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10.SANT'ANNA, Márcia. A Cidade-Patrimônio No Brasil
10.SANT'ANNA, Márcia. A Cidade-Patrimônio No Brasil
A C I O N A L
A CIDADE - PATRIMÔNIO NO B RASIL :
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LIÇÕES DO PASSADO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
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INTRODUÇÃO com dados recentes colhidos entre 2014 e
20161. Essas pesquisas extrapolaram o âmbito
A questão da preservação e gestão do de minha prática profissional no Iphan, mas
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se beneficiaram da minha vivência como
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patrimônio urbano, bem como a da sua
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conservação e utilização numa perspectiva servidora da instituição por 24 anos. Ao
do respeito à memória urbana, ao interesse longo desse período, tive a oportunidade
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público e ao bem comum, me intriga e de participar de tarefas como a instrução de
ocupa boa parte do meu tempo como processos de tombamento de sítios urbanos, a
pesquisadora, desde o começo dos anos proposição de metodologias para a elaboração
1990. A despeito de ter passado os meus de normas e critérios de intervenção nessas
últimos anos envolvida com a implementação áreas, entre outras, que me deram acesso a
da política de salvaguarda do patrimônio documentos e procedimentos que foram
cultural imaterial, jamais a perdi de vista fundamentais para a construção do meu 139
uma espécie de síntese dos meus estudos, patrimônio e sua gestão naquele momento
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dos seus oitenta anos, na esperança de que ideias iniciais e estabelecendo os contornos
possa contribuir para o enfrentamento fundamentais da prática. Contornos que,
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não havia no mundo ocidental nenhuma institucional entre 1938 e os anos 1960,
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“cidade-monumento”, então correntemente deveria ser notificado. Entendia-se, portanto,
utilizada pelos fundadores do Iphan. Essa que a gestão da cidade-patrimônio deveria ser
expressão vincula-se também à ideia de obra do município, mas a trajetória institucional
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unitária que, para cumprir suas funções, logo mostrou a inviabilidade dessa ideia.
deve permanecer íntegra. Embora o seu Os anos 1930 constituíram um momento
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uso corrente tenha sido abandonado nos importante do processo de modernização do
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documentos do Iphan já nos anos 1950, a país na esfera pública e marcaram também a
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noção de cidade-monumento permaneceu ascensão e a progressiva hegemonia da noção
vigente, ainda que de modo não exclusivo, na de “moderno” como ideologia organizadora
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prática de preservação até hoje em dia. do cenário social, cultural e artístico do
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Mas o objeto de preservação – a período. Ser moderna era, assim, a obrigação
cidade – não funciona necessariamente de cada cidade e mesmo os fundadores
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em sintonia com o objeto idealizado – a do Iphan aceitavam essa ideia como um
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cidade-patrimônio. Desde cedo, o Iphan foi destino inexorável das grandes capitais e,
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obrigado a lidar com dinâmicas urbanas de por isso, nas primeiras décadas de atuação
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crescimento e transformação, usando armas do Iphan, apenas edifícios isolados foram
legais e administrativas frágeis e inadequadas. aí protegidos. O tombamento de áreas
O instituto do tombamento, por exemplo, urbanas ficou, até o final dos anos 1950,
não explicita em seu texto nem um só efeito restrito a núcleos urbanos secundários e
direta ou claramente aplicável ao contexto que estavam mais ou menos à margem da
urbano. Rodrigo Melo Franco de Andrade vida socioeconômica e política da época.
sabia disso e, em correspondência enviada Nesses lugares, contudo, o desejo de ser
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ao representante do Iphan em Diamantina , 3
moderno também imperava, o que levava
reconheceu o problema e explicitou o seu as prefeituras a rejeitar ou, no máximo,
entendimento do que seria um tombamento suportar os efeitos da patrimonialização.
dessa natureza. Nesse documento estão Além disso, a seleção de sítios urbanos para
explicitadas, pelo menos, duas concepções tombamento era completamente centralizada
iniciais importantes: a de que, no caso de e feita sem diálogo com as localidades, o que
extensos conjuntos urbanos, o objeto da afastava ainda mais as instâncias municipais
proteção é o que seria passível de apreensão e os habitantes da prática de preservação e,
pública, ou seja, os elementos físicos, naturais principalmente, do cumprimento de suas
e edilícios que compõem a paisagem urbana obrigações.
e lhe dão caráter; e que, como bem público O resultado, em geral, foi a crescente
pertencente a toda a cidade, a preservação da atuação do Iphan no lugar das instâncias
municipais, notadamente, nas tarefas de
3. Correspondência datada de 17/9/1941, que consta do processo licenciamento e fiscalização de intervenções.
de tombamento nº 64-T-38, da cidade de Diamantina, existente
no Arquivo Central do Iphan. Uma ação de gestão, portanto, muito
limitada, já que sem dispor das armas legais Estabeleceram-se, então, novas funções para as
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
revela na prática institucional, esse problema sua conservação. Esses novos papéis passaram
inaugural ainda caracteriza a gestão da a estruturar as iniciativas de planejamento e
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maioria das áreas tombadas em nível federal. as intervenções nas cidades tombadas, bem
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o avanço da industrialização do país nos anos O PCH pode ser considerado um marco
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1950 e com as novas dinâmicas urbanas que dessas mudanças, pois foi um importante
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Marcia Sant’Anna
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Em consonância com as diretrizes de ação, no começo dos anos 1980, quando a Forte São Marcelo,
Salvador
preconizadas pela Unesco nos anos 1960, o crise econômico-financeira fechou os fundos Acervo: Iphan/
Nilton Souza.
PCH se propunha a promover a conservação federais de fomento que supriam o PCH. Essa 143
sentido. Com a extinção desse banco público indeléveis deixadas pelo modo de conceber
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patrimônio, sem qualquer vínculo com a começo dos 1980 impactaram as operações
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No que toca à gestão desse patrimônio, dos colonizadores portugueses, dos indígenas
para além do momento de integração e africanos, passaram a ser incluídos na
federal e estadual promovida pelo PCH, a
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formação do Brasil os europeus e asiáticos
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incorporação das competências reguladoras, oriundos das levas de imigração dos séculos
licenciadoras e fiscalizadoras dos municípios XIX e XX. Os grupos sociais decorrentes
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por parte do Iphan permaneceu sem dessa formação multicultural foram definidos,
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alteração, exceto por algumas experiências no ainda, como sujeitos e intérpretes do
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Rio de Janeiro e em Recife, onde inciativas patrimônio, além de agentes fundamentais
pontuais de normatização de setores para sua conservação e gestão. Embora tenha
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protegidos em conjunto com organismos
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sido proferida fora do contexto de elaboração
municipais tiveram lugar nos anos 1950 e da nova Constituição, uma frase de Aloisio
19706. O problema inicial da articulação Magalhães, ideólogo e impulsionador da
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com os municípios permaneceu, contudo, retomada da noção ampla de patrimônio
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basicamente inalterado. proposta por Mário de Andrade nos anos
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1930 e da revolução conceitual operada no
UMA REVOLUÇÃO
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campo da preservação, com a criação da
CONCEITUAL E POLÍTICA Fundação Nacional Pró-Memória – FNPM8,
expressa bem o espírito da Carta Magna
Os anos 1980 foram marcados, no de dessacralização do patrimônio e de sua
Brasil, pelo fim de uma ditatura militar vinculação ao cotidiano e à vida das pessoas:
de quase vinte anos, pelas consequências “o melhor guardião de um bem cultural é o
da crise econômica e financeira dos anos seu dono” (Magalhães, 1985:186).
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1970 e pelo processo de redemocratização Se é certo que essas novas concepções
do país. Na área da cultura esse processo
encontraram eco no discurso e espaço
configurou-se de forma intensa, culminando
nas ações e projetos da FNPM, pouco
na afirmação da cultura como um direito
repercutiram no Iphan daquela época. A
fundamental dos cidadãos brasileiros e no
forma centralizada e mesmo, por vezes,
estabelecimento de uma nova concepção de
autoritária de decidir o que tombar e como
patrimônio cultural na Constituição de 1988,
gerir o bem tombado se manteve na maioria
que, conceitualmente, pôs por terra àquela
dos casos, embora, no que toca ao patrimônio
praticada desde os anos 1930. O patrimônio
urbano, tenham ocorrido importantes
foi redefinido em múltiplas expressões e nas
avanços. No plano conceitual, cabe ressaltar
suas dimensões material e imaterial, e mesmo
7. Artigo 216 da Constituição Federal.
6. São exemplos, nesse sentido, as normas estabelecidas para o 8. Em 1979 criou-se o sistema Sphan/FNPM (extinto em 1990),
conjunto da Igreja e Outeiro da Glória, no Rio de Janeiro, e do no qual a antiga Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Pátio de São Pedro, no centro de Recife, na década de 1950, bem Nacional conservava a natureza de unidade da administração
como as referetes aos morros da Urca, Pão de Açúcar, Babilônia e pública direta com poder de polícia, e a FNPM atuava como seu
Cara de Cão, nos anos 1970, no Rio de Janeiro. braço financeiro e executor.
a emergência de uma nova concepção de a manutenção das marcas deixadas pela
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
espaço urbano. Essa nova concepção, que, em como “anomalias” ou “falsas arquiteturas”
oposição à anterior, proponho denominar de (Costa, 1931), indignas, portanto, de
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da União e em jornais de circulação local. que se configurou já no começo dos anos
Com isso, perdeu-se definitivamente a ideia 1990, quando novos agentes públicos e
inicial de que o tombamento de cidades privados ganharam espaço na produção do
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deveria corresponder ao tombamento de patrimônio urbano no Brasil.
um bem público (e não ao tombamento de
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um conjunto de imóveis individualizados,
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privados ou não). Em contrapartida,
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ampliou-se a possibilidade de alguma A reestruturação e descentralização das
participação social nesses processos, mesmo atividades produtivas após a crise do sistema
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que a prática de patrimonializar cidades sem capitalista nos anos 1970, a mundialização
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a participação direta dos atores sociais tenha da economia, os avanços tecnológicos e
continuado a ser a norma. a crise do Estado de Bem-Estar Social
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Os avanços acima registrados, de todo atingiram os países centrais e muitas de
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modo, repercutiram pouco em âmbito suas cidades a partir daquela década,
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nacional, já que, no período, as portarias tendo como consequências imediatas sua
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para a regulamentação de intervenções desestruturação econômica, o aumento do
ficaram restritas ao Rio de Janeiro e a desemprego, a precarização do trabalho,
aplicação do INBI-SU limitada à experiência o esvaziamento de setores urbanos e o
realizada na cidade de Tiradentes. Apesar abandono de equipamentos, como portos,
desses parcos resultados e do baixo impacto setores fabris e outros. Diante do novo
na transformação da prática, a década papel de planejamento e criação de novos
de 1980 foi importante pela crítica ao produtos assumido por várias cidades
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caráter autoritário do tombamento e pelo dos países centrais, outras funções foram
hiato que proporcionou no processo de atribuídas a esses vazios urbanos, vinculadas
exploração econômica do patrimônio à cultura, ao turismo e ao lazer, bem como à
urbano. A insolvência e a crise financeira do produção imobiliária para estratos sociais de
Estado, que refrearam os investimentos do renda mais elevada. Experiências inaugurais
setor público naquela década, reforçaram, em cidades como Baltimore, nos Estados
em contrapartida, as alegações de que Unidos, produziram um entendimento desses
o tombamento esvaziaria o conteúdo projetos urbanos como a produção de locais
econômico da propriedade, impulsionando destinados a promover uma nova imagem
a criação de programas de incentivos fiscais à para as cidades e a atrair investimentos. Um
ação privada de preservação. Mas o período urbanismo de fundo pragmático, e atrelado
foi, sobretudo, conceitualmente muito à ideologia neoliberal, começou, assim, a ser
rico, pois uma concepção de patrimônio praticado nas cidades e a se apoderar do seu
urbano mais abrangente e socialmente patrimônio (Hall, 1995:407-428; Arantes,
mais inclusiva foi afirmada com a noção 2000:24).
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
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Rio de Janeiro
Acervo: Iphan/
Experiências como a de Baltimore, intervenção, que começaram a ser praticados
Monica Zarattini.
alimentaram, nos anos 1980, um conjunto no país, de modo mais sistemático, nos
de outras em países europeus, entre as quais anos 1990, tendo como foco inicial áreas
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as implementadas em Barcelona e Bilbao são centrais deterioradas ou esvaziadas de
as mais comentadas. Com elas, difundiu- grandes metrópoles. Esses novos projetos
se mundialmente o discurso do chamado urbanos impulsionaram a reafirmação da
“planejamento urbano estratégico”, no qual função econômica do patrimônio urbano e
a “requalificação”, a “regeneração” ou a sua redefinição como recurso estratégico da
“revitalização” de setores urbanos deteriorados competição entre cidades por um lugar de
ou esvaziados são definidas como intervenções destaque nas redes da economia globalizada.
fundamentais para a dinamização de Essas novas concepções foram absorvidas no
economias urbanas e aproveitamento cenário da preservação como um caminho
do patrimônio construído. Essa prática para a conservação autossustentável desse
desenvolvida nos países capitalistas centrais, patrimônio, promovendo a renovação dos
logo, foi exportada para os periféricos. vínculos estabelecidos com o turismo e o
As principais cidades brasileiras lazer urbano. A criação de um shopping a céu
não ficaram imunes a esses modelos de aberto na área do Pelourinho, em Salvador,
inaugurou esse tipo de intervenção no país, No desenvolvimento dessa nova
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para várias outras cidades da região Nordeste. grande parte, a tentativas de realizar
O Rio de Janeiro, com ações de requalificação uma gentrificação à brasileira em centros
urbana no projeto Rio Cidade, juntamente históricos, o Estado desempenhou um papel
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com outras previstas no Projeto Porto do fundamental de promotor e financiador de
Rio; e São Paulo, com as Operações Urbanas intervenções que, contudo, não chegaram
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Anhangabaú e Centro, enveredaram, com propriamente a alavancar os investimentos
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suas próprias nuances e especificidades, pelo privados esperados. Elas se revelaram
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mesmo caminho. muito limitadas nesse sentido, devido ao
O Iphan, cuja situação de pauperização conjunto de fatores que distingue nossas
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cidades daquelas dos países capitalistas
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institucional e financeira havia se agravado
ao longo dos anos 1990, foi, inicialmente, centrais. Um dos principais diz respeito
um espectador desses novos espetáculos à escassez do mercado consumidor, na
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urbanos. Foi também, por vezes, uma medida em que segmentos de renda mais
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pedra no caminho, ainda que sem força alta não têm interesse de viver e, raramente,
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para modificá-los. Os agentes públicos de consumir nas áreas centrais de grandes
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fundamentais desses processos foram cidades, tornado-as desinteressantes para
os governos estaduais e, sobretudo, as investimentos imobiliários ou comerciais.
prefeituras de grandes cidades, atuando Outro fator que contribui para lhes tirar
por meio de financiamentos concedidos força de atração é que as zonas centrais mais
por agências internacionais como o Banco antigas e consolidadas têm de competir com
Interamericano de Desenvolvimento – outras ainda em expansão e catalizadoras de
BID e o Banco Mundial. Essas agências investimentos. As intervenções que lograram
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financeiras haviam, à época, redescoberto sair do papel – e o dito a seguir se verificou
o patrimônio dos países da América Latina principalmente no Nordeste – produziram,
como uma nova fronteira para investimentos no máximo, guetos turísticos insustentáveis,
públicos e privados10, passando a alimentar devido ao fluxo insuficiente de visitantes,
a formulação de programas nacionais além de desarticulados da dinâmica cotidiana
de preservação, entre os quais o mais das cidades. Tiveram também grande
importante, no Brasil, foi o Monumenta. importância, nesses malogrados processos de
Esse novo momento pode ser sintetizado na gentrificação, a inexistência de operadores
expressão “cidade-atração”. privados autônomos decididos a investir e
o alto custo das operações de reabilitação
10. Nos anos 1960 e 1970, essas agências internacionais de imobiliária no Brasil.
financiamento também atuaram na América Latina com projetos
de aproveitamento turístico do patrimônio urbano, na esteira do O fracasso desses projetos de
discurso das chamadas Normas de Quito, de 1967, documento transformação do perfil de uso e ocupação
resultante da Reunião sobre Conservação e Utilização de Monu-
mentos e Lugares de Interesse Histórico e Artístico, promovida popular do patrimônio de áreas urbanas
pelo Departamento de Assuntos Culturais da Organização dos
Estados Americanos – OEA. centrais, nos anos 1990, abriu espaço, em
cidades como São Paulo, para o surgimento receberam o aval do Iphan. Com prazos de
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
e dos instrumentos de financiamento Embora essa ação tenha feito mais sentido
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diferencial competitivo para a exploração ao consumo, todo um contingente
imobiliária e, por vezes, puramente populacional marginalizado. A exploração
financeira. Impulsionada pela integração dos de mercados consumidores emergentes por
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mercados financeiros, a produção do espaço meio da ampliação do crédito, voltado,
urbano, primeiramente nos países centrais notadamente, para aquisição de imóveis e
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e, em seguida, nos periféricos, manteve-se, produção do espaço urbano, e a procura de
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nas primeiras décadas do século XXI, como taxas adequadas de acumulação do capital
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uma das principais formas de absorção de por meio de investimentos financeiros têm
excedentes e de acumulação de capital, sido as saídas mais constantes para essa crise
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mediante a implementação de projetos do sistema. Como consequência, “bolhas” de
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urbanos apoiados em sistemas de crédito capitais fictícios se formam constantemente
e abertos a investidores do mundo inteiro em diversos setores.
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(Harvey, 2011:143). Sistemas de crédito que, No que toca ao ambiente construído,
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como aponta Rolnik (2015:143-155), têm essa forma especulativa de acumulação busca
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como principal finalidade a remuneração lucrar com a expectativa de transformação,
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dos capitais investidos, transformando mesmo que ela venha ou não a se realizar.
os processos de reestruturação urbana – O espaço construído torna-se, assim,
inclusive os que envolvem o patrimônio – em um mero conjunto de ativos passíveis de
fronteiras abertas para o capital financeiro. exploração ou de títulos negociáveis no
Isso explica o surgimento dos mesmos mercado financeiro, sem vínculos necessários
produtos imobiliários em áreas centrais, zonas com demandas reais de produção de novas
de expansão e em vazios urbanos das mais estruturas. Harvey (2011:137-147) observa
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distintas cidades do mundo. que esses procedimentos caracterizam,
Na última década, diversos autores contemporaneamente, um verdadeiro
têm apontado que a descentralização “fenômeno global de urbanização”, que
e a flexibilização do setor produtivo, a se expressa também como processo de
precarização do trabalho e a concentração gentrificação.
de centros de decisão e planejamento nos Nos anos 1980 e 1990, os projetos
países capitalistas centrais permaneceram urbanos dessa natureza mantinham um
caracterizando o sistema capitalista a partir vínculo importante com o ambiente urbano
da sua reestruturação nos anos 1970, mas preexistente, mas o que se verifica agora é
que outros aspectos emergiram nos últimos uma relativa perda de importância desse
anos e se tornaram também essenciais para aspecto e a adoção de outras características.
a compreensão de sua configuração atual Apesar de a paisagem urbana histórica
(Harvey, 2011; Piketty, 2014; Jappe, 2015). permanecer produzindo diferenciais
Entre eles, cabe ressaltar o esgotamento da competitivos, além de legitimando a
capacidade de crescimento econômico e de necessidade dessas intervenções, observa-se
uma importância crescente da criação de financeiros, legais e urbanísticos destinados
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
pode ser apontada como um referencial intervenções propiciam especular não só com
desses desdobramentos no momento atual, títulos, mas também com imóveis e terrenos,
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na medida em que disponibiliza cerca de 4 que são comprados, muitas vezes, mediante
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nos anos 1990, de aumento da importância não se fazer nada com eles e porque, no Rio
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dos poderes executivos municipais nessas e em São Paulo, por exemplo, potenciais
intervenções, mas também o crescimento do
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A concepção de patrimônio urbano que Privados, que apostaram na possibilidade de
sustentou a noção de cidade-atração nos uma utilização socialmente mais significativa
anos 1990, que privilegiava as fachadas, do patrimônio urbano. Contudo, na
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a cenografia urbana e desconsiderava os presente década, a instituição tem oscilado
demais elementos materiais e imateriais que entre uma posição de mero espectador ou
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o compõem, teve continuidade nas décadas de colaborador secundário desses novos e
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seguintes. Mas também esses aspectos têm grandiosos espetáculos urbanos, por meio da
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sofrido, agora, um certo rebaixamento e articulação de suas ações ao PAC-CH. Assim,
uma relativa perda de importância, em favor embora esteja longe de ser o único, um
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da criação de uma paisagem urbana onde dos maiores desafios do Iphan, atualmente,
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arquiteturas caracterizadas pela ousadia é recuperar o seu lugar na condução das
formal ou pelo padrão internacional das políticas de preservação do patrimônio das
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torres corporativas ganham destaque e cidades, mantendo o tradicional papel de
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superam o patrimônio como elemento de defensor do interesse público a ele associado.
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atração e consumo visual.
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Mas, se nos anos 1990 os movimentos D E S A F I O S A E N F R E N TA R
sociais de resistência, de reivindicação de
participação e de afirmação do direito à cidade Uma instituição como o Iphan
eram mais ou menos restritos à capital paulista, dificilmente conseguirá atuar no sentido da
a realidade agora é outra. Em várias cidades, afirmação de uma noção ampla e de uma
e de formas diversas, esses movimentos têm apropriação democrática de patrimônio
mobilizado habitantes, denunciado ilegalidades urbano, na contemporaneidade, sem
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e afrontas ao interesse público, inclusive articular a política de preservação a outras
por meio da judicialização dos processos políticas públicas das áreas de planejamento,
de transformação do ambiente construído, desenvolvimento urbano e social, produção
notadamente nas áreas centrais de valor habitacional, provisão de infraestrutura e
patrimonial. Assim, aqueles que são afetados transportes, educação, saúde e mesmo de
negativamente por essas intervenções não são acesso mais amplo à cultura. A carência
mais espectadores passivos, mas sim, cada vez de articulações sistemáticas e duradouras
mais, atores fundamentais das conjunturas nas nesse sentido tem sido um dos principais
quais essas novas atrações/explorações urbanas problemas para uma atuação mais consistente
buscam se enraizar. da instituição em prol do patrimônio
A partir de meados da década de 2000, urbano, desde suas atividades inaugurais
o Iphan, através do Programa Monumenta, nos anos 1930. Assim, a constituição, pela
buscou empreender ações, como o programa via legislativa, de um sistema nacional de
habitacional de interesse social iniciado preservação do patrimônio que envolva outras
na 7ª Etapa do Programa de Recuperação áreas e esferas de governo, além da sociedade,
constitui, portanto, um dos desafios mais mais forte entre os setores patrimonializados e
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos
importantes dos próximos anos. o restante das cidades. Para isso, a formulação
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ainda dependerá da superação da ideologia dos problemas e carências que pontuam essa
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produzida nos anos 1970, que hierarquizou e trajetória e dos pesados desafios a enfrentar,
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