ausentes não
apenas do pulsar da cidade de Paris, mas também do que está sendo
agora tramado no convés.
Ao ver o jovem que vem a eles em visita de condolências, lhe
oferecem sorrisos afetuosos e o convidam para participar da refeição
e provar da carne cozida servida na travessa. A princípio ele recusa o
convite, não só por não sentir nem um pouco de fome, mas por
temer mergulhar em uma travessa pura os dedos havia pouco
tocados pela imundície. Todavia, teme que possam entender sua
recusa pelas lágrimas de luto que poderiam haver banhado a
travessa ou por temer ser tocado pela alma da esposa morta que
ainda esvoaça pelo vazio da cabine. Assim, para não ofender o
proprietário do navio, em cujas mãos está o destino de seu retorno a
Sevilha, ele mergulha com cuidado as pontas dos dedos na travessa
e tira um naco de carne que ainda recende aos excrementos de um
carneiro submisso e repugnante. Ao mordê-lo, com os olhos
cerrados, é assaltado pela visão, repugnante e atraente ao mesmo
tempo, das mulheres na choupana, envoltas em suas túnicas verdes,
inclinadas sobre a cabeça do porquinho para decepar-lhe as orelhas.
E a náusea, que fora contida pelos olhares carinhosos que lhe
dirigiram as gentias, irrompe afinal com toda força: o menino
empalidece, oscila aterrorizado e tenta escapar, mas as forças lhe
faltam; ele se inclina sobre os pranchões de madeira enegrecida e
vomita tudo — o puro e o impuro misturados. Ao ver o que
aconteceu na própria cabine da mulher querida, irrompe dele um
uivo selvagem, como se o diabinho implacável que habitava a
menina houvesse se duplicado e penetrado furtivamente nele
próprio.
Constata surpreso que o dono do barco e sua única esposa não se
afastam dele, nem parecem zangados por ele ter sujado daquela
maneira a cabine de suas recordações; eles se mostram, sim,
aterrorizados, como se a morte, que por uma vez se abatera sobre o
grupo, houvesse tomado gosto e viesse golpeá-los de novo. Pelo
toque de suas mãos experientes em criar filhos, os dois sentem que
sob a palidez do menino se esconde uma febre prestes a irromper;
envolvem seu pequeno corpo numa coberta e colocam uma
compressa molhada sobre os olhos que os fitam, cheios de culpa.
Ben-Atar sobe rápido ao convés para ordenar a Abd el-Shafi que
envie um marinheiro para limpar a cabine. Ao jovem pagão, há
p p j p g
pouco retornado do casebre na margem oposta do rio, ele ordena
que retorne e traga o rabino Elbaz da sucá do senhor Lavinas, que de
tão bem-feita o fez esquecer por completo do desaparecimento de
seu único filho.
Até que Elbaz chegue para decidir o que fazer com o filho
acamado, Ben-Atar aproveita o intervalo concedido pelo acaso para
interromper, ainda que por alguns momentos, a reclusão clandestina
a que se impôs no fundo do barco e dar uma olhada nas mercadorias
que estão prestes a dizer adeus ao navio que as trouxe sãs e salvas
até ali e respirar agradecido um pouco do frio ar noturno que
envolve a ilha de Paris, de cujas chaminés sobem a fumaça e o som
de risos. Ele estreita os olhos num esforço para discernir, nos
contornos da margem oposta, o lugar exato, entre o vinhedo e a
igrejinha, onde está enterrada a jovem que aguarda a derradeira
despedida de seu esposo sob a forma de uma lápide a ser colocada
sobre sua sepultura.
Agora Ben-Atar sente um leve tremor. A mão da esposa lhe toca
as costas, e, embora lhe pareça um toque um pouco mais intenso do
que de costume, não tem certeza. Desde que chegaram a Vermaíza
evitam se tocar, e ele observa bem aquele rosto franco que o
acompanha desde a juventude, e que agora o convida a descer à
cabine que os aguarda, limpa e arrumada, e onde se espargiu a
lavanda para que nenhum mau odor persista. Só o menino que arde
em febre ainda está lá. Devemos levá-lo para outro lugar ou seria
melhor esperar pela volta do pai? Ben-Atar resolve não tocar na
criança e aguardar o rabino Elbaz, que aparece depois de algum
tempo, assustado e ofegante, um pouco atrapalhado ao descer a
escada de corda, e se precipita em direção à cabine e ao filho deitado
no chão, enrodilhado como um feto, e grita seu nome em pânico.
Aos poucos os olhos injetados do garoto se abrem, e, apesar de
muito fatigados, eles observam com toda atenção a fisionomia do
pai. Será que ele já sabe do pecado que pequei? E poderá me livrar
da sentença?
Pelo menos não é o espasmo gélido que arqueia as costas e a
cabeça em direção à morte. Surge na alma do rabino andaluz uma
estranha esperança ao ver o filho encolhido como um macio novelo
p
de lã no chão da cabine Será possível que a mulher ausente envie
agora ao rabino um espírito maligno, para angustiá-lo pela sua
permissão de sacudi-la, insepulta, desde Verdun até Paris? Sobre
num, e não sobre ele, clama amargurado o rabino ao espírito mau, e
se apressa em tomar nos braços o filho que arde em febre para levá-
lo logo do navio para a sucá dos judeus.
Sim, de repente o rabino de Sevilha perde toda a confiança no
dono do barco, e chega mesmo a repelir com rudeza a tentativa da
Primeira Esposa de ajudá-lo a cobrir o menino Elbaz se deixa levar
por esses maus pensamentos a ponto de nascer nele a suspeita de ser
Ben-Atar quem intenta puni-lo pelo malfadado desempenho na
sinagoga de Vermaíza. Como Ben-Atar bem sabe que um homem
não deve ser julgado na hora do sofrimento nem perturbado em sua
angústia, dá ordens a Abd el-Shafi para que mande os marinheiros
tecerem uma maça de cordas, de modo a transportar em segurança o
garoto doente até a margem oposta. Como os portões da muralha da
ilha de Paris já estão fechados, baixam do navio um barquinho e
fazem descer, com todo cuidado, a maca onde o garoto está
amarrado, e ainda o pai ansioso. Para resolver qualquer
eventualidade durante a travessia, enviam ainda o escravo negro,
que pela terceira vez neste dia fará a travessia de margem a margem.
Há um encanto mágico no rio tranquilo banhado pelo luar,
atravessado de norte a sul pelo barquinho nascido de um navio
muçulmano, robusto e colorido, que corta as águas quase sem deixar
marcas, em direção ao convento de Saint-Germam-des-Prés, em vias
de reconstrução.
É quase meia-noite quando se ouve uma forte batida no portão
de ferro da casa dos judeus, e o sobrinho sócio e sua esposa, a sócia
relutante, se apressam em acolher em sua casa um jovem enfermo. O
segredo da carne imunda que lhe queima as vísceras contorna os
seus olhos com uma sombra escura e funda, como a que tinge os
olhos das mulheres que os escurecem com pós azulados, e colore sua
face de um tom rosado. A senhora Esther-Míriam, muito agitada,
acolhe o menino doente e deixa transparecer, sob a aparente
consternação, alguns sinais de dissimulada alegria, como se, por
intermédio do menino enfermo que recebe para cuidar em sua casa,
q p
ela pudesse de novo se aproximar dos viajantes, e em especial do
chefe, cuja derrota se abateu também sobre ela. Portanto, apesar da
hora avançada, ela não busca ajuda nem de sua serva, nem do
marido que volta a se aferrar ao sono. Tampouco se perturba com os
uivos da menina que voltou do passeio agitada e assustada, mas não
melancólica. Agora o intuito da senhora Esther-Míriam é ser simples
e generosa, e não apenas altiva e orgulhosa Assim ela reorganiza, em
plena noite, toda a disposição das camas, no intuito de bem
acomodar o jovem enfermo. Primeiro espreme o senhor Lavinas em
um canto do pequeno tabernáculo, abrindo um espaço a seu lado
para o rabino Elbaz, obrigando o irmão a também participar do
preceito da hospitalidade. Depois implora a Abuláfia que ceda sua
coberta e vá dormir no quartinho da filha, onde poderá desfrutar de
um sono tranquilo. Tudo isso para poder deitar o menino a seu lado,
na cama do esposo, e assim lhe dedicar toda a atenção, até o
amanhecer.
Ao lado do garoto de Sevilha, órfão de mãe, deita a senhora
Abuláfia em sua cama, acordada e alerta, firme no propósito de não
perder nem um só murmúrio ou suspiro, lamento ou soluço, quer
provenha de dor ou de sonho. Lá fora a lua já se põe e um manto de
veludo negro recobre lentamente o Sena, que abraça entre suas
margens duplas e graciosas o coração da pequena Paris. Um medo
novo e terrível, a que não falta uma suave e estranha alegria,
permeia a alma daquela mulher sem filhos, que já não é mais jovem,
e que jurou a si própria nunca mais permitir ao anjo da morte se
abater sobre aqueles seres morenos que foram arrojados até a
Europa por força do seu repúdio. Está disposta a se dedicar de corpo
e alma ao restabelecimento desta criança doente, não só por dever,
mas, antes de tudo, pelo seu desejo de ser para ele como uma
segunda mãe.
A senhora Esther-Míriam permanece acordada e alerta, sem se
entregar ao sono, nem mesmo a um mero cochilo Levanta-se da
cama e, como uma sentinela, posta-se ao lado da cama do enfermo.
Este rola em pesadelos onde seu terrível pecado aparece sob formas
bizarras, que logo se desvanecem para se converterem em outras. O
silêncio à volta dela é tão profundo que a senhora Esther-Míriam
p q
tem a impressão de ouvir cada ruído no interior da casa e de saber
interpretá-lo fielmente. Do outro lado da parede chega a respiração
rápida de Abuláfia, tentando ignorar as miragens da alma
perturbada da filha, adormecida a seu lado. Embaixo, na pequena
sucá, o rabino murmura orações, com cuidado para não perturbar o
sono do senhor Lavinas, que ganha méritos ao cumprir o preceito
das comemorações da festa de Sucót. É tal a quietude ao seu redor
que lhe parece que, se abrir a janela do quarto e aguçar os sentidos,
será capaz de ouvir não só o leve bater do barquinho preso ao
costado do navio, mas também o som dos passos do idólatra em seu
caminho de volta à cabana do escultor. E se insistir, e fechar os olhos,
inclinar a cabeça e dela varrer todo pensamento e todo desejo, é
possível que a alcance o leve soluço da Primeira Esposa, que anseia
por amor no bojo profundo do navio.
Capítulo 7

Ela faz esboroar a brasa viva da alfazema e endireita uma vez


mais o tapete sobre o piso, para tornar o lugar mais convidativo para
o sono, e pronto para envolver em seu abraço o esposo enlutado.
Mas a Primeira Esposa não se contenta apenas com isso, e tenta,
antes de sair, apagar a chama da vela para que as sombras que
dançam pelas pranchas da pequena cabine não distraiam a mente do
esposo, cujos olhos acompanham atentos todos os seus movimentos.
Porém, antes que sua mão alcance a vela, duas ordens a detêm. Não
apague e não saia. Como se o judeu norte-africano sentisse que a
presença de sua primeira e agora única esposa pudesse acrescentar
uma nova qualidade, impossível de ser compreendida nas trevas, e
que só a chama de uma vela poderá trazer luz a tudo o que ela
contém. Assim não surpreende que essas cinco palavras, ditas
suavemente, mas com autoridade, façam tremer aquela mulher
calma e robusta, e suas pálpebras descerem lentamente.
Ela bem conhece a proibição de se cumprir o ritual do luto
durante os dias festivos, e sabe que Ben-Atar, aqui no fundo do
navio, desafia essa mesma proibição com seu luto particular e
rebelde, o qual, segundo o rabino andaluz, os céus nunca
reconhecerão. Apesar de tudo isso, ela se assusta um pouco ante o
súbito desejo que, embora estritamente permitido pelas normas,
irrompe em meio ao luto e à consternação, e que pode conter
também um estranho anseio de reunir a mulher morta à que vive em
um único orgasmo. Ela ergue ao marido olhos suplicantes, e com um
leve gesto indeciso tenta indicar que, se brotar ali o desejo impetuoso
do corpo, e não do coração, melhor seria, talvez, esperar mais alguns
dias, quando o barco estiver novamente navegando, pois assim
poderá amaciar com o seu embalo os corpos que se enrijeceram e se
crisparam durante a árdua viagem ainda em curso.
Mas o pensamento de Ben-Atar não está voltado para o próprio
corpo, e sim para o da esposa, cujo calor e ternura o envolvem e
acariciam cada poro da sua pele. Desde a noite em que chegaram,
atordoados, aos becos de Vermaíza, quando lhe foram arrebatadas as
duas esposas, não a tocou mais como homem. Todavia sabe, só por
um olhar, que durante a viagem da morte, entre o no lotaríngio e o
no franco, a esposa que restou em vida não se enrijeceu nem se
petrificou, pelo contrário, abrandou-se e expandiu-se, e talvez até
tenha se criado nela uma nova abertura, que ele vai desnudar, não só
com a seriedade do amante, mas com laivos de ressentimento que o
surpreendem por sua intensidade.
Essa mágoa, porém, não se refere à esposa presente, que as mãos
e os lábios do esposo já apalpam com saudade, mas à esposa
ausente, que se desesperou de sua condição secundária a ponto de
não mais ter gosto em viver sobre a terra, e no seio desta foi se
aninhar. Ainda assim, a Única Esposa sente que aquele
ressentimento respinga também sobre ela, e pela primeira vez desde
que se entende por mulher ela sente repulsa pelo marido. Como se o
caminho penoso percorrido na ida e na volta entre os dois grandes
nos da Europa a tivesse transformado em uma nova mulher. Embora
a repulsa surgida no espaço confinado de uma cabine minúscula,
cercada por anteparos de madeira escurecidos no fogo de antigas
batalhas, deva se manifestar apenas no espírito, e não em atitudes
concretas, Ben-Atar é obrigado a segurá-la com firmeza enquanto a
despe, camada após camada, coisa que nunca fora obrigado a fazer,
pois a nudez de sua esposa e todos os seus mistérios lhe foram
sempre oferecidos por inteiro, com generosidade, sem esforço, e
antes de tudo.
Pela estranha e dura luta que se trava entre ele e ela, consolida-se
em seu coração a certeza de que o esposo, que se empenha com
tenacidade em despi-la, não pretende apenas a relação carnal com a
que lhe restou como única esposa, mas nela procura vestígios de sua
Segunda Esposa. Essa certeza, que com dor e angústia estremece sua
alma, também desperta nela, para sua surpresa, uma alegria
selvagem e desconhecida, a ponto de lhe parecer que os seios que
irrompem livres da bata arrancada com violência não são apenas os
seus seios, mas os de uma outra mulher que a excita.
Assim, à luz da chama que lhe percorre as costas lisas e os braços
e pernas que se tornaram mais arredondados nos jantares copiosos à
luz das fogueiras, nas paradas noturnas entre île-de-France e a
Lotaríngia, fica evidente ao esposo alarmado que seu coração não se
enganara ao profetizar que naqueles mesmos dias, tristonhos e
malditos, em que a Segunda Esposa se decompunha, a Primeira
florescia e desabrochava, sem alarde, a ponto de Ben-Atar,
alvoroçado, desatar uma das cordas amareladas com que Abd el-
Shafi prendia os arreios, desta vez não para imobilizar a si próprio,
como fazia nas noites oceânicas de modo a conceder à jovem esposa
consolo e lenitivo por não ser ela a Primeira, e sim a Segunda, mas
para conter as mãos da Única Esposa, grande e pesada, que deverá
satisfazer por completo a lascívia e saciar o desejo do esposo que,
apesar de tudo o que se passou, ainda conserva sua duplicada
energia.
Talvez seja aquele mesmo desejo, que invade o fundo do navio, a
impulsionar o jovem pagão a encontrar seu caminho na escuridão da
margem setentrional, em direção à cabana cheia de estatuetas na
qual permaneceu prisioneiro durante o dia, com as duas crianças
judias. Ele se sente atraído não apenas pelo desejo de se prostrar ante
a representação de sua própria imagem, e não mais de imagens
estranhas, mas também por não ter esquecido os risos incontidos das
três mulheres estrangeiras, que não hesitaram em apalpar seu órgão
íntimo que, em atenção a elas, se manteve o tempo todo rígido e
ereto. Embora o desejo do jovem negro seja tão difuso e virginal,
tanto em seu limite como em seu objetivo, há na noite outonal de
Paris, em cuja névoa se ocultam as estrelas, bastante sedução e desejo
para conduzir o filho do deserto, atento ao sentido ancestral de
orientação, entre choupanas e campos sombrios, o coaxar dos sapos
e o uivar dos lobos e raposas, direto ao seu objetivo, a choça do
escultor, onde, para sua alegria, uma pequena luz ainda brilha.
A cor negra da face emoldurada pela janela aberta impede que o
dono da casa se aperceba do rapaz que o observa calado de distância
tão curta, embora seja essa mesma a imagem que ele tenta arrancar
j g q
do fundo cavernoso de sua memória. Mesmo no sono, enquanto as
três mulheres dormem aos pés das esculturas espalhadas pela sala, o
impulso criador não abandona o velho artista, que, antes que o Filho
de Deus se revele em sua imagem final e definitiva no ano mil que se
aproxima, apressa-se a criar urna variante de sua visão do Ungido
pelos traços de um indivíduo de outra raça. Com seu cinzel de cobre
vermelho, continua cavando e cortando o cerne branco do tronco
posto à sua frente, e luta para trazer aquela face negra da sua
memória crepuscular, sem se dar conta de que ela está tão perto, na
janela, bem a seu lado. Porém a mais velha das três mulheres, que
rola insone na cama, percebe o visitante negro, maravilhado e mudo
ante sua própria imagem que surge do cerne da madeira. Ainda sem
dizer uma palavra ao artesão mergulhado em seu trabalho, ela se
levanta e sai descalça para tocar gentilmente o pescoço descoberto
do africano, a quem o toque apavora de tal modo que lhe falta
coragem até mesmo para virar a cabeça em direção à mulher.
Mas a velha é suave e perspicaz e, apesar dos cabelos brancos, é
cheia de vivacidade, e não está disposta a deixar escapar aquela bela
caça atraída pela luz nas profundezas da noite. Tomando seu braço
com firmeza, mas também com doçura, ela o puxa para dentro da
choupana, sem pressa porém em confiá-lo ao perplexo artista, e o
aproxima das brasas da fogueira para que aqueça o corpo antes de
ser despido de suas vestes rotas. Embora o jovem não saiba agora, no
meio do segundo turno da noite, se ela, ao despi-lo, tem a intenção
de expô-lo ao dono da casa ou a ela mesma, ele não se contém e
continua a se despir até desvendar a genitália para que ambos,
artista e mulher, possam ver, entre sorrisos gentis, seu pênis
circuncidado, ereto e dolorido, que há muitas horas não consegue
alcançar a tranquilidade. A mesma imagem de um pênis
circuncidado, desta vez infantil e tenro, que ainda não abriga
nenhuma dor e nenhum ódio, é a que se vê entre as pernas do jovem
Elbaz, que rola e se contorce em febre sobre a cama de Abuláfia e
tenta arrancar com as mãos a bata e as calças. Apesar de a senhora
Esther-Míriam tentar, com brandura, cobrir-lhe as partes íntimas
para ocultá-las de seus olhos, a criança insiste na tentativa de jogar
longe o cobertor, como se não fosse um objeto corriqueiro, mas um
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animal peludo e faminto que tentasse agarrá-lo. Mas a senhora
Abuláfia não pretende despertar o marido e dividir com ele os
cuidados com o garoto, nem se apressa em chamar o rabino Elbaz
para que deixe a choça e venha se juntar a ela nas orações pela saúde
do pequeno andaluz. É tal a autoconfiança desta mulher que ela
prefere orar aos céus sozinha, sem parceiros cujas orações possam
talvez provocar efeito contrário.
Não sendo contudo ingênua a ponto de acreditar apenas em
orações, ela se apressa em despertar a velha ama lotaríngia para que
aqueça água e enxugue com um pano úmido, morno e macio, não
somente o suor, mas os restos de vômito que ainda aderem ao corpo
magro do menino, e mesmo as lágrimas que lhe percorreram as
faces.
Ela insiste na atitude de se opor a qualquer tentativa de atribuir
todos os acontecimentos do mundo a bruxarias e travessuras de
diabretes, sendo com isso fiel aos preceitos de seu pai, o rabino
Lavinas, que preferia descobrir em todo pormenor e em todo lugar,
mesmo o mais remoto e insignificante, o espírito divino, ao qual
sempre vale a pena ouvir. Ela tenta agora, enquanto banha o filho do
rabino, cujos cachos encaracolados a fazem lembrar, de repente, dos
cachos do esposo, descobrir, por entre as palavras desconexas e
delirantes, o segredo da excursão dos jovens, no dia anterior, à
margem direita do rio. Estranha excursão, que por um lado fez com
que o garoto sagaz ficasse febril e confuso, e por outro livrou da
melancolia a pobre menina.
Quando o menino pisca os olhos que ardem em febre e os abre, e
encontra os olhos claros da mulher cujo repúdio trouxe desgraça ao
dono do barco e fracasso a seu pai, o rabino, ele decide manter os
lábios bem selados. E, ainda que essa mulher bela e arguta esteja
inclinada sobre ele, imbuída de grande desvelo maternal, e não haja
em relação a ele nem um grão de repúdio, mas tão somente um
grande carinho, ele bem sabe que, se deixar escapar para o ar do
mundo o segredo da carne do leitão dobrada em suas tripas, o
segredo revelado se transformará em faca de dois gumes que logo se
voltara contra ele próprio. Mas a senhora Esther-Míriam, que há
anos sofre com o silêncio do espírito que habita a menina muda, não
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concederá, de maneira alguma, ao espírito que se oculta nesse
menino estrangeiro o direito ao silêncio.
No lusco-fusco do segundo turno da noite, aquele jovem moreno
e cacheado parece aos seus olhos um pequeno Abuláfia, surgido
como que por milagre em sua casa para poder ser formado e
educado desde o principio. Assim, ela decide induzir aquele espírito
sevilhano a falar empregando meios mais sutis. Coloca uma cadeira
próxima à cabeceira da cama, por trás da cabeça do menino, já
banhado, perfumado e deitado de costas, de modo que ele não a veja
e não se espante com as reações dela, mas aja como se estivesse
cochichando para si próprio, como num sonho. De fato, as perguntas
logo sussurradas pela mulher oculta fazem com que o jovem, em sua
inocência, comece a respondê-las, embora não no idioma em que
foram feitas, e sim no árabe andaluz, rude e entrecortado. Mesmo
que Esther-Míriam não entenda uma única palavra da agitada
confissão em árabe que tenta lhe entregar de bandeja o abominável
pecado da carne, não lhe interrompe o jorrar das palavras,
escutando-as com toda atenção, na esperança de que termine, afinal,
na língua dos judeus o que principiou na língua dos ismaelitas.
A confissão árabe atravessa o cortinado que separa aquele quarto
da pequena câmara onde está a menina e desperta, com sua antiga e
conhecida melodia, o espírito da jovem, em quem as estatuetas, o
riso das mulheres e o sabor da carne de porco operaram uma grande
mudança, transformando a tristeza em encantamento e a estupidez
em ânsia, como que pelo toque de uma vara de condão. Em vez de se
levantar e uivar, como de hábito, para de novo invocar das
profundezas do mar a mãe que a abandonara, ela engatinha com
cuidado e vai observar com toda atenção o pai, Abuláfia, que dorme
tranquilamente a seu lado. Em vez de puxar sua mão com toda força,
como costumava fazer, para que não esqueça de lhe devolver a mãe
que a deixara para sempre, ela apenas toca seus cachos com mão
pequena mas firme, e lhe acaricia a face para que abra os olhos e faça
surgir para ela, do fundo da noite cheia de névoa fina, não mais a
mãe perdida, mas o jovem pagão, para que a leve de volta à
choupana das maravilhas na margem oposta do rio.
Porém as palavras da confissão ismaelita do jovem Elbaz
conseguiram não só penetrar a cortina e excitar o sonho da menina
em seu quartinho, mas também ir mais adiante, descer os degraus
tortos da escada de madeira e pairar, ainda que muito leves,
perfeitamente compreensíveis, por entre as folhas que recobrem a
pequena sucá do senhor Lavinas, que simboliza a transitoriedade da
passagem do homem pelo mundo, em particular a dos judeus. Lá, ao
lado dos ramos de palma, de murta e de salgueiro enfeixados e
colocados qual uma segunda mulher, esbelta e viçosa, sobre o banco
onde se senta o senhor Lavinas, há alguém que não apenas é capaz
de ouvir a confissão ismaelita, toda entrecortada, do jovem que arde
em febre, como também de compreendê-la. Mas o rabino, em quem a
carne impura comida por seu único filho já deixa um travo na boca,
toma cuidado para não fazer o mais leve movimento, nem deixar
escapar uma única sílaba, de forma não dar nenhum sinal ao jovem e
amado confidente que seu pai sofre junto com ele.
Na pequena cabine do fundo do velho navio patrulha ancorado
no porto de Paris germina agora, na névoa desta noite insone, um
novo e estranho pensamento acerca do pecado e do castigo. O
esposo norte-africano, cujos olhos passeiam emocionados pela nudez
daquela mulher grande e discreta, que a luz da vela ilumina sobre o
piso da cabine, acredita de repente que pode fundir a jovem dona da
cabine, a que partiu, com sua Primeira Esposa, deitada à sua frente.
Assim, antes de se render ao desejo que começa a agitar seu sangue,
e até que a esposa o ponha de joelhos e o traga para junto de si para
fazê-lo abraçar, acariciar, lamber, beijar e morder sua carne
arredondada, que manteve intacto o desejo em meio às turbulências
da viagem que trouxe a morte cruel à amiga, ele cerra por um
momento os olhos e, pela força da imaginação que o desejo lhe
concede, convoca a imagem da face e do corpo da Segunda Esposa.
Eis que ele já contempla os estreitos olhos cor de âmbar, que
lançam reflexos dourados, as longas pernas morenas, pernas de uma
jovem que se casou tão cedo em sua vida. Sente com as palmas das
mãos estendidas a maciez do ventre esbelto, os seios firmes, os bicos
avermelhados e intumescidos pelo desejo. E, ao som do marulhar
das águas do Sena que afaga o madeirame do casco, ele se lança ao
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impulso de mesclar dois desejos em um só ato de amor. Mas
enquanto ele se envolve e se enternece na aspiração daquela
duplicidade que está se entretecendo na sua mente, e sua mão
procura livrar da túnica uma apaixonada nudez que sustente aquele
amplexo sem limites, ele sente que seu membro enrijecido, na ânsia
por satisfação e alívio, se antecipa, penetra pela fenda do luto
rasgada em sua túnica e se recobre, e só a ele, pelo morno veludo do
esperma.
Será esta a fusão pela qual eu tanto ansiei?, pensa Ben-Atar em
desespero e decepção pela semente que foi derramada em vão, no
vazio da escura cabine. Pois se assim é, esta não é a fusão, mas um
castigo que estou infligindo, e não só a mim mesmo, mas a quem
permanece ao meu lado. Na verdade a Primeira Esposa, que desde o
casamento aprendera a entender cada pequena nuance das ações do
marido, já sente se espalhar pelas sombras da cabine o odor do
sêmen desperdiçado. As pesadas coxas, que já se arqueavam ao sexo
antecipado, recuam desapontadas, de volta às cobertas de outra
mulher, que nem a morte fez desaparecer. As mãos, que ansiavam
por confortar com carícias suaves o corpo cansado e dolorido do
homem amado, se recolhem, discretas. Mesmo estando agora, a
rigor, liberada, ela não cobre nem esconde a nudez decepcionada de
seu corpo, apenas apaga com um sopro, por iniciativa própria, a vela
que perdera a razão de ser. Depois se aninha como um branco e
gigantesco feto e procura compartilhar seu desapontamento não só
com a decepção da esposa ausente, a quem esperava que deixasse a
mortalha e viesse se mesclar a eles, ainda que contra sua vontade,
mas também com a humilhação do órgão masculino, que perdeu a
cabeça e fracassou em seu objetivo.
Esse mesmo órgão repousa agora débil e envergonhado,
lacrimoso e frouxo, e, embora tema se aproximar da Única Esposa,
talvez já completamente desiludida, ele sabe que só haverá redenção
no contato verdadeiro, que, mesmo infecundo, permitirá ao menos
que ela encontre algum consolo. O dono do navio volta a se ajoelhar
na cabine escura e passear com ternura os lábios pela nudez da
esposa, para encontrar o lugar exato onde ocultar a vergonha que lhe
cobre a face. Lá, no amplo espaço entre um seio e outro, Ben-Atar
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sente que os fios de sua barba se umedecem, até que por um
momento ele se espanta à ideia de que a mulher desiludida pela
masculinidade daquele homem tenta agora amamentá-lo. Estende
com cuidado as palmas das mãos e aproxima os bicos dos seios a
seus ouvidos, talvez para ouvir o som do fluxo renovado Porém as
doces saliências que fazem leves cócegas nos lóbulos de suas orelhas
estão secas, e a julgar pela sua maciez e lassidão, o desejo está ainda
muito longe delas. Só agora o condutor da árdua expedição do Sul
ao Norte se dispõe a reconhecer que são as lágrimas reprimidas por
ele com tanta tenacidade e determinação durante tantos dias que
brotam agora incontidas de seus olhos e rolam pela face.
Ben-Atar não faz ideia de como são doces e maravilhosas aos
olhos da esposa as lágrimas deste homem que rolam entre seus
seios. Ela se queda imóvel, e tem cuidado de não deixar entrever
nenhum sinal de sua surpresa, o que poderia fazê-las cessar.
Naqueles mesmos momentos em que a masculinidade fraqueja e
desaba, surge às vezes no homem um sabor doce e atraente. E,
mesmo sabendo que as lágrimas foram vertidas pela Segunda
Esposa, para sempre perdida e nunca mais substituída, ela não se
ofende e não se abate, pelo contrário, é para ela até motivo de
orgulho, pois as lágrimas pela esposa perdida não se perdem, mas
lhe escorrem entre os seios e gotejam sobre seu umbigo, a ponto de a
Primeira Esposa acalentar a esperança de que as lágrimas da
Segunda Esposa banharão também sua nudez mais íntima, e
ganharão, limpas e puras, o seu útero. Esse é o útero que entreabre
agora seus lábios para sussurrar com sua pequena língua que do
homem não mais deseja as fantasias nem as ilusões, mas sua
presença tangível e seu amor.
De fato, o espírito da imaginação pode divagar e às vezes perder
o rumo, como acontece agora com as três mulheres que despertam
na cabana do escultor para observar o jovem visitante que, no
coração da noite, prostra-se desnudo diante da sua própria imagem.
A princípio as três nem um pouco e trocam gracejos em sua língua, à
vista daquela figura de ébano estática, que procura identificar seus
traços escavados no cerne da madeira branca. Lentamente, porém,
seus olhos parecem aumentar em uma doce inquietude diante da
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linha bem traçada que divide as nádegas escuras e brilhantes,
esculpidas com tal perfeição que a mulher de cabelos brancos
suspira profundamente e aproxima a pequena mão da boca para
mordê-la.
Mas o evidente desejo da mulher não suscita uma risada de
embaraço, nem ao menos um comentário irônico entre as amigas. Ao
contrário, desperta a inquietação das outras duas em face da
tentação noturna que se ergue em toda a sua esplêndida virilidade
diante de seus olhos. E o empenho inocente com que o jovem
africano se descobre para o velho artista abre então, na apaixonada
fantasia das três mulheres, uma obscura fenda, descortinando um
horizonte novo, fascinante, mas infinitamente perturbador.
Um lampejo de luxúria cúmplice perpassa pelos olhos das três
mulheres, cujos olhos se dirigem, silenciosos, ao velho escultor, para
indagar se aquela figura do jovem homem, imóvel diante dele, ainda
lhe é necessária ou se já é possível requisitá-la para outro gênero de
necessidades, nem artísticas nem religiosas, mas plenas de
maravilhosa vitalidade. O velho artista, divertido e quase contagiado
por aquela explosão de luxúria noturna que irrompe em sua cabana,
pousa o cinzel, espana os fragmentos de madeira do tronco que luta
em defesa de sua integridade ferida e o cobre com um pedaço de
pano, como se quisesse poupá-lo das cenas da orgia que está prestes
a acontecer. Recolhe-se então à sua cama em um quartinho escuro,
mas não cobre a face sem antes saber qual das três mulheres foi
sorteada para ser a primeira.
Mas ao que parece, as três mulheres não querem, e talvez nem
possam, esperar que a sorte decida por elas, e preferem gozar em
conjunto de toda a volúpia. Ainda antes de se despojar de suas
túnicas, elas se aproximam do jovem que com sua pele negra as
excita a tal ponto, que se sentem livres para passá-lo de mão em
mão, de boca em boca e de sexo em sexo, como se não fosse ele um
ser humano, mas um animal. Quanto mais aquele desejo tríplice, que
urge no coração da noite, cresce na sua irrefreável ousadia, mais a
tristeza e a dor que se alternam no maravilhoso prazer subvertem a
virgindade perdida do filho do deserto Na ânsia de gozo que
irrompe agora de sua garganta, com um som que recorda o bramido
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do camelo selvagem, o rapaz já sabe e sente que, a partir daquele
momento, até o fim de seus dias, a nostalgia não lhe concederá paz e
sempre voltará a encantá-lo e seduzi-lo, a ele e a seus filhos e netos, e
atrai-los do Sul para o Norte.
É surpreendente como, às primeiras luzes do amanhecer que
iluminam o horizonte celeste, os mesmos tons de tristeza e dor
surjam também nos pensamentos da senhora Esther-Míriam, o
coração tomado por uma nova e sutil nostalgia. Mas, ao contrário do
escravo, passado de mão em mão, na choupana do velho escultor,
atormentado pelas mordidas e beijos de três mulheres lascivas, a
nostalgia que brota na casa dos judeus, no beco de La Harpe, ao lado
da fonte de Saint-Michel, volta-se, em sua compaixão e candura,
para a direção oposta, do Norte para o Sul. É verdade que desde a
noite em que Ben-Atar se apresentou pela primeira vez na soleira da
porta de sua casa com o filho do rabino, a senhora Esther-Míriam,
aparentemente, não esperou por outra coisa senão pelo momento em
que poderia se ver livre do pesadelo daquela caravana meridional,
que viera apenas para transtornar o seu mundo Agora, porém, às
vésperas da partida, a senhora Abuláfia experimenta um desagrado
com a despedida iminente de seus hóspedes derrotados, talvez
sobretudo pela preocupação com o jovem andaluz que dorme um
sono profundo na cama de seu esposo Abuláfia. Depois que o garoto
terminou de confessar, gaguejando, aos prantos, o seu pecado,
embora no estranho e impenetrável idioma ismaelita, ele passou, e
desta vez na sagrada e conhecida língua de Israel, a descrever os
medos e as aflições que a perspectiva da viagem por mar lhe traz.
A senhora Esther-Míriam nunca teve aos seus cuidados um
menino de carne e osso, a quem pudesse ensinar as boas ações
durante o dia e velar pelo sono, à noite. Assim, ao ver aparecer à
porta de seu quarto, com a primeira brisa da manhã, a silhueta do
rabino Elbaz, ela vai depressa ao seu encontro para atalhar seu
caminho e evitar que tire dela o jovenzinho afável, de cabelos
cacheados, que finalmente conseguiu adormecer. Para isso ela
exagera um pouco na descrição da febre que o acometera à noite
anterior, e pede ao pai que permita a ela expiar, por meio do desvelo
e do cuidado permanente com seu filho, as aflições que causara a
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todos. Sim, ela agora se arrepende sinceramente pelo seu repúdio
empedernido, embora não reconheça nele nenhum pecado. O rabino
de Sevilha esfrega assombrado o resto de sono dos olhos, pois desde
que desembarcara do velho navio patrulha no porto de Paris, não
ouvira nenhuma palavra de arrependimento da boca de sua
empertigada adversária, cujo azul dos olhos o faz recordar do
distante céu da Andaluzia, que ele já não tem certeza se um dia
voltará a contemplar.
A senhora Abuláfia se apressa a ir à sucá para acordar o irmão
de seu sono docemente embalado pelo cumprimento do preceito do
tabernáculo, pelo sussurro do vento sobre as folhas que o cobrem e
pelo cheiro da fruta cítrica, de praxe na comemoração do Sucót,
colocada ao lado da sua cama, a etróg. E com estranha veemência
que ela pede ao atônito senhor Lavinas que ceda ao rabino o direito
da oração matutina do sétimo dia do Sucót, para que seja o primeiro
a bater com toda força com o ramo da palma, em memória do
Templo destruído. E assim foi feito. Ao som das gotas de chuva que
salpicam desde a madrugada as águas do Sena, e às vozes dos
francos que atravessam o rio, abre o rabino Elbaz o serviço do
Hosana: Que estejais a salvo da espada e da fome, do cativeiro e da
peste, e de todas as maneiras de extermínio
e de toda a violência que são infligidas ao mundo, e que todos vós
possais ir à pura Jerusalém, e que piseis vossos pés o pescoço dos
que vos odeiam, e que danceis vossos pés nas cortes e santuários, e
que ergais vossas mãos bem alto os frutos da árvore do etróg, as
folhas de palma, da murta e do salgueiro, e que possais entoar,
Hosana, Deus nos guarde.
Mas no porão do velho navio patrulha, ancorado na margem
direita, que treme sob os passos dos marinheiros ismaelítas
acordados pela chuva, ainda, não penetrou o canto da Hosana do
rabino Elbaz. Por certo a oração exaltada, que faz tremer a sucá na
margem esquerda, também não chegou à cabana do velho artista na
encosta da colina da mancha branca. Mas enquanto o adorador dos
deuses se deixa ficar, exausto, estendido entre as estatuetas, aos pés
da sua própria imagem coberta, o corpo mordido pela fome lasciva
das mulheres gaulesas e manchado pelos infindáveis jatos de sêmen,
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também Ben-Atar é despertado pelas gotas da chuva, pelo som dos
passos do camelinho no porão do navio, e pelo novo aroma
resultante das sobras de todas as especiarias derramadas para fora
dos sacos, mescladas no chão. Ele começa a acariciar, abraçar, beijar
e apertar com toda força a única esposa que lhe restou. E a Primeira
Esposa se apressa em corresponder com todas as forças do seu amor
ao homem recém desperto, para que o ato de amor se realize num
amplexo completo e único, sem pensamentos estranhos e sem
ressentimentos.
Capítulo 8

Não terá afinal chegado o tempo de desfraldar a vela latina sobre


o grande mastro erguido no centro do velho navio patrulha e
levantar, com determinação, a âncora cravada no leito do rio de
Paris? Não é chegada a hora de se despedir da Europa, cujo céu
escurece mais e mais, e rumar de volta à segurança do porto de
partida? Até mesmo a paciência de um lobo-do-mar rijo e experiente
como Abd el-Shafi começa a ceder à vista dos ventos e das chuvas
que varrem a île-de-France na noite de Simchát Torá —
comemoração do final da leitura de versículos da Torah no oitavo
dia da festa de Sucót, na qual se costuma dançar abraçado aos rolos
da Torah em sinal de regozijo. Ele sabe melhor do que ninguém da
urgência de se pôr a caminho antes que as tempestades vindas do
Norte venham fustigar o oceano. Essa preocupação se apodera da
alma deste capitão árabe a tal ponto, que se dispõe até mesmo a lutar
contra a natureza fatalista dos ismaelitas, que delega a Alá os
destinos do mundo infinito de acordo com sua vontade inescrutável
Assim, exige de Abu Lutfi que convença o sócio judeu a superar as
hesitações do luto e da angústia, trocar afinal a túnica rasgada por
uma nova e subir do porão do navio à antiga ponte de comando,
para que se faça ouvir a única ordem possível, esperada com
ansiedade pelos ismaelitas — a de deixar para trás a Europa
desolada e retornar à África florida, para então voltar a ouvir o doce
chamado do muezim.
Talvez seja o sangue do bisavô de Abd el-Shafi, que há mais de
cem anos foi feito prisioneiro dos vikings e passou longos anos no
cativeiro, que torna seus sentidos aguçados, e permite perceber a
hesitação doentia e perigosa que se apossa, insidiosa como a hera,
dos pensamentos e ações do mercador judeu. Não é só o temor pela
própria viagem, que já perdeu o encanto da novidade e da aventura,
e da qual resta apenas a lembrança das aflições e das dificuldades,
mas uma incerteza ainda mais profunda, ligada não à partida, mas à
despedida, e não apenas do sobrinho, cuja sociedade foi renovada à
custa de sangue e sofrimento, mas também de sua esposa de olhos
azuis, cuja severa elegância transformou de repente o antigo repúdio
em nova e poderosa atração.
Sim, uma estranha atração emana dessa mulher para o tio
tristonho e enlutado, cuja bigamia extinta deixa à sua volta, e até
mesmo dentro dele, um novo espaço, vazio e indistinto, como se
fosse a ausência de uma perna ou um braço amputados. Contudo,
ainda não se pode saber se a própria Esther-Míriam tem controle, ou
mesmo se tem conhecimento desse novo magnetismo que emana
para o tio, o qual, por ocasião das festas de Simchát Tora, concedeu
em dar por encerrado seu luto, emergir dos porões do navio, banhar-
se, aparar barba e cabelo e substituir a túnica rasgada por uma nova,
para poder abraçar e trazer junto ao coração, em pureza e santidade,
o pequeno e macio rolo da Torah ashkenazita oferecido pelo senhor
Lavinas, para cumprir desse modo o ritual da dança com o livro
sagrado.
Mas qual é exatamente o segredo da estranha atração que essa
mulher do Norte da Europa irradia para o homem mediterrâneo, a
ponto de desafiar a impaciência dos marinheiros ismaelitas, ansiosos
para zarpar logo, e adiar mais e mais vezes o dia da despedida? Pois
a hostilidade do norte-africano pela nova esposa de Abuláfia não se
desvaneceu, e ainda queima-lhe o coração. Se porventura sua jovem
esposa não houvesse partido deste mundo para outro, que dizem ser
melhor, não teria ocorrido a Ben-Atar desistir da campanha que
empreendera, e apesar do anátema e da proscrição imposta por um
homem ruivo às margens do Reno, o cantor das orações, procuraria
na Europa mais um no, e convenceria a mulher de Vermaíza a
comparecer a um terceiro embate. E lá, fosse na margem meridional
ou setentrional, ocidental ou oriental, não permitiria que o rabino de
Sevilha escolhesse nenhum júri, ou juiz, mas se colocaria só, diante
daquela mulher obstinada, até fazê-la retirar aquele repúdio por
força de argumentos plenos de sabedoria e experiência de vida, e
não de citações dos livros.
Porém o desaparecimento repentino de sua Segunda Esposa lhe
trouxe, indiretamente, a vitória, embora uma vitória amarga e vazia,
que não extingue nenhum ressentimento. Assim, não está clara a
natureza da nova atração que imanta os dois adversários. Pois não é
possível que, às vésperas da partida da Europa e da despedida entre
o Norte e o Sul, a mente seja convocada a carregar a estranha
suspeita, agora crescente, de que a proximidade conjunta e
prolongada a que foram forçados esses dois, nos dias e também nas
noites passados pelos caminhos tortuosos da jornada entre Paris e
Vermaíza, fez nascer em um deles, ou até mesmo em ambos, alguma
louca e proibida fantasia, cuja esperança de realização prolonga a
expectativa da despedida.
Eis que já foi marcada a data do próximo encontro de verão da
sociedade reconstituída na baía de Barcelona Só resta agora a Ben-
Atar, na noite do segundo dia de Simchát Tora, dar ordem de partida
aos tripulantes ismaelitas, içar a vela e levantar âncora, e então
deslizar no abaixo até os umbrais do Grande Oceano, que talvez,
quem poderá saber, também já sinta saudade do velho navio
patrulha e o desejo de o sacudir e embalar em suas ondas.
A rigor, o que os detém é a doença do jovem Elbaz, doença que a
senhora Abuláfia trata de exagerar relatando sintomas especialmente
sombrios, para dessa forma suplicar ao rabino Elbaz, mas em
especial a Ben-Atar, chefe da expedição, que se compadeça do
pequeno enfermo e, em vez de expô-lo aos ventos e às chuvas, que
aguarde um pouco mais e o deixe, por enquanto, convalescer entre
as cobertas da sua cama. Contudo, o mercador de Tânger, com seu
faro atilado, sente que subjacente às súplicas de sua nova sobrinha
está oculto, às vésperas da grande partida, um pedido audacioso, do
qual talvez também ele, Ben-Atar, possa tirar proveito. Assim, antes
de dar a resposta definitiva, envia sua Única Esposa ao menino
doente para verificar, seja fazendo-o falar, seja pelo toque em sua
pele, o que há de verdade e o que há de fantasia em seu corpo e sua
alma. A experiente esposa de mãos macias volta ao marido com boas
notícias embora haja ocorrido, com toda certeza, a ingestão real, e
não imaginária, de carne de leitão, sendo essa a causa das aflições e
da culpa na alma do jovem, os sintomas dizem respeito, por
p j p p
enquanto, apenas ao seu espírito, e não ao seu corpo A doença
propriamente dita é inteiramente imaginária.
Ben-Atar, no entanto, se abstém de recriminar, ainda que por
uma simples palavra, o imaginário doente, que continua sob a
custódia suave porém inflexível. Como sente alguma piedade pela
sua adversária, que não teve filhos e não é mais jovem, em sua
repentina dedicação ao menino que lhe despertou o coração, ele
engendra um plano o de reverter uma doença fingida num impulso
real para o fortalecimento da sua sociedade. Pois é possível que
tenham restado na sociedade renovada, justamente por ter sido
arrasada com tanta violência, algumas fendas invisíveis, por onde
ainda possa se insinuar o maldito repúdio, que poderia ensaiar mais
uma tentativa de solapar a sociedade, enviando, por exemplo, para o
encontro de verão em Barcelona, em lugar de Abuláfia algum
desconhecido na função de sócio local, que levaria aos norte-
africanos o dinheiro obtido com a venda das mercadorias, e
receberia a nova remessa.
Mesmo que não ocorra a Ben-Atar adiar a partida de um navio
inteiro pela afeição feminina aos cachos de uma criança, ele parece
disposto a abrir mão do jovem passageiro e deixá-lo em Paris até o
próximo verão, para revigorar-lhe o corpo e a alma, com a condição
de receber de Abuláfia a promessa explícita, reforçada por juramento
solene pela alma de sua esposa — não a nova, que vive, mas a
primeira, a afogada —, não só de guardar esse jovem como a pupila
de seus olhos, como também de levá-lo junto com o dinheiro
apurado à velha estalagem romana de Marca da Espanha, de onde se
descortina a baía azul. E só depois que terminarem de entoar, juntos,
as lamentações pela destruição do Santuário, é que entregarão o
jovem a Abu Lutfi, que já escolheu na estrebaria de Benveniste um
cavalo vigoroso, para assim devolver o jovem, numa cavalgada
noturna passando por Tolosa, Toledo e Córdoba, aos braços do pai
em Sevilha.
É surpreendente como Ben-Atar já antecipa, comovido, a emoção
de Esther-Míriam em receber sob a sua guarda, sem os traumas nem
as angústias que pontuam a criação dos filhos, um jovenzinho já
pronto, bem esperto e de cachos negros, de quem se pode tomar a
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mão e passear sem pressa pelas veredas da pequena ilha, sem
vergonha e sem constrangimento. É verdade que ele ainda não se
deu ao trabalho de pedir ao rabino Elbaz que consinta no sequestro
do filho, cuja finalidade será a de consolidar, embora seja tão jovem,
a sociedade entre o Norte e o Sul, reconstituída apenas pelo condão
da morte. Entretanto, por tê-lo conhecido em meio às agruras da
jornada, o mercador suspeita que o rabino contratado na Andaluzia
não só ficará feliz em poupar seu filho dos perigos e vicissitudes da
viagem de volta, como tentará mesmo juntar-se a ele.
Mas, considerando que é inconcebível a Ben-Atar abrir mão da
companhia do rabino e de suas citações da Torah em meio às vagas
do oceano, tornando-se, com sua esposa, os únicos judeus em meio
aos ismaelitas, ele se contém e não permite que nenhuma palavra lhe
escape dos lábios na presença dos judeus que aguardam,
impacientes, essas mesmas palavras, mas vai em primeiro lugar ao
barco para se aconselhar sobre seu novo plano com seu antigo e fiel
sócio ismaelita.
Entretanto, Abu Lutfi já não é tão fiel assim. Na ausência do
dono do barco ele autorizou, por sua própria conta, o capitão não só
a preparar o mastro e esticar os estais com vistas à viagem próxima,
como também a carregar o navio com novas mercadorias, em lugar
da carga que fora descarregada, para lastrear o barco e equilibrá-lo
em meio às ondas do mar. Novas mercadorias?, espanta-se o
comerciante judeu, que desde a morte da Segunda Esposa perdera
um pouco de seu tino comercial. Haveria por aqui, nesta terra
distante e abandonada, alguma coisa que valha a pena ser levada e
que possa interessar aos habitantes do Sul? Mas Abu Lutfi não
responde, dá apenas uma piscadela como quem saboreia um
segredo e leva o sócio à barriga do navio, de onde vem um cheiro
desconhecido, que se confunde com um som estranho. Lá, no escuro
espaço esvaziado do porão, Ben-Atar vê pessoas acorrentadas aos
pranchões do velho navio patrulha.
Escravos?, sussurra o judeu horrorizado, ao ver a mercadoria
carregada secretamente em seu navio. Logo se pergunta se não seria
esse um sinal assustador do que está por vir. Até agora Abu Lutfi,
que no princípio fora apenas um fiel serviçal na loja de tecidos em
q p p p j
Tânger, nunca tomara nenhuma iniciativa sem antes receber a
expressa permissão e a bênção de seu patrão judeu. Será esse o preço
cobrado agora pelo ismaelita por sua participação em todos os
percalços da batalha travada entre os judeus, batalha que, apesar de
todos os sofrimentos, também ampliou e, indiretamente, fortaleceu a
alma do árabe? Ou quem sabe não haveria aqui uma demonstração
de um novo desdém, ou mesmo de raiva sentida pelo ismaelita
diante da pusilanimidade daquele marido que permite que sua
esposa, jovem e viçosa, desapareça deste mundo apenas para
agradar a uma nova mulher, de cabelos claros, olhos azuis e rosto
triste e pálido.
Venha ver de perto.. . , sussurra Abu Lutfi ao sócio hesitante,
convidando-o a avançar na profundidade do veleiro, da qual parece
se desprender uma nova ameaça. Mas o ismaelita insiste, incitando o
judeu a examinar de perto aquela carga humana, nova e excitante,
imóvel em sua curiosidade diante do novo senhor que se interroga,
perplexo, não só sobre a sua qualidade mas também sobre o seu
valor. Na escuridão reinante nas profundezas do porão, os vultos
dos escravos tomam forma. Nas pupilas aumentadas de Ben-Atar, os
vultos se separam e o seu coração dispara ao ver cinco homens
pálidos e de alta estatura, trajando longas túnicas de pele. Depois
sustém a respiração por um instante ao ver, à luz que se filtra por
entre as tábuas do costado, cabelos e olhos claros, nos quais a
escuridão não consegue disfarçar o terror e a subserviência. Tomado
por um intenso sentimento de piedade, a ponto de fazê-lo sentir-se
de alma opressa, Ben-Atar respira fundo, fecha os olhos, recompõe-
se, afinal, e se dirige com expressão severa a Abu Lutfi, que lhe sorri
orgulhoso, para perguntar não só o preço da perturbadora
mercadoria acorrentada nos porões do navio, mas também sua
religião.
É surpreendente como o pendor natural deste judeu para o
comércio permite que, mesmo sem nunca ter negociado com
escravos, faça a conexão precisa entre essas duas perguntas singelas.
Abu Lutfi se orgulha em contar de que maneira, enquanto os judeus
mergulhavam, ainda em Verdun, nas orações do dia do Perdão para
implorar a remissão de seus pecados, Abd el-Shafi fazia o primeiro
p p p
contato com o mercador de escravos. Após a morte da Segunda
Esposa, foi fechado um acordo secreto, segundo o qual seriam
trocados cinco sacos de especiarias, de odor muito ativo, e mais dez
bandejas de cobre, por cinco escravos vindos do Norte, cujo baixo
preço não deriva, Deus nos livre, de nenhum defeito ou fraqueza,
seja do corpo ou da mente, mas de uma imperfeição em sua fé, ou
melhor dizendo, da falta de fé, pois são originários das estepes
selvagens e remotas do Norte deste continente miserável, onde a
saga do nascimento, morte e ressurreição do Deus crucificado,
acontecido há mil anos, ainda não chegou. Em resumo: ali se
encontram cinco pagãos, vindos do Norte e não do Sul, de tez clara e
não negra, a quem a instância misteriosa e desconhecida que preside
seus atos e pensamentos os torna imprevisíveis, e portanto
perigosos. Daí se explica sua cotação tão baixa no mercado de
escravos local.
Pagãos?, sussurra Ben-Atar, contrafeito, a Abu Lutfi, que faz que
sim, com um brilho nos olhos E como você vai alimentá-los? Quem
vai vigiá-los? Mas o ismaelita está tão feliz com o negócio fechado
por sua própria iniciativa que promete ao sócio judeu assumir
pessoalmente toda a responsabilidade e todos os encargos referentes
à nova mercadoria, e garante não apenas mantê-los sob guarda
permanente, para que não venham causar nenhum problema, como
também tentar ensiná-los, durante a longa viagem, a tagarelar na
língua dos ismaelitas e a entender suas ordens. Desse modo a
mercadoria ganhará em valor aos olhos dos futuros compradores,
pois Abu Lutfi não tem a menor dúvida de que a alvura da pele, o
avermelhado do cabelo, e o azul e o esverdeado dos olhos causarão
grande alvoroço e sensação nos habitantes da Andaluzia e do Norte
da África, que logo deverão encomendar novas remessas.
Ben-Atar se cala, mas uma estranha tristeza o envolve, a ponto
de desejar fugir. Apressa-se a subir ao convés, onde Abd el-Shafi em
companhia de alguns de seus viris marinheiros, que sempre se
dirigiram a ele com todo respeito, agarram com força o seu manto e
com palavras rudes e agressivas exigem zarpar imediatamente, antes
que os ventos do Norte se tornem ainda mais violentos,
transformando o navio em uma armadilha mortal Mais uma vez,
Ben-Atar tem a sensação de que essa nova agressividade e as
palavras impertinentes não são causadas somente por sua estranha
hesitação, mas também pela ausência da Segunda Esposa, porque os
ismaelitas o responsabilizam indiretamente por sua morte.
Atemorizado, apressa-se a balbuciar uma nova promessa, no entanto
parece que as suas palavras já não têm nenhum valor aos olhos dos
marinheiros, que o intimam claramente a reunir o mais rápido
possível todos os viajantes judeus, pois, caso contrário, ao
amanhecer levantarão âncora e zarparão sem os passageiros e até
sem o próprio mercador.
O dono do navio sabe que a ameaça é real, e que, se não
concordar com a partida imediata, o barco lhe será tomado. De
repente tudo fica mais fácil, como se os ismaelitas tivessem
conseguido esmagar, com suas sandálias grosseiras, de uma vez por
todas, as incertezas que o corroeram desde sua chegada ao porto de
Paris. Ele se apressa a ir à casa de Abuláfia, na margem esquerda,
para chamar ao navio a esposa e o rabino, e combinar com Abuláfia
e sua Nova Mulher não só as condições com que deixará sob sua
custódia o pequeno doente imaginário, mas, sobretudo, as condições
em que a criança lhe será devolvida no próximo verão, pois Ben-Atar
ainda não consegue se libertar da incerteza e da descrença com que
encara agora a sociedade remendada. Como se a ponta do punhal do
boicote que o golpeou não tivesse desaparecido nem sido reposta na
sua bainha com a morte da Segunda Esposa, mas apenas envolta em
um velho e frágil pedaço de pano, e, com a partida da Europa, fosse
possível encontrar algum pretexto para cravá-la na sua sombra, que
então ficará adejando sem destino por estes aposentos sombrios. Ele
suspeita que Esther-Míriam não desistiu de seu velho ódio para com
a sociedade que de novo subtrairá Abuláfia do seu controle, abrindo
para ele as distantes estradas do Sul, por onde voltará a se juntar ao
tio. E ninguém pode garantir que, uma vez de volta ao negro
continente longínquo, não retome, secretamente, os costumes dos
seus ancestrais.
E portanto será melhor medita Ben-Atar, apressando-se a
atravessar de margem a margem, passando pelas ruelas convidativas
da ilhota, ceder ao desejo repentino de uma mulher que não teve
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filhos em adotar um, mesmo provisório, para consolidar, ainda que
indiretamente, a sociedade renovada. É surpreendente como o
mercador não se preocupa com a possibilidade de que Elbaz rejeite a
tentativa de separá-lo de seu filho único para transformá-lo em
objeto de penhora. Estará o comerciante judeu realmente convicto de
que, ao contratar um rabino, se torna proprietário não apenas de sua
inteligência e erudição, mas também de sua alma e seus
sentimentos? Ou quem sabe existe aqui uma intenção oculta de
punir o andaluz por sua excessiva autoconfiança e seu apetite pelas
polêmicas, que os induziu a concordar com um novo processo, desta
vez nas areias movediças do Reno?
Agora, quando Ben-Atar se encontra, junto aos demais judeus, ao
redor do leito do pequeno viajante, cujos olhos negros se arregalam,
temerosos, tentando adivinhar qual destino lhe foi reservado, e
anuncia sua intenção de deixá-lo em Paris, ele se dá conta de que sua
autoridade não desmoronou apenas aos olhos dos ismaelitas, mas
igualmente aos olhos dos judeus, ao constatar que o rabino Elbaz
não só dispensa o beneplácito do chefe da expedição ao concordar
em deixar o filho com a senhora Abuláfia até seu restabelecimento
completo, como também decide juntar-se ao filho na condição de
hóspede e acompanhante terrestre do filho.
De repente e pela primeira vez, o judeu norte-africano é
engolfado por um novo e terrível medo que, dali em diante, como
ele percebe, desesperado, deverá acompanhá-lo como se tivesse se
transformado em sua Segunda Esposa. Sua face enrubesce e, furioso,
é acometido de um tremor incontrolável ante a traição do rabino
Elbaz, disposto a abandoná-lo, e à sua Única Esposa, que permanece
sentada em silêncio e sem o véu num canto do quarto, observando o
marido com olhos meigos. Partir só, e sem a proteção das preces e da
santidade do rabino, num velho navio patrulha tripulado por
ismaelitas insolentes, trazendo em seu bojo pagãos acorrentados,
sabe-se lá o que ocultam por trás do azul dos olhos. Se o rabino
ousou usurpar dele a autoridade e o respeito, quem pode garantir
que sua deserção não assinale o destino amargo desta jornada de
retorno à pátria, e também uma possível conspiração engendrada em
segredo para sabotar a sociedade renovada, por meio de uma nova e
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insidiosa traição fazer do rabino, que deverá retornar à Andaluzia na
primavera com o filho, um emissário de Abuláfia, que talvez ainda
tenha a liberdade tolhida pela esposa?
A ideia da vingança se espalha célere pela alma do judeu norte-
africano, que considera a hipótese de ameaçar o rabino desertor de
que, assim agindo, perderia o direito aos honorários prometidos em
troca de sua sabedoria e sua erudição, pois, afinal de contas, esses
atributos de nada valeram. Entretanto, refletindo melhor, o
mercador experiente evita dar asas à ameaça entalada na garganta,
não só pela certeza de que Abuláfia e a esposa encontrarão meios de
ressarcir o rabino pelo pagamento perdido, mas por perceber que
neste momento, no crepúsculo desesperado deste final das
festividades, qualquer nova ameaça aprofundará a lacuna e ampliará
a solidão e o medo na viagem de volta para casa. Portanto, só a
habilidade e o bom senso poderão assegurar que a despedida
iminente entre o sócio do Sul e o do Norte contenha em si uma
garantia adicional e confiável de que, entre as ruínas da antiga
estalagem romana, a cavaleiro da baía de Barcelona, se realizará, no
princípio do mês de Av, o encontro emocionado entre tio amoroso e
sobrinho amado.
Ben-Atar crava os olhos no fundo dos belos olhos de raposa da
senhora Esther-Míriam, avaliando qual a garantia a ser exigida desta
litigante implacável, para que não seja em vão o sangue da Segunda
Esposa derramado no altar da sociedade reconstituída Esther-
Míriam não se perturba com aquele fitar penetrante, não desvia o
olhar nem abate o brilho dos olhos, apenas os estreita numa espécie
de aviso sutil de repreensão, convidando, sem dizer palavra, o
homem vindo do Sul, cheio de temores, a ouvir em lugar de fitar. As
muitas horas que esses dois adversários tenazes e enérgicos
conviveram ensinaram-nos a bem entender um ao outro e, mais, o
norte-africano ainda não consegue esquecer de como essa mulher
caiu desmaiada na noite de sua derrota no tribunal de Ville-les-Juifs,
e como ele a ergueu do chão, no terreno cheio de mato, e a levou no
colo por não poucos passos, até a fogueira. Portanto não surpreende
que ele compreenda o seu olhar e aceite o convite de desviar os
olhos, para poder assim aguçar os ouvidos e escutar a garantia que
ela tem a oferecer, e que agora começa a uivar por detrás da cortina.
Se todos estão de acordo em deixar no coração da Europa, cada
vez mais sombria e ameaçadora às vésperas do ano mil, o garoto
andaluz como penhor do projeto, garantindo o encontro de verão na
baía de Barcelona, é justo consolidá-lo por uma penhora paralela, de
uma segunda criança que será levada do Norte para o Sul, e caso não
haja um menino disponível a menina servirá perfeitamente para esta
finalidade, a de fazer o jovem marido de cabelos cacheados superar
qualquer plano que possa ser engendrado na primavera por uma
mulher obstinada e sem filhos, orgulhosa e desconfiada, que tentará
sabotar a ligação renovada entre ele e a rocha de que fora talhado.
Assim Ben-Atar poderá garantir que Abuláfia virá pessoalmente à
Marca da Espanha tomar sua filha de volta do continente encantado
para o continente tristonho.
Portanto, é essa a ideia bizarra e surpreendente que cintila agora
ao mesmo tempo no coração dos dois litigantes, os duros adversários
que no princípio se enfrentaram à distância de dois continentes, e
mais tarde pessoalmente, olhos nos olhos. Nestes momentos que
antecedem sua despedida, em meio à desconfiança e às incertezas
que nascem em ambos os corações em relação à sociedade renovada,
os dois se unem, cansados e temerosos, em um novo plano que
propõe o resgate de criança por criança, e não só para assegurar a
realização do encontro de verão na baía celeste de Barcelona, como é
a intenção de Ben-Atar, mas também sua legitimidade, como deseja
Esther-Míriam.
Quem estiver disposto a atentar para o renovado choro da
menina perceberá que, desde o encontro com os viajantes do Sul, seu
uivar de um desespero vazio tornou-se um uivar de saudades, e
justamente aquela que não acredita, como Esther-Míriam, nas pragas
e feitiçarias que regeram seu nascimento, ficará feliz em devolvê-la,
ainda que por um breve período, às praias azuis de sua cidade natal,
e voltar a submergir naqueles aromas e cores já borrados na
memória, para assim trocar o sofrimento da saudade pela doçura da
realidade E ainda mais liberada do dever de zelar pela menina, a
senhora Abuláfia poderá desfrutar da viagem de primavera em
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companhia do esposo, não só para participar do encontro
emocionado dos sócios, na querida pousada oculta no bosque de
onde se descortina a baía de Barcelona, mas para observar de perto a
passagem do ano mil cristão sem duplicação de esposas judias, e em
território ismaelita, e também para observar com os próprios olhos
de que maneira é dividido pelo tio sensato o produto da venda da
mercadoria.
Assim, em uma noite outonal de Paris, ao som dos sinos do
convento de Saint-Germam-des-Prés que se debruça sobre o no,
dissolve-se o antigo repúdio, e a sociedade, renascida das cinzas do
túmulo da Segunda Esposa, que fica não longe dali, volta a se forjar
e a se erguer à luz das velas, e com tal energia que por um momento
parece que de agora em diante será mais poderosa e mais sólida do
que era na noite em que Abuláfia a descreveu à sua futura esposa, na
pousada de Orléans. Enquanto Abuláfia tenta penetrar nas
verdadeiras intenções entrelaçadas da esposa e do tio, já é dada à
ama teutônica, por trás da cortina, com discrição, a ordem de
aprontar a menina para a viagem marítima e preparar seu quartinho
para o pequeno doente imaginário, que enquanto isso esfrega os pés
nas cobertas em lugar de esfregá-los no topo do grande mastro.
Também o senhor Lavinas, que sabe aperfeiçoar cada nova ideia que
surge, não perde tempo em espantar-se com as novas propostas da
irmã mais velha, mas imagina como se pode tirar algum proveito da
erudição e da sagacidade do rabino de Sevilha, para que até a
chegada da primavera não esteja comendo o pão dos pobres.
Chega o momento em que, esgotado à exaustão, Ben-Atar faz um
sinal à Primeira Esposa para que se levante e o siga, e sem um olhar,
nem ao rabino nem a Abuláfia, deixa a casa em passos rápidos, como
se temesse uma nova tentativa de Esther-Míriam para estrangular a
sociedade, sai para o ar frio da noite, atravessa o rio pela balsa que
navega aos solavancos, e depois caminha com segurança pelas ruelas
da ilha de Paris, que durante este mês já se transformara em segunda
pátria, para anunciar a Abu Lutfi e a Abd el-Shafi que o ansiado
comando já está pousado na ponta de sua língua. Porém, ao se
aproximar do pequeno ancoradouro da margem direita, e perscrutar
por entre os mastros e as velas que se apinham lado a lado nas
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sombras, por um instante a respiração lhe falta: será possível que
os ismaelitas tenham levado a cabo suas ameaças de zarpar,
deixando-o em terra? Mas o velho navio patrulha continua ancorado
e balança suavemente. E, apesar do longo tempo já transcorrido
desde sua chegada ao porto de île-de-france, ainda não conseguira se
integrar à paisagem, e continua singular, destacando-se dos barcos e
navios cristãos que o circundam.
O convés está vazio, por uma única lanterna. Ninguém parece
ter a intenção de enviar um barquinho para recolher os dois, ou
baixar a escada de cordas. Como Ben-atar não sabe que o escravo
negro, que sente a aproximação de seu amo apenas pelo cheiro,
ainda não retornou de sua expedição amorosa da margem direita,
começa a imaginar uma conspiração preparada contra ele. Então,
com os pés enterrados na lama da margem do rio e o rosto da esposa
de novo coberto com um espesso véu, Ben-atar sente o quanto a
decepção e o desespero causados pela deserção do rabino andaluz
vieram perturbar infinitamente seu espírito. Erguia a voz num grito
ismaelita que espanta os marinheiros francos à sua volta, mas não a
quem deveria ouvi-lo, do navio. Quando resolve gritar de novo, sua
esposa tira o véu e se antecipa a ele com um grito poderoso e
selvagem, de que jamais a imaginara capaz. Parece que foi esse grito
feminino e penetrante que fez com que os marinheiros surgissem do
bojo do navio, e já Abd-el Shafi se apressa em vir com o barquinho
para erguer nos braços vigorosos seu patrão e a esposa ao convés do
navio.
Amanhã partiremos para a África, anuncia Ben-Atar ao capitão,
como se a África estivesse não a milhares de léguas, mas ali mesmo,
além do horizonte avermelhado. Abd-el Shafi não diz nem uma
palavra, apenas sorri e faz que sim com a cabeça, e parece prescindir
de qualquer confirmação do judeu para se pôr a caminho. Espera
apenas que Abu Lutfi termine seus assuntos com os escravos.
Entretanto, pela agitação dos tripulantes que sobem e descem do
interior do navio, parece que seu lastro recebeu um bom reforço nas
últimas horas e a nova remessa viva, que necessita de mais espaço, já
foi levada aos porões. Portanto não surpreende a alegria com que foi
recebida a notícia trazida por Ben-atar de que o rabino e seu filho
p q
não embarcarão na viagem, assim como a preocupação com que
receberam a notícia da inclusão de uma nova passageira, jovem e
endemoninhada. Porém, com Abu Lutfi se recorda de que forma,
dez anos antes, essa mesma menina engatinhava entre as pilhas de
mercadorias no primeiro navio destinado a Barcelona, ele concorda
em embarcá-la novamente nesta viagem.
Parece que esse ismaelita, que durante toda a jornada
demonstrou espírito sereno e conciliador, começa agora a tomar
posse do navio, levando Ben-Atar ao temor de ir aos porões verificar
o que foi acrescentado à mercadoria acorrentada Pela melancolia que
vai se apoderando de sua alma, ele não vai ao encontro da Primeira e
Única Esposa, que permanece em sua cabine na proa do navio, vai
antes de tudo em busca do jovem escravo pagão, para que ferva para
ele sua querida beberagem de ervas amargas. Para seu espanto,
porém, o escravo negro parece ter sido engolido pela cidade de
Paris, e Abu Lutfi não só ignora o seu paradeiro como não se dispõe
a ir à sua procura, como se, do momento em que carregou os porões
com a nova remessa de escravos, o antigo servo não fosse mais
necessário. Enquanto isso a noite se adensa ao redor, e o mercador
judeu, cujo temor aumenta a cada hora, deixa-se ficar no convés,
apoiado no cordame, enquanto à sua volta os marinheiros se agitam
num vaivém frenético, nos últimos preparativos para a partida. É
com nostalgia que ele observa as derradeiras luzes da cidadezinha,
como se procurasse mais uma vez o lugar onde sua Segunda Esposa
está enterrada, e de repente lhe sobrevêm o desejo de ir ao seu
encontro, juntar-se a ela e se aquecer em seu pó, em vez de ser,
dentro em breve, exposto às ondas geladas do oceano selvagem.
Nos estertores do terceiro turno da noite a vela latina triangular
é içada e desfraldada em todo o seu esplendor. É impensável que
algo, ou alguém, possa deter o velho navio patrulha em sua descida
pelo rio, até o desembocar no oceano, para ganhar então seu
caminho de volta às águas cálidas da pátria. E, à luz leitosa da
madrugada, Abu Lutfi desperta seu sócio judeu, que adormeceu,
encolhido e amargurado, entre sacos vazios de especiarias na velha
ponte de comando, e lhe dá a boa nova da chegada da jovem
passageira, que já aguarda, parecendo um novelo de lã, na margem
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do no, segura pela mão do pai e de sua Nova Mulher, o rosto
afogueado, e metida em roupas novas e quentes, que a manterão
protegida diante de qualquer tempestade.
Mas ela não é a única passageira a se agregar agora à viagem do
navio, cuja vela já se retesa, pois aos primeiros raios pálidos da luz
da manhã os olhos estarrecidos de Ben-Atar distinguem o vulto
pequeno e bem conhecido do rabino Elbaz. Embora o rabino
mantenha a promessa de não expor o filho aos perigos de uma
viagem marítima, ainda que sua doença seja apenas imaginária, e dê
crédito à garantia de Abuláfia e sua esposa de que irão devolvê-lo
por terra à Andaluzia ao receber em troca a pobre menina, seus
planos mudaram em relação a si próprio, decidindo embarcar de
novo no velho navio patrulha para retornar a Sevilha o mais rápido
possível e receber o pagamento prometido, mas principalmente para
demonstrar, pela sua presença a bordo, ao seu contratante norte-
africano, que não bateu em retirada nem, Deus o livre, traiu a missão
que lhe foi imposta a de defender a instituição de uma Segunda
Esposa como legítima e digna.
E, apesar de ter o Todo Poderoso decidido levá-la para junto de
si, e entregá-la à margem esquerda da longínqua Paris, sua imagem
nobre e altiva continua gravada fundo na alma do rabino, e sua
túnica e seu véu ainda tremulam nos ventos doces de sua memória
Elbaz não a esqueceu e nunca a esquecerá. Toda palavra proferida
no intuito de louvá-la, quer no salão da prensa de Ville-les-Juifs ou
na sinagoga de Vermaíza, brilham e resplandecem como diamantes
em sua mente, junto com os versículos dos livros sagrados e os
trechos sobre conduta moral que não chegara a incluir em suas peças
de acusação, mas que continuam preparados em sua mente, caso se
fizerem necessários, para a eventualidade de um novo combate entre
sábios, em defesa de uma segunda esposa.
Assim, confuso, emocionado e até mesmo temeroso, Elbaz sobe
com sua trouxa ao convés do barco e se lança a Ben-Atar num abraço
comovido, no qual transparecem sua lealdade e seu temor pela
viagem marítima prestes a se iniciar. Por um instante parece que
lágrimas são trocadas em segredo de um a outro. Como daí em
diante ele deverá ocupar sozinho a cabine próxima à proa, e é
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impensável destinar à jovem passageira acomodações no porão do
navio, fica decidido acomodar a menina enfeitiçada na cabine do
rabino, não antes de ser instalada entre eles uma fina divisória de
madeira. A senhora Esther-Míriam já se apressa em forrar ambas as
camas com grossas cobertas, e abraça mais e mais vezes, com toda
força, a menina trêmula, tentando aquietar seus terrores, enquanto
Abuláfia acede ao pedido de Abu Lutfi para descer ao bojo do navio
e apreciar a nova remessa de escravos comprada na última hora, e
que aguarda a partida do navio Mas quando Abuláfia retorna dos
porões, afogueado e confuso com o que viram seus olhos, não diz
uma única palavra, nem à sua Nova Mulher nem a seu tio,
procurando não dar motivos para atrasar novamente o ansiado
instante da partida.
Chega por fim o momento, que não é silencioso, mas musical,
pois antes que se levante a âncora e se retirem do convés todos os
não-viajantes, Abd elShafi cobre os dois ouvidos com as palmas das
mãos, para poder ouvir apenas o silêncio do seu Deus e iniciar por
cânticos ornamentados, tal como o muezim da grande mesquita de
Tânger, o chamado do Profeta a seus fiéis, para que se arrojem ao
chão e implorem a Alá que transforme os ventos maus em
benfazejos. Embora os judeus não possam igualar em número os oito
ismaelitas prostrados com o rosto no chão, reúnem um quorum
emocionado, não de três, mas de quatro, pois o senhor Lavinas não
abriu mão dos sagrados rituais da despedida, e veio de madrugada,
subindo à velha ponte de comando, para reforçar a prece que
precede as viagens, entoada pelos judeus mediterrâneos. Ao final
das duas orações, a muçulmana e a israelita, e da profusão de
bênçãos dos marinheiros cristãos ao redor, de novo não há nada no
mundo que impeça este navio de empreender seu caminho de volta
ao ponto de partida.
Mais uma vez se faz sentir o leve balanço, que parecia ter sido
esquecido nos quarenta dias terrestres. Embora seja ainda o embalar
suave das águas do rio e não o das grandes vagas oceânicas, há nele
certa rapidez, nova e surpreendente, seja pela direção da correnteza,
seja pelas lufadas dos ventos outonais. Antes de ocorrer aos viajantes
olhar para trás e se despedir da pequena ilha parisiense, ela já havia
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desaparecido na primeira curva, engolida pelo fulgor do sol nascente
que brilha firme às suas costas, para fazer dançar a sua luz logo mais
na proa do navio, que vai ganhando andamento. Contudo, a
presença serena da natureza que os cerca de ambas as margens já
não consegue aquietar o coração dos viajantes judeus, apoiados em
silêncio sobre os estais do convés. Perpassa por eles um laivo de
temor difuso, que os leva a perscrutar a vegetação em busca de
algum vulto, seja de homem ou mulher, com o qual possam trocar
acenos de despedida.
Porém o frio e a melancolia do outono europeu aprofundaram,
por assim dizer, o silêncio do mundo, e como no topo do mastro não
está mais pendurado um garoto capaz de enxergar muito à frente e
descortinar o mundo para além das árvores, resta apenas aos que
procuram qualquer tipo de contato buscar um sinal de vida nas
lindas folhas de cor púrpura que se destacam, silenciosas, dos galhos
das árvores grandes e tristonhas, cujas sombras mergulham na
correnteza. Apesar da firme decisão do capitão do navio, que de
novo se amarrou ao mastro e atou seus tripulantes às rédeas, para
conseguir uma navegação mais precisa e manter o ritmo rápido e
constante, dia e noite, até o Grande Oceano, ele não teve alternativa
senão concordar com o pedido insistente de Abu Lutfi, que de hora
em hora amplia sua autoridade a bordo, de fazer uma pequena
parada no porto de Rouen para averiguar se o duque, que quarenta
dias antes comprara deles a camelinha, já se deu conta de que, para
garantir o futuro e a tranquilidade da jovem filha do deserto em suas
propriedades, convém comprar para ela um companheiro, por um
preço bem conveniente.
Assim, no crepúsculo do segundo dia de viagem no navio
bojudo e enegrecido, de novo se lança a âncora, não longe das
casinhas de Rouen. Abd el-Shafi, que em nenhuma hipótese se
dispõe a esperar até o raiar do dia, ordena que o barquinho seja
descido às águas escuras, e envia o comerciante ismaelita
acompanhado do rabino andaluz na função de tradutor para
encontrar, ainda na mesma noite, o duque, ou seu conselheiro judeu,
e lhes transmitir o sábio conselho. Contudo, dentro de pouco tempo
Abu Lutfi volta a Ben-Atar triste e pensativo, tendo nas mãos
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trêmulas alguns trapos amarelados. Descobriram que a camelinha
não resistiu por muito tempo com seus novos proprietários, e pelo
descaso e abandono, ou talvez pela saudade de seu companheiro,
deu seu último suspiro e desabou no chão do pátio, nos fundos da
igreja. Mas em vez de envolver aquela nobre filha do deserto numa
mortalha e enterrá-la inteira, à espera do ano mil e da ressurreição
de todos os mortos, ordenou o duque cristão, para curiosidade e
regozijo de seus súditos, que a esquartejassem em pedacinhos e dela
fizessem o que lhes viesse à cabeça, para ressarcir uma parte do que
foi pago por ela. Nem mesmo sua pele foi poupada, tendo sido
esfolada e curtida, para afinal descobrirem para ela uma maravilhosa
utilidade: a de restaurar o brilho e a beleza dos objetos de ouro e de
cobre que se tornaram opacos.
Ben-Atar, porém, não se comove com as lamúrias de seu antigo
sócio, que desde o desaparecimento do pagão negro vai se tornando
mais amargurado e dominador. Sem dizer palavra, tira de entre os
restos da camelinha trazidos de Rouen um pedaço de macia pele
amarelada e a aproxima do rosto, para sentir se aquele aroma, que
sempre lhe vinha às narinas em seu caminho pelo fundo do barco até
à cabine da Segunda Esposa, ainda se conserva no pequeno retalho.
Enquanto o silêncio da noite é cortado pelos comandos do capitão
para levantar âncora, acender uma grande lanterna na proa do barco
e prosseguir viagem o judeu norte-africano é tomado de grande
melancolia e saudade da mulher perdida, e, não conseguindo se
conter, desce ao fundo do porão de seu navio para contemplar, ainda
que por um breve instante, a cabine abandonada.
Na penumbra, ao lado do vulto do camelo, cujo destino, após a
morte da companheira em Rouen, parece selado, o dono do navio
descobre que o capitão já havia providenciado remos para seus
novos escravos, e esses remos se projetam para fora do casco por
escotilhas antigas, seladas havia muito e de novo abertas. Enquanto
Ben-Atar tateia cuidadosamente para encontrar seu caminho por
entre o ranger dos remos e os respingos da água, ele nota, pela
quantidade de vultos que se movimentam ao redor, o quanto o sócio
ampliou e reforçou o lastro do navio. Ao se aproximar, para verificar
melhor a qualidade dos novos escravos que foram acrescentados por
q q p
último, e que se comprimem na velha cabine de seu luto, sente
refluir dentro dele uma nova angústia. Antes de conseguir baixar os
olhos, sente o peso do olhar curioso e amedrontado de três mulheres
de cabelos claros e olhos azuis, acorrentadas umas às outras pelas
longas pernas.
Enquanto Abu Lutfi tenta convencê-lo com um sorriso
conspiratório da grande pechincha que conseguira pouco antes da
partida, é logo afastado pelo judeu, que sobe rápido ao convés para
se dar conta de que, apesar da noite alta todos estão acordados, não
só o capitão e os tripulantes, mas até mesmo sua' esposa, que,
sentada na velha ponte de comando, vestida de muitas camadas de
túnicas, escuta as palavras do rabino Elbaz, que ainda se questiona
se fez bem em deixar com uma estrangeira sem filhos, adversária e
litigante inflexível, seu filho único e meio órfão.
Embora Ben-Atar saiba muito bem que é impossível esconder da
esposa e mais ainda do rabino, o que seus olhos acabaram de
descobrir no porão do navio, ele tenta protelar a notícia, e sem dizer
palavra, apenas com um gesto sutil, dá a entender à esposa que
deixe o rabino de Sevilha e volte à cabine pois neste exato momento,
quando transborda nele, vinda do fundo do barco uma proposta
ignóbil e desprezível, a de trocar aquela saudade única e especial por
uma realidade multiplicada, ele sente necessidade, com seu corpo
cheio de temor, de voltar a descobrir até onde é possível estender os
limites de uma única esposa, no conhecimento do corpo, que ela
sempre tem, e também da alma.
Mas ao sair da cabine em pleno terceiro turno da noite, enquanto
o diligente Abd el-Shafi, transbordante de entusiasmo por estar
enfim navegando, o observa do alto do mastro, ele já sabe o que
sabia todo esse tempo: que jamais uma esposa poderá cumprir as
promessas de outra. Seus olhos ainda vão ao encalço do escravo
negro que surgia sempre de algum canto, e entre turno e turno, entre
esposa e esposa, se arremessava ao chão e tocava em sinal de
submissão a fímbria de sua túnica, antes de lhe servir a fervura de
ervas. Aonde foi parar aquele idólatra?, pergunta-se o judeu,
nostálgico. Quem o prendeu? Estará vivo? Será possível que os
novos escravos e escravas tumultuaram a cabeça de Abu Lutfi a
ponto de fazê-lo abrir mão com tanta facilidade de seu servo mais
fiel? Pois, ainda que Ben-Atar usasse de toda a sua imaginação, não
poderia supor que, mesmo que exercesse todo o peso de sua antiga
autoridade e conseguisse fazer parar o navio, que desliza célere pela
correnteza do no, virá-lo para trás, voltar a íle-de-France e procurar
pelo africano perdido, jamais encontraria seu rastro. O jovem negro
não está apenas bem escondido naquela cabana longínqua, e
mantido firmemente encarcerado por três mulheres decididas, à
aproximação do ano mil, a satisfazer o desejo do velho escultor de
acrescentar os traços de uma nova raça à sua fantasia. Ocorre,
porém, que também o próprio prisioneiro, o jovem e reluzente
negro, ,á se apaixonou por sua prisão, de onde verte a fonte de seu
desejo.
Ben-Atar caminha pelo convés, triste e soturno, e procura o
irmão de fé para que o ajude a combater o renovado sentimento de
solidão, que ,amais admitiu existir, mas que agora o submerge por
completo. Como o rabino está imerso em profundo sono, ele afasta a
fina divisória e observa a menina, em cujas veias corre seu próprio
sangue, que navega de volta à velha cidade natal na qualidade de
uma contragarantia. Só agora, no silêncio profundo, e à luz da lua
que ainda combate os primeiros albores da manhã, ele percebe que
aquela criança, que engatinhava no primeiro navio destinado a
Barcelona, cresceu e arredondou as formas. Brota nele uma estranha
ideia- fazer uma surpresa a Abuláfia, e também à sua esposa, e
devolver a eles, no encontro de verão de Marca da Espanha, a
menina casada, ou pelo menos noiva, pois, se perseverar, sem
dúvida haverá de encontrar, apesar da praga que lhe foi rogada, e
talvez, quem sabe, com a ajuda dessa mesma bruxaria, alguém que
se disponha a trocar amores com esta figura pesada, mas também
jovem e viçosa, que dorme enrodilhada na pequena cabine, e que
insiste, apesar de toda a maldição e feitiçaria, em lembrar a beleza
daquela jovem que a deixara para desaparecer para sempre nas
profundezas do mar.
Ele se levanta, e a nova ideia recém-surgida o deixa de tal modo
aturdido que ele não consegue mais se tranquilizar e voltar a dormir.
Resolve então descer aos porões do navio, do qual ainda se
p q
considera o único proprietário, para verificar não apenas se Abu
Lutfi está de fato cumprindo sua tarefa, mas também se as três
mulheres louras continuam acorrentadas por suas longas pernas. Lá,
no bojo do navio, dá-se conta de que uma das mulheres adoeceu de
repente, foi libertada da corrente e está deitada a um canto, pálida e
acometida de calafrios. A cabeça pende para trás, e está coberta por
uma túnica de seda rasgada e suja, encontrada entre as anteparas
enegrecidas do barco Ben-Atar, que percebe, angustiado, a origem
da túnica rasgada, mantém-se calado e fita enraivecido os olhos
claros, que se abrem e se fecham, derrotados, e as mãos delicadas da
pagã que seguram uma imagem de animal. Como ele sabe que
nunca, nunca a tocará, e também não tocará suas companheiras,
decide subir ao convés.
Então, medita o judeu norte-africano, é isso o que a Nova
Mulher e todos os sábios amigos da margem do Reno desejam. Que
de agora em diante eu recolha cada dia, só na imaginação, migalhas
e farrapos de uma Segunda Esposa, secreta Uma grande tristeza o
invade até que, incapaz de conter-se, vai acordar o rabino Elbaz para
que o olhe nos olhos e diga quão terrível e profunda foi a derrota
sofrida, pois jamais a sociedade reconstruída entre o Norte e o Sul
poderá consolá-lo nem devolver o que foi para sempre perdido nesta
viagem.
Mas o rabino de Sevilha, sonolento e confuso, ouve as palavras
do proprietário do barco, lamentando-se pelo que foi perdido como
se lamentasse por todas as desgraças do mundo, como se não os
aguardassem logo mais — onde o no deságua no mar, de onde se
pode ver, como um grande pássaro, o antigo navio viking submerso
— as ondas do oceano tempestuoso e os duros ventos do Norte, que
transformarão o destino da Segunda Esposa em uma história amena
e aprazível, se comparada ao destino que aguarda o esposo e sua
comitiva. De repente o pequeno rabino se enche de felicidade por ter
concordado em deixar o filho sob os cuidados da senhora Abuláfia,
para que possa retornar em paz apesar do ano mil, por terra até a
sua casa. Ele já imagina como o senhor Lavinas e sua irmã vestirão o
garoto com os trajes negros dos habitantes de Vermaíza e na sua
cabeça colocarão um chapéu em forma de chifre de carneiro e o
p
despertarão de manhã para sentar-se e estudar um antigo versículo e
uma nova interpretação da lei. As lágrimas lhe brotam dos olhos
pelo filho salvo e de novo sente irromper a compulsão poética de
escrever uma nova poesia, a quarta.Ele procura à sua volta, às
apalpadelas, tentando encontrar entre os pranchões da cabine aquela
velha pluma e o tinteiro. Mas nada encontra, e assim é obrigado
enquanto Ben-Atar se desfaz em amargas lamentações, a guardar na
memória as palavras de seu primeiro verso: "Entre mim e você há o
mar. E não cederei às tuas súplicas...”

Haifa, 1994-6

Fim

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