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Eu era uma garota.

Por causa da minha mãe eu fui visitar uma casa abandonada, que já foi morada de mais de
cem pessoas. Era uma casa muito antiga e velha, de madeira.

Mal consegui subir as escadas, mas quando consegui, com muito esforço, encontrei marcas
estranhas nas paredes. Não me lembro do objetivo principal de estar naquela casa, mas sei
que perdi totalmente o foco quando olhei para elas.
Eram vários arranhões e coisas escritas, como "Não aguento mais ficar aqui" e "Sentindo a
solidão queimar minha alma, eu não tenho mais tanto medo de queimar no inferno". Assim
que li tudo, comecei a ouvir barulhos no térreo, e como era um final de tarde, a casa
começou a escurecer assim que o sol se pôs.

Apenas com uma lanterna bem fraca, consegui olhar os quartos, tentando ignorar os
barulhos. O cheiro de madeira velha era bem forte e tudo que eu tocava tinha poeira. Abri
uma caixa embaixo de uma cama que tinha no quarto, tirei a poeira com a mão e segurando
a lanterna com a outra, continuei vendo. Tinha alguns carrinhos de brinquedo bem
pequenos e alguns gibis, mas o que mais me chamou atenção foi a carta que estava lá.

Por que alguém escreveria uma carta para nunca ser enviada?

Bem... Já que não tinha mais dono nenhum vivo, não me senti culpada em abrir o envelope
e ler, só para matar a curiosidade.

Era um desabafo. Não me lembro muito bem do que estava escrito mas me lembro de ser
um desabafo de uma pessoa muito triste e sozinha. Se eu conhecesse essa pessoa, teria
feito amizade com ela...

Estava na metade da carta quando os barulhos da casa ficaram mais intensos. Eram
passos no térreo, mas dessa vez, senti o chão tremer e os passos começaram a ir para as
escadas. Mesmo com metade da escada faltando, ouvia como se estivessem inteiras e os
passos, cada vez mais fortes, vieram até o quarto onde eu estava. Eu apontei a lanterna
para a porta, onde os passos tinham parado, mas não tinha ninguém.
Comecei a ouvir algo arranhar as paredes, e era na parede daquele quarto.

Iluminei a parede e pude ver, na minha frente, uma frase sendo escrita.

"Não gosto que leiam minhas cartas. Vá embora".

Eu tentei conversar.
Peguei uma pedra que tinha no chão e fui escrevendo:

"Me desculpa, não pensei que fosse te deixar tão mal".

Nas paredes, os arranhões foram voltando e pude ver mais palavras se formando.

"Minha mãe odiava quando eu escrevia".


"E quantos anos você tem?".

"Eu tinha 16".

Assim pude entender tudo.


Vendo a hora no relógio, percebi que estava ficando muito tarde e deixei um recado para o
adolescente antes de ir.
Escrevi na parede que realmente sentia muito por ter invadido sua privacidade, e que
poderia voltar outra hora para saber mais sobre ele.

Com muito esforço e medo, já que estava tudo escuro, consegui descer aquelas escadas
quebradas e ir embora.

Seguindo minha vida normalmente, aquele dia não saía da minha cabeça. Lembrei de ter
olhado um pouco a cozinha antes de subir, vi uma mesa velha cheia de marcas, como se
alguém tivesse "arrumado" ela depois de ser rachada no meio. Me perguntei se ele tinha
algum envolvimento com isso, mas também poderia ser paranóia minha, já que várias
pessoas moraram naquela casa.

Não me aguentei e enviei uma carta para o endereço daquela casa abandonada. Não sei o
que tinha dado em mim, mas senti que receberia uma resposta mesmo assim.

Dito e feito, depois de algumas semanas recebi uma carta de volta, com papéis bem velhos
e sujos. Abri o envelope e a poeira que saiu dele me fez espirrar.

"Eu morava com meus irmãos naquela casa e nós fomos os primeiros moradores dela.
Éramos espancados pela nossa mãe, todo dia. Não podíamos brincar com os carrinhos que
nossos tios tinham nos dado, não podíamos rir juntos, eu não podia escrever nada e nós
quase nunca íamos para a escola porque estávamos sempre com pernas e braços
quebrados, além das marcas roxas. Era tudo nossa mãe quem fazia. Tudo culpa dela.
Um dia ela encontrou a carta que escondi embaixo da cama, que falava como me sentia, e
ela me espancou na cozinha, em cima da mesa onde comíamos.
Normalmente ela parava quando via um pouco de sangue, mas naquele dia ela não parou,
e continuou me batendo com um pedaço de madeira até ver que eu não estava mais
respirando, só assim ela parou".

Confesso que foi difícil de ler, mas aos poucos fui digerindo a história dele.
Não sei o que aconteceu com seus irmãos, mas não estavam lá com ele. Creio que aquelas
frases na parede eram dele, e que era ele quem estava se sentindo sozinho.

Então decidi continuar com as cartas, já que naquela época, era um meio de comunicação
popular.

Era inacreditável que ele continuava me respondendo. Todo mês nós conversávamos, e eu
pude conhecer bastante a pessoa que ele era.
Ele amava flores e era apaixonado por uma garota na escola que estudava, mas como
sempre faltava e estava com marcas roxas no corpo, ela ficava meio distante dele. Ele já
chegou a comprar um buquê de flores, mas nunca entregou.
Após um ano conversando com ele, uma amiga que estava tomando café na minha casa,
recebeu a carta por mim. Curiosa por ver os papéis velhos e o endereço, ela abriu o
envelope.
Assim que terminei de assar o bolo, encontrei ela lendo a carta sentada em minha mesa.
Sua cara era de espanto.

Perguntei o que ela estava fazendo lendo minha correspondência, e ela me interrompeu e
disse que estava tudo errado. Que era errado eu me envolver tão rápido com um homem e
que ele deveria ao menos vir aqui em casa ao invés de mandar cartas de uma casa
abandonada.
Ela disse que ele só estava passando a conversa em mim e que para o meu bem ela ia
acabar com isso. Estava insana.

Rasgou a carta na minha frente e saiu correndo para fora de casa. Foi muito confuso.

"Me envolver tão rápido com um homem"?

Eu estava me envolvendo romanticamente com ele? Não, era impossível. Para mim foi
totalmente diferente, ou… Será que não?

Peguei um pedaço daquela carta e pude ler a seguinte frase:

"Se você tivesse nascido naquela época, jamais pensaria em entregar flores para ela.
Entregaria uma floricultura inteira para você".

Assim que li, senti meu coração queimar.

Realmente tinha me apaixonado por um fantasma.

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