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teatro estático

fernando pessoa

edição de
filipa de freitas • patricio ferrari

com a colaboração de
claudia j. fischer

coorde nad o r da c o l e c ç ão
je ró n imo p iz arro

LISBOA
t i n ta ‑ da ‑ c h i na
mmxvii
ín dice

Apresentação 7

teatro estático
O Marinheiro 29
Dialogo no Jardim do Palacio 63
A Morte do Principe 89
As Cousas 109
© Filipa de Freitas e Patricio Ferrari, 2017 Dialogo na Sombra 113
Título: Teatro Estático
Os Emigrantes 119
Autor: Fernando Pessoa Inercia 125
Editores: Filipa de Freitas e Patricio Ferrari A Cadella 137
Colaboração de: Claudia J. Fischer
Coordenador da colecção: Jerónimo Pizarro Os Estrangeiros 145
Revisão: Rita Almeida Simões Sakyamuni 151
Capa e projecto gráico: Tinta-da-china
Salomé 173
Todos os direitos desta edição A Casa dos Mortos 187
reservados à Tinta-da-china
Rua Francisco Ferrer, n.º 6-A Calvario 193
1500-461 Lisboa Intervenção Cirurgica 205
Tels.: 21 726 90 28/9
E-mail: info@tintadachina.pt
anexos
www.tintadachina.pt
O Marinheiro: textos em francês 217
1.ª edição: Agosto de 2017 O Marinheiro: textos em inglês 252
O Marinheiro: textos em português 256
isbn 978-989-671-388-1
depósito legal n.º 428704/17 Textos sobre O Marinheiro 260
Outros fragmentos de Sakyamuni 265 a pr e sen t aç ão
Outros fragmentos de Salomé 266
Outros fragmentos de Calvario 270
Projectos 272
Textos sobre o teatro estático 276
A obra de Fernando Pessoa, que tem sido sucessivamente publi‑
Notas 281 cada ao longo das últimas décadas, com períodos de maior e menor
Posfácio 349 intensidade (e sujeita a variadas interpretações), continua a fas‑
cinar não só os seus leitores, mas também os editores, que mer‑
Ordem topográica das cotas 403 gulham no espólio pessoano cientes de que a fragmentação que
Índice onomástico 405 caracteriza sobremaneira os textos do escritor português exige, por
Bibliograia 409 um lado, uma constante recuperação do material que já veio à luz,
Notas biográicas 417 e, por outro, uma intensa e dedicada pesquisa de documentos iné‑
ditos que ainda se escondem nos cerca de 30 mil papéis de que se
compõe o seu acervo.
Trata‑se não só de questões metodológicas que a crítica textual
tem vindo a explicitar, e que implicam revisitar edições antigas, con‑
frontar leituras, renovar o olhar sobre a materialidade dos suportes
que contêm a produção artística pessoana, mas também de o espó‑
lio de Pessoa ser aparentemente um universo sem im, que permite
encontros surpreendentes com textos ainda inéditos ou com infor‑
mações decisivas no trabalho editorial da obra do autor. Fernando
Pessoa é conhecido pelas suas facetas mais marcantes, como a cria‑
ção heteronímica, que gira à volta de Alberto Caeiro, Ricardo Reis
e Álvaro de Campos, e a extraordinária prosa do Livro do Desassos-
sego (Pessoa, 2013a). Muitas investigações têm tentado completar
e revelar novas vertentes do multifacetado poeta português, desde
outras iguras ictícias que assinam um conjunto signiicativo de
poemas em língua inglesa, como Alexander Search (Pessoa, 1997) e
Frederick Wyatt (Ferrari e Pittella, 2016), ou textos em prosa, como
António Mora (Pessoa, 2002) ou o Barão de Teive (Pessoa, 2007),
até ensaios de crítica literária (Pessoa, 2013c), ilosóicos (Pessoa,

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1968; e 2012b) e políticos (Pessoa, 2015c), que anunciam outro Pes‑ A edição que apresentamos aqui pretende dar conta de mais uma
soa, eventualmente um menos iccional, mais próximo do homem dessas facetas que compõem a obra de Fernando Pessoa: o teatro
real que inevitavelmente foi, mesmo quando não se pode ter certeza estático. Pessoa teve uma natureza dramatúrgica, mesmo quando
da fronteira que separa o homem do artista, dada a natureza extre‑ esse carácter se revelou pela despersonalização poética, origi-
mamente oscilante do autor. nando mais de uma centena de autores ictícios (Pessoa, 2016a).
Pessoa deixou à posteridade uma tarefa quase hercúlea: a orga‑ Relembremos que o universo heteronímico — indubitavelmente
nização dos seus textos, que, poderíamos dizer, disparam em todas um dos aspectos mais signiicativos da sua criação literária — foi
as direcções, anunciam interesses variados e por vezes contra‑ deinido como «um drama em gente», na «Tábua Bibliográica»
ditórios, misturam temáticas inconjugáveis, reunidos num aglo‑ publicada na revista Presença, em 1928. A experiência dramatúr-
merado de papéis diferentes, maioritariamente não datados e gica da heteronímia não foi, contudo, única: na verdade, os textos
escritos frequentemente de forma caótica. É suiciente relembrar dramáticos de Pessoa precedem o desenvolvimento dos heteróni-
que Pessoa aproveitava muitos dos possíveis suportes de escrita mos. Fausto, por exemplo, remonta a 1908, como o seu único frag-
que lhe chegavam às mãos para materializar a sua inspiração artís‑ mento datado explicita; a peça Amôr contém textos em suportes
tica — folhas de livros, envelopes, folhas de máquina, fragmen‑ timbrados da tipograia Íbis, um dos empreendimentos falhados
tos de cartão ou de cartolina, papel de embrulho, exemplares de de Pessoa, que durou entre 1909 e 1910. Estes exemplos, que não
folhas volantes, entre outros. Inspiração que, muitas vezes, resul‑ pertencem ao teatro estático, são apenas dois de entre um vasto
tava numa escrita quase indecifrável, «descontrolada», em que as conjunto de peças escritas em português e em inglês, em verso e
letras se confundem umas com as outras, «como o conteúdo con‑ em prosa.
fuso de uma gaveta despejada no chão», nas palavras de Campos O teatro estático, que agora reunimos, corresponde, por sua
(Pessoa, 2014a, p. 78). vez, a uma parcela desta experiência pessoana, que teve o seu início
Se é uma espécie de caixa de Pandora, em que as diiculdades se em 1913, inluenciada pela corrente simbolista francesa de inais
acumulam, o espólio de Pessoa também é uma fonte de inesgotáveis do século xix. Maeterlinck foi um dos expoentes desse novo movi-
surpresas que põem em causa o lugar‑comum, ainda muito arrei‑ mento, contribuindo para o desenvolvimento da noção de teatro
gado na comunidade de leitores, de que a obra pessoana já está pra‑ estático e, fortemente, para a criação de O Marinheiro. Esta peça, a
ticamente ixada pelas edições que têm sido feitas. Mas num autor única inalizada em vida do autor, e publicada no primeiro número
universal como Fernando Pessoa, a quem não escapou a faísca das de Orpheu, em 1915, tem sido alvo de várias edições ao longo dos
diversas áreas do conhecimento, a proporção da obra publicada é, anos, mas nenhuma delas incluiu todo o material que aqui apresen-
ainda, um fragmento do espelho completo que revelará a verdadeira tamos. Teresa Rita Lopes defende que O Marinheiro teve um papel
dimensão da sua criação artística. Apenas na junção de todas as fundamental, pois contém em si o embrião da futura heteronímia
perspectivas que esses fragmentos têm anunciado se poderá com‑ (1977, pp. 119, 124-125). A corroborar esta hipótese, Fischer chama
preender a genialidade e o esforço extraordinário de um dos gran‑ a atenção para o número das veladoras da peça — três —, que corres-
des expoentes da literatura portuguesa. ponde ao número de heterónimos principais (2012, p. 6).

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O Marinheiro é, dentro do teatro estático, a peça mais complexa obstante Pessoa ter estabelecido, como noutras partes da obra, uma
de Pessoa. Não se conhece outro testemunho integral desta obra data provavelmente ictícia, que incluiu na sua publicação: «11/12
para além do publicado em 1915, mas vários documentos apontam Outubro, 1913». Para além das características materiais dos supor-
para um projecto mais abrangente, que incluiria uma versão fran- tes dos textos da peça, alguns elementos externos corroboram a ic-
cesa e uma inglesa. Fischer defende a hipótese de as versões iniciais ção desta data. A 25 de Maio de 1914, pouco mais de dois meses após
da peça terem sido em francês (2012, p. 18), pois o cotejo dos seus o mítico dia triunfal no qual Fernando Pessoa deu à luz os seus prin-
fragmentos franceses com a versão portuguesa sugere que os primei- cipais heterónimos, Álvaro Pinto, um dos nomes do movimento da
ros não são uma tradução da segunda. Pessoa terá começado a escre- Renascença Portuguesa, no Porto, recebeu uma carta de Pessoa inda-
ver O Marinheiro em francês, optando depois pela sua língua nativa, gando sobre o seu interesse no envio de «uma peça n’um acto, d’um
cujo conhecimento suplantava o da língua estrangeira. A datação dos genero especial a que eu chamo estatico» (Anexo 19), para a revista A
fragmentos franceses, que oscilam entre a fronteira de 1913 e 1914, Águia, órgão do movimento. A proposta do poeta, todavia, não che-
também contribui para esta hipótese, na medida em que são con- gou a bom porto: noutra carta a Pinto, datada de 24 de Novembro do
temporâneos do texto português, se não anteriores. Apontam tam- mesmo ano, Pessoa indica não ter recebido nenhuma resposta, inter-
bém para esta possibilidade a existência de seis versões diferentes pretando essa ausência como «uma recusa» da publicação do drama.
em francês do início da peça e de um manuscrito escrito em francês No entanto, não é certo que Pessoa tenha enviado, realmente, a sua
que inclui trechos em português, designadamente a didascália inal, peça, uma vez que, na mesma carta, indica: «Não mandei para ahi
que difere ligeiramente da versão posteriormente publicada. Na ver- livro nenhum. Posto que prompto, nem sequér se encontra passado
dade, 1913 e 1914 foram anos em que Pessoa escreveu vários poemas a limpo o trabalho literario de que se trata» (Anexo 20). Desconhecemos
franceses, destacando-se uma das suas folhas, com um poema datado os motivos que terão levado Álvaro Pinto a não responder à solicita-
de 20 de Novembro de 1914, publicado por Freitas da Costa (Pessoa, ção de Pessoa, mas essa recusa originou uma ruptura do poeta com a
1952, pp. 63-64) e por Ferrari (Pessoa, 2014b, p. 242), que apresenta revista, onde havia já publicado alguns artigos (ver Pessoa, 1944).
uma referência à peça: «O Marinheiro — Drama estatico n’um quadro» A par dos textos franceses e da versão portuguesa do drama pes-
(Anexo 14). Outro poema francês, de c. 1914, tem proximidades temá- soano, o projecto de O Marinheiro também incluiu a tradução de
ticas com a peça (Pessoa, 2014b, pp. 333-334). Por im, a atestar esta algumas das falas para inglês, que Pessoa terá iniciado entre 1915
hipótese, saliente-se a inluência da obra dramática de Maeterlinck, e 1917 (ver Anexos). O cotejo dos textos permite constatar que os
que Pessoa adquiriu e leu em 1913, conservando-a ao longo da sua fragmentos ingleses são uma tradução quase literal da versão por-
vida. Alguns estudos têm estabelecido paralelismos entre a obra do tuguesa, como Fischer já tinha concluído (2012, p.  18). A versão
autor belga e O Marinheiro, revelando que Maeterlinck foi, de facto, portuguesa de O Marinheiro foi, de facto, a única peça teatral que
uma inluência decisiva na criação teatral de Pessoa, assim como na Pessoa terminou. Os seus textos paralelos escritos em francês e
própria noção de teatro estático (ver Posfácio). inglês, como as demais peças que compõem o teatro estático, ica-
Apesar de não ser possível datar com precisão a escrita da peça ram por concluir. De um modo que também é comum na obra pes-
em português, a versão completa surgiu provavelmente em 1914, não soana, O Marinheiro foi pensado e repensado pelo autor até quase

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ao inal da sua vida. Em 8 de Dezembro de 1929, Gaspar Simões theatro estatico áquelle cujo enredo dramatico não constitue acção»,
sugere que Pessoa publique na revista Presença alguns textos anti- airma num dos seus documentos (Anexo 35). A ausência de acção
gos, como a peça estática, mas o poeta recusa o convite, indi- constitui uma das propriedades fundamentais do teatro estático, de
cando que «“O Marinheiro” está sujeito a emendas» (Pessoa, 1998, tal modo que se aplica não só ao enredo, mas às próprias persona‑
pp. 112 e 115). Entre os fragmentos portugueses relacionados com gens, que «não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre
O Marinheiro que se encontraram no espólio, destaca-se um que deslocarem‑se, mas nem sequér teem sentidos capazes de produzir
parece corresponder a esta vontade do autor, apresentando algumas uma acção». A noção de um enredo — de um io condutor do drama
variantes da versão impressa (ver Anexos). — não tem lugar no estático, que se centra na linguagem como ins‑
O Marinheiro constitui-se, então, como a primeira experiên- trumento parcialmente revelador da obscura natureza humana. Esta
cia de Pessoa no âmbito de um novo modo de conceber o teatro, revelação de almas ou de «inercias», como Pessoa também as carac‑
que o simbolismo instituiu e que o poeta português não só absor- teriza noutro texto inédito, é o elemento que a diferencia de outro
veu como transformou, para dar origem à sua própria noção de tea- género de teatro — o dinâmico —, que apresenta «uma acção e os
tro estático. É preciso ter em conta que Pessoa não foi um simples caracteres das personagens apenas no que reveladas por essa acção
seguidor de novos movimentos, mas procurou sempre recriar o seu e existentes para essa acção» (Anexo 36). O teatro estático, oposto ao
próprio universo. Neste sentido, o teatro estático não é um mero dinâmico, deine‑se por «apresentar inercias, isto é, […] revelar
devedor das directrizes simbolistas: se surge no contacto com essa as almas n’aquillo que ellas conteem que não produz acção, nem se
corrente, inicialmente via poesia (Lopes, 1977, p. 148) e, posterior- revela atravez da acção, mas ica dentro d’ellas». Da síntese destes
mente, via dramaturgia, através de Maeterlinck e de autores ante- dois géneros, surge, segundo Pessoa, o teatro estático‑dinâmico, de
riores que inluenciaram o simbolismo, como Oscar Wilde, Edgar que Hamlet de Shakespeare constitui um exemplo, e que consiste em
Allan Poe e William Shakespeare, também é, de algum modo, deve- «levar até á acção parte das almas que no theatro puramente dyna‑
dor de um conhecimento lato de outros escritores que contribuíram mico só podem revelar‑se com prejuízo da integridade artistica e
para o desenvolvimento das experiências dramáticas pessoanas. constante do drama» (Anexo 36).
A sua Biblioteca Particular dá conta dessa heterogeneidade: Ésquilo, No que respeita ao teatro de Pessoa agora editado, trata‑se,
Sófocles, Eurípides, Marlowe, Goethe, Racine e Voltaire são apenas naturalmente, dos seus textos dentro do paradigma do estático, que
alguns dos nomes que encontramos entre as leituras de Pessoa (ver inclui 13 peças mais ou menos fragmentadas, para além de O Mari-
Pizarro, Ferrari e Cardiello, 2010). Mas a criação do poeta não é feita nheiro: Dialogo no Jardim do Palacio, A Morte do Principe, As Cousas,
de mera imitação de modelos prévios: ela estabelece-se na conjuga- Dialogo na Sombra, Os Emigrantes, Inercia, Os Estrangeiros, A Cadella,
ção de várias vertentes que incluem o interesse por diferentes áreas Sakyamuni, Salomé, A Casa dos Mortos, Calvario e Intervenção Cirur-
do conhecimento, para além da literatura, como a ciência, a teolo- gica. Pela datação dos textos, o teatro estático teve dois períodos
gia, a ilosoia e o esoterismo. distintos: o primeiro, mais signiicativo, que engloba a maior parte
Fernando Pessoa não escreveu muitos textos teóricos sobre o tea- das peças, entre 1913/1914 e 1918; e o segundo, entre 1932 e 1934,
tro estático, mas aqueles que nos deixou são elucidativos: «Chamo altura em que Pessoa retomou o teatro estático, escrevendo alguns

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o marinheiro
drama estático em um quadro

Publicam‑se criticamente os textos a partir dos originais de Fernando Pessoa


albergados na Biblioteca Nacional de Portugal/Espólio 3 (BNP/E3). As cotas
das fontes usadas para a edição de cada texto são indicadas entre colchetes. Nos
capítulos seguintes, as chamadas alfabéticas remetem para notas de rodapé de
carácter informativo; as chamadas numéricas, para notas inais de natureza
ilológica. Para além dos colchetes que servem para desenvolver abreviaturas,
nos textos transcritos podem igurar os símbolos seguintes, inicialmente
utilizados na edição crítica das obras de Fernando Pessoa:

◊ espaço deixado em branco pelo autor


* leitura conjecturada
† palavra ilegível

Os sublinhados no texto original são reproduzidos em itálico.


a Carlos Francob 1a
[c. 1914]

Um quarto que é sem duvida num castello antigo. Do quarto vê-se que
é circular. Ao centro ergue-se, sobre uma eça, um caixão com uma
donzella, de branco. Quatro tochas aos cantos. Á direita, quasi em
frente a quem imagina o quarto, ha uma unica janella, alta e estreita,
dando para onde só se vê, entre dois montes longinquos, um pequeno
espaço de mar.
Do lado da janella velam trez donzellas. A primeira está sentada
em frente á janella, de costas contra a tocha de cima da direita. As
outras duas estão sentadas uma de cada lado da janella.
É noite e ha como que um resto vago de luar.

Primeira veladora — Ainda não deu hora nenhuma.


Segunda — Não se podia ouvir. Não ha relogio aqui perto. Dentro
em pouco deve ser dia.
Terceira — Não: o horizonte é negro.
Primeira — Não desejaes, minha irmã, que nos entretenhamos
contando o que fômos? É bello e é sempre falso…

a Uniformizámos a indicação das personagens e das didascálias (em itálico) em todas as peças.
b Carlos Franco (1887-1916), amigo de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro, como se
depreende da correspondência entre os últimos (Sá-Carneiro, 2015). Nascido em Lisboa, alistou-se na
Legião Estrangeira Francesa e morreu em combate no dia 4 de Julho de 1916. Numa carta ao pai, datada
de 3 de Novembro de 1915, Sá-Carneiro descreve-o nos seguintes moldes: «cenógrafo, trabalhava aqui
[em Paris] num atelier onde ganhava 300 francos por mês. Quando rebentou a guerra icou porém sem
recursos tendo fechado o atelier e os teatros todos. Como em Lisboa não teria também recursos foi p[ar]a
a guerra. Dei-me m[ui]to com ele aqui o ano passado» (Sá-Carneiro, 2015, p. 411).

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Segunda — Não, não fallemos d’isso. De resto, fômos nós alguma Primeira — Fóra de aqui, nunca vi o mar. Alli, d’aquella janella,
cousa? que é a unica de onde o mar se vê, vê‑se tão pouco!… O mar de
Primeira — Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é bello outras terras é bello?
fallar do passado… As horas teem cahido1 e nós temos guardado Segunda — Só o mar das outras terras é que é bello. Aquelle que
silencio. Por mim, tenho estado a olhar para a chamma d’aquella nós vemos dá‑nos sempre saudades d’aquelle que não veremos
vela. Ás vezes treme, outras torna-se mais amarella, outras vezes nunca…
empallidece. Eu não sei porque é que isso se dá. Mas sabemos
nós, minhas irmãs, porque se dá qualquer cousa?… (uma pausa)

(uma pausa) Primeira — Não diziamos nós que iamos contar o nosso passado?
Segunda — Não, não diziamos.
A mesma — Fallar do passado – isso deve ser bello, porque é inútil Terceira — Porque não haverá relogio neste quarto?
e faz tanta pena… Segunda — Não sei… Mas assim, sem o relogio, tudo é mais afastado
Segunda — Fallemos, se quizerdes, de um passado que não e mysterioso. A noite pertence mais a si‑propria… Quem sabe se
tivessemos tido. nós poderiamos fallar assim se soubessemos a hora que é?
Terceira — Não. Talvez o tivessemos tido… Primeira — Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo dezembros na
Primeira — Não dizeis senão palavras. É tão triste fallar! É um alma… Estou procurando não olhar para a janella… Sei que de lá
modo tão falso de nos esquecermos!… Se passeassemos?… se vêem, ao longe, montes… Eu fui feliz para além de montes,
Terceira — Onde? outr’ora… Eu era pequenina. Colhia lôres todo o dia e antes de
Primeira — Aqui, de um lado para o outro. Ás vezes isso vai buscar adormecer pedia que não m’as tirassem… Não sei o que isto tem
sonhos. de irreparavel que me dá vontade de chorar… Foi longe d’aqui
Terceira — De quê? que isto pôde ser… Quando virá o dia?…
Primeira — Não sei. Porque o havia eu de saber? Terceira — Que importa? Elle vem sempre da mesma maneira…
sempre, sempre, sempre…
(uma pausa)
(uma pausa)
Segunda — Todo este paiz é muito triste… Aquelle onde eu vivi
outr’ora era menos triste. Ao entardecer eu iava, sentada á Segunda — Contemos contos umas ás outras… Eu não sei contos
minha janella. A janella dava para o mar e ás vezes havia uma nenhuns, mas isso não faz mal… Só viver é que faz mal… Não
ilha ao longe… Muitas vezes eu não iava; olhava para o mar e rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes… Não, não
esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser vos levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um
aquillo que talvez eu nunca fôsse… sonho… Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é‑me

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suave pensar que o podia estar tendo… Mas o passado – por que Sinto‑me desejosa de ouvir musicas barbaras que devem
não fallâmos nós d’elle? agora estar tocando em palacios de outros continentes…
Primeira — Decidimos não o fazer… Breve raiará o dia e arre‑ É sempre longe na minha alma… Talvez porque, quando creança,
pender‑nos‑hemos… Com a luz os sonhos adormecem… corri atraz das ondas á beira‑mar. Levei a vida pela mão entre
O passado não é senão um sonho… De resto, nem sei o que não rochedos, maré‑baixa, quando o mar parece ter cruzado as mãos
é sonho… Se ólho para o presente com muita attenção, parece‑ sobre o peito e ter adormecido como uma estatua de anjo para
‑me que elle já passou… O que é qualquer cousa? Como é que que nunca mais ninguem olhasse…
ella passa? Como é por dentro o modo como ella passa?… Ah, Terceira — As vossas phrases lembram‑me a minha alma…
fallemos, minhas irmãs, fallemos alto, fallemos todas juntas… Segunda — É talvez por não serem verdadeiras… Mal sei que as
O silencio começa a tomar corpo, começa a ser cousa… Sinto‑o digo… Repito‑as seguindo uma voz que não ouço que m’as está
envolver‑me como uma nevoa… Ah, fallae, fallae!… segredando…2 Mas eu devo ter vivido realmente á beira‑mar…
Segunda — Para quê?… Fito‑vos a ambas e não vos vejo logo… Sempre que uma cousa ondeia, eu amo‑a… Ha ondas na minha
Parece‑me que entre nós se augmentaram abysmos… Tenho alma… Quando ando embalo‑me… Agora eu gostaria de andar…
que cançar a idéa de que vos posso ver para poder chegar a ver‑ Não o faço porque não vale nunca a pena fazer nada, sobretudo
‑vos… Este ar quente é frio por dentro, naquella parte que toca o que se quer fazer… Dos montes é que eu tenho medo…
na alma… Eu devia agora sentir mãos impossiveis passarem‑ É3 impossivel que elles sejam tão parados e grandes… Devem
‑me pelos cabellos… As mãos pelos cabellos – é o gesto com que ter um segredo de pedra que se recusam a saber que teem…
fallam das sereias… (Cruza as mãos sobre os joelhos. Pausa.) Ainda Se d’esta janella, debruçando‑me, eu pudesse deixar de ver
ha pouco, quando eu não pensava em nada, estava pensando no montes, debruçar‑se‑hia um momento da minha alma alguem
meu passado… em quem eu me sentisse feliz…
Primeira — Eu tambem devia ter estado a pensar no meu… Primeira — Por mim, amo os montes… Do lado de cá de todos
Terceira — Eu já não sei em que pensava… No passado dos os montes é que a vida é sempre feia…4 Do lado de lá, onde
outros talvez…, no passado de gente maravilhosa que nunca mora minha mãe, costumavamos sentarmo‑nos5 á sombra
existiu… Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho… Porque dos tamarindos e fallar de ir ver outras terras… Tudo alli era
é que correria, e porque é que não correria mais longe, ou mais longo e feliz como o canto de duas aves, uma de cada lado do
perto?… Ha alguma razão para qualquer cousa ser o que é? Ha para caminho… A loresta não tinha outras clareiras senão os nossos
isso qualquer razão verdadeira e real como as minhas mãos?… pensamentos… E os nossos sonhos eram de que as arvores
Segunda — As mãos não são verdadeiras nem reaes… São projectassem no chão outra calma que não as suas sombras… Foi
mysterios que habitam na nossa vida… Ás vezes, quando ito as decerto assim que alli vivemos, eu e não sei se mais alguem…
minhas mãos, tenho medo de Deus… Não ha vento que mova Dizei‑me que isto foi verdade para que eu não tenha de chorar…
as chammas das velas, e olhae, ellas movem‑se… Para onde se Segunda — Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar… A orla
inclinam ellas?… Que pena se alguem pudesse responder!… da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas

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páginas seguintes:
o marinheiro em orpheu , n. º 1, 1915, pp. 27‑39
anexos
notas

texto teórico sobre o teatro estático,


com a variante «drama» em vez de «theatro» no início (anexo 36)
1 5 sentarmo’nos ] no original.
[Orpheu 1] 6 O presente parece‑me que durmo… ]
Testemunho impresso na revista Orpheu, n.º 1, segmento idêntico em 133F-22r.
Lisboa, Janeiro-Fevereiro-Março de 1915, 7 ?. ] no original.
pp. 27-39. Não se conhece nenhum testemunho 8 Está mais frio? ] segmento
integral, manuscrito ou dactilografado, de idêntico em 133F-22r.
O Marinheiro. No espólio pessoano encontram- 9 Tudo é muito e nós não sabemos nada ]
-se apenas alguns testemunhos (em francês, segmento idêntico em 14E-86v (Anexo 13).
inglês e português) de passagens do drama 10 Deve ter sido assim… ] em 133F-22r
(cf. anexos). Tratando-se do único drama encontra-se Pode ter sido assim.
publicado por Pessoa, optou-se por manter 11 e que eu tinha esquecido que tinha
a versão publicada, assinalando em nota o pae e mãe ] segmento
Registam‑se aqui as variações de cada texto a partir dos originais do espólio de confronto com os testemunhos manuscritos em idêntico em 133F-22r.
português (Anexos 13 a 17). Após a primeira 12 Não ter havido uma arvore que
Fernando Pessoa (Biblioteca Nacional de Portugal/Espólio n.Ø  3; BNP/E3). Nas edição em 1915, este drama foi várias vezes mosqueasse sobre as minhas
notas podem ocorrer os símbolos seguintes, também utilizados na edição crítica reeditado entre 1966 e 2015 (cf. Apresentação). mãos estendidas a sombra de um
das obras do autor: N O TA S sonho como esse!… ] segmento
1 As horas teem cahido ] em idêntico, riscado, em 14E-86v.
◊ espaço deixado em branco pelo autor 133F-22r (Anexo 15), as horas teem 13 O dia nunca raia ] segmento
corrido. [↑ desapparecido] idêntico em 133F-22r.
* leitura conjecturada 2 Repito‑as seguindo uma voz que não 14 Uma a uma as ruas, ] em 133F-22r
† palavra ilegível ouço que m’as está segredando… ] encontra-se um segmento idêntico.
// passagem dubitada pelo autor no Anexo 17, encontra-se Repito‑ 15 recordado, ] no original.
<> segmento autógrafo riscado ‑as como se uma voz m’as segredasse 16 edade viril… ] há um segmento
<>/\ substituição por superposição e me chegasse a repetil‑as. idêntico em 133F-22r.
3 E ] no original. 17 mais incerto, ] segmento
<>[↑ ] substituição por riscado e acrescento 4 Do lado de cá de todos os montes é que idêntico em 133F-22r.
[↑ ] acrescento na entrelinha superior a vida é sempre feia… ] em 29-1 (Anexo 18 .. ] no original.
[↓ ] acrescento na entrelinha inferior 16), É do lado de lá dos montes que 19 E elle viu ] em 133F-22r encontra-
[→ ] acrescento na margem direita a vida é sempre bella. O testemunho, -se um segmento idêntico.
[← ] acrescento na margem esquerda que inclui mais três falas inéditas entre 20 outro. ] com ponto inal em vez de vírgula.
as duas veladoras, indica que Pessoa 21 Depois é alguma cousa?…] em 133F-22r
pensou reformular esta passagem. encontra-se um segmento idêntico.
Nesta secção, as palavras dos editores iguram em tipo itálico.

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notas biogr áficas

o autor
Fernando Pessoa (1888‑1935) é hoje o «heterónimos», reservando a designação
principal elo literário de Portugal com de «ortónimo» para si próprio. Director
o mundo. A sua obra em verso e em prosa e colaborador de várias revistas literárias,
é a mais plural que se possa imaginar, pois autor do Livro do Desassossego e, no dia‑
tem múltiplas facetas, materializa inú‑ ‑a‑dia, «correspondente estrangeiro em
meros interesses e representa um autên‑ casas comerciais», Pessoa deixou uma obra
tico património colectivo: do autor, das universal em três línguas que continua a
diversas iguras autorais inventadas por ser editada e estudada desde que escreveu,
ele e dos leitores. Algumas dessas per‑ antes de morrer, em Lisboa, «I know not
sonagens, Alberto Caeiro, Ricardo Reis what to‑morrow will bring» [«Não sei o
e Álvaro de Campos, Pessoa denominou que o amanhã trará»].

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notas biogr áficas

os editores
Filipa de Freitas (Lisboa, 1985) é inves- minar o doutoramento sobre Fernando
tigadora no Centro de Estudos de Teatro Pessoa e Søren Kierkegaard (Universidade
(Universidade de Lisboa) e no Instituto Nova de Lisboa). Publicou vários artigos
de Estudos Filosóicos (Universidade de sobre a obra de Fernando Pessoa e prepara
Coimbra). Licenciada em Estudos Por- um livro sobre o Barão de Teive. Colabo-
tugueses e Lusófonos, é mestre em Estu- rou na Obra Completa de Álvaro de Campos
dos Portugueses e em Filosoia. Está a ter- (2014, Tinta-da-china).

Patricio Ferrari (Merlo, Argentina, 1975) números dedicados à vertente inglesa do


doutorou-se em 2012 na Universidade de autor (Portuguese Literary & Cultural Studies
Lisboa, com uma tese sobre a poesia tri- e Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pes-
lingue de Fernando Pessoa, e concluiu soa Studies). Traduziu vários poetas, entre
um MFA em poesia na Brown University eles o próprio Pessoa. É co-editor, com
(EUA). Publicou a primeira edição crítica Jerónimo Pizarro, de Eu Sou Uma Antologia:
da poesia francesa de Pessoa, para além de 136 autores ictícios (2013, Tinta-da-china)
outros seis volumes de obras pessoanas, e Obra Completa de Alberto Caeiro (2016,
e duas revistas nos Estados Unidos com Tinta-da-china).

Claudia J. Fischer (Konstanz, Alemanha, revistas Real e Pessoa Plural), co-editou


1962) doutorou-se em Teoria da Literatura Argumentos para Filmes (2011, Babel) e
(Universidade de Lisboa, 2007), lecciona comissariou uma exposição sobre a rela-
no Departamento de Estudos Germanísti- ção do poeta com Cascais (Museu Con-
cos e é membro do Centro de Estudos Com- des de Castro Guimarães, 2013). Traduziu
paratistas da FLUL. Tem publicado artigos Thomas Mann, Rainer Maria Rilke, Walter
sobre Fernando Pessoa enquanto tradutor, Benjamin e Rainer Werner Fassbinder.
leitor e autor em diferentes línguas (nas

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teatro estático
foi composto em caracteres filosofia
e verlag, e impresso na guide, artes gráficas,
sobre papel coral book de 80 g/m2,
no mês de julho de 2017.

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