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fernando pessoa
edição de
filipa de freitas • patricio ferrari
com a colaboração de
claudia j. fischer
coorde nad o r da c o l e c ç ão
je ró n imo p iz arro
LISBOA
t i n ta ‑ da ‑ c h i na
mmxvii
ín dice
Apresentação 7
teatro estático
O Marinheiro 29
Dialogo no Jardim do Palacio 63
A Morte do Principe 89
As Cousas 109
© Filipa de Freitas e Patricio Ferrari, 2017 Dialogo na Sombra 113
Título: Teatro Estático
Os Emigrantes 119
Autor: Fernando Pessoa Inercia 125
Editores: Filipa de Freitas e Patricio Ferrari A Cadella 137
Colaboração de: Claudia J. Fischer
Coordenador da colecção: Jerónimo Pizarro Os Estrangeiros 145
Revisão: Rita Almeida Simões Sakyamuni 151
Capa e projecto gráico: Tinta-da-china
Salomé 173
Todos os direitos desta edição A Casa dos Mortos 187
reservados à Tinta-da-china
Rua Francisco Ferrer, n.º 6-A Calvario 193
1500-461 Lisboa Intervenção Cirurgica 205
Tels.: 21 726 90 28/9
E-mail: info@tintadachina.pt
anexos
www.tintadachina.pt
O Marinheiro: textos em francês 217
1.ª edição: Agosto de 2017 O Marinheiro: textos em inglês 252
O Marinheiro: textos em português 256
isbn 978-989-671-388-1
depósito legal n.º 428704/17 Textos sobre O Marinheiro 260
Outros fragmentos de Sakyamuni 265 a pr e sen t aç ão
Outros fragmentos de Salomé 266
Outros fragmentos de Calvario 270
Projectos 272
Textos sobre o teatro estático 276
A obra de Fernando Pessoa, que tem sido sucessivamente publi‑
Notas 281 cada ao longo das últimas décadas, com períodos de maior e menor
Posfácio 349 intensidade (e sujeita a variadas interpretações), continua a fas‑
cinar não só os seus leitores, mas também os editores, que mer‑
Ordem topográica das cotas 403 gulham no espólio pessoano cientes de que a fragmentação que
Índice onomástico 405 caracteriza sobremaneira os textos do escritor português exige, por
Bibliograia 409 um lado, uma constante recuperação do material que já veio à luz,
Notas biográicas 417 e, por outro, uma intensa e dedicada pesquisa de documentos iné‑
ditos que ainda se escondem nos cerca de 30 mil papéis de que se
compõe o seu acervo.
Trata‑se não só de questões metodológicas que a crítica textual
tem vindo a explicitar, e que implicam revisitar edições antigas, con‑
frontar leituras, renovar o olhar sobre a materialidade dos suportes
que contêm a produção artística pessoana, mas também de o espó‑
lio de Pessoa ser aparentemente um universo sem im, que permite
encontros surpreendentes com textos ainda inéditos ou com infor‑
mações decisivas no trabalho editorial da obra do autor. Fernando
Pessoa é conhecido pelas suas facetas mais marcantes, como a cria‑
ção heteronímica, que gira à volta de Alberto Caeiro, Ricardo Reis
e Álvaro de Campos, e a extraordinária prosa do Livro do Desassos-
sego (Pessoa, 2013a). Muitas investigações têm tentado completar
e revelar novas vertentes do multifacetado poeta português, desde
outras iguras ictícias que assinam um conjunto signiicativo de
poemas em língua inglesa, como Alexander Search (Pessoa, 1997) e
Frederick Wyatt (Ferrari e Pittella, 2016), ou textos em prosa, como
António Mora (Pessoa, 2002) ou o Barão de Teive (Pessoa, 2007),
até ensaios de crítica literária (Pessoa, 2013c), ilosóicos (Pessoa,
7
1968; e 2012b) e políticos (Pessoa, 2015c), que anunciam outro Pes‑ A edição que apresentamos aqui pretende dar conta de mais uma
soa, eventualmente um menos iccional, mais próximo do homem dessas facetas que compõem a obra de Fernando Pessoa: o teatro
real que inevitavelmente foi, mesmo quando não se pode ter certeza estático. Pessoa teve uma natureza dramatúrgica, mesmo quando
da fronteira que separa o homem do artista, dada a natureza extre‑ esse carácter se revelou pela despersonalização poética, origi-
mamente oscilante do autor. nando mais de uma centena de autores ictícios (Pessoa, 2016a).
Pessoa deixou à posteridade uma tarefa quase hercúlea: a orga‑ Relembremos que o universo heteronímico — indubitavelmente
nização dos seus textos, que, poderíamos dizer, disparam em todas um dos aspectos mais signiicativos da sua criação literária — foi
as direcções, anunciam interesses variados e por vezes contra‑ deinido como «um drama em gente», na «Tábua Bibliográica»
ditórios, misturam temáticas inconjugáveis, reunidos num aglo‑ publicada na revista Presença, em 1928. A experiência dramatúr-
merado de papéis diferentes, maioritariamente não datados e gica da heteronímia não foi, contudo, única: na verdade, os textos
escritos frequentemente de forma caótica. É suiciente relembrar dramáticos de Pessoa precedem o desenvolvimento dos heteróni-
que Pessoa aproveitava muitos dos possíveis suportes de escrita mos. Fausto, por exemplo, remonta a 1908, como o seu único frag-
que lhe chegavam às mãos para materializar a sua inspiração artís‑ mento datado explicita; a peça Amôr contém textos em suportes
tica — folhas de livros, envelopes, folhas de máquina, fragmen‑ timbrados da tipograia Íbis, um dos empreendimentos falhados
tos de cartão ou de cartolina, papel de embrulho, exemplares de de Pessoa, que durou entre 1909 e 1910. Estes exemplos, que não
folhas volantes, entre outros. Inspiração que, muitas vezes, resul‑ pertencem ao teatro estático, são apenas dois de entre um vasto
tava numa escrita quase indecifrável, «descontrolada», em que as conjunto de peças escritas em português e em inglês, em verso e
letras se confundem umas com as outras, «como o conteúdo con‑ em prosa.
fuso de uma gaveta despejada no chão», nas palavras de Campos O teatro estático, que agora reunimos, corresponde, por sua
(Pessoa, 2014a, p. 78). vez, a uma parcela desta experiência pessoana, que teve o seu início
Se é uma espécie de caixa de Pandora, em que as diiculdades se em 1913, inluenciada pela corrente simbolista francesa de inais
acumulam, o espólio de Pessoa também é uma fonte de inesgotáveis do século xix. Maeterlinck foi um dos expoentes desse novo movi-
surpresas que põem em causa o lugar‑comum, ainda muito arrei‑ mento, contribuindo para o desenvolvimento da noção de teatro
gado na comunidade de leitores, de que a obra pessoana já está pra‑ estático e, fortemente, para a criação de O Marinheiro. Esta peça, a
ticamente ixada pelas edições que têm sido feitas. Mas num autor única inalizada em vida do autor, e publicada no primeiro número
universal como Fernando Pessoa, a quem não escapou a faísca das de Orpheu, em 1915, tem sido alvo de várias edições ao longo dos
diversas áreas do conhecimento, a proporção da obra publicada é, anos, mas nenhuma delas incluiu todo o material que aqui apresen-
ainda, um fragmento do espelho completo que revelará a verdadeira tamos. Teresa Rita Lopes defende que O Marinheiro teve um papel
dimensão da sua criação artística. Apenas na junção de todas as fundamental, pois contém em si o embrião da futura heteronímia
perspectivas que esses fragmentos têm anunciado se poderá com‑ (1977, pp. 119, 124-125). A corroborar esta hipótese, Fischer chama
preender a genialidade e o esforço extraordinário de um dos gran‑ a atenção para o número das veladoras da peça — três —, que corres-
des expoentes da literatura portuguesa. ponde ao número de heterónimos principais (2012, p. 6).
Um quarto que é sem duvida num castello antigo. Do quarto vê-se que
é circular. Ao centro ergue-se, sobre uma eça, um caixão com uma
donzella, de branco. Quatro tochas aos cantos. Á direita, quasi em
frente a quem imagina o quarto, ha uma unica janella, alta e estreita,
dando para onde só se vê, entre dois montes longinquos, um pequeno
espaço de mar.
Do lado da janella velam trez donzellas. A primeira está sentada
em frente á janella, de costas contra a tocha de cima da direita. As
outras duas estão sentadas uma de cada lado da janella.
É noite e ha como que um resto vago de luar.
a Uniformizámos a indicação das personagens e das didascálias (em itálico) em todas as peças.
b Carlos Franco (1887-1916), amigo de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro, como se
depreende da correspondência entre os últimos (Sá-Carneiro, 2015). Nascido em Lisboa, alistou-se na
Legião Estrangeira Francesa e morreu em combate no dia 4 de Julho de 1916. Numa carta ao pai, datada
de 3 de Novembro de 1915, Sá-Carneiro descreve-o nos seguintes moldes: «cenógrafo, trabalhava aqui
[em Paris] num atelier onde ganhava 300 francos por mês. Quando rebentou a guerra icou porém sem
recursos tendo fechado o atelier e os teatros todos. Como em Lisboa não teria também recursos foi p[ar]a
a guerra. Dei-me m[ui]to com ele aqui o ano passado» (Sá-Carneiro, 2015, p. 411).
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Segunda — Não, não fallemos d’isso. De resto, fômos nós alguma Primeira — Fóra de aqui, nunca vi o mar. Alli, d’aquella janella,
cousa? que é a unica de onde o mar se vê, vê‑se tão pouco!… O mar de
Primeira — Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é bello outras terras é bello?
fallar do passado… As horas teem cahido1 e nós temos guardado Segunda — Só o mar das outras terras é que é bello. Aquelle que
silencio. Por mim, tenho estado a olhar para a chamma d’aquella nós vemos dá‑nos sempre saudades d’aquelle que não veremos
vela. Ás vezes treme, outras torna-se mais amarella, outras vezes nunca…
empallidece. Eu não sei porque é que isso se dá. Mas sabemos
nós, minhas irmãs, porque se dá qualquer cousa?… (uma pausa)
(uma pausa) Primeira — Não diziamos nós que iamos contar o nosso passado?
Segunda — Não, não diziamos.
A mesma — Fallar do passado – isso deve ser bello, porque é inútil Terceira — Porque não haverá relogio neste quarto?
e faz tanta pena… Segunda — Não sei… Mas assim, sem o relogio, tudo é mais afastado
Segunda — Fallemos, se quizerdes, de um passado que não e mysterioso. A noite pertence mais a si‑propria… Quem sabe se
tivessemos tido. nós poderiamos fallar assim se soubessemos a hora que é?
Terceira — Não. Talvez o tivessemos tido… Primeira — Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo dezembros na
Primeira — Não dizeis senão palavras. É tão triste fallar! É um alma… Estou procurando não olhar para a janella… Sei que de lá
modo tão falso de nos esquecermos!… Se passeassemos?… se vêem, ao longe, montes… Eu fui feliz para além de montes,
Terceira — Onde? outr’ora… Eu era pequenina. Colhia lôres todo o dia e antes de
Primeira — Aqui, de um lado para o outro. Ás vezes isso vai buscar adormecer pedia que não m’as tirassem… Não sei o que isto tem
sonhos. de irreparavel que me dá vontade de chorar… Foi longe d’aqui
Terceira — De quê? que isto pôde ser… Quando virá o dia?…
Primeira — Não sei. Porque o havia eu de saber? Terceira — Que importa? Elle vem sempre da mesma maneira…
sempre, sempre, sempre…
(uma pausa)
(uma pausa)
Segunda — Todo este paiz é muito triste… Aquelle onde eu vivi
outr’ora era menos triste. Ao entardecer eu iava, sentada á Segunda — Contemos contos umas ás outras… Eu não sei contos
minha janella. A janella dava para o mar e ás vezes havia uma nenhuns, mas isso não faz mal… Só viver é que faz mal… Não
ilha ao longe… Muitas vezes eu não iava; olhava para o mar e rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes… Não, não
esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser vos levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um
aquillo que talvez eu nunca fôsse… sonho… Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é‑me
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notas biogr áficas
o autor
Fernando Pessoa (1888‑1935) é hoje o «heterónimos», reservando a designação
principal elo literário de Portugal com de «ortónimo» para si próprio. Director
o mundo. A sua obra em verso e em prosa e colaborador de várias revistas literárias,
é a mais plural que se possa imaginar, pois autor do Livro do Desassossego e, no dia‑
tem múltiplas facetas, materializa inú‑ ‑a‑dia, «correspondente estrangeiro em
meros interesses e representa um autên‑ casas comerciais», Pessoa deixou uma obra
tico património colectivo: do autor, das universal em três línguas que continua a
diversas iguras autorais inventadas por ser editada e estudada desde que escreveu,
ele e dos leitores. Algumas dessas per‑ antes de morrer, em Lisboa, «I know not
sonagens, Alberto Caeiro, Ricardo Reis what to‑morrow will bring» [«Não sei o
e Álvaro de Campos, Pessoa denominou que o amanhã trará»].
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notas biogr áficas
os editores
Filipa de Freitas (Lisboa, 1985) é inves- minar o doutoramento sobre Fernando
tigadora no Centro de Estudos de Teatro Pessoa e Søren Kierkegaard (Universidade
(Universidade de Lisboa) e no Instituto Nova de Lisboa). Publicou vários artigos
de Estudos Filosóicos (Universidade de sobre a obra de Fernando Pessoa e prepara
Coimbra). Licenciada em Estudos Por- um livro sobre o Barão de Teive. Colabo-
tugueses e Lusófonos, é mestre em Estu- rou na Obra Completa de Álvaro de Campos
dos Portugueses e em Filosoia. Está a ter- (2014, Tinta-da-china).
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teatro estático
foi composto em caracteres filosofia
e verlag, e impresso na guide, artes gráficas,
sobre papel coral book de 80 g/m2,
no mês de julho de 2017.