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modernização.
Marco Aurélio Borges Costa
1. Introdução
O Espírito Santo durante mais de uma década figurou como um dos estados mais
violentos do Brasil. Uma interpretação para esse fato o entende como resultado direto de
um processo de urbanização precária e acelerada. Essa explicação pode ser encontrada
clara ou sutilmente em documentos diagnósticos produzidos pelos governos que vem
enfrentando o problema das altas taxas de homicídios e, eventualmente, em obras de
caráter mais geral e até mesmo acadêmico. Embora sejam citados alguns documentos
nesse sentido no decorrer do texto, não se pretende fazer uma análise da percepção do
governo das causas que resultaram períodos de altas taxas de homicídio no estado
durante alguns anos. O que se pretende é discutir o fato de que, embora a urbanização
acelerada e precária e o aumento demográfico abrupto da Região Metropolitana da
Grande Vitória sejam eventualmente evocados como causa do aumento das taxas de
homicídios, as explicações que evocam esse argumento não citam que esse processo de
explosão demográfica e urbana foram resultantes de escolhas políticas que ou ignoraram
conscientemente as consequências das decisões tomadas quanto aos rumos do
desenvolvimento do estado do Espírito Santo ou não tiveram capacidade técnica de
prevê-las.
Sem a intenção de enfrentar a questão da associação direta entre violência letal e
pobreza ou entre violência letal e reconhecendo que uma urbanização precária e
acelerada impacta em algum nível nas taxas de violência letal, o que proponho é discutir
o fato de que essa urbanização não foi acidental ou espontânea, mas antes provocada
com algum grau de consciência dos riscos que a mesma acarretaria em termos de um
comprometimento da ordem social.
De início, procuro contextualizar a decisão de “modernizar a qualquer preço”, que se dá
em um ambiente ideológico de que modernizar era urgente e que não havia
possibilidade de debater o que se colocava como projeto de país de cima para baixo. A
construção técnica do argumento de que havia uma crise irreversível na economia do
café no fim dos anos 50 e início dos anos 60 - quando esse produto era a principal
atividade econômica do estado - gerou um clima de caos suficiente para justificar
quaisquer medidas que pudessem mudar urgentemente a matriz econômica do estado.
A inclusão do Espírito Santo nos interesses gerais do capitalismo nacional e
internacional tendo em vista sua localização geográfica abriu as portas para a captação
de recursos de fundos nacionais e internacionais, públicos e privados para financiar essa
iniciativa, tendo em vista que a atividade econômica local não foi capaz de produzir
acumulação de capital suficiente para sustentar os ousados planos de transformação
econômica. Politicamente, modernizar, industrializar, eram as palavras de ordem no país
e as lideranças locais, mesmo as mais relutantes, não podiam fazer muito diante de um
regime autoritário comandado pelos militares. Não haviam obstáculos ao projeto de
modernização que se deu visando atender necessidades alheias ao contexto local e
ignorando as possíveis – senão prováveis – consequências sociais que adviriam da
rápida transformação do estado.
Em seguida, são analisados os diagnósticos de dois planos de segurança pública
desenvolvidos pelo governo do estado e iniciativas de planejamento estratégico
combinando sociedade civil e apoio governamental.
O processo foi doloroso e gerou consequências importantes para o estado. Uma delas
foi o desemprego. Dados dos próprios autores permitem ver o impacto da política de
erradicação dos cafezais no Espírito Santo no que se refere ao desemprego (ROCHA &
MORANDI, 2012, p. 81.).
Com base em documentos do governo do estado, Siqueira (2001, p. 129) afirma que o
programa de erradicação dos cafezais no Espírito Santo desempregou de uma só vez 50
mil trabalhadores rurais, o que correspondia a aproximadamente 150 mil pessoas, que
em grande medida, seguiram para a região da Grande Vitória. Sustentada em farta
documentação estatística, Rossana Mattos afirma que
A mão-de-obra liberada pela erradicação do café, culminando
com um saldo de 60.394 desempregados, composta
prioritariamente por pequenos agricultores sem qualificação, e a
reocupação dessas áreas por atividades alternativas, onde a
pastagem representou 73,85% (Tabela 6), o que exigiu a
expansão e a concentração da grande propriedade rural, foram
fatores decisivos para o movimento migratório no Espírito
Santo no período. O desemprego e o êxodo da população rural
para as áreas urbanas (tabela 6) foram as consequências mais
graves da crise social gerada pela política de erradicação no
estado. (2011, p.100/101)
Reproduzo a tabela organizada pela autora que demonstra a evolução das populações
rural e urbana do estado do Espírito Santo no período que compreende à erradicação dos
cafezais. Os dados permitem perceber o impacto dessas políticas no fluxo migratório do
estado, reduzindo o peso da população rural e ampliando o peso da urbana.
Os efeitos negativos da erradicação dos cafezais não eram ignorados pelos planejadores.
Pelo contrário, segundo Siqueira (2001,p.53), os órgãos responsáveis pela execução do
programa desenvolveram, simultaneamente, programas de estímulo à diversificação da
produção agrícola e à realização de novos plantios nas áreas liberadas. Contudo, tais
programas tiveram pouco êxito. Os que contavam com um grande número de cafezais e,
consequentemente, mais vultosas indenizações, capitalizaram-se para novos
investimentos; quem estava fora dessa categoria via-se desprovido de condições de
sobrevivência. Estes últimos eram a maioria. O resultado foi o empobrecimento e a
expulsão da população do campo para as cidades centrais (p. 53).
Documentos do Instituto Jones dos Santos Neves ressaltam que até meados dos anos 60
o movimento migratório no âmbito do território capixaba se resumia à dinâmica da
economia cafeeira. O escoamento da produção pelo porto de Vitória fortalecia a capital
como centro econômico da economia cafeeira agroexportadora. Frisam que os fluxos
migratórios desse período não chegavam a comprometer a estrutura demográfica da
capital capixaba. Davam-se muito mais em decorrência da expansão das fronteiras
agrícolas e do papel político atrativo que a região da capital exercia do que por fatores
de expulsão das regiões de origem, dentro do próprio estado. Por outro lado,
Não obstante ser uma obra com riqueza de informações sobre a evolução econômica do
Espírito Santo, o trabalho de Rocha & Morandi é um exemplo de como se atribui o
aumento da violência à urbanização acelerada e precária, sem atribuir a urbanização
acelerada e precária às decisões das “elites políticas e empresariais”. Em poucas páginas
anteriores, os autores relatam com certo tom de heroísmo que diante da gravidade da
crise, as federações do comércio e da indústria e o governo do estado somaram esforços
para a formulação de estratégias de desenvolvimento que, acompanhando a tendência da
economia brasileira, optou pela industrialização (p.31). Nas páginas seguintes, relatam
os autores que esse consórcio das “elites políticas e empresariais” identificou os
obstáculos à busca da modernização e tratou de estabelecer formas de superá-los, para
em seguida descrever as mudanças abruptas sem atribuí-las a – no mínimo – uma falha
de planejamento dessas “elites políticas e empresariais” que traçaram as estratégias de
industrialização do estado. Duas opções são possíveis. A primeira é que mesmo ciente
dos riscos, as elites citadas entenderam que deveriam manter a iniciativa por qualquer
justificativa que fosse. A segunda é que as consequências óbvias não foram previstas,
revelando uma enorme incapacidade técnica.
Ocultar - intencionalmente ou não - os atores das transformações ocorridas no Espírito
Santo enquanto se trata os “problemas sociais” como consequência dessas
transformações
Acaba por obscurecer fatores essenciais na compreensão do surgimento do problema da
violência no estado, seja como representação, seja como elevação dos índices de
homicídios.
Os diagnósticos que sustentam os planos de segurança seguem na mesma direção:
atribuir violência e “problemas sociais” a essas mudanças estruturais, mas sem investir
na profundidade da crítica em perceber que essas mudanças estruturais não ocorreram
do nada. Tais mudanças ocorreram por causa de estratégias de atores públicos e
privados, de interesses econômicos tanto estatais - em nível de estratégias
desenvolvimentistas nacionais - quanto de interesses locais.
A síntese do planejamento estratégico ES 2025, elaborado por iniciativa do movimento
Espírito Santo em Ação, demonstra sua preocupação com a violência na seção
“condicionantes de futuro endógenos/gargalos e tensões estruturais”: “Violência urbana,
com disseminação para o espaço rural e repercussões sobre a atração de capitais e a
imagem do Estado”. Em referência às ações frente à violência, o segundo item da lista é
“Redução dos crimes contra o patrimônio”. A redução de homicídios não consta,
mesmo o Espírito Santo sendo considerado, à época da elaboração do plano, um dos
estados mais violentos do Brasil. A violência, na visão do ES 2025, é um risco porque
sua insistência provoca a perda de atratividade de novos investimentos (p.22 Vol.6). Na
atual revisão do ES 2025, o ES 2030 - depois de tratar do aumento vertiginoso da
população e da concentração populacional na região da Grande Vitória, mas sem
relacioná-lo à implantação das políticas industrializantes implantadas - consta que
As mudanças demográficas foram acompanhadas do aumento
percentual de pessoas que viviam em estado de pobreza e de
subemprego; de carência de serviços públicos essenciais, de
saúde, de educação, de segurança e de habitação, gerando
crescentes desafios. (p. 25)
Chama a atenção que “as mudanças demográficas” não são associadas às intervenções
“industrializantes”. E foram “acompanhadas de aumento percentual de pessoas que
viviam na pobreza (...)”. A redação dá a entender que não há qualquer relação entre
industrialização e empobrecimento urbano no Espírito Santo, ao contrário do que
Siqueira (2001) e outros autores de linha mais crítica apontam com muita propriedade.
É como se fosse uma infeliz coincidência o aumento demográfico, as mudanças
demográficas e o aumento percentual de pessoas que vivem na pobreza. Ora, as
mudanças demográficas foram resultantes das escolhas políticas, do caminho de
desenvolvimento escolhido pelas elites políticas e econômicas. E esse aumento
demográfico – especificamente na Região Metropolitana da Grande Vitória - foi
provocado diretamente pela erradicação dos cafezais e pelos “Grandes Projetos”,
quando atraiu mais pessoas para o estado, em especial a região da capital. E as carências
às quais o plano se refere são resultantes do fato de que o aumento populacional não foi
acompanhado por um aumento proporcional da capacidade da máquina pública estadual
de garantir esses serviços por conta das estratégias de desenvolvimento escolhidas.
Tanto o ES 2025 quanto o ES 2030 são planos financiados, principalmente, por grupos
empresariais com o apoio do governo do Espírito Santo. São documentos reveladores da
percepção que as elites políticas e empresariais têm da situação do estado. Uma rápida
olhada na parte final dos documentos, onde constam os entrevistados das pesquisas
qualitativas e os grupos que participaram da elaboração do documento, permite perceber
que se trata de um documento que considera os interesses das classes empresariais. É
direcionado para os interesses dessas classes e ilustra o que esses segmentos pensam
acerca do problema.
Quanto aos projetos listados (pp.160/161), é digno de nota que o “plano” apresenta
como meta uma taxa de homicídios menor do que 10 ocorrências por 100 mil habitantes
em 2030. O foco em geral se concentra, por um lado, em ações de integração,
tecnologia, políticas públicas em áreas vulneráveis, prevenção e repressão; por outro
lado, as críticas ao modelo de produção e ao discurso do ES 2025 – extensivo à sua
atualização ES 2030 – não são nenhuma originalidade desse trabalho.
Zanotelli (et al, 2013) faz uma análise contundente do documento. De início, ele ressalta
que o plano foi coordenado por Guilherme Gomes Dias, na época Secretário de
Planejamento, e Arthur Carlos Gerhardt Santos, ex-governador biônico do Espírito
Santo, justamente na década de 70 (1971-1974). Este também foi presidente da Aracruz
Celulose (hoje Fíbria) e da Companhia Siderúrgica de Tubarão (hoje Arcelor Mittal).
Zanotelli afirma o que que a participação da sociedade é muito pouco perceptível, que
não foram entrevistados representantes de movimentos sociais e nem fica claro como
foram os supostos processos participativos de elaboração do plano. Afirma ainda que o
discurso do plano ES 2025 visa ao crescimento econômico, considerando que os
responsáveis pela elaboração desse plano pressupõem um direcionamento das políticas
públicas ao mercado e ao atendimento de interesses privados, rentistas e lucrativos. O
autor analisa ainda os efeitos pretendidos pelo plano:
O documento explica que entre 1979 e 2008 a Região Metropolitana de Vitória, onde se
concentraram 65% das ocorrências de homicídios no Espírito Santo em 2011, o
crescimento real do número de homicídios foi de 1423%. No interior do estado, ainda
segundo o documento, o crescimento foi de 372%. O documento dá a entender ainda
que a concentração não é somente na Região Metropolitana de Vitória, mas em áreas
dessa região.
Via de regra, o crescimento da violência letal nos municípios da
Região Metropolitana da Grande Vitória deu-se não de maneira
homogênea, mas concentrada, apresentando algumas
características comuns em sua distribuição: manifestou-se
principalmente em bairros ou conjuntos de bairros com grande
densidade demográfica, de ocupação recente (menor que 30
anos, com raras exceções), caracterizados por baixo grau de
urbanização, população residente de baixo nível
socioeconômico e submetida a elevados índices de
vulnerabilidade social. (p.8)
Esse entendimento não difere muito do defende seu antecessor, o Plano Estadual de
Defesa Social 2007-2010, quando afirma que
O Espírito Santo não foi uma exceção. Pelo contrário, suas elites empresariais e
políticas seguiram à risca o receituário brasileiro para o desenvolvimento sem inclusão
social e, como consequência de suas escolhas, se produziu uma ambiência na qual a
violência letal se disseminou, ceifando milhares e milhares de vidas e marcando um
período da história do estado como um dos mais violentos do país, situação que nos
últimos anos vem dando lugar a uma realidade menos dolorosa, com menos mortes,
embora sejam, ainda, um dos graves problemas do estado.
4. Conclusão
Referências
COSTA, Marco A.B. Vítimas que choram. Trajetórias de coerção, acumulação social e
empreendedorismo violento no Espírito Santo. Vitória: Opção Livros, 2016.
ZORZAL E SILVA, Marta. Espírito Santo: Estado, interesse e poder. 1986. 822f.
Dissertação (Mestrado em Administração Pública). Escola Brasileira de Administração
Pública. Rio de Janeiro, 1986.