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James Marins

Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Pós-Doutor em Direito Tributário pela Universidade de Barcelona

PARECER

INTRODUÇÃO

Consulta-nos a Petróleo Brasileiro S/A – Petrobras, doravante Consulente, a


respeito da validade do ato praticado pela Secretaria da Receita Federal do Brasil que
desmembrou a exigência fiscal objeto do processo administrativo n.º
18471.0002782007-81 para cobrança em separado do valor do principal, já inscrito
em dívida ativa com execução ajuizada, apartando-o da parcela relativa a multa de
ofício e juros de mora, que continuaram sujeitas ao rito do processo administrativo,
pendente de julgamento, bem como sobre a possibilidade de ser exigido da
Consulente o pagamento da Cide-Combustíveis que deixou de ser recolhida por força
de decisão judicial obtida por empresas que adquiriam os combustíveis em processos
dos quais a Consulente não foi parte.

Foram formulados os seguintes quesitos para nossa apreciação:

1) Diante da documentação apresentada, e considerando que o Recurso


Especial interposto dirigiu-se contra a decisão de Câmara do CARF que
decidiu que três matérias trazidas pela recorrente em sede de recurso
voluntário estavam preclusas, a saber: (i) a inobservância de parecer
normativo da SRFB sobre a cobrança do tributo do substituto tributário em
caso de liminar obtida pelo substituído, (ii) a existência de solidariedade nos
termos do artigo 124, I, do CTN; e (iii) a imposição de juros e multa, e ainda
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que a divergência jurisprudencial ensejadora da interposição do Recurso


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Especial baseia-se em matéria "preclusão", e não de "juros e multa", indaga-

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se: a questão relativa ao principal do crédito tributário foi objeto de


constituição definitiva na esfera administrativa?

2) De acordo com as regras processuais que regulam o processo


administrativo fiscal federal, é possível que a Secretaria da Receita
Federal promova o desmembramento do auto de infração, de forma a
determinar a cobrança do valor principal, enquanto pendentes de apreciação
o exame de Recurso Especial que verse sobre juros e multa, considerando,
ainda a competência do CARF para fazer o exame de admissibilidade dos
recursos a ele interpostos?

3) Considerando as circunstâncias processuais apresentadas, pode a


Petrobras ser obrigada a suportar os efeitos econômicos advindos da
reversão de uma decisão judicial proferida em processo em que não foi
parte, de modo a ser obrigada a recolher tributo incidente sobre a
comercialização de combustíveis por ela praticada e cujo preço submete-se
à repercussão econômica, observando que a exação não foi paga no
momento da venda por força de ordem judicial proferida em mandado de
segurança impetrado pelo adquirente desse produto contra ato da
autoridade fazendária federal?

Passamos ao parecer.

1. A PECULIAR SITUAÇÃO EM EXAME: FRATURAS CONCEITUAIS E PRÁTICAS

O caso apresentado para nossa apreciação é bastante peculiar e


diferenciado. É uma situação atípica, que foge da normalidade da tributação via Cide-
Combustíveis. Houve complexa sucessão de fatos, a demandar cuidadoso exame,
para que a situação fique corretamente configurada e as consequências jurídicas que
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enseja sejam cuidadosamente analisadas.


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Em nosso exame, como se verá abaixo, detectamos rara combinação de atos


judiciais e administrativos capazes de gerar fraturas conceituais e práticas tanto de
ordem material, como no campo formal (administrativo) e judicial, conjunto.
Tal ordem de singularidades – factuais, materiais, processuais administrativas
e processuais judiciais – demandam adequado tratamento hermenêutico.

1.1. A sujeição passiva na Cide-Combustíveis

A Consulente é sujeito passivo, na qualidade de contribuinte, da Contribuição


de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a
comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool
etílico combustível, instituída pela Lei n. 10.336/2001, conhecida como Cide-
Combustíveis.

Trata-se de tributo no qual fica caracterizada a existência de contribuinte de


direito e de contribuinte de fato que não se confundem. O contribuinte de direito está
definido no artigo 2.° da lei: o produtor, o formulador e o importador, pessoa física ou
jurídica, dos combustíveis líquidos relacionados no art. 3.°.

O contribuinte de fato é o adquirente desses combustíveis, e sua condição de


contribuinte de fato decorre do prescrito no artigo 5.°, § 7.° da Lei: “A Cide devida na
comercialização dos produtos referidos no caput integra a receita bruta do
vendedor”. Uma vez que a Cide integra a receita bruta do vendedor, resta incluída no
preço dos combustíveis vendidos, repercutindo economicamente e atingindo, de fato,
o comprador dos combustíveis.

Então, a Cide-Combustíveis, pelo desenho legal concebido e concretizado


pelo seu artigo 7.°, incide juridicamente sobre o produtor, o formulador e o
importador, mas incide economicamente sobre o adquirente dos combustíveis.
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Em outras palavras: sob o ponto de vista econômico, o tributo é construído para que
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o adquirente dos combustíveis seja onerado, que a capacidade contributiva a ser

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atingida seja a do comprador dos combustíveis, não do produtor, formulador ou


importador. Na prática, produtores, formuladores ou importadores funcionam apenas
como agentes econômicos que concentram e antecipam a incidência da Cide,
aglutinando a arrecadação e a fiscalização, atendendo ao interesse da Administração
Pública na praticabilidade da cobrança de tributos.

Há, então, na Cide-Combustíveis, os contribuintes de fato, que são os


adquirentes dos combustíveis, e os contribuintes de direito – produtores, formuladores
ou importadores – que, no desenho legal adotado para esse tributo, servem de agente
antecipador e arrecadador da Cide no interesse administrativo de praticabilidade da
fiscalização tributária.

A importância prática da fórmula legal reside precisamente na facilitação da


fiscalização e cobrança da contribuição, assegurando, no entanto, que seu peso
econômico seja suportando pelos adquirentes dos combustíveis – exatamente onde
se revela a capacidade contributiva para suportar o efeito econômico do tributo. Desse
modo concentra-se a arrecadação na produção/importação mas dilui-se o ônus na
comercialização.

Ou seja: o ente tributante cobra de um único contribuinte de direito


(produtor/importador) mas dilui o ônus econômico entre centenas de contribuintes de
fato (adquirentes-distribuidores), preservando o princípio da capacidade contributiva.

Se a lógica conceitual da CIDE for rompida ocorrerão efeitos incontornáveis


na praticabilidade de sua cobrança, podendo chegar ao ponto de inviabilizá-la jurídica
e praticamente, tanto ao fracionar a responsabilidade pelo pagamento do tributo
transferindo-a para centenas de adquirentes (contribuintes de fato/distribuidores)
como ao retirar do contribuinte de direito/produtor a capacidade contributiva para
suportar a contribuição.
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1.2. As ações judiciais ajuizadas pelos contribuintes de fato

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Numerosos contribuintes de fato da Cide, adquirentes do combustível


fornecido pela Consulente, ajuizaram medidas judiciais requerendo fosse
determinado, pelo Poder Judiciário, à Consulente, que não recolhesse o tributo e, por
consequência, não repassasse o valor no preço de aquisição. Em outras palavras: na
condição de contribuintes de fato, pediram amparo judicial para não arcar com o valor
econômico da exação.

Com essa conduta – deliberada – os adquirentes de combustível buscaram a


fratura do modelo jurídico-econômico da CIDE, buscando para esse propósito a
interferência jurisdicional.

As relações jurídicas processuais estabeleceram-se, então, tendo, de um


lado, a União e, de outro, os contribuintes de fato da Cide – fechando-se a relação
triádica pela presença do Poder Judiciário.

O Poder Judiciário concedeu liminares, em favor dos contribuintes de fato,


para determinar à Consulente, que não era parte nos processos, que se abstivesse
de recolher o tributo e repassar o preço aos compradores, impedindo–a, inclusive, de
incorporar seu ônus econômico ao valor dos combustíveis.

A Consulente tentou, de todas as formas juridicamente possíveis, recolher o


tributo, mas não obteve sucesso: o Poder Judiciário a impediu de fazer o recolhimento
e o repasse, como determinava a lei. Restou com isso rompido o elo econômico entre
o contribuinte de direito e os contribuintes de fato.

Rompido o elo jurídico-econômico – por força da interferência jurisdicional – o


contribuinte de direito perdeu em definitivo a capacidade econômica para suportar o
tributo – deixou de ter capacidade contributiva para tanto.
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Observe-se, novamente, que no regime legal da CIDE-Combustíveis é


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exclusivamente o repasse econômico de seu custo incorporado ao preço dos

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combustíveis vendidos para as distribuidoras que assegura a existência de


capacidade contributiva.

Isso satisfez os contribuintes de fato, que puderam adquirir os combustíveis


sem suportar o valor da CIDE. Eles não precisaram arcar com o peso econômico da
contribuição, conforme previsto em lei, porque o Poder Judiciário afastou a aplicação
da lei naquelas situações objeto de medida judicial.

O resultado é que o tributo não foi recolhido pela Consulente nem teve seu
custo econômico repassado aos contribuintes de fato, na sistemática originalmente
concebida pela norma tributária de regência. Quem deveria arcar com o custo
econômico do tributo ficou livre dessa imposição, por força das liminares.

Fraturou-se, de direito e de fato, a sistemática da CIDE-Combustíveis.

1.2.1. As liminares concedidas e sua irreversibilidade

Essa fratura do modelo legal do tributo deu-se como efeito concreto de medidas
liminares satisfativas mas potencialmente irreversíveis. Aqui se faz necessária breve
explicação lógico-conceitual.

Há uma confusão comum no processo tributário entre liminar satisfativa e


liminar irreversível. A satisfatividade é da essência das liminares de antecipação de
tutela: ao adiantar integral ou parcialmente o pedido final formulado pelo contribuinte
o juiz, em maior ou menor medida, necessariamente “satisfaz” de forma antecipada a
entrega do bem jurídico em disputa: “A satisfatividade, longe de se afigurar como
requisito impeditivo da concessão, é condição lógica da existência da antecipação de
tutela. A satisfatividade é meramente fática; o provimento antecipatório adianta
apenas efeitos práticos de provável decisão futura. Se não houver satisfatividade, total
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ou parcial, não há antecipação de tutela. Antecipar os efeitos práticos da futura


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sentença, em termos processuais, significa satisfazer total ou parcialmente o provável


efeito prático.”1

Assim, em medidas de antecipação de tutela – inclusive as liminares


concedidas em mandado de segurança – dá-se a satisfação provisória, total ou
parcial, do pedido.

Isso não significa que a satisfação seja irreversível – ao contrário. O risco de


irreversibilidade da medida impede a concessão da liminar, porque ao juiz não é lícito,
exceto em situações excepcionais, conceder liminarmente ordens precárias
incapazes de sofrer reversão. De fato, a irreversibilidade é requisito negativo da
medida liminar, ou, por outro modo de dizer, se a liminar for dotada de irreversibilidade,
não deve ser concedida.

Como já dissemos:

”A irreversibilidade do provimento antecipatório é requisito


negativo para a concessão da liminar de antecipação de tutela
jurisdicional. Dizer-se que se constitui em requisito negativo significa que
a possibilidade de irreversibilidade dos provimentos deve estar ausente
sob pena de estar o magistrado impedido de concedê-la.”2

A irreversibilidade dos provimentos liminares não é comum no âmbito tributário.


Com efeito, a mera suspensão da exigibilidade do tributo raríssimamente produzirá
efeitos definitivos. No entanto, no caso sub examen, as liminares foram concedidas
de tal forma que seus efeitos se tornaram irreversíveis, justamente por interferir na
estrutura jurídico-econômica da CIDE-Combustíveis.

Isso ocorreu por diversas razões:


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1 Marins, James. Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial) 7ª edição. Dialética,
Página

2014, p. 670.
2 Marins, James. Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial) 7ª edição. Dialética,

2014, p. 669.

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(a) as liminares foram concedidas para contribuintes de fato (distribuidores);


(b) tiveram como efeito impedir a repercussão econômica da CIDE pelos
contribuintes de direito (produtor);
(c) tais ordens fraturaram a estrutura jurídico-econômica do tributo;
(d) houve rompimento definitivo do elo entre o contribuinte de direito e o
contribuinte de fato;
(e) semelhante ruptura atingiu de forma permanente a capacidade contributiva
do contribuinte de direito;
(f) desse modo a fratura estrutural da contribuição, decorrente das liminares,
revelou-se irreversível.

O resultado final das liminares solicitadas pelas distribuidoras (contribuintes de


fato) – quer tenham sido elas mantidas ou cassadas – foi impedir definitivamente que
o comando legal original da CIDE possa prosperar, porque o suporte jurídico-
econômico da norma tributária foi rompido. Com as ordens judiciais deferidas tornou-
se impossível para o contribuinte de direito (Petrobras) realizar a repercussão
econômica prevista na lei.

Uma vez fraturada essa estrutura jurídico-econômica do tributo, deixa de existir


a capacidade contributiva que torna legal e constitucional sua cobrança.

Isso quer dizer, em última análise, que os pedidos liminares formulados pelos
contribuintes de fato, quando concedidos, modificaram a estrutura jurídica e
econômica do tributo – comprometendo irreversivelmente sua possibilidade de
cobrança do contribuinte de direito.

E o fato concreto é que a Consulente nada pôde fazer para impedir esse
nefasto efeito. A Consulente não solicitou nem tampouco deu causa às medidas
judiciais e sofreu os efeitos de pedidos formulados por contribuintes de fato, sob pena
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de desobediência.
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Mas, apesar da ostensiva incongruência do quadro jurídico-processual, a


Receita Federal do Brasil promoveu gravosa autuação fiscal.

1.3. A primeira autuação

Com a cassação das liminares, a Receita Federal do Brasil constituiu crédito


tributário em face da Consulente com a finalidade de exigir o pagamento de Cide-
Combustíveis não recolhida nem tampouco repassada, por força das ordens judiciais.

A prosperar essa cobrança, a Consulente terá que recolher tributo (acrescido


de juros e multa) que deveria ter tido seu peso econômico suportado por adquirentes
que, em sua maioria, sequer existem atualmente. Ou seja: a Consulente arcará com
custo tributário que não é legalmente seu. A Consulente será contribuinte de fato de
um tributo legalmente concebido para atingir, de fato, terceiros. Como os combustíveis
que deveriam ter sido tributados já foram vendidos há muitos anos, não há condição
de fazer qualquer repasse, como determina o artigo 7.° da Lei n. 10.336/2001. Assim,
a cobrança subverte o peso econômico da Cide-Combustíveis, fazendo com que
recaia sobre uma pessoa para a qual a lei não reservou esse destino.

Como se vê, a cobrança, em primeiro lugar, fere o Direito Tributário material,


ao impor custo econômico a quem a Lei não impõe.

Em segundo lugar, porém, essa cobrança também fere o Direito Processual


Tributário, à medida que impõe sanções e sacrifícios econômicos a alguém que tentou
cumprir suas obrigações legais de recolhedor do tributo e de repassador do respectivo
custo tributário aos compradores mas foi impedido de fazê-lo, pelo Poder Judiciário,
em processos judiciais dos quais não foi parte. A cobrança fere, assim, a eficácia
subjetiva da coisa julgada, ao impor efeitos danosos a terceiros que não foram parte
nos processos nos quais essa situação especial e peculiar foi construída.
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1.4. O processo administrativo

Por conta da evidente dupla ilegalidade da cobrança, a Consulente opôs


impugnação administrativa, julgada improcedente, em primeira instância, pela
Delegacia Regional de Julgamento. Contra essa decisão, a Consulente interpôs
recurso voluntário dirigido ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF,
também julgado improcedente. Então, a Consulente interpôs Recurso Especial à
Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF, pedindo expressamente o
reconhecimento da nulidade da decisão do CARF e o retorno dos autos à segunda
instância para novo julgamento.

Esse Recurso Especial, que requer a nulidade da decisão de segunda


instância no processo administrativo, pende de exame pela CSRF.

1.5. O desmembramento da cobrança e o novo lançamento de ofício

Realizando inoportuno juízo de valor sobre o Recurso Especial interposto, a


Secretaria da Receita Federal do Brasil no Rio de Janeiro, por meio da Divisão de
Orientação e Análise Tributária da Delegacia de Maiores Contribuintes no Rio de
Janeiro (DEMAC/RJO), entendeu que o Recurso Especial tinha abrangência limitada,
embora, expressamente, aquele recurso peça o reconhecimento da nulidade da
decisão de segunda instância – de toda a decisão, não de parte dela. Entendeu, ainda,
a Receita Federal, que a decisão de segunda instância havia se tornado definitiva –
embora permaneça, até hoje, na pendência de decisão sobre recurso que pede sua
nulidade. Em consequência, lançou de ofício o crédito tributário relativo à parcela que
entendeu não abrangida pelo Recurso Especial.

Esse é o crédito sub-judice na ação judicial para a qual este parecer foi
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solicitado.
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1.4. Síntese parcial da situação fática

Fica claro, então, que a situação fática em exame é peculiar sob, pelo menos,
dois pontos de vista fundamentais.

Sob o ponto de vista do Direito Tributário material, o peso econômico da Cide-


Combustíveis está sendo imposto à Consulente, pessoa que, na sistemática da Lei
n. 10.336/2001, não o deve suportar, pois, por força jurisdicional, lhe foi suprimida
em definitivo a possibilidade prevista em lei de repassar o ônus econômico tributário,
solapando-lhe a capacidade contributiva.

Sob o ponto de vista do Direito Processual tributário, esse peso econômico


está sendo imposto, à Consulente, como decorrência de processo judicial no qual a
Consulente não foi parte; como decorrência de ordens judiciais que a impediram de
recolher e repassar o tributo aos contribuintes de fato, aqueles que deveriam, por força
da lei, arcar com o custo econômico do tributo; ordens judiciais essas proferidas em
processos dos quais a Consulente não foi parte e diante das quais, mesmo assim,
tentou por todos os meios juridicamente disponíveis fazer o devido recolhimento e
repasse.

O tributo, em suma, está sendo cobrado (a) de quem, pela lei, não o deve e
(b) de quem tentou cumprir o que a lei lhe determinava mas foi impedido de fazê-lo
por liminares em processos dos quais não foi parte.

Contra essa cobrança foi movida ação anulatória que, depois de sentença
pela parcial procedência, encontra-se em grau de recurso de apelação.

2. O DESMEMBRAMENTO DA COBRANÇA
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A constituição definitiva do crédito tributário, na esfera administrativa, está


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associada com a exigibilidade do crédito tributário, pois, se apresentada impugnação

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administrativa pelo sujeito passivo, só será exigível o crédito tributário quando houver
decisão definitiva no processo administrativo.

No âmbito do processo administrativo fiscal federal, o artigo 9.º do Decreto n.º


70.235/1972 prescreve que a exigência relativa ao crédito tributário será formalizada
por meio de auto de infração ou notificação para lançamento. A partir da intimação do
contribuinte acerca dessa exigência fiscal, abre-se prazo de 30 dias para pagamento
ou impugnação que, se apresentada, instaura o contencioso administrativo (Decreto
n.º 70.235/1972, art. 14). Se impugnado no prazo, o crédito tributário ainda não está
definitivamente constituído – não sendo, portanto, exigível. O crédito fica com
exigibilidade suspensa (CTN, art. 151, III).

Nesse sentido, leciona, por todos, Hugo de Brito Machado:

...as reclamações e os recursos na via administrativa são


necessariamente anteriores à constituição definitiva deste. São
interpostos em momento no qual não existe ainda a exigibilidade
e por isto se diz que operam a sua suspensão prévia, ou
preventiva. E talvez seja mais adequado dizer-se que se opera
o impedimento da exigibilidade, pois na verdade a interposição
de reclamações ou recursos impede que a exigibilidade venha a
nascer.3

Corretíssima a lição doutrinária.4 A constituição definitiva do crédito tributário,


e consequentemente sua exigibilidade, dependem, a partir da impugnação
administrativa, de decisão definitiva no âmbito do processo administrativo fiscal.

3 Machado, Hugo de Brito. Comentário ao Código Tributário Nacional, Atlas, 2005, Volume III, p. 223.
4 Vejam-se também, sobre a função de garantia da suspensão da exigibilidade pelos recursos os
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aportes doutrinários de Machado Segundo, Seixas Filho, Cleucio Nunes e Alberto Xavier: “Em
homenagem ao princípio da segurança jurídica e da impossibilidade de serem perenizados os conflitos,
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o processo administrativo, assim como o processo judicial, possui um número finito de recursos, e
hipóteses específicas nas quais tais recursos são cabíveis. Esgotados todos os recursos, ou não
interpostos os ainda eventualmente indisponíveis, diz-se que a decisão administrativa é definitiva.”

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A impugnação instaura o contencioso administrativo (art. 14) e cabe ao


impugnante definir sua extensão. Com efeito, o artigo 21, § 1.° do Decreto n.º
70.235/1972, admite que o crédito tributário seja total ou parcialmente impugnado:

Art. 21. Não sendo cumprida nem impugnada a exigência, a


autoridade preparadora declarará a revelia, permanecendo o
processo no órgão preparador, pelo prazo de trinta dias, para
cobrança amigável. (Redação dada pela Lei nº 8.748, de 1993)

§ 1º No caso de impugnação parcial, não cumprida a exigência


relativa à parte não litigiosa do crédito, o órgão preparador, antes
da remessa dos autos a julgamento, providenciará a formação
de autos apartados para a imediata cobrança da parte não

(Machado Segundo, Hugo de Brito. Processo Tributário, 5ª edição, São Paulo, Editora Atlas, 2010, p.
176). “Considerando-se, então, somente estar definitivamente constituído o crédito tributário, quando
não possa mais ser impugnado pelo sujeito passivo, a contagem do prazo prescricional será iniciada
quando esgotados os efeitos dos recursos administrativos ou preclusos os prazos para recorrer.”
(Seixas Filho, Aurélio Pitanga. Estudos de Procedimento Administrativo Fiscal, Freitas Bastos Editora,
pp. 302-303).“De outro lado, as reclamações e os recursos administrativos do processo tributário têm
o condão de suspender a exigibilidade do crédito tributário (CTN, art. 151, III). Isto quer dizer, enquanto
não for decidido definitivamente o processo administrativo de lançamento de ofício, a Fazenda Pública
está impedida de exigir o crédito tributário. Dito de outro modo, não poderá inscrever na dívida ativa
para obtenção do título executivo e, posteriormente, cobrar o crédito tributário por meio de execução
fiscal.” (Nunes, Cleucio Santos. Teoria e Prática do Processo Tributário, Dialética, São Paulo, 2002,
p.283). “Um outro traço do regime jurídico da impugnação administrativa que revela bem a sua função
subjetiva ou ‘garantística’ consiste na atribuição a essa impugnação de efeito suspensivo, ou seja, de
suspender a exigibilidade do crédito tributário ‘construído’ pelo ato administrativo primário em que o
lançamento se traduz. É o que resulta do art. 151, inciso III, do Código Tributário Nacional, segundo o
qual suspendem a exigibilidade de crédito tributário ‘as reclamações e os recursos, nos termos das leis
reguladoras do processo tributário administrativo’. Quer isto dizer que, na ponderação entre o interesse
público na imediata execução do ato tributário e o interesse privado na suspensão, prevalece este
último. Como diz Freitas do Amaral, a desvantagem resultante para o particular da prática do ato
impugnado cessa temporariamente até que o órgão <<ad quem>> se pronuncie sobre o caso. Quer
dizer: pelo simples fato de alguém atacar o ato administrativo, fica paralisada a sua eficácia no intuito
de evitar que o prejuízo do particular se consume antes de o superior hierárquico (‘o órgão de
julgamento’, dizemos nós) poder reapreciar o ato em causa. Ora – conclui Freitas do Amaral – se a
função do recurso fosse apenas a de proteger os interesses gerais, não faria sentido que a sua
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interposição suspendesse a eficácia do ato impugnado, pois a reparação da legalidade objetiva é


sempre possível após a execução do ato ilegal.” (Xavier, Alberto. Do lançamento Teoria Geral do Ato
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do Procedimento e do Processo Tributário, 2ª edição, Rio de Janeiro, 1998, Editora Forense, pp. 343-
344).

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contestada, consignando essa circunstância no processo


original. (Redação dada pela Lei nº 8.748, de 1993)

No momento da apresentação da impugnação define-se a extensão do


contencioso administrativo. No caso presente, foi apresentada impugnação
contestando integralmente o crédito tributário. A lide administrativa, então, foi
instaurada em relação a todo o crédito tributário.

No início do processo administrativo, todo o crédito tributário foi questionado


e, em relação a esse crédito total, era necessária decisão administrativa.

Foi adotada decisão em primeira instância, objeto de recurso voluntário


interposto no prazo. Foi proferida decisão em segunda instância, objeto de Recurso
Especial também interposto no prazo. Esse Recurso Especial requer a nulidade da
decisão de segunda instância.

Pendente de Recurso Especial que requer a nulidade da decisão de segunda


instância, o crédito tributário impugnado administrativamente segue sub judice na
esfera administrativa, pendente de decisão administrativa definitiva, que ainda não
existe. Portanto, não está ainda definitivamente constituído o crédito tributário que,
por isso, não pode ser cobrado.

Essa conclusão se impõe por conta do disposto no artigo 42 do Decreto n.º


70.235/1972:

Art. 42. São definitivas as decisões:


I - de primeira instância esgotado o prazo para recurso voluntário
sem que este tenha sido interposto;
II - de segunda instância de que não caiba recurso ou, se
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cabível, quando decorrido o prazo sem sua interposição;


III - de instância especial.
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Da decisão de primeira instância, no caso sob exame, houve recurso ao


CARF; logo, aquela não foi uma decisão definitiva. Esse fato é incontroverso no caso
aqui discutido. A decisão de instância superior (CSRF) ainda não existe, de modo que
também aqui não há decisão definitiva. Assim, afigura-se incontroverso que os incisos
I e III acima transcritos não se aplicam à situação presente.

Da decisão de segunda instância, proferida pelo CARF, cabia recurso e ele


foi interposto no prazo; logo, a decisão do CARF também não foi uma decisão
definitiva.

Em primeiro lugar, cabia Recurso Especial porque a decisão não se


enquadrava em nenhuma das hipóteses de não cabimento, previstas no artigo 67, §
2.°, do Regimento Interno do CARF:

Não cabe Recurso Especial de decisão de qualquer das turmas


que aplique súmula de jurisprudência dos Conselhos de
Contribuintes, da Câmara Superior de Recursos Fiscais ou do
CARF, ou que, na apreciação de matéria preliminar, decida pela
anulação da decisão de primeira instância.

Não sendo nenhum desses o caso aqui examinado, cabe recurso.

Em segundo lugar, o recurso foi interposto no prazo, aspecto fático sobre o


qual não há notícia de qualquer controvérsia.

Conclui-se, portanto, que não há decisão definitiva no processo administrativo


a autorizar a cobrança do crédito tributário.

A Receita Federal do Brasil, no entanto, sustenta que parte da decisão de


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segunda instância não foi objeto de recurso. Esse entendimento é equivocado e as


consequências dele retiradas são processualmente insustentáveis. É importante
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detalhar os três argumentos, que são independentes e conduzem, todos, à mesma


conclusão, pela ilegalidade do procedimento adotado pela Receita Federal.

2.1. A abrangência total do Recurso Especial

Em primeiro lugar, a decisão de segunda instância está sob questionamento


em Recurso Especial que pede sua nulidade total, não apenas parcial. Em caso de
procedência do Recurso Especial, o CARF deverá realizar novo julgamento,
substituindo toda a decisão de segunda instância já tomada por outra nova.

Na interpretação equivocada da Receita Federal do Brasil, o Recurso Especial


dirigido à CSRF teria sido parcial, porque não teria impugnado o valor correspondente
ao principal lançado no auto de infração, restringindo-se somente à impugnação dos
juros e multa de mora. Eis a fundamentação do agente fiscal:

...no entanto, devemos observar que a fundamentação desse


Recurso Especial ateve-se à divergência constatada na
interpretação da questão de se houve ou não preclusão do
direito da recorrente de discutir a incidência dos juros moratórios
e da multa de ofício...
Desse modo, e se for o caso, podemos considerar inócua a parte
do Recurso Especial do contribuinte que não foi objeto de
decisões divergentes no âmbito do CARF, como no caso da
discussão quanto ao valor principal lançado que, assim, estaria
fora da possibilidade de novo julgamento. Assim, o alcance do
Recurso Especial do contribuinte seria apenas a parcela do
crédito tributário relativa aos juros e à multa de ofício...
Assim, podemos afirmar que, se a arguição de divergência
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atinge apenas indiretamente a matéria que versa sobre a


preclusão do direito de se questionarem juros e multa, nela não
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chega a tocar em nenhum ponto o direito de se questionar o

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valor principal do crédito tributário, que fica, por essa razão, fora
do escopo do Recurso Especial.

Basta analisar o Recurso Especial para detectar o equívoco dessa


interpretação. O Recurso Especial pugna pela anulação do acórdão recorrido, para
que outro seja proferido em seu lugar, sanando-se as omissões apontadas nos
embargos de declaração que deixaram de ser apreciadas. Eis o pedido, na conclusão
do Recurso especial:

...requer a V. Exas seja conhecido e provido o presente Recurso


Especial, para fazer prevalecer a interpretação jurídica contida
nos v. acórdão paradigmas n°. 9101-00.514 e 9101-00-525,
proferidos por essa C. Câmara de recurso fiscais, com o fito de
declarar nulo o v. acórdão recorrido, determinando-se que
outro seja lavrado em seu lugar, desta vez com a devida
apreciação acerca do cabimento ou não da multa e dos juros de
mora lançados no auto de infração”.

Duas são as soluções que podem advir do julgamento desse recurso:

(i) não conhecer e/ou desprover o Recurso Especial, hipótese em que a


decisão administrativa proferida pelo CARF se tornaria definitiva a partir da intimação
do recorrente dessa decisão da CSRF e do transcurso de qualquer prazo recursal;

(ii) conhecer e prover o Recurso Especial, caso em que o acórdão seria


anulado para que outro fosse proferido em seu lugar, com o saneamento das
omissões existentes no acórdão anterior. Após a intimação do novo acórdão, caso
mantenha a cobrança do tributo, seria reaberto prazo para interposição de novo
Recurso Especial, a critério da Consulente, possibilitando a discussão tanto do
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principal, quanto de juros, multa ou qualquer outra matéria. Está claramente


equivocada a conclusão da Receita Federal do Brasil segundo a qual a discussão
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sobre a parcela relativa ao principal estaria preclusa.

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Em nenhuma dessas duas hipóteses é admissível considerar que qualquer


parte da decisão de segunda instância já se tenha tornado definitiva, porque, em
qualquer caso, a avaliação depende de decisão ainda a ser tomada pela CSRF em
instância especial. A decisão de segunda instância está sub examen na esfera
administrativa e, portanto, não se tornou definitiva. A eventual nulidade da decisão
administrativa implica, necessariamente, reabertura dos prazos recursais, sendo
descabido cogitar-se de decisão definitiva.

Deve-se ressaltar que o pedido da Consulente no Recurso Especial, de que


seja declarada nula a decisão de segunda instância, tem amparo legal no artigo 59,
II, do Decreto-lei n.º 70.235/1972:

Art. 59. São nulos:


...
II - os despachos e decisões proferidos por autoridade
incompetente ou com preterição do direito de defesa.

A Consulente entende, e assim sustentou no Recurso Especial, que o acórdão


recorrido preteriu seu direito de defesa. Pede a nulidade para que outra decisão seja
proferida em seu lugar com amparo legal na norma processual. Cabe à CSRF decidir
se o pedido é procedente. Enquanto não decidir, não há decisão definitiva em segunda
instância, pois essa decisão, em sua unidade e totalidade, foi combatida pelo Recurso
Especial.

Como se vê, claramente, a decisão de segunda instância não pode ter se


tornado definitiva, nem no todo, nem em parte, porque toda ela está submetida à
esfera administrativa, por força do Recurso Especial à CSRF que requer a declaração
de sua nulidade.
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2.2. A previsão legal que impede interpretar-se a decisão de segunda instância


como objeto de recurso parcial

Em segundo lugar, ainda que o dito acima não fosse verdadeiro, isto é,
mesmo que parte da decisão de segunda instância não houvesse sido objeto de
recurso, isso não transformaria aquela decisão em definitiva, por impossibilidade legal.

O Decreto n. 70.235/1972 exclui, das decisões de segunda instância, a


possibilidade de se tornarem definitivas se parte delas não for objeto de recurso.
Expressamente, o artigo 42, parágrafo único, reserva essa possibilidade apenas à
decisão de primeira instância, e não à decisão de segunda instância:

Parágrafo único. Serão também definitivas as decisões de


primeira instância na parte que não for objeto de recurso
voluntário ou não estiver sujeita a recurso de ofício.

Assim, não há previsão legal a autorizar o desmembramento, pela


Administração, da cobrança para entender parte do crédito tributário como definitivo
em função de Recurso Especial supostamente parcial. Quisesse o legislador submeter
a decisão administrativa de segunda instância ao mesmo regime jurídico da primeira,
e não teria restringido a aplicação do dispositivo no parágrafo único. A Administração
Pública, afeta que está ao princípio da legalidade (CF, art. 37, caput), não pode
negligenciar uma diferenciação feita expressamente pelo Poder Legislativo.

A Divisão de Orientação e Análise Tributária da Delegacia de Maiores


Contribuintes no Rio de Janeiro (DEMAC/RJO) e a Divisão de Controle e
Acompanhamento Tributário (DICAT) não detêm competência para dizer qual é a
extensão o Recurso Especial e tampouco para decidir se o julgado administrativo
recorrido era ou não definitivo em relação ao valor principal.
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Cabe à Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) admitir e julgar Recurso


Especial de acordo com o artigo 18, III e com o artigo 67, ambos do Regimento Interno
do CARF:

Art. 18. Aos presidentes de Câmara incumbe, ainda:


...
III - admitir ou negar seguimento a Recurso Especial, em
despacho fundamentado.

Art. 67. Compete à CSRF, por suas turmas, julgar Recurso


Especial interposto contra decisão que der à lei tributária
interpretação divergente da que lhe tenha dado outra câmara,
turma de câmara, turma especial ou a própria CSRF.

Se a competência para admitir e julgar o Recurso Especial administrativo é da


CSRF, cabe a ela também aferir a extensão do recurso, pois essa delimitação faz
parte do juízo relativo a admissibilidade e de mérito do próprio recurso. O ato praticado
por agente incompetente é inválido e não produz qualquer efeito jurídico5. É o caso
dessa apreciação subjetiva da extensão do Recurso Especial feita pela fiscalização
tributária.

Além disso, de acordo com a disciplina contida no Regimento Interno do


CARF, essa admissibilidade pode ser total ou parcial. Mas mesmo que possam haver
matérias autônomas no bojo do recurso especial administrativo, e que estejam de tal
modo separadas que possam ensejar admissibilidade meramente parcial, não se
pode deixar de atender a seus requisitos intrínsecos: autoridade competente e
despacho fundamentado, sob pena de insanável nulidade.

Já tivemos a oportunidade de afirmar:


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5MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros,
2002, p. 350.

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Os arts. 68 a 71 do RICARF disciplinam a interposição do


recurso especial e estabelecem o rito a ser seguido quando da
apreciação de sua admissibilidade. De acordo com os dispositivos
regimentais, cumprirá ao presidente da câmara recorrida - em
despacho fundamentado - admitir ou negar seguimento ao
recurso. Prevê o regimento que a admissibilidade poderá ser total
ou parcial, quando houver matérias autônomas.6

Isso significa que não há hipótese na qual se possa prescindir de decisão da


própria CSRF sobre a extensão do recurso a ele dirigido.

Mais: ao restringir a aplicação do regime previsto no parágrafo único apenas


para as decisões de primeira instância, o comando normativo deixa claro e inequívoco
inexistir hipótese de decisão administrativa definitiva em segunda instância enquanto
houver Recurso Especial pendente de julgamento, independentemente de sua
extensão. Enquanto a CSRF não apreciar o Recurso Especial, com o cumprimento de
todas as formalidades e ritos legais, não existirá decisão definitiva na esfera
administrativa e, consequentemente, a exigibilidade do crédito tributário estará
suspensa por força do artigo 151, III do CTN, impossibilitando qualquer cobrança
judicial. Pendente, o Recurso Especial, de julgamento pela CSRF, não há constituição
definitiva do crédito tributário na esfera administrativa.

2.3. A consequência inaceitável – inclusive para o Fisco – da interpretação


contra legem adotada pela Receita Federal

Em terceiro lugar, entender como o faz a Receita Federal é admitir que cabe
à fiscalização tributária formular juízo subjetivo sobre a abrangência do Recurso
Especial à CSRF, para apurar se parte da decisão de segunda instância não foi objeto
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6Cf. nosso Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial). São Paulo: Dialética, 7ª.
Ed., 2014, pp. 325-326.

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do Recurso, ou, em outras palavras, para apurar se parte do crédito já se tornou


definitivo e, com isso, se o prazo prescricional já começou a correr.

Aceito esse entendimento, a consequência necessária é que todas as


execuções fiscais decorrentes de lançamentos feitos após decisão da CSRF estarão
sob suspeita de prescrição caso o seu ajuizamento tenha se dado após cinco anos do
julgamento de segunda instância objeto de Recurso Especial.

Veja-se a gravidade do entendimento da Receita Federal.

Estamos sustentando que descabe esse juízo subjetivo para avaliar se parte
da decisão de segunda instância não foi objeto de recurso. Descabe, precisamente,
para dar segurança jurídica à Administração Tributária, que não deve ficar à mercê de
subjetividades e de interpretações. Não é razoável impor ao fiscal tributário o ônus de
interpretar um Recurso Especial que não lhe foi dirigido, para decidir se há ou não
parte da decisão que se tivesse tornado definitiva.

De duas, uma. Caso o fiscal subjetivamente decida que não há parcela


tornada definitiva, porque entendeu o Recurso Especial era total, e depois a CSRF
vier a decidir que o Recurso não atacou todos os pontos da decisão de segunda
instância, a conclusão seria a de que a parte não recorrida se tornou definitiva, tendo-
se iniciado, naquele momento passado, a contagem do prazo prescricional, que já
pode ter fluído.

Caso o agente fiscal subjetivamente decida que há parcela tornada definitiva,


porque entendeu que o Recurso Especial era parcial, e depois a CSRF vier a decidir
que o Recurso atacava todos os pontos da decisão de segunda instância, a conclusão
seria de que a parte entendida como definitiva não o era, que o lançamento era
inválido, impondo à Administração Tributária os ônus da sucumbência no processo
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judicial que vier a contestar o lançamento ou mesmo em eventual execução fiscal que
teria sido aforada prematuramente.
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É exatamente para prevenir essas situações de insegurança relativa ao


crédito tributário que a lei não impõe à fiscalização tributária o ônus de interpretar a
amplitude e o alcance do Recurso Especial para verificar se há ou não parcela da
decisão tornada definitiva. A lei resguarda a Administração Tributária, ao excluir
qualquer possibilidade de que parte da decisão da segunda instância tenha se tornado
definitiva. Tendo sido atacada por Recurso Especial, aquela decisão de segunda
instância fica latente, esperando confirmação, reforma ou anulação pela CSRF em
instância especial. No caso presente, apenas essa decisão em sede de recurso
especial administrativo poderá se tornar definitiva e, aí sim, iniciar-se, se for o caso, o
prazo prescricional para ajuizamento da execução fiscal.

Caso não se entenda dessa forma, é preciso que a Receita Federal do Brasil
assuma as consequências perigosíssimas de se aceitar – contra legem – a existência
de competência da fiscalização tributária para eleger, subjetivamente, o conteúdo, o
sentido e o alcance do Recurso Especial que não lhe foi dirigido.

A consequência é a imediata suspeita sobre todas as execuções fiscais, em


andamento ou já concluídas, baseadas em crédito tributário decorrente de decisão da
CSRF contrária ao contribuinte. Em cada uma dessas execuções será preciso
averiguar se o Recurso Especial foi parcial e, caso tenha sido, se o lançamento foi
feito no prazo decadencial e se a execução foi ajuizada no prazo prescricional. Caso
aceito, o entendimento defendido – insista-se, contra legem – pela Receita Federal
implicará a revisão de milhares, senão milhões, de execuções fiscais Brasil afora.

A lei não fraciona a eficácia do recurso especial administrativo justamente


para não permitir o fluxo prematuro dos prazos que decorrem da definitividade da
decisão.

De nossa parte estamos convictos de que a lei não impõe esse ônus à
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fiscalização tributária, e não o faz exatamente no interesse da preservação do crédito


tributário.
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2.4. Síntese parcial

Não há hipótese legal de se aceitar a constituição definitiva de nenhuma


parcela do crédito tributário, o que significa que o desmembramento da decisão de
segunda instância é inválido.

O entendimento da Receita Federal é inválido tanto porque decorre de


interpretação equivocada do conteúdo do Recurso Especial, que é total e não parcial,
quanto porque é feita violando o art. 42, parágrafo único, do Decreto n.° 70.235/1972,
que – no interesse da segurança da Administração Pública e do crédito tributário –
exclui do fiscal o ônus e a possibilidade de interpretar o conteúdo, o sentido e o
alcance de Recurso Especial para considerar parcialmente definitiva a decisão de
segunda instância.

Frente a esses fundamentos, afigura-se ilegal a decisão administrativa que


cindiu a cobrança com fundamento na aplicação do inciso II do artigo 42 do Decreto
n.º 70.235/1972, pois, tendo sido interposto Recurso Especial ainda não julgado, não
existe decisão administrativa definitiva de segunda instância e, por consequência, não
existe crédito tributário definitivamente constituído.

Como o crédito tributário ainda continua com a exigibilidade suspensa na


forma do artigo 151, III, do CTN, são nulos todos os atos administrativos que lhe são
subsequentes, como a inscrição da dívida em CDA e o executivo fiscal lastreado neste
título executivo extrajudicial.

3. A AUSÊNCIA DE DEVER DA CONSULENTE EM ARCAR COM O CUSTO


ECONÔMICO DA CIDE-COMBUSTÍVEIS
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Retornemos ao tema inicial. Já evidenciamos que embora a Consulente seja


contribuinte da Cide-Combustíveis, ela não é obrigada a suportar o custo econômico
exclusivo do tributo, como pretende a Receita Federal do Brasil no caso em exame.

Compreender esse ponto fundamental depende do exame da lei de regência


desse tributo, o que faremos com mais espaço no tópico que segue.

3.1. A sujeição passiva na Lei n. 10.336/2001: contribuinte de fato e contribuinte


de direito

A Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico foi instituída com


fundamento na Constituição Federal, mais especificamente no artigo 149, caput, que
traz a previsão genérica para tributos dessa espécie, e no artigo 177, § 4.°, que traz
regras próprias para a Cide-Combustíveis.

Com fundamento nesses preceitos, foi editada a Lei n. 10.336/2001, que, em


seu artigo 1.°, caput, prescreve:

Art. 1o Fica instituída a Contribuição de Intervenção no Domínio


Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de
petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool
etílico combustível (Cide), a que se refere os arts. 149 e 177 da
Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda
Constitucional no 33, de 11 de dezembro de 2001.

A nota peculiar das contribuições, e dentre elas as de intervenção no domínio


econômico, é a finalidade que as caracteriza, específica, diferente dos impostos, nos
quais a finalidade é, ordinariamente, a arrecadação para fins gerais.
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A Cide Combustíveis, enquanto contribuição especial, reúne diversos traços


singulares que desafiam a doutrina7. Mas para os limites do presente parecer a
principal característica reside no desenho legal de sua incidência, por alguns
denominada de monofásica e que preferimos qualificar de concentrada.

De fato, por razões de praticidade da arrecadação, a cobrança da Cide-


Combustível foi concentrada nos produtores, formuladores e importadores dos
combustíveis, considerando-se a dificuldade e a onerosidade de se fiscalizar todos os

7 Já se disse que as contribuições especiais são tributos de características singulares. Para Paulo
Roberto Lyrio Pimenta: “...o traço característico das contribuições especiais no direito brasileiro é que
são exações instituídas para alcançar determinados fins qualificados constitucionalmente”
(Contribuições de intervenção no domínio econômico. São Paulo: Dialética, 2002, p. 17). Ensina
Marco Aurélio Greco: ”Nesta norma atributiva de competência para instituir a exação, tipifica-se uma
validação finalística de modo que as leis instituidoras estarão em sintonia com a Constituição, e dentro
do respectivo âmbito de competência, se atenderem às respectivas finalidades identificadas a partir
das “áreas de atuação” qualificadas pelo art. 149” (Contribuições: uma figura “sui generis”. São Paulo:
Dialética, 2001, p. 135). Nas contribuições de intervenção no domínio econômico, a finalidade do tributo
será, sem dúvida, a intervenção na economia, que pode se dar de duas formas: ou pela própria
incidência, que orienta condutas por meio da extrafiscalidade, ou pela destinação do produto
arrecadado. Explica, a respeito, Marco Aurélio Greco: “No campo econômico, a “atuação” da União
pode consistir numa atuação material ou numa atuação de oneração financeira. Se a atuação for
material, a contribuição servirá para fornecer recursos para o exercício das atividades pertinentes e
para suportar as despesas respectivas; se a atuação for no sentido do equilíbrio ou equalização
financeira, a contribuição será o próprio instrumento da intervenção” (Contribuições: uma figura “sui
generis”. São Paulo: Dialética, 2001, p. 236). No caso da Cide-Combustíveis, a finalidade de
fornecimento de recursos é evidente e decorre de expressa determinação constitucional. Prescreve,
com efeito, o artigo 177, § 4.°, II, da Constituição: “§ 4º A lei que instituir contribuição de intervenção no
domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus
derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos
(...) II - os recursos arrecadados serão destinados: a) ao pagamento de subsídios a preços ou transporte
de álcool combustível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo; b) ao financiamento de
projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; c) ao financiamento de
programas de infra-estrutura de transportes.” Veja-se que as finalidades são bastante amplas e
beneficiam toda a coletividade, como o financiamento de projetos ambientais e infraestrutura de
transportes. Todos aqueles que comercializam combustíveis promovem degradação ambiental e
dependem da infraestrutura de transportes. Daí a arrecadação dessa Cide-Combustíveis dever ser
compartilhada por todos esses comerciantes. A referibilidade entre sujeito passivo e intervenção, aqui,
decorre do próprio texto constitucional: se a intervenção visa promover projetos ambientais ou de
transporte, reparando os danos ou desgastes promovidos pelos comerciantes de combustíveis, todos
esses comerciantes devem ser sujeito passivo do tributo. Aliás, essa referibilidade não precisa ser
direta. Roque Antonio Carrazza, por exemplo, sustenta: As “contribuições de intervenção no domínio
econômico” só poderão ser exigidas de quem efetivamente vier a se beneficiar atuando num dado setor
econômico ou de quem, ao assim proceder, causar especial detrimento à coletividade (Curso de
direito constitucional tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 530). No caso, o detrimento
ambiental e da infraestrutura de transportes tem causa na relação de comércio de combustíveis, daí a
26

exigência da Cide-Combustíveis dever se dar em relação a todos esses comerciantes. A esse tributo
cabe, perfeitamente, o que ficou decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, em voto da Ministra Eliana
Página

Calmon: “As CIDEs afetam toda a sociedade e obedecem o princípio da solidariedade e da capacidade
contributiva...” (STJ, 1.° Seção, EREsp 705536, Rel. Min. Eliana Calmon, pub. 18/12/2006).

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atos de comércio de combustíveis praticados diariamente em todo o território


brasileiro.

Assim, há um elemento material alcançado pela Cide-Combustíveis: a


comercialização de combustíveis; e há um contribuinte de direito, definido por razões
ligadas à praticabilidade administrativa: o produtor/formulador/importador do
combustível.

Para que esse contribuinte de direito, no entanto, não suporte um ônus


econômico que se aloja em toda a cadeia do extenso ciclo de produção e consumo
de combustíveis, a sistemática de cobrança da Cide permite o repasse desse valor na
venda do combustível aos revendedores.

Então, há os sujeitos passivos da Cide-Combustíveis, na qualidade de


contribuintes, definidos no artigo 2.° da Lei n. 10.336/2001: os produtores, os
formuladores e os importadores dos combustíveis. Os contribuintes de fato serão
aqueles que adquirem os combustíveis para revenda.

A existência de contribuinte de fato na Cide-Combustíveis, diferente do


contribuinte de direito, isto é, de alguém que suportará o ônus econômico do tributo
no lugar do produtor/formulador/importador, é obrigatória e decorre diretamente da lei
que a institui.

Veja-se a redação do artigo 5.°, § 7.° da Lei n. 10.336/2001:

A Cide devida na comercialização dos produtos referidos no


caput integra a receita bruta do vendedor.

Dizer que a Cide integra a receita bruta do vendedor (do atacado) significa
27

dizer que o valor pago a título dessa Cide será incluído no preço dos combustíveis
vendidos, repercutindo economicamente e atingindo, de fato, o comprador dos
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combustíveis que, por sua vez, promoverá a venda no varejo.

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A Cide-Combustíveis incide economicamente sobre o adquirente dos


combustíveis que promoverá a venda no varejo. Sob o ponto de vista econômico, o
tributo é construído para que o adquirente dos combustíveis no atacado, vendedor no
varejo, seja onerado. A capacidade contributiva a ser atingida pela Cide-Combustíveis
é a do vendedor no varejo, não do produtor, formulador ou importador.

Na prática, a primeira etapa do ciclo econômico (produtores, formuladores ou


importadores) funciona apenas como uma instância de aglutinação da incidência da
Cide, concentrando a arrecadação e a fiscalização, atendendo ao interesse da
Administração Pública na praticabilidade da cobrança de tributos.

Essa sistemática é conhecida e não é, aqui, objeto de controvérsia, mas o


problema emerge quando decisões judiciais provocadas por terceiros subvertem o
desenho legal do tributo.

3.2. A eficácia subjetiva da medida judicial

A Consulente está sofrendo a imposição de tributo, sendo coagida a suportar,


com exclusividade, o ônus da Cide-Combustíveis, sem possibilidade de o repassar
para o contribuinte de fato (como deveria ser, de acordo com a Lei e a Constituição),
em virtude de medida judicial da qual não foi parte.

Os contribuintes de fato, nessa condição, ajuizaram medidas judiciais para


impedir a Consulente de recolher a Cide-Combustíveis e de lhes repassar o ônus
econômico no preço de venda no atacado. Essas medidas tiveram como parte no polo
ativo os contribuintes de fato e, no polo passivo, a União. Foi no âmbito dessas
medidas judiciais, nas quais a Consulente não foi parte, que foi construída essa
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situação teratológica na qual a Consulente deve arcar com um custo tributário que
não lhe é imposto pela lei.
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Isso afronta, diretamente, o Código de Processo Civil, que prescreve, em seu


artigo 472, o seguinte:

Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é


dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros.

Interpretando esse preceito, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu:

A eficácia expansiva da sentença não pode prejudicar terceiros.8

A doutrina segue na mesma linha. Moacyr Amaral Santos, por exemplo,


ensina:

Mas afirmar que a sentença, e, pois, a coisa julgada, vale em


relação a terceiros, não quer dizer que possa prejudicar
terceiros. Apenas quer dizer que terceiros não podem
deconhecê-la, não que por ela podem ser prejudicados.9

Humberto Theodoro Junior leciona no mesmo sentido:

A imutabilidade e a indiscutibilidade da sentença não podem


prejudicar, nem beneficiar, estranhos ao processo em que foi
preferida a decisão trânsita em julgado.10

Mas, no caso concreto, a atuação da Receita Federal do Brasil está a fazer


com que a ação judicial prejudique terceiro: a Consulente.

O prejuízo é evidente porque a Consulente está sendo obrigada a arcar com


um custo econômico de tributo, de forma excepcional e contra a legislação de regência
29
Página

8 STJ, 1.° Turma, REsp 1.281.863, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, pub. 16/04/2012.
9 Primeiras linhas de direito processual civil. 21. ed. v. 3. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 75-76.
10 Curso de direito processual civil. 51. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 557.

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da exação, unicamente por conta das medidas judiciais ajuizadas pelos contribuintes
de fato em face da União, em processos nos quais a Consulente não foi parte. Em
outras palavras: a Consulente é terceiro no processo judicial e está sendo, por ele,
prejudicada de forma clara e inequívoca, violando-se frontalmente o disposto no artigo
472 do Código de Processo Civil.

Portanto, a atribuição de responsabilidade econômica exclusiva à Consulente


pela Cide-Combustíveis não recolhida e repassada em função de medida judicial na
qual não foi parte viola não só o Direito Tributário material quanto o Direito Processual.

3.3. O equívoco da sentença recorrida

A sentença recorrida incorreu em sério equívoco ao, de um lado, reconhecer


que o ônus financeiro do tributo não deve recair sobre a Consulente, mas, ao mesmo
tempo, permitir a violação da sistemática do tributo, ao aceitar que esse ônus seja a
ela imposto.

Com efeito, a sentença, inicialmente, reconheceu que o ônus econômico do


tributo não deve, pela sistemática da Cide-Combustíveis, ser suportado pela
Consulente:

Constitui-se a referida contribuição em tributo monofásico, o que


importa dizer que, ainda que o seu recolhimento deva ser
realizado exclusivamente pelas empresas que praticam o fato
gerador (como, por exemplo, a PETROBRAS – na qualidade de
refinaria), são as empresas distribuidoras e os postos de
combustível que acabam por arcar com o ônus financeiro
daquelas, que lhes é repassado nos preços dos produtos,
30

configurando-se, desta forma, o chamado fenômeno da


repercussão econômica.
Página

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Assim, via de regra, a PETROBRAS, uma refinaria produtora de


combustíveis, na qualidade de contribuinte de direito da CIDE,
deveria realizar, mensalmente, o recolhimento aos cofres
públicos dos valores atinentes a tal contribuição, repassando às
empresas distribuidoras – contribuintes de fato do referido tributo
– o custo advindo de tal operação.

No entanto, de forma até surpreendente, mesmo tendo reconhecido que a Lei


não impõe o ônus financeiro do tributo à Consulente, a sentença permitiu que esse
ônus lhe fosse imposto:

Entretanto, em que pese que a contribuição em questão tenha


deixado de ser recolhida em função de decisões judiciais
proferidas em demandas em que a PETROBRAS nem mesmo
chegou a ser parte, o fato é que não há como se afastar da
mesma a qualidade de contribuinte (art. 2 da Lei n 10.336/01),
por não terem as referidas decisões o condão de alterar a
sujeição passiva do tributo.

E, em seguida, aduziu a sentença:

Saliente-se não haver como se criar no caso em tela a figura do


responsável tributário, na medida em que somente a lei poderia
fazê-lo.

Quanto a esse último ponto, o erro da sentença é evidente, uma vez que o
pedido da Consulente não foi formulado para estender a responsabilidade pelo tributo
a outrem. No pedido não consta nada nesse sentido. Em relação ao mérito, o pedido
está assim redigido:
31

Seja, ao final, o presente feito julgado procedente, no sentido de


Página

declarar a nulidade do Processo Administrativo no

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16682.721063/2013-34, decorrente do Processo Administrativo


no 18471.000278/2007-81, e de eventual certidão de dívida ativa
que eventualmente venha a ser emitida ao longo desta
demanda, deixando claro que não há desistência do Processo
Administrativo no 18471.000278/2007-81, pendente de
apreciação de recurso, onde se discute a constituição das
parcelas a título de multa e juros de mora, este último
indevidamente incluídos no Processo Administrativo n.
16682.721063/2013-34.

Como se vê, a ação judicial não requer ao juízo que defina quem dever arcar
com o tributo; apenas, requer a anulação da cobrança dirigida à Consulente.

A Consulente requer, ao Poder Judiciário, que anule processo administrativo


que contém o grave erro de imputar a responsabilidade em recolher um tributo que
não deve recair, financeiramente, sobre ela – inexiste responsabilidade sem causa. A
Consulente requer, ao Poder Judiciário, a invalidação de cobrança de tributo violadora
da sistemática de contribuinte de direito/contribuinte de fato instituída pela Lei n.
10.336/2001 (art. 5. , § 7. ) com amparo constitucional (art. 177, § 4. ). A Consulente
requer, apenas, que a ilegalidade e a injustiça que está sofrendo sejam neutralizadas
pelo Poder Judiciário, nada além disso. Não há pedido ao Judiciário que defina
responsabilidade tributária a outrem.

Mas, além disso, como visto, a sentença também decidiu que “não há como
se afastar da mesma [a Consulente] a qualidade de contribuinte (art. 2 da Lei n
10.336/01), por não terem as referidas decisões o condão de alterar a sujeição passiva
do tributo”.

No entanto, a Consulente não está se esquivando de sua qualidade de


32

contribuinte de direito do tributo. Tanto é que segue recolhendo a exação e


Página

repassando o custo econômico aos compradores e revendedores no varejo, em


obediência tanto ao artigo 2. quanto ao artigo 5. , § 7. , da Lei n. 10.336/2001.

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O pedido da Consulente decorre de situação absolutamente extraordinária,


qual seja, a de se ver obrigada a acumular as condições de contribuinte de direito e
de contribuinte de fato, em função de medida judicial da qual não foi parte e que gerou
com o resultado a fratura do modelo jurídico-econômico da Cide-Combustíveis.

Para essa situação extraordinária, a lei, naturalmente, não tem solução


pronta, já que é feita para situações ordinárias. Nesse sentido, as lições de José Souto
Maior Borges:

“as leis são feitas para o que normalmente acontece” (quod


plerumque fit). [...] Quando as exigências de um caso particular
(excepcional) se fazem sentir e se impõem e contrapõem à
generalidade da lei (a sua suprema fraqueza), abre-se espaço
privilegiado para a jurisprudência: a virtude da prudência
jurídica, que mora e demora no singular e no contingente. É
prudente – e sumamente o é – juiz que se curva à injunção de
um caso excepcional incompatível no todo com a formulação
generalizante da lei11”.

Em situações extraordinárias, que reclamem providências que respeitem a


razoabilidade, como a presente, a intervenção do Poder Judiciário é absolutamente
necessária. Descabe considerar que o contribuinte de direito deve arcar com o ônus
econômico do tributo no lugar do contribuinte de fato porque a lei não traz outra
solução a essa situação diferenciada. Cabe, isso sim, determinar uma solução
também diferenciada, adaptada ao caso concreto, quando esse caso concreto foge
das padronizações legais.

Que a situação concreta escapa do normal é algo indisputado: a Consulente


33

deveria ser apenas contribuinte de direito, deveria repassar o custo econômico do


Página

11Borges, José Souto Maior. O contraditório no processo judicial: uma visão dialética. 2. ed. São
Paulo: Malheiros, 2013, p. 109-111.

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tributo, mas agora está sendo obrigada a suportá-lo, de forma contrária a sistemática
legal para os casos normais.

Quando isso ocorre, cabe ao Poder Judiciário a devida adaptação da lei geral
a essa situação concreta que, claramente, escapa do normal. Também é essa a lição
de Humberto Ávila:

“Com efeito, muitas vezes, o caráter absoluto de uma regra é


completamente modificado depois da consideração de todas as
circunstâncias do caso. É só conferir alguns exemplos de normas
que preliminarmente indicam um modo absoluto de aplicação mas
que, com a consideração de todas as circunstâncias, terminam
por exigir um processo complexo de ponderação de razões e
contrarrazões.
...a consequência estabelecida prima facie pela norma pode
deixar de ser aplicada em face de razões substanciais
consideradas pelo aplicador, mediante condizente
fundamentação, como superiores àquelas que justificam a própria
regra.
...não é adequado afirmar que as regras “possuem” um modo
absoluto “tudo ou nada” de aplicação. Também as normas que
aparentam indicar um modo incondicional de aplicação podem ser
objeto de superação por razões não imaginadas pelo legislador
para os casos normais12.

Vários institutos jurídicos, consubstanciados em postulados normativos,


determinam que o Poder Judiciário busque solução diversa daquela preconizada pela
lei quando o caso concreto não se adequa à normalidade legal.

O caso em exame deve ser decidido à luz de postulados normativos. Eles se


prestam, ensina Humberto Ávila, “para solucionar questões que surgem com a
aplicação do Direito”, como no caso presente.13 Por isso, devem ser examinados e,
na situação em exame, aplicados.
34

12 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13. ed. São Paulo:
Página

Malheiros, 2012, p. 49-51.


13 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13. ed. São Paulo:

Malheiros, 2012, p. 154.

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3.3.1. A razoabilidade

Não há dúvida – já foi visto aqui à saciedade – de que o caso examinado é


atípico. Ele é atípico porque foge do padrão, da normalidade, do que normalmente
ocorre na tributação via Cide-Combustíveis. O normal é que o contribuinte de direito
recolha o tributo e repasse o custo econômico, na venda em atacado, para o
contribuinte de fato, vendedor no varejo. Na situação em análise, não houve o
recolhimento nem o repasse, mas não por desídia do contribuinte de direito, e sim por
força de medida judicial na qual o contribuinte de direito não foi parte. Assim, a
sistemática normal prevista na Lei n. 10.336/2001 foi subvertida: o contribuinte de
direito foi obstado de recolher o tributo e de repassar seu custo ao contribuinte de fato.
E, agora, essa sistemática normal está sendo novamente desfigurada: a Consulente,
que não é prevista legalmente como a pessoa destinada a arcar com o peso
econômico do tributo, está sendo obrigada a suportar esse peso. Não resta dúvida de
que a situação é injusta, pois quem está sendo obrigado a se desfazer de seus
recursos financeiros é outra pessoa, a Consulente, diversa daquela que, segundo a
lei, deveria assumir esse ônus.

Diante de situações atípicas, diferenciadas, fora do padrão normal, para as


quais a aplicação não adaptada da lei gera injustiça por ferir o que seria de se esperar
se o padrão normal fosse seguido, o Direito apresenta a razoabilidade como
instrumento hermenêutico para evitar a injustiça e a ilegalidade.

O Poder Judiciário deve, no caso em exame, aplicar a razoabilidade como


parâmetro aplicativo, de modo a associar o quadro normativo e suas relações com as
singularidades fáticas. Nesse sentido o postulado da razoabilidade, conforme
Humberto Ávila, dirige-se à “relação das normas gerais com a individualidade do caso
concreto [...], indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude de suas
especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral”.14
35
Página

14Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13. ed. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 173.

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Logo os postulados são metanormas, no sentido de que indicam como as


normas devem ser aplicadas.15

15 Conforme já expusemos: Diferentemente das demais espécies, o postulado assume as feição de


metanorma, ou norma de segundo grau, que pode ser hermenêutica ou aplicativa. “Os postulados” –
leciona Humberto Ávila – “justamente porque se situam num metanível, orientam a aplicação dos
princípios e das regras sem conflituosidade necessária com outras normas”. Como exemplo de
postulado hermenêutico, cita o postulado da coerência, quando algo deve conter consistência e
completude. Aprofundando um pouco a questão, seria “postulado normativo aplicativo” a norma de
segundo grau que estabelece a estrutura de aplicação das outras normas, quais sejam princípios e
regras, permitindo a verificação de casos em que há a violação de comandos cuja aplicação estruturam.
Os postulados se situam em um plano distinto das normas cuja aplicação presidem, e a violação deles
consiste na não-interpretação de acordo com sua estruturação, constituindo-se, portanto, em
metanormas, ou normas de segundo grau. Dado que os postulados normativos aplicativos alojam-se
em nível diverso dos princípios e regras, não impõem a promoção de um fim, mas, em vez disso,
organizam a aplicação do dever de promover esse fim, não podendo ser confundidos com princípios.
Também não seriam regras, pois os postulados, distintamente, não descrevem comportamentos, mas
apenas governam estruturalmente a aplicação de normas que designam obrigações. Dentre os
exemplos de postulados normativos aplicativos, podem ser citadas a proporcionalidade, a razoabilidade
e a proibição do excesso. Sua presença nos sistemas jurídicos, no entanto, não é, necessariamente,
positivada. Por serem os postulados normativos aplicativos metacritérios para a aplicação dos
princípios e regras, sua gênese e substanciação, deve ser encontrada no esforço aplicativo
jurisprudencial, ou seja, “a investigação dos postulados normativos inicia-se com a análise
jurisprudencial”15. Assim o é porque tal classe de metanorma se origina na teoria e ganha vida na
aplicação concreta, surgida no denso ventre dos fatos postos sub judice, fatos que em sua inerente
complexidade exigem do julgador que lance mão de um leque de metanormas, ou seja, normas que
propiciem parâmetros de aplicação dos princípios e das regras. Assim, na leitura de Ávila, os postulados
são normas que estabelecem imediatamente relações ou critérios de aplicação, sem preverem
diretamente os comportamentos ou os fins. Estabelecem “por qual critério/parâmetro”, sem prever “para
onde” ou “por onde”. Na lição de Ávila, para sabermos se estamos diante de um postulado, torna-se
necessário sabermos se a norma fixa parâmetros/critérios/relações para a aplicação de outras normas
– regras e princípios em sentido estrito. Nessa linha, exemplificativamente, as regras devem ser
aplicadas para os casos normais, não para os casos extraordinários (razoabilidade-equidade). Já os
princípios devem ser aplicados mediante a escolha de meios adequados, necessários e proporcionais
(proporcionalidade). São postulados aplicativos, por exemplo, a proibição de excesso, a razoabilidade
e a proporcionalidade. Vejamos: o postulado da proibição de excesso tem como escopo interditar a
restrição excessiva de qualquer direito fundamental; o postulado da razoabilidade é metanorma dirigida
à aplicação da igualdade, operando de modo a exigir que se estabeleça relação de congruência entre
o critério distintivo e a medida discriminatória 15. A seu tempo, o postulado da proporcionalidade induz
o exame sob tríplice perspectiva: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Há,
ainda, os chamados postulados inespecíficos como ponderação, concordância prática e proibição de
excesso. Vale ressaltar que a proibição de excesso se apresenta tanto como postulado inespecífico,
como postulado normativo aplicativo. O postulado da razoabilidade pode figurar como equivalência,
onde há uma harmonização do geral com o individual, a razoabilidade como congruência, onde há
adequado ajuste de medida das normas com as condições externas de aplicação. Para aclarar, mais
ainda, os postulados da razoabilidade e proporcionalidade, importante trazer a lição de Humberto Ávila:
“Com efeito, o postulado da proporcionalidade pressupõe a relação de causalidade entre o efeito de
uma ação (meio) e a promoção de um estado de coisas (fim). Adotando-se o meio, promove-se o fim:
o meio leva ao fim. Já na utilização da razoabilidade como exigência de congruência entre o critério de
diferenciação escolhido e a medida adotada há uma relação entre uma qualidade e uma medida
36

adotada: uma qualidade não leva à medida, mas é critério intrínseco a ela.”15 Em relação ao postulado
da proporcionalidade, há que existir uma relação entre meio e fim, devidamente, estruturada, ou seja,
Página

“o exame de proporcionalidade aplica-se sempre que houver uma medida concreta destinada a realizar
uma finalidade”. No âmago da proporcionalidade, há a adequação, importante para a tomada de
decisões, sendo que: “O Supremo Tribunal Federal tem aceito a tese de que a inconstitucionalidade só

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Que o caso em exame é específico e individual, não há dúvida. A


razoabilidade, segue Humberto Ávila, “exige a consideração do aspecto individual do
caso nas hipóteses em que ele é sobremodo desconsiderado pela generalização
legal. Para determinados casos, em virtude de determinadas especificidades, a norma
geral não pode ser aplicável, por se tratar de caso anormal”16.

Isso é precisamente o que ocorre no caso sob exame. Há, aqui, dois aspectos
absolutamente singulares, anormais, especiais, desconsiderados pela generalização
da lei (e também pela própria sentença): (i) o ônus econômico ser suportado por quem
não é contribuinte de fato, e (ii) o prejuízo decorrente de medida judicial em que o
prejudicado não foi parte.

Esses dois aspectos fazem do caso presente algo completamente diverso do


que normalmente ocorreria, isto é, da normalidade para a qual a lei foi concebida.
Aplicar a lei, que foi prevista para uma situação normal, a esta situação absolutamente
anormal, é violar a razoabilidade.

Retome-se a argumentação de Humberto Ávila, que assim a descreve:

Instrumento metodológico para demonstrar que a incidência da


norma é condição necessária, mas não suficiente, para a sua
aplicação. Para ser aplicável, o caso concreto deve adequar-se
à generalização da norma geral. A razoabilidade atua na

pode ser declarada quando a norma é evidentemente incapaz de atingir a sua finalidade. Com isso, o
Tribunal parece inclinar-se por um controle moderado de proporcionalidade, como aqui defendido.”
Outro fator intrínseco ao postulado em questão é a necessidade, onde habita a análise de meios
alternativos ao Poder Legislativo e Poder Executivo, sendo que o Poder Judiciário tem o papel de
preservar ao máximo o processo democrático com a tentativa de sempre escolher o melhor meio para
37

promover a finalidade pública. (MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro, op. cit., pp.
163-166).
Página

16Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13. ed. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 175.

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interpretação das regras como decorrência do princípio de


justiça (Preâmbulo e art. 3.° da Constituição).17

Não é adequada a aplicação da norma geral para o caso concreto, pela dupla
especificidade referida: deslocamento do ônus econômico e prejuízo a terceiro em
processo judicial. Note-se, por importante, que essa dupla especificidade é jurídica: o
deslocamento do ônus econômico escapa da regra geral prevista no artigo 5. , § 7. ,
da Lei n. 10.336/2001, e o prejuízo a terceiro em processo judicial foge da regra geral
prevista no artigo 472 do Código de Processo Civil. No caso presente, a
responsabilização da Consulente por aplicação não adaptada do artigo 2. da Lei n.
10.336/2001 fere a razoabilidade.

Para resolver a questão, o Poder Judiciário não só pode como deve aplicar a
razoabilidade, como decorrência do princípio de justiça, e desobrigar a Consulente de
arcar com um ônus econômico que não é seu.

Assim, há equívoco na decisão de primeiro grau, ao considerar que a regra


isolada deve ser aplicada ipsis litteris sem qualquer adaptação ou consideração do
contexto fático e jurídico em que se insere. O contexto fático envolve o processo
prejudicando terceiro e, ressalte-se, as sucessivas tentativas de pagamento no prazo
pela Consulente, além da imposição à Consulente de um ônus tributário que não é
dirigido a ela. O contexto jurídico envolve, ao lado do artigo 2. da Lei n. 10.336/2001,
que define o contribuinte de direito, o artigo 5. , § 7. , que define o contribuinte de fato,
e o artigo 472 do Código de Processo Civil, que veda prejuízo processual a terceiros.
Todo esse contexto peculiar, anormal, individual, específico, está sendo
desconsiderado pela aplicação isolada do artigo 2. da Lei n. 10.336/2001.

Precisamente ao contrário do que decidiu a sentença em primeiro grau, é


exatamente do Poder Judiciário a competência para afastar a aplicação de regra
38
Página

17Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13. ed. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 176.

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isolada quando ela se revela irrazoável, injusta e não equitativa, como é o caso
presente.

Ocorre que a decisão judicial que simplesmente se limita a aplicar regra que
indica a Consulente como contribuinte de direito independentemente dos fatos o faz
ao modo “tudo ou nada” – método que, ao contrário de promover a segurança do
ordenamento, acaba por negar a própria estabilidade hermenêutica. De fato, com o
advento da teoria de Ronald Dworkin18, no qual as regras são aplicadas ao modo “tudo
ou nada”, fecharam-se os olhos para a complexidade da realidade fática e normativa.

Fatos que não encontram molde na legislação – como liminares com caráter
de irreversibilidade que fraturaram a estrutura jurídico-econômica da Cide-
Combustíveis – demandam tratamento hermenêutico adequado.

Repise-se aqui o principal argumento decisório da r. sentença objeto de nossa


análise: “em que pese que a contribuição em questão tenha deixado de ser recolhida
em função de decisões judiciais proferidas em demandas em que a PETROBRAS
nem mesmo chegou a ser parte, o fato é que não há como se afastar da mesma a
qualidade de contribuinte (art. 2 da Lei n 10.336/01), por não terem as referidas
decisões o condão de alterar a sujeição passiva do tributo.”

Isto é, para a sentença ora analisada: mesmo que o contribuinte não tenha
dado causa às liminares, mesmo que estas liminares tenham tido caráter irreversível,
mesmo que o contribuinte não tenha sido parte nos processos, mesmo que as ordens
judiciais o tenham impedido de repassar o ônus do tributo como prevê a lei, mesmo
que com isso tenha sido irremediavelmente fraturada a estrutura jurídico econômica

18Observe-se, a título ilustrativo, a distinção dos princípios e das regras na visão de Ronald Dworkin:
“A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de
39

padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias


específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. A regras são aplicáveis
Página

à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste
caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para
a decisão”. (Ronald Dworkin, “Levando...Ob.cit., p. 39).

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da contribuição, ainda assim aplico a regra, porque regra é regra, regra é tudo ou
nada.

Semelhante linha hermenêutica não conduz a resultados corretos. Por isso,


temos sustentado a necessidade de que as decisões, sobretudo em matéria tributária,
não incorram no erro do formalismo redutor da realidade:

Essa ordem de problemas não se resolve a partir de modelos


reducionistas, onde o recorte epistemológico – promovido
arbitrariamente, em nosso sentir – estreita a realidade jurídica de modo
a conformá-la a limites estreitos incapazes de descrever toda a
complexidade do fenômeno jurídico, mais especialmente, do fenômeno
jurídico-tributário. Atribuir mero tratamento descritivista, como tem feito,
inadvertidamente, significativa escola de Direito Tributário no Brasil,
significa angustiar a realidade, moldando-a às desnutridas
possibilidades da teoria formalista. Essa hipotrofia teórica, ao formalizar
a realidade, reduz as possibilidades do aplicador da norma, e, ao
contrário de lograr seu objetivo de conferir segurança, induz o
descontrole e o erro ao pretender que sejam compendiadas,
comprimidas – ou mesmo submetidas a meros imperativos lógicos – as
possibilidades de decisão. De fato, em lamentável paradoxo, a doutrina
formalista concebida para trazer segurança parece estar na raiz do
vigente quadro de insegurança jurisdicional.19

Teóricos contemporâneos, no Brasil, como Humberto Ávila20, Agostinho


Ramalho Marques, André Folloni e Eros Roberto Grau expressam a necessidade da

19Marins, James. Direito Processual Tributário Brasileiro, op. cit., pp. 158 e 159.
20 Ávila descreve a função da Ciência do Direito Tributário, explicando, com propriedade, as várias
40

teorias da interpretação, privilegiando, mais uma vez, o caráter hermenêutico do Direito de modo a
demonstrar que: “Todas essas considerações terminam por comprovar que a ‘tese descritivista da
Página

Ciência do Direito’ partiu de um modelo de Ciência criado para outros mundos, mas não para o mundo
do Direito. O ideal dos empiristas, de criar um único método para todas as ciências, surgiu inicialmente
para as ciências naturais, alastrando-se mais tarde para todas as ciências, inclusive a do Direito. Ocorre

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adoção de paradigmas hermenêuticos capazes de superar o reducionismo simplista,


que conduz ao descarte de parcela relevante dos fatos, como aqueles examinados no
presente parecer.21-22

E essa questão está longe de se afigurar como meramente doutrinária.

O Supremo Tribunal Federal atuou dessa forma várias vezes: adaptando as


normas gerais para casos individuais diferenciados, inclusive afastando a aplicação
de regras isoladas.

No Mandado de Segurança n. 26.690, o Relator, Ministro Eros Grau,


identificou a necessidade de “levar em consideração as particularidades do caso para
proceder à correta construção da norma concreta e individual”, e manifestou-se nos
seguintes termos:

Estamos aqui, Senhor Presidente, diante daquilo que Vossa


Excelência mencionou, em um certo momento e ocasião, como
um caso fronteiriço, que reclama uma análise tópica. Eu diria,

que as ciências naturais consistem em discursos que têm por objeto uma entidade física, capaz, em
tese, de ser descrita, como é o caso da Ciência Astronômica, que tem por objeto o movimento dos
planetas, descrito pelos astrônomos. Já a Ciência do Direito envolve um discurso que não tem por
objeto uma entidade física, mas uma realidade discursiva, incapaz de ser descrita como supostamente
o é uma entidade física, pela singela e boa razão de que não está pronta sem a participação do
intérprete”. (Humberto Ávila, “Função da ciência do direito tributário: do formalismo epistemológico ao
estruturalismo argumentativo”, Revista direito tributário atual, n. 29, São Paulo, Dialética-IBDT, 2013,
p. 201).
21 Para André Folloni “já não se pode mais, no século XXI, sustentar a cisão entre razão e vontade,

nem o reducionismo como método científico seguro”. (André Folloni, “Ciência do Direito Tributário no
Brasil: Crítica e perspectivas a partir de José Souto Maior Borges”, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 420)
22 Agostinho Ramalho Marques Neto explica: “Toda concepção metafísica do Direito, de inspiração

jusnaturalista ou juspositivista, é também, sempre, uma concepção reducionista. Identifica, de saída, o


Direito como uma das dimensões que o habitam, ou com um conjunto bastante restrito de dimensões,
e exclui todo o resto para fora do campo jurídico. É o que faz, por exemplo, KELSEN, quando, tendo
identificado previamente o Direito com o Direito Positivo, demarca o terreno de sua ciência jurídica,
identificando-a, em essência, com a descrição das condições de possibilidade de um ordenamento
jurídico, de seu escalonamento hierárquico e da forma lógica da norma do Direito. Tudo o que não
41

estiver aí contido é expurgado para fora do terreno jurídico, podendo constituir, quando muito, o objeto
de outras disciplinas, como a Sociologia Jurídica, a Filosofia do Direito, etc. A estas caberia como que
Página

recolher aquelas sobras”. (Agostinho Ramalho Marques Neto, “Subsídios para pensar a possibilidade
de articular direito e psicanálise”, In, Agostinho Ramalho Marques Neto et al, “Direito e neoliberalismo:
elementos para uma leitura interdisciplinar”. Curitiba, EDIBEJ, 1996, p. 28-29).

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ainda acrescentando alguns subsídios ao meu voto escrito, que


é numa situação como essa que fica muito clara a beleza e a
nobreza do ofício da interpretação do direito, interpretação do
direito como construção da norma. Nós não somos meros
leitores de textos normativos. Fôssemos meros leitores de textos
normativos, bastaria a nós a alfabetização. Nós fazemos muito
mais do que isso porque aqui integramos o ordenamento
jurídico. Trabalhamos no segundo momento normativo, no
espaço da dimensão normativa, distinto do espaço da dimensão
legislativa.23

O argumento acima demonstra o equívoco da sentença ao sustentar que, se


a solução dada pela lei era aquela, o juiz nada poderia fazer. Muito pelo contrário: se
a “dimensão legislativa”, de que fala Eros Grau, cria um problema para casos atípicos,
que não podem ser considerados pelo Poder Legislativo, cabe ao Poder Judiciário, na
“dimensão normativa”, examinar o caso e fornecer uma solução adaptada a ele.

No mesmo processo, o ministro Carlos Ayres Brito afirmou: “é preciso atentar


para o caso concreto; e este caso me parece dotado de peculiaridades que exigem
também uma decisão peculiar”.

E o Ministro Ricardo Lewandowski decidiu pela aplicação do princípio da


razoabilidade:

Entendo que, se aplicarmos rigorosamente as exigências da


Emenda Constitucional 45, incidiria no caso o velho brocardo
latino summus ius summa iniuria. Estamos claramente, como
mostrou o Min. Eros Grau, diante de uma situação
absolutamente excepcional, em que temos de aplicar o princípio
42

da razoabilidade.
Página

23 STF. Tribunal Pleno. MS 26.690/DF. Rel. Ministro Eros Grau. Publ. 18.12.2008.

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Como se vê, não é nenhuma novidade pedir, ao Poder Judiciário, que, por
razoabilidade, considerando o contexto diferenciado do caso concreto, ofereça
solução que afaste a aplicação de regra isolada. Isso, ao contrário, é o que se espera
do Poder Judiciário.

Estamos diante de um problema criado pela subversão da sistemática de


recolhimento da Cide-Combustíveis, causada pela medida judicial na qual a
Consulente não foi parte.

3.3.2. A proibição de excesso

Não se discute que a propriedade é um direito fundamental e que a tributação,


por ter a potencialidade de restringir esse direito, deve ser feita nos limites legais e
sem excesso.

Humberto Ávila registra: “De acordo com a Constituição Brasileira, o direito de


propriedade é um direito fundamental”, e cita o artigo 5.°, XXII: “É garantido o direito
de propriedade”. Registra, ainda, a proteção da propriedade no capítulo específico da
Constituição: “O Sistema Tributário Nacional também tem dispositivo específico que
garante o direito à propriedade e à liberdade por meio da proibição de instituição de
tributo com efeito de confisco”, e aponta a proibição de efeito de confisco,
consubstanciada em limitação ao poder de tributar, no artigo 150, IV, da Constituição.
Por fim, aponta o artigo 170, II, da Constituição, que elege a propriedade privada como
princípio da Ordem Econômica.24 Sintetizando o ponto, afirma:

Os dispositivos aqui mencionados demonstram que os direitos


de propriedade e de liberdade possuem grande significado no
43

ordenamento jurídico brasileiro. Seu conteúdo essencial não


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24 Sistema constitucional tributário. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 397-398.

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pode ser restringido pela tributação. A aplicação do direito à


propriedade [...] exterioriza-se pela proibição de excesso, como
demonstra a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal...25

Deve-se investigar, então, a proibição de excesso enquanto postulado


normativo e suas relações com o caso presente. Atente-se à lição de Humberto Ávila:

O postulado da proibição de excesso proíbe a restrição


excessiva de qualquer direito fundamental. A proibição de
excesso está presente em qualquer contexto em que um direito
fundamental esteja sendo restringido.26

Mais adiante, ao referido precedente do Supremo Tribunal Federal, o autor


esclarece:

O Tribunal apenas verificou que nenhuma medida pode restringir


excessivamente um direito fundamental, sejam quais forem as
razões que a motivem.27

É evidente que o postulado da proibição de excesso não pode ser suscitado


para afastar o dever de pagar tributos em quantidade razoável. No entanto, também
é claro que ele pode ser aplicado a situações nas quais o tributo cobrado está a atingir
um patrimônio financeiro que não deveria ser atingido conforme a sistemática legal do
tributo.

Em situações normais, a Consulente deve pagar a Cide-Combustíveis, porque


poderá se ressarcir do custo econômico repassando o valor para o comprador, o
vendedor no varejo, que é contribuinte de fato. Isso não fere seu direito fundamental
44

25 Sistema constitucional tributário. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 397.


26 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13. ed. São Paulo:
Página

Malheiros, 2012, p. 167.


27 Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13. ed. São Paulo:

Malheiros, 2012, p. 169.

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à propriedade. Essa é a sistemática adotada pela Lei n. 10.336/2001, com base na


Constituição (art. 177, § 4.°).

No entanto, obrigar a Consulente a arcar com um custo econômico que não


pode ser repassado, subvertendo-se a sistemática legal, é restringir excessivamente
seu direito de propriedade, em desacordo com a lei e com a Constituição.

Nesse caso, o excesso é patente e ficou reconhecido pela sentença de


primeiro grau. A sentença, no entanto, embora tenha registrado o excesso, concluiu
que, diante dele, nada poderia fazer. Esse é o equívoco. Em verdade, o Poder
Judiciário não só pode, como deve afastar o excesso de restrição a direito
fundamental sempre que a lei, por algum motivo, acabar por impor esse excesso.

O Judiciário não deve, apenas registrar o excesso e lamentá-lo. Deve corrigi-


lo. E tem instrumentos jurídicos para tanto: além da razoabilidade, também o
postulado da proibição de excesso é instrumento jurídico hábil para afastar a cobrança
da Cide-Combustíveis no caso concreto.

4. RESPOSTAS AOS QUESITOS

Diante de todo o exposto, e de todos os fundamentos trazidos, legais,


constitucionais, doutrinários e jurisprudenciais, temos segurança em responder aos
quesitos formulados pela Consulente: 45
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4.1. Quesito 1

Diante da documentação apresentada, e considerando que o


Recurso Especial interposto dirigiu-se contra a decisão de
Câmara do CARF que decidiu que três matérias trazidas pela
recorrente em sede de recurso voluntário estavam preclusas, a
saber: (i) a inobservância de parecer normativo da SRFB sobre
a cobrança do tributo do substituto tributário em caso de liminar
obtida pelo substituído, (ii) a existência de solidariedade nos
termos do artigo 124, I, do CTN; e (iii) a imposição de juros e
multa, e ainda que a divergência jurisprudencial ensejadora da
interposição do Recurso Especial baseia-se em matéria
"preclusão", e não de "juros e multa", indaga-se: a questão
relativa ao principal do crédito tributário foi objeto de constituição
definitiva na esfera administrativa?

Não.

Não houve constituição definitiva do crédito tributário, porque pende de


apreciação, em Recurso Especial administrativo dirigido à CSRF, recurso da
Consulente que pede a declaração de nulidade do acórdão de segunda instância
administrativa, proferido pelo CARF, para que outro acórdão seja proferido em seu
lugar.

Enquanto esse Recurso Especial, que tem a potencialidade de gerar a


nulidade da decisão de segunda instância, não seja examinado pelo órgão
competente, o crédito tributário objeto do processo administrativo permanece com sua
exigibilidade suspensa e, portanto, não definitivamente constituído.
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4.2. Quesito 2

De acordo com as regras processuais que regulam o processo


administrativo fiscal federal, é possível que a Secretaria da
Receita Federal promova o desmembramento do auto de
infração, de forma a determinar a cobrança do valor principal,
enquanto pendentes de apreciação o exame de Recurso
Especial que verse sobre juros e multa, considerando, ainda a
competência do CARF para fazer o exame de admissibilidade
dos recursos a ele interpostos?

Não.

Inexiste regra que autorize a Receita Federal a promover, sponte própria, o


desmembramento material quando manejado Recurso Especial à CSRF. A aplicação
de regra especifica, destinada unicamente às decisões de primeira instância, para as
decisões de segunda instância, fere a legislação própria que, claramente, reserva
aquela possibilidade apenas à primeira instância. Além disso, a admissibilidade
parcial do recurso especial é de competência exclusiva do órgão judicante.

Carece de competência, o agente fiscalizador, para interpretar o conteúdo,


sentido e alcance do Recurso Especial para decidir, subjetivamente, se há parcela
não recorrida. Essa ausência de competência atende aos interesses da segurança do
crédito tributário, e portanto ao interesse público, e não pode ser desconsiderada pelo
agente administrativo.

4.3. Quesito 3
47

Considerando as circunstâncias processuais apresentadas,


pode a Petrobras ser obrigada a suportar os efeitos econômicos
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advindos da reversão de uma decisão judicial proferida em

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processo em que não foi parte, de modo a ser obrigada a


recolher tributo incidente sobre a comercialização de
combustíveis por ela praticada e cujo preço submete-se à
repercussão econômica, observando que a exação não foi paga
no momento da venda por força de ordem judicial proferida em
mandado de segurança impetrado pelo adquirente desse
produto contra ato da autoridade fazendária federal?

Não.

A Consulente não pode ser obrigada a suportar os efeitos econômicos, em


primeiro lugar, porque isso significaria prejuízo decorrente da concessão de medidas
liminares com caráter de irreversibilidade, olvidando de aplicar o art. 273 do CPC, e
em processos judiciais nos quais não foi parte, ferindo o artigo 472 do Código de
Processo Civil.

A Consulente não pode ser obrigada a suportar os efeitos econômicos, em


segundo lugar, porque isso implicaria ter que arcar com custo financeiro que não lhe
deve ser imputado como decorrência da sistemática legal da Cide-Combustíveis,
elaborada em consonância com a Constituição, nos termos do artigo 5.°, § 7.°, da Lei
n. 10.336/2001. De fato, conforme demonstrado, as medidas irreversíveis concedidas
causaram a fratura da estrutura jurídico-econômica da Cide-Combustíveis,
suprimindo, em definitivo, a capacidade contributiva do sujeito passivo que foi
impedido de repassar o ônus econômico da contribuição.

A Consulente não pode ser obrigada a suportar os efeitos econômicos, em


terceiro lugar, porque isso decorre da aplicação direta de regra isolada, ao modo “tudo
ou nada” para caso absolutamente especial e diferenciado, gerando injustiça evidente,
o que demanda solução que aplique o postulado da razoabilidade e,
48

consequentemente, afaste esse ônus econômico insuportável.


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E, por fim, a Consulente não pode ser obrigada a suportar os efeitos


econômicos, em quarto lugar, porque isso significaria dispor de sua propriedade para
além do que determina a lei, acumulando indevidamente as condições de contribuinte
de direito e de contribuinte de fato, configurando claro excesso de restrição ao direito
fundamental de propriedade, o que demanda solução que aplique o postulado da
proibição de excesso e, em consequência, afaste esse ônus econômico.

Em suma, por ofender ostensivamente os postulados da razoabilidade e da


proibição do excesso, é insusceptível de aplicação a regra de sujeição passiva em
hipótese na qual o contribuinte tenha sido alvo de liminares de caráter irreversível, em
processos nos quais não figurou como parte, submetendo-se a ordens judiciais que o
impediram de recolher contribuição especial e de repassar seu ônus econômico,
fraturando irremediavelmente a estrutura jurídico-econômica contida no desenho legal
do tributo e solapando-lhe – em definitivo – a capacidade contributiva.

É o nosso parecer, s. m. j.

De Curitiba para o Rio de Janeiro em 28 de novembro de 2014.

James Marins
Doutor em Direito do Estado pela PUC-SP (1998)
Pós-Doutor pela Universitat de Barcelona-ES (2004)
Professor Titular de Direito Processual Tributário da PUCPR (1995-14)
Professor Visitante da Universitat de Barcelona-ES (2003-04)
Professor de Direito Processual Civil da PUC-SP (1990-94)
Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário - Cadeira n. 3 (2012)
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Presidente do Instituto Brasileiro de Procedimento e Processo Tributário (1999-14)


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