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Ricardo Kubrusy2
Eco é o homem misturado, feito de versos livres e células desgovernadas. Não há,
e pode haver, ética no ser disciplinado, que orienta e que nos orienta por meio de
disciplinas estanques que separam o mundo em modelos de mundo que acreditam e
insistem em que a soma das partes é o todo que existia, confuso, antes de ser partido
e reorganizado em disciplinas.
O Mundo, em qualquer sentido que se use a palavra Mundo, é necessariamente
transdisciplinar. Não se deixa observar por partes. Ou o tomamos por completa ou, de
gole em gole, estaremos todos ludibriados e tristemente contentes como peixes em seus
aquários, como nos ensinou Sampaio em sua 'Lógica das Diferenças (SAMPAIO, 2001)
ou voando dentro de gaiolas como D'Ambrósio nos mostrou no Scientiarum Historia III
(AMBROSIO, 2010). Ainda seguindo D'Ambrosio, Transdisciplinaridade não se dá
na tolerância do diferente, mas na paixão pelo que, por ser diferente, nos contempla e
completa (KUBRUSLY, 2012b). A tolerância é sempre hierarquizada e, inevitavelmente,
separa a informação e divide a conversa, criando uma relação de importância, falsa
importância, é claro, de cima pra baixo do tolerante, magnânimo ao tolerado, que fala
sem ser molestado e nem ouvido.
Como sabemos há séculos, a matemática que utilizamos para modelar esse mundo
partido e reduzido, desmembrado e disjunto de si, que hoje nos é dada a conhecer,
também pode se reencontrar no que sobra aos seus próprios argumentos. É a eterna
presença do Infinito que incomoda e vira o jogo do reducionismo aplicado ao espanta
teórico, que possibilita uma percepção do confuso original onde ético era o que existia
entre os elementos que lá se misturavam.
Hoje somos aqueles que buscamos fórmulas éticas que não se dão em partes como
o mundo que descrevemos em nossos modelos científicos. Não existem explicações,
como se queria e ainda muito se quer, do todo pelas partes e, em um mundo repartido,
não há lugar para ética. O mundo ético que se busca está enfim escondido no todo que
já não mais existe e no antes do tempo, quando tudo era gente.
A Mulher Pássaro4, um ser antes da história consagrada, metafisico, longe das
O PRINCIPIO DA IDENTIDADE
O TERCEIRO EXCLUÍDO
Mais uma vez, seguimos os passos de antigas reflexões (KUBRUSLY, 2011) para
mostrar que criamos nossas lógicas a partir do corpo que temos, e não de um universal
que não persiste aos acontecimentos. Nascemos. No inicio, enquanto infantes, no espanto
de dentro e do fora simultâneos que se nos acolhe e rejeita, respiramos e nos alimentamos
simultaneamente (TRIPICCHIO, 2004 apud KUBRUSLY, 2011), como nos ensina em sua
pratica "Respifala", um ser menino5, apresentado em congresso para abordagem do tema
Nossas primeiras reflexões se dão grudados ao peito que nos acolhe e possibilita. All
na saudade do confuso intra-uterino, que nos gerou e nos expulsou pela imposição de uma
identidade, vivemos nossas primeiras experiências. Época de primeiras vezes em tudo, esse
vai e vem de mundo externo e interno que se misturam e se diferenciam. Respiramos e
engolimos simultaneamente. Eis o mistério de nossa sobrevivência. Ainda somos e seremos,
por algum tempo, dentro da mãe. Dentro e fora. Junto a esse enorme peito que é tudo que
existe, filosofamos nossas primeiras visões de mundo. O tudo é o peito que nos confirma,
enquanto respiramos e nos alimentamos para poder crescer e nos tornar o que, deveras,
já somos. Respirar e engolir são nossos dois alimentos vitais. É deles que somos feitos, é
da simultaneidade de seus processos que dependemos.
Mas crescemos e, mais tarde, ainda vivendo o susto do mundo que se apresenta
no processo de crescimento do infante que se torna menino e homem, nosso corpo se
modifica, dentro de nós, se rearruma e muda sua topologia inicial, alterando assim, as
distâncias entre as válvulas que regulam respiração e alimentação. Engasgados, no
susto da vida, já não mais conseguimos respirar e engolir ao mesmo tempo. Tossimos
mundo de dentro pra fora de nós. Isso não é lenda ou poesia, quem dera, isso, de fato,
acontece no infante que cresce.
Somos, portanto, num dado estágio de nossas vidas, forçados a optar e a alternar
nossas fontes vitais. Ou respiramos ou engolimos e temos de fazê-los os dois. Surge
assim o "OU" excludente, lógico, que dá origem ao Principio do Terceiro Excluído e que,
abstraído, se materializa na fórmula (A ou ~A) que se lê: A ou não A, sina do corpo que
sobrevive e que do corpo ao texto impõe-se como lógica.
Das lendas à História, com seu relógio grudado aos acontecimentos, passamos num
susto. A invenção do relógio, que dá origem ao tempo que se mede e não se sente, se
dá pelo cosmo que incansável gira e gira e de sua tontura, da tontura do cosmos, os
relógios se estabelecem no mundo. Do relógio à invenção do Tempo, passa-se por um
processo de dar sentido aos movimentos, de justificar existências. É para dar sentido ao
relógio que gira sem parar nem porquê, que inventamos o tempo cronológico, e é mais
uma vez pelo corpo que existindo, persiste e desiste, do amanhã ao ontem caminhando,
um pé no chão do ontem e um no ar do amanhã. É o corpo em movimento, a dança dos
corpos, que determina a historicidade, não o movimento dos ponteiros que, estes sim,
imitam nossas danças. Por isso, guiamo-nos por eles, pelo Balé dos ponteiros. A função
de localizador social dos relógios, como nos ensinou Norbert Elias em sua obra "Sobre
o Tempo" (ELIAS, 1984), é sua principal função, vem das saudades do corpo que dança
e caminha: Um pé no chão, o da saudade do que existindo é seguro e longe da morte, e
o outro em pleno ar avançando para o que nos amedronta e fascina.
Da lenda à história, passa-se pela imposição do Princípio da não contradição, que
impede que passado e futuro se misturem como nas lendas se misturam. Sua escrita
lógica -(A e Ã), ou em palavras: Não (A e não A), ou melhor, A e não A, Não! O tempo
não volta e nem pode voltar. Essa é a expressão do principio, dito o mais fundamental
das lógicas clássicas e é o corpo no caminhar de suas danças, na coreografia que os
relógios imitam, que mais uma vez o inventa e determina.
MOBIUS6
A ideia de um sujeito topológico não é nova. Quando Lacan, nos seus escritos,
estabelece um diálogo entre a topologia matemática e a psicanálise, construindo, para
além de simples analogias, uma nova interpretação do sujeito pela Fita de Möbius7, objeto
com propriedades topológicas bastante peculiares e que, trazida ao diálogo, estabelece
uma possibilidade de explicação teórica para o arranjo entre as instâncias conscientes
e inconscientes do sujeito e suas relações reciprocas. A conhecida (pelos matemáticos)
propriedade deste estranho objeto, qual seja, a de identificar interior e exterior, anulando
o sentido dessas qualificações do ponto de vista global, mas permitindo, no entanto, que
localmente ainda possamos ter a ilusão de dentro e fora, chama-se Não-Orientabilidade.
Essa propriedade topológica, incomum nos objetos tri-dimensionals, onde apenas a dita
Fita a possui, mas abundante em espaços de dimensão maior do que 3, Interessou a
Lacan em seus estudos e nos interessa agora.
Nós, que morremos e que sabemos disso, vivendo estranhamente, misturando
natureza e cultura, identificamos, permanentemente, interior-exterior, construindo um
universo completo com todos os seus milhões de ingredientes dentro de nós. Temos um
universo completo dentro de nossas cabeças, ou melhor, do corpo que trazemos e que
gera tudo o que somos ou sentimos. Nosso corpo é o universo que nos cerca.
Para que esta realidade seja compreendida, é preciso construir esse homem que
somos, unindo biologia e cosmos não apenas pelas filosofias que nos cercam com seus
ILUSÃO E REPETIÇÃO
Levar a Fita ao Zero, reduzi-la a sua linha central e tomar-se, com esse Zero de
topologia mobiluseana, o que somos. Guardar não a geometria, mas a topologia que a Fita
encerra. A Fita reduzida ainda sobrevive e retém suas propriedades topológicas. É uma
resistência do que desiste e se impõe com seu desaparecimento. Assim, o universo é
colocado dentro de nossa cabeça pelo Zero de não orientabilidade, guardando a memória
a Fita que se esconde pela matemática da Análise Não Estândar (ROBINSON, 1966,
DAUBEN, 1995) e que faz do Zero um gerador de universos e identifica, assim, exterior
e interior.
Uma roda inventada na origem do homem costurado se refaz nas cantigas de roda
que, quando grande o suficiente, comporta os antagonismos que, embora se oponham
na roda, compõem um só corpo com seu movimento e destino. Ao acaso, arruma-se a
rada e, ao acaso, ela se reconhece e canta as canções que a movimentam.
A roda não só acolhe as diferenças como, ao colocar antagonismos a conversar,
treite a frente, unindo seus opostos, identificando, em linguagem matemática, seus
pontos antipodais, produz a topologia não orientável do plano projetivo. Torna-se um
ser complexo, identificando interior e exterior e com humanidade garantida, não pelo
mistério que nos forma, mas pelo arranjo algorítmico que se lhe conforma. Esse ser
metabiológico também tem um corpo, formado de versos (que são as falas das suas
várias cabeças) e é um corpo coletivo e metabiológico, para além do homem pessoa
costurada que antes descrevemos.
A roda gigante se deita e, com ela, as mãos substituem as longas barras de ferro e
a estrutura calculada por equações numéricas e suas repetições ordenadas dão lugar à
força dos corpos misturados. São os cantos com seus versos cirandeiros que impulsionam
as pernas, os pés e destinam os movimentos e seus giros sonoros. São vozes do mundo
que, ali, entre momento e espírito, na ciranda em movimento, são cantadas e escutadas.
As cirandas são orelhas do mundo e, como marés, não escolher seus rios nas receitas
de existir. Ouvem o que houver. A ética, enfim, é a ótica que a ciranda provoca e permite.
Seus vários planos e fundos, seus desafinos poéticos e a percussão dos mil milhões de
pés que à terra impõem seus movimentos e desejos. A Terra treme ao som poético dos
corpos misturados.
ENFIM
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