Você está na página 1de 2

Em que tempo vivemos? Em que tempo queremos viver?

(Pensamentos de um biblista em tempos hostis)


1º/11/2020

É óbvio que, como humanidade, atravessamos tempos difíceis. Será que adoramos Javé
ou outros deuses? No Antigo Testamento encontramos muitos relatos de tempos
difíceis. O que podemos aprender com esses relatos? A ação de Deus é perceptível de
diversas maneiras. Os profetas e as profetizas eram a voz de Deus para o povo. Os
governos cruéis tentavam exterminar as vozes proféticas. A viúva, o pobre e o forasteiro
eram os indicadores de bem-estar social no Antigo Testamento, caso essas classes
estivessem passando necessidades, certamente os governantes não estavam agindo com
justiça. Quem lê o Antigo e o Novo Testamento percebe que o tema da fome os
perpassa. O povo de Deus precisa de duplo alimento: pão e Palavra. Não se pode pensar
somente em um deles. Quem tem fome não ouve a Palavra; e quem tem a barriga cheia
demais espiritualiza a Palavra e esquece da pessoa que está próxima.
Estamos em tempos que as pessoas fazem leituras rasas da “realidade real” (Frisch).
Vivenciamos a chamada era da “pós-verdade”, das Fake News, das redes sociais, dos
fundamentalismos, de um anseio pelo patriarcado, populismo e tantos retrocessos. No
que se refere à Bíblia: há um anseio (ou uma fé fraca?) de petrificar as palavras e
idolatrá-las; descontextualizar as palavras bíblicas e usá-las para justificar anseios
próprios; aplicar palavras bíblicas à realidade in loco sem medir as consequências; há
um fundamentalismo que, se não fosse triste, seria engraçado, de tão simplicista e bobo
que é, nem tem capacidade de compreender que leem uma “tradução” que, por si só, já é
uma interpretação (K. Barth)! Há quem acusa de herege os que estudam os textos
bíblicos de maneira exegética; às vezes, a exegese diz coisas que a “fé fraca” não
suporta e reage com ódio; há, ainda, quem pensa ser possível fazer interpretações
neutras, exigindo a “pura pregação” (sinceramente, não entendo isso!). Um Jesus
espiritualizado não incomoda, mas o Cristo encarnado nos compromete!
O estudo da Teologia Bíblica é, ao mesmo tempo, divertido e ingrato. É divertido pela
oportunidade de aprender com a Bíblia, de analisar os textos com outros olhos, de
aprender as línguas bíblicas, imaginar os cenários em que os relatos bíblicos surgiram e
foram gestados. Mas, infelizmente, também pode ser ingrato. Por vezes, muitas pessoas
dedicam as suas vidas, finanças, horas sem dormir, o próprio corpo (dores, olhos
cansados etc.). Contudo, o estudo da Bíblia se faz com e por amor ao “Crucificado
Ressurreto / Ressurreto Crucificado” (Lutero). O que me entristece? Há pessoas, ditas
cristãs, que nunca estudaram (e talvez não queiram estudar) a Bíblia, mas afirmam que
“leem a Bíblia” e dizem acusatoriamente às pessoas que fazem exegese: “Tu estás
errado! És um herege!”. Penso que pessoas fundamentalistas são preguiçosas por si só.
Primeiro, não compreendem que existe diversas formas e camadas de leitura bíblica
(oração, meditação, estudo, exegese). Aplainam a Bíblia, desconsideram todo o bonito e
complexo processo do surgimento dos textos (acham que alguém se sentou e escreveu
de Gn até Ap de uma vez só), fazem dela um ídolo e retiram dela somente aquilo que
interessa para justificar determinados preconceitos. Segundo, não penso que pessoas que
fazem exegese sejam melhores do que as outras, mas tem funções diferentes. Em outras
palavras, pessoas que fazem exegese se dedicam a entender o texto bíblico com
profundidade e ajudar outras pessoas também a compreender, sempre de forma dialogal.
Pessoas fundamentalistas, por causa da “fé fraca”, da preguiça de estudar, da
incapacidade de entender a Bíblia com a realidade atual, simplesmente não aprendem e
não dialogam. E o pior: Querem que os exegetas criem uma teologia bíblica totalmente
espiritualizada, deslocada da realidade, que fechemos os olhos para as injustiças e para
os pobres. Moltmann estava certo, pois o aburguesamento do cristianismo causa apatia.
Rubem Alves falava do odium theologicum. Parece que, nessa era digital, há “guardiões
da fé” (penso que são pessoas com graves problemas psicológicos!), os quais, em nome
da “fé verdadeira” (lê-se “fé fraca”) descontextualizam, fazem prints, editam vídeos
para enfatizar determinadas coisas e assim manipular opiniões, repetem jargões
alarmistas (p.ex.: os membros estão saindo da igreja por isso ou por aquilo; se fosse
como afirmam, o mundo seria ateu há muito tempo!), criam teorias conspiratórias,
buscam grandes debates em redes sociais para “lacrar” com respostas simplicistas (pois
profundidade não é o forte). Tudo isso não presta nada à fé, antes é um desserviço! Por
quê pessoas que agem dessa forma não escrevem um livro para compartilhar e explicar
a suposta “sabedoria” de fé que dizem ter? A resposta é simples: elas não têm nada para
comunicar!
Penso que todas as pessoas devam ser livres para expressar a fé com respeito ao
próximo, caso contrário, vira “ódio teológico”. Não sou nada e nem ninguém para
censurar, antes quero diálogo com conteúdo! Como conselho: Se tu tens dificuldades de
expressar a tua fé nas redes sociais, ou tens dificuldades de aceitar as diferenças de
pensamentos, certamente as redes sociais devem ser desativadas/abandonadas –
provisoriamente ou definitivamente –, deves buscar ajuda pastoral e
psicológica/psiquiátrica. Os fundamentalismos causam problemas psicológicos e
problemas psicológicos causam fundamentalismos. O fundamentalismo mata em nome
de um suposto “Deus de amor”.
Certamente, não se faz exegese bíblica para enriquecer, para ganhar fama ou porque se é
malvado. Desconheço pessoas luteranas que fazem exegese bíblica para acabar com a fé
das outras pessoas. O texto bíblico é polissêmico e é Palavra de Deus. Espero que
possamos viver em um tempo em que o diálogo prevaleça, em que as pessoas aprendam
a se expressar sem descontextualizar ou manipular coisas e opiniões. Que o Deus da
justiça nos ajude na tarefa de cuidar das pessoas próximas, de nos libertar e de zelar pela
criação.

Você também pode gostar