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MEMECRACIA: REFLEXÕES SOBRE O FLUXO DE

IMAGENS NA ERA DIGITAL

Gabriel Almeida da Silva


Número de inscrição: 239172

Processos e Procedimentos Artísticos

Orientador pretendido: Sergio Mauro Romagnolo


Resumo

Através de minha pesquisa pretendo refletir sobre questões que envolvem a imagem
virtual, especificamente os “memes de Internet” (ver fig ​1, 2, 3, 4, 5, 6, e 7​ do apêndice) e as
imagens de produtos comercializados pela internet através de plataformas de compra/venda (ver
fig ​8, 9 e 10​ do apêndice). Analisaremos essas categorias de imagens por suas características
formais - sua circulação essencialmente em meios virtuais, sua gigantesca capacidade de
reprodução, a exacerbação de apelos narrativos, estilísticos e afetivos, frente à imensa
competição pela atenção do público - trataremos também sob uma perspectiva filosófica,
partindo de uma compreensão histórica da imagem técnica a partir das idéias de Vilém Flusser.

A imagem popular virtual tem sido o meu principal objeto de interesse na pintura. Dos
“memes de internet” às lojas virtuais, do ready made à colagem, esse universo se apresenta como
uma fonte inesgotável de repertório pictórico. Trazer essas representações para o contexto
material da pintura explicita tensões entre as instâncias práticas do fazer humano frente a um
“novo mundo” em processo de virtualização crescente da realidade.
Introdução

Viver no presente implica estar sujeito a um bombardeio de imagens. Através da


internet estamos cada vez mais familiarizados com essa dinâmica pautada no excesso de ofertas.
Os dispositivos supostamente concebidos para melhorar a vida cotidiana tornaram-se ferramentas
de controle e coleta de dados, a imensa variedade de imagens que invadem as telas dos aparelhos
servem à interesses de mercado, alheios à vontade do indivíduo.Enquanto estamos tomados pelo
apetite inebriante por imagens, nosso comportamento é monitorado e transformado em dados,
que são utilizados no intuito de construir mecanismos de controle social cada vez mais precisos.
Esse poder reside nas mãos de quem detém os meios de informação.

Nessa complexa dinâmica existe um elemento ordenador central: a Inteligência


Artificial, que paradoxalmente opera pelo caos: múltiplos algoritmos se entrecruzam para criar
novos algoritmos em níveis insondáveis até mesmo para seus criadores. Essa idéia de controle é
frágil, pois a dinâmica desse fluxo de informação é fundamentado sob uma lógica de estímulo ao
consumo desenfreado, descartando qualquer outra variável. O que observamos a partir disso é
uma gigantesca disponibilidade de “versões alternativas” de fatos científicos, políticos e sociais,
mais atraentes, apelativos e simplistas que acabam ofuscando nossa compreensão dos fatos. A
imagem virtual nos arrebatou da realidade: consumidos pelas informações, perdemos o lastro
com o mundo real e a imagem virtual se apresenta como única possibilidade ordenadora diante
do caos que ela mesma provoca.

“Imagens são mediações entre homem e mundo (...) seu propósito é serem mapas do
mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função
do mundo, passa a viver em função das imagens. Não mais decifra as cenas da imagem como
significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas.
Tal inversão da função das imagens é idolatria. (FLUSSER, 1983, p. 9)

Dentro desse contexto observamos o brotar de uma manifestação de comportamento


típico da internet: o meme. De acordo com o teórico Ton Torres, o meme no contexto da internet
é uma mensagem quase sempre carregada de irreverência e /ou ironia que pode ou não ser
acompanhada por uma imagem ou vídeo, intensamente compartilhados através de plataformas de
redes sociais:

O termo foi cunhado pelo zoólogo Richard Dawkins em sua obra ​O gene
egoísta,​ de 1976, para fazer uma comparação com o conceito de gene. Assim, para
Dawkins, meme seria "uma unidade de transmissão cultural, ou de imitação", ou seja,
tudo aquilo que se transmite através da repetição, como hábitos e costumes dentro de
uma determinada cultura. Adaptado para a internet, especialmente para as redes
sociais, o conceito de meme passa a ser uma "unidade" propagada ou transmitida
através da repetição e imitação, de usuário para usuário ou de grupo para grupo.
(TORRES, 2016, p. 60-61)

A idéia de “unidades de cultura” parte de uma adaptação do evolucionismo de Darwin


ao contexto da informação cultural. Um meme seria análogo a um gene. estas unidades (memes)
passariam por um processo de “seleção natural” e adaptação com o passar do tempo. De acordo
com Dawkins, “memes que se espalham com sucesso incorporam três propriedades básicas:
longevidade, fecundidade e fidelidade de cópia”.

No final da década de 90 temos a primeira associação do conceito meme à internet,


através de experimentos sociais informais que envolviam compartilhamento de imagens:

Essa associação, que resultou no conceito contemporâneo de meme, nasceu no


final da década de 1990, quando um dos criadores da página ​del.icio.us​(um site
agregador de ​links​) criou a página ​Memepool ​("piscina de memes", em tradução livre),
que compilava ​links​ e outros conteúdos compartilhados pelos usuários na web. No
final dos anos 2000, Jonah Peretti, um dos fundadores do portal Huffington Post,
gerenciava com alguns amigos a página ​Contagious Media​ (algo como mídia
contagiante), onde realizava "experimentos" com conteúdos publicados na web. Essas
iniciativas culminaram em um "festival de virais", onde a maioria dos participantes se
baseava no conceito de Dawkins para remeter a algo que se propagava pela rede.
(TORRES, 2016, p. 60-61)

Temos, dessa forma, o surgimento do meme de internet no formato que o conhecemos


hoje. A partir de então, observamos o desdobramento crescente dessa manifestação nos mais
diversos campos, tanto como entretenimento, reforçando fatores identitários de grupos sociais,
quanto sendo peça chave em processos políticos e movimentações sociais, sendo um mecanismo
disseminador de ideologias. É importante frisar que os memes podem carregar e transmitir ideias
de qualquer tipo, ou seja, não existem distinções quanto à qualidade, lógica, ou moral ali
contidas. A taxa de sucesso de um meme está na capacidade de dispersão, adaptação e
assimilação por determinados grupos.

Diante desse fato, observamos com estarrecimento a ruína de estados democráticos,


uma crescente escalada de idéias fascistas ao poder, perseguições e linchamentos públicos, tudo
permeado e fomentado pelas irreverentes narrativas dos memes.

Objetivo

Tendo em vista o problema apresentado, tomo como objeto de estudo a imagem


popular de circulação virtual (memes de internet e imagens de produtos disponíveis em
plataformas digitais de compra e venda).

Pretendo refletir sobre os impactos materiais que o espalhamento virtual de imagens


exerce sobre o mundo contemporâneo e investigar, através desse universo imagético, aspectos de
nossa subjetivação obscurecidos pela vulgaridade com que nos relacionamos com esses
conteúdos.

Buscando compreender características que permeiam estas imagens, acredito ser


possível traçar rotas de leitura sobre um assunto de extrema complexidade e relevância, mas
ainda pouco abordado tanto academicamente quanto no campo das Artes Visuais.

A compreensão do que se chama de “memética” se faz importante enquanto analogia,


no sentido de clarear nossa percepção sobre a natureza desse fenômeno contemporâneo, porém
não tenho qualquer pretensão de resolver questões referentes sua consolidação enquanto uma
ciência. Tampouco tenho qualquer intenção de defender a legitimidade do meme de internet
enquanto expressão artística, mas sim compreendê-lo como potente fenômeno imagético de
nosso tempo. Enquanto artista-pesquisador, vejo nesse universo uma fonte riquíssima de imagens
que me despertam profundo interesse e desencadeiam questões para além de seus conteúdos.

Pretendo ater minha análise à duas categorias de imagens populares virtuais:

- memes de internet “ready-made” (ou seja, imagens provenientes de ​print screen


ou fotografias/séries fotográficas que passaram por pouca ou nenhuma intervenção ou
edição) (ver fig ​1, 2, 3, 4, 5, 6, e 7​ do apêndice)
- fotografias de produtos disponíveis em plataformas virtuais de compra e venda.
(ver fig ​8, 9 e 10​ do apêndice)

A pesquisa se desenvolverá no campo teórico por meio de reflexões filosóficas sobre a


imagem, técnica e repetição e no campo prático dando continuidade a série de pinturas que já
tenho desenvolvido tomando como ponto de partida esse recorte imagético.

Justificativa

O meme de internet é um fenômeno que vem ganhando cada vez mais potência e
relevância no cenário global. Exerce influência direta sobre processos políticos, economicos,
culturais e sociais. Sua natureza é diversa e multifacetada, está conectado diretamente à
dimensão simbólica de nossa vida cotidiana e permeia os mais diversos campos. Apesar de sua
aparente irreverência e banalidade exerce um poder notável sobre as mais diferentes
comunidades ao redor do mundo.

Observamos seu impacto no campo da política, da cultura, e também na educação.


Por se tratar de linguagem essencialmente visual e operar no plano simbólico, acredito
fortemente que é de grande importância trazer esta abordagem para discussão nas Artes Visuais.
Fundamentação teórica

Pretendo inicialmente investigar aspectos formais e conceituais do fenômeno “meme de


internet” baseando-me nos fundamentos da “memética”, conceito criado pelo zoólogo Richard
Dawkins em 1976 e posteriormente desenvolvido dentro do contexto da internet pela
pesquisadora israelense Limor Shifman. Essas idéias serão importantes para a compreensão
inicial desse objeto.

Uma vez mapeados alguns limites, buscarei refletir sobre os impactos e transformações
que essa nova dinâmica social proporcionada pelos memes de internet e imagens de produtos
exerce sobre o indivíduo contemporâneo e o mundo material. Para isso pretendo investigar essas
questões a partir do conceito de imagem técnica desenvolvido pelo filósofo Vilém Flusser:

Trata-se de imagem produzida por aparelhos. Aparelhos são produtos da técnica que,
por sua vez, é texto científico aplicado. Imagens técnicas são, portanto, produtos
indiretos de textos - o que lhes confere posição histórica e ontológica diferente
das imagens tradicionais. (FLUSSER, 1985, p 13)

De acordo com Flusser, tendemos a tomar por “janelas” do mundo estas ditas imagens
técnicas, não questionando qualquer aspecto conceitual referente à imagem enquanto um produto
da cultura (de sua criação às intenções alí contidas), causando o que ele chama de
“re-magicização” da imagem técnica, ou seja, ela exerce um poder inconsciente sobre o
indivíduo, moldando sua percepção sobre o mundo

(...) as imagens técnicas, longe de serem janelas, são ​imagens, ​superfícies que
transcodificam processos em cenas. Como toda imagem, é também mágica e seu
observador tende a projetar essa magia sobre o mundo. O fascínio mágico que
emana das imagens técnicas é palpável a todo instante em nosso entorno. Vivemos,
cada vez mais obviamente , em função de tal ​magia imagética: v​ ivenciamos,
conhecemos, valorizamos e agimos cada vez mais em função de tais imagens. Urge
analisar que tipo de magia é essa. (FLUSSER, 1985, p 15,16)
Observando os fenômenos de massificação de imagem do seu tempo, o filósofo
desenvolve uma série de problematizações extremamente atuais acerca da imagem, que ainda se
manifestam no modo como atualmente as “consumimos” através da internet. É correto presumir
que, dentro dessa conceitualização, imagens virtuais são fruto da evolução tecnológica das
primeiras imagens técnicas, logo, compartilham essencialmente características similares, salvo
algumas especificidades. Pretendo então, fundamentado em sua obra, iluminar as problemáticas
observadas na dinâmica contemporânea das imagens virtuais.

Metodologia

Pretendo desenvolver uma rotina de pesquisa por imagens dentro do recorte proposto e,
dessa forma, criar um banco de referências imagéticas que servirá tanto para o desenvolvimento
da pesquisa teórica quanto a prática. Buscarei elencar as imagens dentro de categorias possíveis
num esforço de mapear e compreender tendências e padrões, porém desprovido de qualquer
rigidez ou formalismo, uma vez que o teor de experimentação é parte constituinte de meu
processo criativo. Em paralelo pretendo seguir aprofundando tanto a pesquisa teórica - partindo
da linha filosófica mencionada no tópico anterior - quanto a pesquisa prática em ateliê,
construindo imagens por meio de colagens feitas a partir desse banco de referências, e buscando
representá-las à priori através da técnica de pintura em tinta acrílica e óleo. Pretendo investigar
também no campo prático hibridismos dentro da técnica, associando possivelmente uma
produção de vídeos ao conjunto de trabalho.
Cronograma

Cumprimento Pesquisa Produção de Início da Finalização da


de crédito/aula teórica ateliê produção de dissertação e
dissertação defesa da tese

1 semestre x x x

2 semestre x x x

3 semestre x x x

4 semestre x
Bibliografia

BLACKMORE, S. ​The Meme Machine.​ Oxford: Oxford University Press, 1999.

DAWKINS, R. ​O Gene Egoísta.​ Belo Horizonte: Itatiaia, 2001.

FLUSSER​. ​Vilém​ ​Filosofia da Caixa Preta​. ​Ensaios para uma futura filosofia da fotografia.
EDITORA HUCITEC. São Paulo, 1985.

_______ (2006). ​Do inobjeto​. ​ARS (São Paulo)​, ​4​(8), 30-35.


https://doi.org/10.1590/S1678-53202006000200003

_______​. O universo das imagens técnicas. ​Elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume,
2008b.

LEAL-TOLEDO, Gustavo. (2013). Em busca de uma fundamentação para a Memética.


Trans/Form/Ação,​ ​36(​ 1), 187-210.​ ​https://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732013000100011

LINARES, Claudia Rodríguez-Ponga. (2015). A imagem colonizada. ​ARS (São Paulo)​, ​13​(25),
72-87.​ ​https://doi.org/10.11606/issn.2178-0447.ars.2015.105524

REIS, Thiago. (2020). ​As diferentes acepções da arte na obra de Flusser.​ ARS (São Paulo),
18(39), 161-177. Epub August 28, 2020.
https://doi.org/10.11606/issn.2178-0447.ars.2020.156353

SHIFMAN, Limor. ​Memes in Digital Culture.​ The MIT Press, 2014

TORRES, Ton. (2016). O fenômeno dos memes. ​Ciência e Cultura​, ​68​(3), 60-61.
https://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000300018
APENDICE

fig 1​: Militantes do PSDB brigam durante as prévias municipais do partido. Exemplo de imagem pronta (Foto:
Crédito: Adriano Vizoni/Folhapress)
https://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/03/pastelao-tucano-briga-do-psdb-pela-prefeitura-de-sp-so-comecou.ht
ml

fig 2:​ meme realizado a partir de intervenção de desenho sobre fotografia


https://www.facebook.com/fibonaccinobrasil/photos/a.230375867299822/380800605590680
fig 3:​ De máscara, presidente Jair Bolsonaro participa de coletiva sobre o novo coronavírus. Imagem: Pedro
Ladeira/Folhapress
https://www.bol.uol.com.br/entretenimento/2020/03/18/marcelo-adnet-debocha-de-bolsonaro-atrapalhado-com-mas
cara-em-coletiva.htm

Fig 4​: meme gerado a partir de imagem de vídeo do mesmo episódio da fig 3. Nota-se que não foi realizada
intervenção sobre foto, mas a legenda que acompanha atribui um sentido narrativo e confere o caráter de meme.
Fig 5: ​o arquiteto e urbanista​ ​Oscar Niemeyer (foto: Gorka Lejarcegi)

Fig 6,7: ​dois exemplos de memes criados a partir de uma mesma foto (fig 5). O primeiro (à esquerda) se configura
através da simples inserção de um texto que lhe atribui sentido. O segundo (à direita) observamos a substituição da
maquete por uma fotografia do Palácio do Planalto, e novamente temos a inserção do texto atribuindo novo sentido.
Fig 8:​ imagem de produto à venda na plataforma de compra e venda online Wish
https://www.criatives.com.br/2020/06/15-vezes-que-o-wish-surpreendeu-as-pessoas-com-seus-anuncios-bizarros/
Fig 9:​ imagem de produto à venda na plataforma de compra e venda online Wish
https://www.criatives.com.br/2020/06/15-vezes-que-o-wish-surpreendeu-as-pessoas-com-seus-anuncios-bizarros/
Fig 10:​ imagem de produto à venda na plataforma de compra e venda online Wish
https://narrandohistoriastravel.wpcomstaging.com/2019/10/15/26-anuncios-da-wish-no-facebook-que-voce-ve-e-pen
sa-mano/

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