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Marcia Sant’Anna

A C I O N A L
A CIDADE - PATRIMÔNIO NO B RASIL :

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LIÇÕES DO PASSADO E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS

R T Í S T I C O
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I S T Ó R I C O
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A T R I M Ô N I O
INTRODUÇÃO com dados recentes colhidos entre 2014 e
20161. Essas pesquisas extrapolaram o âmbito
A questão da preservação e gestão do de minha prática profissional no Iphan, mas

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se beneficiaram da minha vivência como

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patrimônio urbano, bem como a da sua

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conservação e utilização numa perspectiva servidora da instituição por 24 anos. Ao
do respeito à memória urbana, ao interesse longo desse período, tive a oportunidade

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público e ao bem comum, me intriga e de participar de tarefas como a instrução de
ocupa boa parte do meu tempo como processos de tombamento de sítios urbanos, a
pesquisadora, desde o começo dos anos proposição de metodologias para a elaboração
1990. A despeito de ter passado os meus de normas e critérios de intervenção nessas
últimos anos envolvida com a implementação áreas, entre outras, que me deram acesso a
da política de salvaguarda do patrimônio documentos e procedimentos que foram
cultural imaterial, jamais a perdi de vista fundamentais para a construção do meu 139

ou deixei de acompanhar atentamente as entendimento sobre a questão. Mas talvez


políticas de preservação desse patrimônio e o mais importante tenha sido o contato
seus desdobramentos. Este artigo é, assim, estreito com o dia a dia da gestão dessas
uma tentativa de traçar, com base nessas áreas, tanto no que toca às atividades de
observações, um panorama histórico das análise e licenciamento de intervenções,
concepções e tratamentos dados à cidade- quanto no que diz respeito à observação dos
patrimônio no Brasil e, a partir dele, apontar resultados de projetos, ações e programas e ao
alguns problemas e desafios que, a meu ver, desenvolvimento de uma percepção do que Salvador
Acervo: Iphan/
estão colocados no momento. significa morar, trabalhar e viver em sítios Anderson Schneider.

Grande parte desse panorama


1. Essas pesquisas foram realizadas ao longo dos cursos de
fundamenta-se nas pesquisas que realizei mestrado e doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em
sobre a prática de preservação urbana no país Arquitetura e Urbanismo da UFBA e originaram os livros Da
cidade-monumento à cidade-documento: a norma de preservação de
e em alguns países do mundo durante os anos áreas urbanas no Brasil - 1937-1990 (2014) e A cidade-atração:
a norma de preservação de áreas centrais no Brasil dos anos 1990
1990 e 2000, as quais foram complementadas (2017).
urbanos tombados. Este artigo é, portanto, o reconhecimento dessas cidades como
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos

uma espécie de síntese dos meus estudos, patrimônio e sua gestão naquele momento
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reflexões e vivências em torno do tema da inaugural, bem como as limitações legais e


cidade-patrimônio, que ofereço ao Iphan administrativas que estavam colocadas, as
quais, pouco a pouco, foram modificando as
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como uma homenagem pessoal no aniversário


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dos seus oitenta anos, na esperança de que ideias iniciais e estabelecendo os contornos
possa contribuir para o enfrentamento fundamentais da prática. Contornos que,
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produtivo dos desafios contemporâneos da mesmo atravessados e impactados por novas


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noções, injunções e demandas surgidas


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preservação do patrimônio urbano e para a


superação dos problemas e dilemas que estão no decorrer dessa longa trajetória, ainda
há tanto tempo colocados. hoje marcam a forma de pensar e atuar da
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instituição com relação às cidades e demais


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UMA AÇÃO PIONEIRA áreas urbanas protegidas.


Entendo que pelo menos três fatores são
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Em 1937, quando o Iphan foi criado, fundamentais para a compreensão da prática


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não havia no mundo ocidental nenhuma institucional entre 1938 e os anos 1960,
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experiência conhecida de preservação de quando a preservação de sítios urbanos se


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cidades ou de contextos urbanos mais firma e consolida no Brasil. O primeiro diz


complexos. É possível assinalar, naquele respeito à função e ao significado atribuídos
período, iniciativas pontuais, como a ao patrimônio urbano; o segundo, aos

declaração de Ouro Preto como Monumento instrumentos legais e administrativos então


disponíveis para sua gestão/preservação; e
Nacional em 1933, que podem ser vistas
o terceiro, às conjunturas sociais, políticas,
como ações de reconhecimento patrimonial
econômicas e culturais que se configuraram
140 do ambiente urbano, mas que não
ao longo desse período.
produziram efeitos ou qualquer consequência
É importante ressaltar que a cidade-
prática em termos de preservação para além
patrimônio surgiu no Brasil com uma
da outorga de um título. O tombamento de
função, ao mesmo tempo, educativa e
seis cidades mineiras em 19382, por iniciativa
de representação, atendendo à demanda
da recém-criada instituição, foi, portanto,
política dos anos 1930 de afirmação de uma
uma ação sem precedentes.
identidade nacional e de construção de uma
Diversos documentos do período, como
ideia de arte e arquitetura brasileira. As
cartas de Rodrigo Melo Franco de Andrade a
cidades tombadas assinalavam o momento
representantes do Iphan, bilhetes enviados a
de construção da brasilidade como forma de
colegas juristas e manuscritos com propostas
ser, viver e construir, e funcionavam, ainda,
de aperfeiçoamento da legislação, ajudam a
como testemunhos vivos desse momento,
compreender as concepções que nortearam
destinados a propiciar aos cidadãos brasileiros
o entendimento da formação da sua
2. Ouro Preto, Mariana, Diamantina, Tiradentes, São João
del-Rei e Serro. própria cultura, arte e história. Os valores
estéticos, cognitivos e históricos atribuídos paisagem urbana seria de responsabilidade

A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos


a elas foram sintetizados na expressão do poder municipal, ao qual o tombamento

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“cidade-monumento”, então correntemente deveria ser notificado. Entendia-se, portanto,
utilizada pelos fundadores do Iphan. Essa que a gestão da cidade-patrimônio deveria ser
expressão vincula-se também à ideia de obra do município, mas a trajetória institucional

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unitária que, para cumprir suas funções, logo mostrou a inviabilidade dessa ideia.
deve permanecer íntegra. Embora o seu Os anos 1930 constituíram um momento

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uso corrente tenha sido abandonado nos importante do processo de modernização do

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documentos do Iphan já nos anos 1950, a país na esfera pública e marcaram também a

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noção de cidade-monumento permaneceu ascensão e a progressiva hegemonia da noção
vigente, ainda que de modo não exclusivo, na de “moderno” como ideologia organizadora

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prática de preservação até hoje em dia. do cenário social, cultural e artístico do

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Mas o objeto de preservação – a período. Ser moderna era, assim, a obrigação
cidade – não funciona necessariamente de cada cidade e mesmo os fundadores

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em sintonia com o objeto idealizado – a do Iphan aceitavam essa ideia como um

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cidade-patrimônio. Desde cedo, o Iphan foi destino inexorável das grandes capitais e,

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obrigado a lidar com dinâmicas urbanas de por isso, nas primeiras décadas de atuação

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crescimento e transformação, usando armas do Iphan, apenas edifícios isolados foram
legais e administrativas frágeis e inadequadas. aí protegidos. O tombamento de áreas
O instituto do tombamento, por exemplo, urbanas ficou, até o final dos anos 1950,
não explicita em seu texto nem um só efeito restrito a núcleos urbanos secundários e
direta ou claramente aplicável ao contexto que estavam mais ou menos à margem da
urbano. Rodrigo Melo Franco de Andrade vida socioeconômica e política da época.
sabia disso e, em correspondência enviada Nesses lugares, contudo, o desejo de ser
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ao representante do Iphan em Diamantina , 3
moderno também imperava, o que levava
reconheceu o problema e explicitou o seu as prefeituras a rejeitar ou, no máximo,
entendimento do que seria um tombamento suportar os efeitos da patrimonialização.
dessa natureza. Nesse documento estão Além disso, a seleção de sítios urbanos para
explicitadas, pelo menos, duas concepções tombamento era completamente centralizada
iniciais importantes: a de que, no caso de e feita sem diálogo com as localidades, o que
extensos conjuntos urbanos, o objeto da afastava ainda mais as instâncias municipais
proteção é o que seria passível de apreensão e os habitantes da prática de preservação e,
pública, ou seja, os elementos físicos, naturais principalmente, do cumprimento de suas
e edilícios que compõem a paisagem urbana obrigações.
e lhe dão caráter; e que, como bem público O resultado, em geral, foi a crescente
pertencente a toda a cidade, a preservação da atuação do Iphan no lugar das instâncias
municipais, notadamente, nas tarefas de
3. Correspondência datada de 17/9/1941, que consta do processo licenciamento e fiscalização de intervenções.
de tombamento nº 64-T-38, da cidade de Diamantina, existente
no Arquivo Central do Iphan. Uma ação de gestão, portanto, muito
limitada, já que sem dispor das armas legais Estabeleceram-se, então, novas funções para as
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos

e competências municipais, que, por sua cidades-patrimônio: as de dinamizadoras do


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vez, em muitos casos, se chocavam com as desenvolvimento e da economia urbana, por


determinações do Iphan. Da mesma forma meio do desenvolvimento do turismo cultural,
que a noção de cidade-monumento ainda se e de propiciadoras de recursos próprios para
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revela na prática institucional, esse problema sua conservação. Esses novos papéis passaram
inaugural ainda caracteriza a gestão da a estruturar as iniciativas de planejamento e
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maioria das áreas tombadas em nível federal. as intervenções nas cidades tombadas, bem
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como a formulação de políticas governais de


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UMA N O VA F U N Ç Ã O PA R A O preservação e de desenvolvimento urbano,


PAT R I M Ô N I O D A S C I D A D E S como o Programa de Cidades Históricas –
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PCH, criado em 1973, que implementou uma


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Esse modo centralizado de atuar na gestão primeira política integrada de preservação do


das cidades-patrimônio entrou em crise com patrimônio urbano no Brasil (Corrêa, 2016).
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o avanço da industrialização do país nos anos O PCH pode ser considerado um marco
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1950 e com as novas dinâmicas urbanas que dessas mudanças, pois foi um importante
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emergiram em algumas cidades, até então, agente modernizador e transformador da prá-


tica e da organização institucional. Um dos
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economicamente estagnadas, mas que se


tornaram, rapidamente, polos de atração principais resultados do programa foi induzir
populacional. Além disso, reverberações a criação de organismos estaduais de preser-
decorrentes do surgimento, após a Segunda vação, que passaram a complementar a ação,
Guerra, de novas formas de utilizar e gerir o até então, isolada do Iphan, conformando um
patrimônio nos países europeus, vinculadas sistema nacional, em que as instituições fede-
ao turismo cultural e ao planejamento rais envolvidas exerciam funções direcionais e
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urbano, chegaram ao Brasil nos anos 1960, de fomento4, ao passo que às estaduais cabia a
imprimindo mudanças significativas no modo execução propriamente dita das intervenções.
de atuação do Iphan. Esse arranjo propiciou a ampliação do territó-
No final dos anos 1960, como resultado rio de atuação do Iphan, além de sua própria
de cooperação estabelecida com a Unesco, modernização administrativa. Podem ainda ser
na qual se destaca a atuação do então apontados como resultados positivos do pro-
técnico do Serviço Principal de Inspeção grama, os investimentos realizados em forma-
dos Monumentos e de Inspeção de Sítios ção profissional e o fomento para a organização
na França, Michel Parent, novas diretrizes de um segmento do setor da construção civil
para a política de preservação do patrimônio dedicado especificamente às obras de conserva-
urbano foram instauradas (Parent, 1968), ção e restauração de edifícios históricos.
com consequências importantes na seleção de
cidades a serem protegidas, no aproveitamento 4. O PCH foi um programa inicialmente coordenado pela então
Secretaria de Planejamento da Presidência da República, com a
do seu patrimônio e na gestão e utilização participação, na esfera federal, do Iphan, da Embratur e da Sude-
ne, esta última durante a fase inicial em que o programa atuava
daquelas que já haviam sido tombadas. apenas no Nordeste.
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Em consonância com as diretrizes de ação, no começo dos anos 1980, quando a Forte São Marcelo,
Salvador
preconizadas pela Unesco nos anos 1960, o crise econômico-financeira fechou os fundos Acervo: Iphan/
Nilton Souza.

PCH se propunha a promover a conservação federais de fomento que supriam o PCH. Essa 143

do patrimônio e o desenvolvimento nova forma de atuar partiu de uma crítica às


econômico das cidades-patrimônio através do limitações do turismo cultural como promotor
turismo. Para tanto, pesados investimentos da preservação e do desenvolvimento
foram feitos na recuperação e adaptação das cidades-patrimônio, propondo que
de imóveis para a implantação de hotéis, esse objetivo fosse atingido por meio do
pousadas, além de outros elementos da planejamento urbano e de políticas mais
infraestrutura turística. Apostava-se que amplas de desenvolvimento que enfatizassem
esses investimentos funcionariam como o aproveitamento habitacional do patrimônio
propulsores de um processo sustentável e construído. Mas, para além de uma experiência
progressivo de recuperação do patrimônio modelar realizada em Olinda – quando
urbano e que alavancariam investimentos se testou, com sucesso, a possibilidade de
privados. Esses objetivos, contudo, jamais implantação de uma carteira de financiamento
foram plenamente atingidos, mas essas falhas no antigo Banco Nacional da Habitação –
propiciaram a formulação de uma nova linha BNH, voltada para a recuperação de imóveis
em áreas tombadas –, pouco se realizou nesse Sem dúvida, uma das marcas mais
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sentido. Com a extinção desse banco público indeléveis deixadas pelo modo de conceber
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em 1984, o projeto foi abandonado. de gerir o patrimônio urbano no período


Algumas heranças desse período de entre o final dos anos 1960 e começo dos
modernização e mudança não foram, anos 1980 foi a consolidação do vínculo entre
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contudo, tão positivas. Com a diminuição turismo e patrimônio (Sant’anna, 2015:115-


dos investimentos do PCH a partir de 133). Desde então, esse binômio é visto,
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1983, e com o fim do programa logo em notadamente no Nordeste do Brasil, como a


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seguida, o sistema que integrava o Iphan principal forma de conferir sustentabilidade


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e os organismos estaduais desestruturou- econômica às iniciativas de preservação do


se totalmente. Na medida em que estes patrimônio, ainda que os resultados tenham
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últimos haviam criado, à imagem e sido sempre sofríveis.


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semelhança do Decreto-lei no 25/1937, As transformações operadas na prática


sua própria legislação de proteção ao de preservação entre o fim dos anos 1960 e
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patrimônio, sem qualquer vínculo com a começo dos 1980 impactaram as operações
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área federal, configurou-se, desde então, de seleção de cidades para tombamento e de


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uma atuação descoordenada entre as conservação do patrimônio urbano então


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esferas de governo, alimentada por uma protegido. A percepção da cidade como um


compreensão hierarquizada e equivocada de monumento ou como uma “obra de arte
patrimônio, derivada da atribuição de uma pronta e acabada” (Motta, 1987:108-122),
importância nacional, estadual ou local aos concebida no período anterior, conduzia
bens culturais. O patrimônio cultural do ainda as intervenções na maioria dos casos,
Brasil, que deveria constituir um conjunto mas outros predicados urbanos emergiam
de bens tratados coordenadamente por todas no momento da decisão do que proteger.
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as esferas de governo, desdobrou-se em O “potencial turístico” das localidades
patrimônios distintos protegidos e tratados passou a ser levado em conta, expressando-
por três sistemas de proteção isolados, se concretamente por meio da escolha
superpostos e impermeáveis entre si. Essa de paisagens pitorescas ou da relação de
situação configurou-se plenamente com a proximidade entre cidades e contextos de
entrada em cena, no final dos anos 1970, das beleza natural. Em articulação com sua nova
ações de preservação no âmbito municipal, função econômica, o patrimônio urbano foi
que, apesar de inovadoras e articuladas redefinido como patrimônio ambiental e
ao planejamento urbano e aos vínculos paisagístico e a conservação dessa paisagem
urbanísticos, se desenvolveram, desde então, urbana adquiriu objetivos cada vez mais
com alguma coerência apenas em algumas pictóricos e menos vinculados a momentos
grandes cidades . 5
históricos. A interpretação modernista do
nascimento identitário e cultural do Brasil
5. Uma exceção a essa regra é a experiência do Corredor Cultural nas cidades mineiras foi, assim, superada
da cidade do Rio de Janeiro, até hoje, a mais duradoura e signifi-
cativa no âmbito municipal. pela valorização econômica e pragmática
dos cenários urbanos pitorescos da região em seus vínculos com os chamados “grupos

A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos


Nordeste. formadores da sociedade brasileira”7. Além

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No que toca à gestão desse patrimônio, dos colonizadores portugueses, dos indígenas
para além do momento de integração e africanos, passaram a ser incluídos na
federal e estadual promovida pelo PCH, a

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formação do Brasil os europeus e asiáticos

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incorporação das competências reguladoras, oriundos das levas de imigração dos séculos
licenciadoras e fiscalizadoras dos municípios XIX e XX. Os grupos sociais decorrentes

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por parte do Iphan permaneceu sem dessa formação multicultural foram definidos,

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alteração, exceto por algumas experiências no ainda, como sujeitos e intérpretes do

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Rio de Janeiro e em Recife, onde inciativas patrimônio, além de agentes fundamentais
pontuais de normatização de setores para sua conservação e gestão. Embora tenha

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protegidos em conjunto com organismos

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sido proferida fora do contexto de elaboração
municipais tiveram lugar nos anos 1950 e da nova Constituição, uma frase de Aloisio
19706. O problema inicial da articulação Magalhães, ideólogo e impulsionador da

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com os municípios permaneceu, contudo, retomada da noção ampla de patrimônio

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basicamente inalterado. proposta por Mário de Andrade nos anos

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1930 e da revolução conceitual operada no
UMA REVOLUÇÃO

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campo da preservação, com a criação da
CONCEITUAL E POLÍTICA Fundação Nacional Pró-Memória – FNPM8,
expressa bem o espírito da Carta Magna
Os anos 1980 foram marcados, no de dessacralização do patrimônio e de sua
Brasil, pelo fim de uma ditatura militar vinculação ao cotidiano e à vida das pessoas:
de quase vinte anos, pelas consequências “o melhor guardião de um bem cultural é o
da crise econômica e financeira dos anos seu dono” (Magalhães, 1985:186).
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1970 e pelo processo de redemocratização Se é certo que essas novas concepções
do país. Na área da cultura esse processo
encontraram eco no discurso e espaço
configurou-se de forma intensa, culminando
nas ações e projetos da FNPM, pouco
na afirmação da cultura como um direito
repercutiram no Iphan daquela época. A
fundamental dos cidadãos brasileiros e no
forma centralizada e mesmo, por vezes,
estabelecimento de uma nova concepção de
autoritária de decidir o que tombar e como
patrimônio cultural na Constituição de 1988,
gerir o bem tombado se manteve na maioria
que, conceitualmente, pôs por terra àquela
dos casos, embora, no que toca ao patrimônio
praticada desde os anos 1930. O patrimônio
urbano, tenham ocorrido importantes
foi redefinido em múltiplas expressões e nas
avanços. No plano conceitual, cabe ressaltar
suas dimensões material e imaterial, e mesmo
7. Artigo 216 da Constituição Federal.
6. São exemplos, nesse sentido, as normas estabelecidas para o 8. Em 1979 criou-se o sistema Sphan/FNPM (extinto em 1990),
conjunto da Igreja e Outeiro da Glória, no Rio de Janeiro, e do no qual a antiga Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Pátio de São Pedro, no centro de Recife, na década de 1950, bem Nacional conservava a natureza de unidade da administração
como as referetes aos morros da Urca, Pão de Açúcar, Babilônia e pública direta com poder de polícia, e a FNPM atuava como seu
Cara de Cão, nos anos 1970, no Rio de Janeiro. braço financeiro e executor.
a emergência de uma nova concepção de a manutenção das marcas deixadas pela
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cidade-patrimônio, que dava ênfase ao seu passagem do tempo, acolhendo-se como


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papel na consolidação do território nacional importantes e dignos de preservação os


e como documento dos processos históricos exemplares arquitetônicos do Ecletismo que
de formação, desenvolvimento e produção do
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antes haviam sido definidos pelos modernistas


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espaço urbano. Essa nova concepção, que, em como “anomalias” ou “falsas arquiteturas”
oposição à anterior, proponho denominar de (Costa, 1931), indignas, portanto, de
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“cidade-documento” (Sant’anna, 2014:261- conviver com a “boa tradição” do período


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321), promoveu impactos significativos nas colonial (Costa, 1937, p. 39).


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operações de seleção e de conservação das A despeito dessa revolução conceitual,


cidades tombadas. No primeiro caso, as áreas que, em função da crise e da falta de
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urbanas deixaram de ser selecionadas apenas


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investimentos públicos, pouco se desdobrou


a partir de seus atributos estéticos, estilísticos em termos práticos para além da instrução
e paisagísticos e passaram a ser escolhidas de processos de tombamento e da discussão
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pela sua capacidade de conter elementos e em torno de algumas restaurações9, o


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informações sobre os processos históricos problema da gestão das cidades-patrimônio


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que conformaram a cidade. Os elementos permaneceu. Cabe registrar, contudo, a


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que compõem o patrimônio urbano se consolidação, no período, das portarias da


estenderam, assim, para além das fachadas presidência do Iphan como instrumentos
e dos volumes das edificações, atingindo as de explicitação e detalhamento das normas
características do sítio físico, a trama viária, e critérios de intervenção no entorno de
o macro e o microparcelamento, as formas monumentos e em áreas tombadas. A
tradicionais de ocupação do solo urbano e elaboração do Inventário Nacional de Bens
as relações estabelecidas entre o construído Imóveis: Sítios Urbanos Tombados – INBI-
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e o não construído. Áreas e setores urbanos, SU, metodologia para levantamento de dados
antes vistos como “feios”, heterogêneos
históricos, morfológicos e socioeconômicos
e fragmentados, cuja proteção como
destinada ao aperfeiçoamento da gestão de
patrimônio, até então, teria sido impensável,
áreas protegidas, também pode ser registrada
passaram a ser tombados e valorizados como
como outro avanço ocorrido no período.
documentos fundamentais para a memória
Por fim, a regulamentação da instauração,
urbana e social.
instrução e tramitação dos processos de
A conservação dessa cidade-patrimônio
tombamento, por meio da Portaria n°
deixou então de ter essencialmente
11/1986, que, entre outras determinações,
objetivos estéticos e de composição de
instituiu a obrigatoriedade de notificação
cenários urbanos. A restauração, até então a
do tombamento de áreas urbanas a todos os
principal forma de intervenção nos edifícios
considerados inadequados para composição 9. Um bom exemplo nesse sentido foi a polêmica em torno da
desses cenários, tornou-se uma intervenção restauração do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, quando elemen-
tos da modernização arquitetônica do edifício foram eliminados
excepcional. Em seu lugar, defendia-se em favor do retorno à sua feição do período colonial.
proprietários de imóveis nela existentes, por de cidade-documento. Essa concepção,

A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos


meio de edital publicado no Diário Oficial entretanto, logo perdeu espaço para outra

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da União e em jornais de circulação local. que se configurou já no começo dos anos
Com isso, perdeu-se definitivamente a ideia 1990, quando novos agentes públicos e
inicial de que o tombamento de cidades privados ganharam espaço na produção do

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deveria corresponder ao tombamento de patrimônio urbano no Brasil.
um bem público (e não ao tombamento de
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um conjunto de imóveis individualizados,

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privados ou não). Em contrapartida,

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ampliou-se a possibilidade de alguma A reestruturação e descentralização das
participação social nesses processos, mesmo atividades produtivas após a crise do sistema

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que a prática de patrimonializar cidades sem capitalista nos anos 1970, a mundialização

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a participação direta dos atores sociais tenha da economia, os avanços tecnológicos e
continuado a ser a norma. a crise do Estado de Bem-Estar Social

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Os avanços acima registrados, de todo atingiram os países centrais e muitas de

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modo, repercutiram pouco em âmbito suas cidades a partir daquela década,

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nacional, já que, no período, as portarias tendo como consequências imediatas sua

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para a regulamentação de intervenções desestruturação econômica, o aumento do
ficaram restritas ao Rio de Janeiro e a desemprego, a precarização do trabalho,
aplicação do INBI-SU limitada à experiência o esvaziamento de setores urbanos e o
realizada na cidade de Tiradentes. Apesar abandono de equipamentos, como portos,
desses parcos resultados e do baixo impacto setores fabris e outros. Diante do novo
na transformação da prática, a década papel de planejamento e criação de novos
de 1980 foi importante pela crítica ao produtos assumido por várias cidades
147
caráter autoritário do tombamento e pelo dos países centrais, outras funções foram
hiato que proporcionou no processo de atribuídas a esses vazios urbanos, vinculadas
exploração econômica do patrimônio à cultura, ao turismo e ao lazer, bem como à
urbano. A insolvência e a crise financeira do produção imobiliária para estratos sociais de
Estado, que refrearam os investimentos do renda mais elevada. Experiências inaugurais
setor público naquela década, reforçaram, em cidades como Baltimore, nos Estados
em contrapartida, as alegações de que Unidos, produziram um entendimento desses
o tombamento esvaziaria o conteúdo projetos urbanos como a produção de locais
econômico da propriedade, impulsionando destinados a promover uma nova imagem
a criação de programas de incentivos fiscais à para as cidades e a atrair investimentos. Um
ação privada de preservação. Mas o período urbanismo de fundo pragmático, e atrelado
foi, sobretudo, conceitualmente muito à ideologia neoliberal, começou, assim, a ser
rico, pois uma concepção de patrimônio praticado nas cidades e a se apoderar do seu
urbano mais abrangente e socialmente patrimônio (Hall, 1995:407-428; Arantes,
mais inclusiva foi afirmada com a noção 2000:24).
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Rio de Janeiro
Acervo: Iphan/
Experiências como a de Baltimore, intervenção, que começaram a ser praticados
Monica Zarattini.
alimentaram, nos anos 1980, um conjunto no país, de modo mais sistemático, nos
de outras em países europeus, entre as quais anos 1990, tendo como foco inicial áreas
148
as implementadas em Barcelona e Bilbao são centrais deterioradas ou esvaziadas de
as mais comentadas. Com elas, difundiu- grandes metrópoles. Esses novos projetos
se mundialmente o discurso do chamado urbanos impulsionaram a reafirmação da
“planejamento urbano estratégico”, no qual função econômica do patrimônio urbano e
a “requalificação”, a “regeneração” ou a sua redefinição como recurso estratégico da
“revitalização” de setores urbanos deteriorados competição entre cidades por um lugar de
ou esvaziados são definidas como intervenções destaque nas redes da economia globalizada.
fundamentais para a dinamização de Essas novas concepções foram absorvidas no
economias urbanas e aproveitamento cenário da preservação como um caminho
do patrimônio construído. Essa prática para a conservação autossustentável desse
desenvolvida nos países capitalistas centrais, patrimônio, promovendo a renovação dos
logo, foi exportada para os periféricos. vínculos estabelecidos com o turismo e o
As principais cidades brasileiras lazer urbano. A criação de um shopping a céu
não ficaram imunes a esses modelos de aberto na área do Pelourinho, em Salvador,
inaugurou esse tipo de intervenção no país, No desenvolvimento dessa nova

A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos


tornando-se, rapidamente, uma referência concepção, que correspondeu, em

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para várias outras cidades da região Nordeste. grande parte, a tentativas de realizar
O Rio de Janeiro, com ações de requalificação uma gentrificação à brasileira em centros
urbana no projeto Rio Cidade, juntamente históricos, o Estado desempenhou um papel

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com outras previstas no Projeto Porto do fundamental de promotor e financiador de
Rio; e São Paulo, com as Operações Urbanas intervenções que, contudo, não chegaram

A
Anhangabaú e Centro, enveredaram, com propriamente a alavancar os investimentos

E
suas próprias nuances e especificidades, pelo privados esperados. Elas se revelaram

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mesmo caminho. muito limitadas nesse sentido, devido ao
O Iphan, cuja situação de pauperização conjunto de fatores que distingue nossas

H
cidades daquelas dos países capitalistas

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institucional e financeira havia se agravado
ao longo dos anos 1990, foi, inicialmente, centrais. Um dos principais diz respeito
um espectador desses novos espetáculos à escassez do mercado consumidor, na

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urbanos. Foi também, por vezes, uma medida em que segmentos de renda mais

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pedra no caminho, ainda que sem força alta não têm interesse de viver e, raramente,

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Marcia Sant’Anna
para modificá-los. Os agentes públicos de consumir nas áreas centrais de grandes

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fundamentais desses processos foram cidades, tornado-as desinteressantes para
os governos estaduais e, sobretudo, as investimentos imobiliários ou comerciais.
prefeituras de grandes cidades, atuando Outro fator que contribui para lhes tirar
por meio de financiamentos concedidos força de atração é que as zonas centrais mais
por agências internacionais como o Banco antigas e consolidadas têm de competir com
Interamericano de Desenvolvimento – outras ainda em expansão e catalizadoras de
BID e o Banco Mundial. Essas agências investimentos. As intervenções que lograram
149
financeiras haviam, à época, redescoberto sair do papel – e o dito a seguir se verificou
o patrimônio dos países da América Latina principalmente no Nordeste – produziram,
como uma nova fronteira para investimentos no máximo, guetos turísticos insustentáveis,
públicos e privados10, passando a alimentar devido ao fluxo insuficiente de visitantes,
a formulação de programas nacionais além de desarticulados da dinâmica cotidiana
de preservação, entre os quais o mais das cidades. Tiveram também grande
importante, no Brasil, foi o Monumenta. importância, nesses malogrados processos de
Esse novo momento pode ser sintetizado na gentrificação, a inexistência de operadores
expressão “cidade-atração”. privados autônomos decididos a investir e
o alto custo das operações de reabilitação
10. Nos anos 1960 e 1970, essas agências internacionais de imobiliária no Brasil.
financiamento também atuaram na América Latina com projetos
de aproveitamento turístico do patrimônio urbano, na esteira do O fracasso desses projetos de
discurso das chamadas Normas de Quito, de 1967, documento transformação do perfil de uso e ocupação
resultante da Reunião sobre Conservação e Utilização de Monu-
mentos e Lugares de Interesse Histórico e Artístico, promovida popular do patrimônio de áreas urbanas
pelo Departamento de Assuntos Culturais da Organização dos
Estados Americanos – OEA. centrais, nos anos 1990, abriu espaço, em
cidades como São Paulo, para o surgimento receberam o aval do Iphan. Com prazos de
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos

e fortalecimento de movimentos sociais carência variáveis e adaptáveis a cada caso,


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que reivindicaram permanência e moradia essa linha de ação atrelava os pagamentos


nessas áreas e, ainda, para o surgimento desses empréstimos a um Fundo Municipal
de programas voltados para a produção de Preservação, cuja missão seria reinvestir
N
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habitacional destinada a essas faixas de os recursos assim arrecadados na conservação


renda . Essas iniciativas, contudo, esbarraram
11
do sítio urbano definido como área de
A

na fragilidade e na inadequação da política intervenção do programa.


E

e dos instrumentos de financiamento Embora essa ação tenha feito mais sentido
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habitacional no Brasil e em entraves e obtido melhores resultados em cidades de


diversos de natureza urbana, fundiária, médio e pequeno porte, provou ser muito
H

tecnológica e política, o que prejudicou o seu significativa no sentido de uma utilização


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desenvolvimento e resultados, a despeito de econômica e socialmente sustentável do


focalizarem demandas reais. patrimônio das cidades, além de dinamizar
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No desenvolvimento da cidade- as economias locais e incentivar os habitantes


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patrimônio como cidade-atração, entretanto, a aproximarem-se da prática de preservação.


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Marcia Sant’Anna

é possível registrar algumas conquistas Com o fim do Programa Monumenta, o


positivas. A principal delas ocorreu no
R

Iphan tentou ampliar essa ação para sítios


âmbito do Programa Monumenta – em urbanos protegidos por meio do PAC-
sua fase de 2006 a 2010, quando deixou de Cidades Históricas – PAC-CH, mas sem
ser um programa do Ministério da Cultura sucesso. Esse novo programa, lançado
e passou para a alçada do Iphan –, com o em 2009 com a ambição de aperfeiçoar
desenvolvimento, ainda que limitado, do seu os anteriores, superar suas fragilidades e
subcomponente denominado Financiamento ampliar suas conquistas, acabou tornando-
150
de Imóveis Privados. Tendo começado em se um programa de obras de restauração de
1999 como um programa que, de certa grandes monumentos e de requalificação
forma, atualizava a proposta do PCH de espaços públicos, o que diminuiu muito
em termos de execução descentralizada e sua capacidade de reversão de quadros de
aproveitamento turístico do patrimônio esvaziamento e deterioração de áreas situadas
urbano (Bonduki, 2010:28), o Monumenta em contextos urbanos mais complexos.
financiou, nessa fase final, obras de
conservação e adaptação de edificações DESDOBRAMENTOS
localizadas em cidades participantes do CONTEMPORÂNEOS
programa, executadas por seus proprietários
ou ocupantes, a partir de projetos que Os acontecimentos da última década
têm demonstrado a continuidade, no
11. São exemplos o Programa de Revitalização de Sítios Urbanos Brasil, dos processos de apropriação do
– PRSH, criado no ano 2000 pela Caixa Econômica Federal, o
Projeto da 7ª Etapa do Programa de Recuperação do Centro His- patrimônio urbano desenvolvidos nos anos
tórico de Salvador e componentes do Programa de Reabilitação
do Centro, da Prefeitura de São Paulo, de 2003. 1990, no sentido da consolidação da cidade-
patrimônio como um ativo econômico, absorção dos excedentes de capital, bem como

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cuja paisagem histórica atua como um de incorporar à produção e, principalmente,

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diferencial competitivo para a exploração ao consumo, todo um contingente
imobiliária e, por vezes, puramente populacional marginalizado. A exploração
financeira. Impulsionada pela integração dos de mercados consumidores emergentes por

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mercados financeiros, a produção do espaço meio da ampliação do crédito, voltado,
urbano, primeiramente nos países centrais notadamente, para aquisição de imóveis e

A
e, em seguida, nos periféricos, manteve-se, produção do espaço urbano, e a procura de

E
nas primeiras décadas do século XXI, como taxas adequadas de acumulação do capital

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uma das principais formas de absorção de por meio de investimentos financeiros têm
excedentes e de acumulação de capital, sido as saídas mais constantes para essa crise

H
mediante a implementação de projetos do sistema. Como consequência, “bolhas” de

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urbanos apoiados em sistemas de crédito capitais fictícios se formam constantemente
e abertos a investidores do mundo inteiro em diversos setores.

P
(Harvey, 2011:143). Sistemas de crédito que, No que toca ao ambiente construído,

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como aponta Rolnik (2015:143-155), têm essa forma especulativa de acumulação busca

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como principal finalidade a remuneração lucrar com a expectativa de transformação,

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dos capitais investidos, transformando mesmo que ela venha ou não a se realizar.
os processos de reestruturação urbana – O espaço construído torna-se, assim,
inclusive os que envolvem o patrimônio – em um mero conjunto de ativos passíveis de
fronteiras abertas para o capital financeiro. exploração ou de títulos negociáveis no
Isso explica o surgimento dos mesmos mercado financeiro, sem vínculos necessários
produtos imobiliários em áreas centrais, zonas com demandas reais de produção de novas
de expansão e em vazios urbanos das mais estruturas. Harvey (2011:137-147) observa
151
distintas cidades do mundo. que esses procedimentos caracterizam,
Na última década, diversos autores contemporaneamente, um verdadeiro
têm apontado que a descentralização “fenômeno global de urbanização”, que
e a flexibilização do setor produtivo, a se expressa também como processo de
precarização do trabalho e a concentração gentrificação.
de centros de decisão e planejamento nos Nos anos 1980 e 1990, os projetos
países capitalistas centrais permaneceram urbanos dessa natureza mantinham um
caracterizando o sistema capitalista a partir vínculo importante com o ambiente urbano
da sua reestruturação nos anos 1970, mas preexistente, mas o que se verifica agora é
que outros aspectos emergiram nos últimos uma relativa perda de importância desse
anos e se tornaram também essenciais para aspecto e a adoção de outras características.
a compreensão de sua configuração atual Apesar de a paisagem urbana histórica
(Harvey, 2011; Piketty, 2014; Jappe, 2015). permanecer produzindo diferenciais
Entre eles, cabe ressaltar o esgotamento da competitivos, além de legitimando a
capacidade de crescimento econômico e de necessidade dessas intervenções, observa-se
uma importância crescente da criação de financeiros, legais e urbanísticos destinados
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos

novos potenciais construtivos como um dos a concretizar os objetivos de reprodução


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principais elementos de atração. Na cidade e de acumulação do capital por meio de


do Rio de Janeiro, a Operação Urbana projetos urbanos que articulam patrimônio
Consorciada Porto Maravilha – OUCPM e produção imobiliária de alto padrão. Essas
N
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pode ser apontada como um referencial intervenções propiciam especular não só com
desses desdobramentos no momento atual, títulos, mas também com imóveis e terrenos,
A

na medida em que disponibiliza cerca de 4 que são comprados, muitas vezes, mediante
E

milhões de metros quadrados de potencial empréstimos subsidiados, cujos recursos


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construtivo novo, a ser comercializado por são aplicados em fundos de investimento


meio de cerca de 6,4 milhões de títulos heterodoxos que possibilitam embolsar
H

mobiliários, os chamados Certificados um lucro extra. Essas operações ajudam a


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de Potencial Adicional de Construção – compreender porque, em certas cidades como


Cepacs. Essa operação demonstra ainda Salvador, edificações e terrenos localizados
P

a permanência da tendência, já verificada nos centros históricos são comprados para


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nos anos 1990, de aumento da importância não se fazer nada com eles e porque, no Rio
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Marcia Sant’Anna

dos poderes executivos municipais nessas e em São Paulo, por exemplo, potenciais
intervenções, mas também o crescimento do
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construtivos claramente exagerados são


papel formulador e executor do setor privado, postos à disposição do mercado, mesmo
mediante Parcerias Público-Privadas – PPPs sabendo-se que dificilmente serão utilizados.
e concessões urbanísticas que permitem O crescimento da importância do setor
aos executores explorarem comercialmente público como agente facilitador e viabilizador
serviços, estruturas e equipamentos dessas estratégias é, certamente, um traço
resultantes da intervenção. Os investidores atual importante, especialmente em razão
152
podem ainda especular com os títulos postos da transformação dos projetos dos anos
à disposição, embora até o momento, no caso 1990 em operações urbanas consorciadas,
da OUCPM, o grande investidor seja mesmo articuladas a concessões urbanísticas,
o FGTS – um fundo público –, que adquiriu onde essas especulações ocorrem de modo
todos os Cepacs, criados com vistas a institucionalizado.
viabilizar financeiramente a operação (Galiza, Em suma, na década atual, assiste-se ao
2015:102-103). Em suma, como nos anos surgimento de um novo modelo nacional
1990, os investimentos realmente privados de intervenção em áreas de valor cultural e
pouco se materializaram até o momento12. paisagístico, fundado em operações urbanas;
Os últimos anos se caracterizam, assim, no investimento público em obras de
pelo aperfeiçoamento dos instrumentos infraestrutura e grandes projetos âncoras
vinculados a usos culturais e comerciais;
12. Segundo o site da OUCPM, o valor inicial e unitário dos Ce- na implementação de planos e projetos
pacs, tal como adquiridos pelo FGTS, era de R$ 545,00, sendo
atualmente cotado em R$ 1.706,03. Contudo, o total de Cepacs formulados por empresas privadas e na
consumidos até momento corresponde a apenas 8,74% do total
disponível. Fonte: http://portomaravilha.com.br. concessão da exploração dos serviços urbanos
e equipamentos gerados à iniciativa privada do Centro Histórico de Salvador e o já

A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos


(Sant’anna, 2017). comentado Financiamento de Imóveis

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A concepção de patrimônio urbano que Privados, que apostaram na possibilidade de
sustentou a noção de cidade-atração nos uma utilização socialmente mais significativa
anos 1990, que privilegiava as fachadas, do patrimônio urbano. Contudo, na

N
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a cenografia urbana e desconsiderava os presente década, a instituição tem oscilado
demais elementos materiais e imateriais que entre uma posição de mero espectador ou

A
o compõem, teve continuidade nas décadas de colaborador secundário desses novos e

E
seguintes. Mas também esses aspectos têm grandiosos espetáculos urbanos, por meio da

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sofrido, agora, um certo rebaixamento e articulação de suas ações ao PAC-CH. Assim,
uma relativa perda de importância, em favor embora esteja longe de ser o único, um

H
da criação de uma paisagem urbana onde dos maiores desafios do Iphan, atualmente,

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arquiteturas caracterizadas pela ousadia é recuperar o seu lugar na condução das
formal ou pelo padrão internacional das políticas de preservação do patrimônio das

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torres corporativas ganham destaque e cidades, mantendo o tradicional papel de

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superam o patrimônio como elemento de defensor do interesse público a ele associado.

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Marcia Sant’Anna
atração e consumo visual.
OS

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Mas, se nos anos 1990 os movimentos D E S A F I O S A E N F R E N TA R
sociais de resistência, de reivindicação de
participação e de afirmação do direito à cidade Uma instituição como o Iphan
eram mais ou menos restritos à capital paulista, dificilmente conseguirá atuar no sentido da
a realidade agora é outra. Em várias cidades, afirmação de uma noção ampla e de uma
e de formas diversas, esses movimentos têm apropriação democrática de patrimônio
mobilizado habitantes, denunciado ilegalidades urbano, na contemporaneidade, sem
153
e afrontas ao interesse público, inclusive articular a política de preservação a outras
por meio da judicialização dos processos políticas públicas das áreas de planejamento,
de transformação do ambiente construído, desenvolvimento urbano e social, produção
notadamente nas áreas centrais de valor habitacional, provisão de infraestrutura e
patrimonial. Assim, aqueles que são afetados transportes, educação, saúde e mesmo de
negativamente por essas intervenções não são acesso mais amplo à cultura. A carência
mais espectadores passivos, mas sim, cada vez de articulações sistemáticas e duradouras
mais, atores fundamentais das conjunturas nas nesse sentido tem sido um dos principais
quais essas novas atrações/explorações urbanas problemas para uma atuação mais consistente
buscam se enraizar. da instituição em prol do patrimônio
A partir de meados da década de 2000, urbano, desde suas atividades inaugurais
o Iphan, através do Programa Monumenta, nos anos 1930. Assim, a constituição, pela
buscou empreender ações, como o programa via legislativa, de um sistema nacional de
habitacional de interesse social iniciado preservação do patrimônio que envolva outras
na 7ª Etapa do Programa de Recuperação áreas e esferas de governo, além da sociedade,
constitui, portanto, um dos desafios mais mais forte entre os setores patrimonializados e
A cidade-patrimônio no Brasil: lições do passado e desafios contemporâneos

importantes dos próximos anos. o restante das cidades. Para isso, a formulação
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No enfrentamento desse desafio, o e implementação de planos voltados para a


fortalecimento dos organismos estaduais e identificação e o tratamento dos problemas
municipais de preservação não poderá ser estruturais e processos urbanos que afetam
N
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deixado em segundo plano. Transformar os sítios históricos, assim como a ampliação


o Iphan em uma instituição capacitada a dos investimentos que já estão sendo feitos
A

coordenar um sistema de âmbito nacional pelo Iphan na dimensão normativa da


E

– no qual todos os membros estejam preservação do patrimônio urbano serão


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adequadamente aparelhados, atuem segundo igualmente necessários. Superar, por fim e


suas competências, compartilhem planos definitivamente, a velha e desgastada fórmula
H

e projetos e concorram para a preservação que agrega “patrimônio, turismo e lazer”


A T R I M Ô N I O

de um patrimônio que é de todos – será, constitui o desafio final.


certamente, uma ação fundamental. Mas que A despeito, contudo, dos altos e baixos,
P

ainda dependerá da superação da ideologia dos problemas e carências que pontuam essa
D O

produzida nos anos 1970, que hierarquizou e trajetória e dos pesados desafios a enfrentar,
E V I S T A

fracionou o patrimônio cultural do Brasil em os oitenta anos de atuação do Iphan no


Marcia Sant’Anna

bens de valor nacional, estadual ou municipal. campo da preservação do patrimônio urbano


R

No que toca mais especificamente apresentam um saldo altamente positivo. Se,


à cidade-patrimônio, a superação do hoje, grande parte desse patrimônio ainda
esteticismo e da visão histórica rasa da cidade- existe e está protegida, deve-se à instituição
monumento, bem como do pragmatismo e à sua ação pioneira e ininterrupta nesse
econômico-financeiro excludente da cidade- campo desde os anos 1930. Neste balanço,
atração, será igualmente necessária, em favor não é possível, assim, esquecer, nem deixar
154 de uma concepção mais próxima da noção de de lado, o quanto o Iphan foi importante na
cidade-documento e do que ela implica em garantia da permanência de centros históricos
termos de valorização das funções cognitivas, inteiros e paisagens urbanas valiosas,
memoriais, afetivas e sociais do patrimônio como a dos morros e florestas do Rio de
urbano. Para tanto, enfrentar e equacionar Janeiro, quando processos avassaladores de
dois outros desafios será também importante. verticalização e especulação urbana tomaram
O primeiro diz respeito a ampliar os canais as cidades brasileiras de assalto nos anos
de participação social nas operações de 1970. Se o tombamento se tornou, então, um
identificação, seleção, conservação e gestão instrumento sustentador de reivindicações
de cidades-patrimônio – inclusive levando- sociais vinculadas à qualidade de vida nas
se em conta as referências culturais das cidades, além de instrumento da política
populações que as habitam – e o segundo, a urbana, isso não se deveu à suas qualidades
investir seriamente no fortalecimento de usos intrínsecas, mas à ação firme do Iphan na
habitacionais e outros ligados à vida cotidiana defesa do interesse público ao longo de sua
nessas áreas, possibilitando-se uma integração trajetória.
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