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Durante dois ou três dias, não dava para saber ao certo, a portinhola no teto não foi aberta, ninguém

desceu ao porão e estava quase impossível respirar. Algumas pessoas se queixavam de falta de ar e do calor,
mas o que realmente incomodava era o cheiro de urina e de fezes. A Tanisha descobriu que se nos
deitássemos de bruços e empurrássemos o corpo um pouco para a frente, poderíamos respirar o cheiro da
madeira do casco do tumbeiro. Era um cheiro de madeira velha impregnada de muitos outros cheiros, mas,
mesmo assim, muito melhor, talvez porque do lado de fora ela estava em contato com o mar. Quando não
conseguíamos mais ficar naquela posição, porque dava dor no pescoço, minha vó dizia para nos
concentrarmos na lembrança do cheiro, como se, mesmo de longe e fraco, ele fosse o único cheiro a entrar
pelo nariz, principalmente quando o navio começou a jogar de um lado para o outro. As pessoas enjoaram,
inclusive nós, que vomitamos o que não tínhamos no estômago, pois não comíamos desde o dia da partida,
colocando boca afora apenas o cheiro azedo que foi tomando conta de tudo. O corpo também doía, jogado
contra o chão duro, molhado e frio, pois não tínhamos espaço para uma posição confortável. Quando uma
pessoa queria se mexer, as que estavam ao lado dela também tinham que se mexer, o que sempre era motivo
de protestos. Tudo o que queríamos saber era se ainda estávamos longe do estrangeiro, e alguns diziam que
já tinham ouvido falar que a viagem poderia durar meses, o que provocou grande desespero.

Talvez, se eu tivesse ficado trabalhando apenas na casa-grande e morando na senzala pequena, não
teria sabido realmente nada sobre a escravidão e a minha vida não teria tomado o rumo que tomou. Mesmo
para uma criança de dez anos, ou, talvez, principalmente para uma criança de dez anos, era enorme a
diferença entre os dois mundos, como se um não soubesse da existência do outro. Um outro mundo dentro
do mesmo, sendo que o de fora, a senzala grande, era muito mais feio e mais real que o de dentro, a senzala
pequena.
No primeiro dia eu não me queimei, mas isto aconteceu algumas vezes mais tarde, criando bolhas
pelos braços e no rosto, mas nada grave. Talvez porque naquele anoitecer, quando voltamos para a senzala,
alguém tinha dado um jeito de colocar na minha baia a esteira, o Xangô e os Ibêjis, e eu implorei muito a
Xangô, o deus do fogo e dos trovões, para que me livrasse de tudo o que queima. Alguns dias depois,
quando eu estava chegando da fundição, a Esméria apareceu para me ver e dar um longo abraço com os
olhos cheios de lágrimas, e comentou que eu estava emagrecendo. Desde então, era comum encontrar me
esperando na baia alguns pães, bolo, ou mesmo leite, que a Esméria sabia ser do meu gosto, e que sempre
dividia com as minhas companheiras.
Na grande maioria das fazendas os senhores distribuíam apenas uma refeição por dia, se tanto, e os
pretos tinham que aproveitar os dias de folga para tirarem o sustento, para arrumar um jeito de pelo menos
se alimentarem o suficiente para trabalhar. Nessas fazendas não se vivia mais do que dez, quando muito
quinte anos de trabalho, durante os quais os donos tiravam o máximo dos escravos, para valer o
investimento.

Estávamos felizes, era bom pelo menos sonhar, e o Lourenço disse que, mesmo assim, mesmo livres,
viveríamos em um quilombo. Ele achava que era muito melhor nos quilombos, onde ninguém era dono de
nada ou de alguém, tudo era de todos e cada um mandava em si, dividindo o que plantava e colhia e o que
produzia com as artes das próprias mãos. Era esse o tipo de vida que ele queria dar aos filhos dele, em que
cada um era responsável pelo próprio destino, mas ainda assim se importava em proporcionar boa vida a
todos.
Ao contrário de Lourenço, que sempre falava em ir para a África mesmo sem nunca ter estado lá, eu
não sabia se queria voltar. Ele tinha certeza de que haveria alguém esperando a sua volta, o que não era o
meu caso. A não ser o meu pai, Oluwafemi, que nem cheguei a conhecer, eu não tinha ninguém mais em
África. Talvez a Titilayo, que, se ainda estivesse viva, poderia me receber de braços abertos, como fez da
primeira vez. Eu disse isso ao Lourenço e ele afirmou que, se eu quisesse, a família dele seria a minha
família, e que eu estava me tornando uma mulher muito especial. Eu queria que o Lourenço tivesse me
beijado naquela hora, na hora em que quis me dar uma família, mas não beijou, e nem pensou em beijar
quando fui nadar nua junto com os outros. Ele não entrou na água, e mesmo se tivesse entrado não a
sentiria, pois parecia estar longe dali, vivendo em algum quilombo que teria uma passagem secreta para a
África.

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