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1 CORRIDA NO DESERTO
UMA PEQUENA EXPEDIÇÃO CRUZA APRESSADAMENTE O DESERTO
COMERCIANTE: Sua garganta não dá o tom certo: nunca há de ser um guia de verdade. Eu
devia ter chamado um mais caro. Os outros estão cada vez mais perto. Bata nesse rapaz,
para ele andar! Vamos, o que está esperando? Eu não sou favorável à pancada, mas há
umas horas em que só batendo! Se eu não chego primeiro, estou falido! Para o transporte da
minha bagagem, você foi chamar logo o seu irmão. Foi ou não foi? Confesse! Não bate nele,
por que é seu parente. Eu sei muito bem como vocês são: não é que lhes falte brutalidade.
Ou você bate nele ou está despedido! Depois pode ir queixar-se na Justiça, por causa do
salário. Meu Deus do céu, eles estão nos alcançando!
CULE (AO GUIA): Pode bater em mim, mas não com muita força, pois, se ainda temos de
andar até o posto de Han, não posso gastar minhas energias todas de uma vez só.
GRITOS ( VINDOS DE TRÁS): Ei, pessoal! Este caminho é o que vai dar em Urga? Somos
de paz! Esperem por nós!
COMERCIANTE: (NÃO RESPONDE E NÃO OLHA PARA TRÁS) Diabos os levem! Vamos
em frente! Há três dias que eu venho forçando o meu pessoal a andar: dois dias com insultos,
um dia com promessas. O resto a gente vê depois, em Urga. E os concorrentes sempre nos
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meus calcanhares, mas na segunda noite andamos sem parar, nem para tomar fôlego, e
consegui escapar da vista deles, para no terceiro dia chegar ao posto de Han, um dia na
frente de qualquer outro! (CANTA)
COMERCIANTE (ANTE O POSTO DE HAN): Aqui está o posto de Han. Cheguei um dia na
frente de qualquer outro, graças a Deus! Meus homens estão exaustos e, além de tudo,
amoladíssimos comigo. Não sabem dar valor a um recorde batido! Não são de luta, não são
de nada: é uma corja da mais baixa qualidade, que anda de rastos. É claro que não ousam
dizer nada, porque, graças a Deus, a polícia está aí para manter a ordem.
COMERCIANTE: Tudo bem, tudo em ordem. Até aqui fiz a viagem em três dias, em vez de
quatro. A estrada é uma porcaria mas eu costumo levar a bom termo todos os meus
empreendimentos. E do posto em diante, como estão as estradas? Qual é a próxima etapa?
DOIS POLICIAS: Agora, meu senhor, vem primeiro o deserto do Jahi, inteiramente
desabitado.
DOIS POLICIAIS ( SEGUINDO A DIANTE ): Não, meu senhor. A última patrulha que o senhor
poderia encontrar somos nós, meu senhor.
GUIA: Depois daquela conversa com os policiais, na estrada de frente ao posto, nosso
comerciante está muito mudado. O tom que ele nos fala é outro, bem diferente: quase
amistoso. Isso nada tem a ver com o ritmo de viagem, porque para este posto, que é o último
antes do deserto de Jahi, ele também não programou nem um dia de descanso. Não sei o
jeito que vou dar para ir tocando esse cule até Urga, exausto como ele está. Em tudo por tudo
me deixa muito preocupado essa atitude amistosa do comerciante: receio que ele esteja
planejando alguma coisa contra nós. Ele anda de um lado para outro, mergulhado em seus
pensamentos: quanto mais pensamentos, mais patifarias! Esteja ele tramando o que estiver,
quem tem de aguentar somos eu e o cule, senão ele não paga o que nos deve ou manda-
nos embora no meio do deserto.
precisemos apertar mais o passo. E o cule é mesmo um grande preguiçoso. A região em que
vamos entrar agora é inteiramente desabitada: aí talvez ele queira mostrar a verdadeira face.
Você, que é um homem de melhores qualidades, naturalmente ganha um pouco mais e não
precisa ir carregando nada: razão bastante para ele odiar você. É bom ficar u pouco longe
dele. ( POR UMA PORTA ABERTA, O GUIA PASSA PARA O OUTRO LADO. O
COMERCIANTE FICA SENTADO) Essa gente é engraçada!
ALI PERTO, O GUIA VIGIA O CULE QUE ESTÁ ARRUMANDO A BAGAGEM. DEPOIS,
SENTA-SE E FUMA. O CULE, AO TERMINAR, SENTA-SE TAMBÉM, ACEITA FUMO E
PAPEL QUE O OUTRO LHE OFERECE, E COMEÇAM OS DOIS A CONVERSAR.
CULE: O comerciante sempre diz que tirar petróleo da terra é um serviço que se presta à
humanidade: quando o petróleo é tirado da terra, , abrem-se estradas e o bem-estar é geral.
Diz o comerciante que até aqui vai ter estrada-de-ferro. E eu, então, como é que vou ganhar a
vida?
GUIA: Pode ficar descansado. Não vai haver estrada aqui tão cedo! Ouvi dizer que o petróleo,
se uma pessoa descobre, logo aparece outra e esconde: quem tapa um furo de onde sai
petróleo, recebe um dinheirão para guardar segredo. E é por isto que o nosso comerciante
está com tanta pressa: o que ele quer mesmo não é o petróleo, é o dinheiro para guardar
segredo!
CULE: O caminho, agora pelo deserto, vai ser pior do que foi até aqui. Minha esperança é
que meus pés aguentem.
GUIA: Só no primeiro dia de viagem, que vai ser hoje, precisamos ir de olhos bem abertos:
nas vizinhanças do posto, juntam-se marginais de todo tipo. Quando deixarmos para trás o rio
Myr, é só seguirmos a linha dos poços de água.
GUIA: Sei.
GUIA: Nesta época do ano, em geral, não. Mas quando há uma enchente, a correnteza fica
muito forte, e há perigo de vida.
COMERCIANTE: Com o cule, ele conversa. Com o cule, ele se senta. Com o cule, ele fuma.
GUIA: A gente às vezes tem que esperar oito dias, até poder atravessar para a outra
margem sem nenhum risco.
COMERCIANTE: Vejam só! Ele ainda está dando conselho ao outro para não se apressar e
cuidar bem da preciosa vidinha! Aí está um sujeito perigoso: vai acabar tomando as dores do
outro. Está-se vendo que não é o homem para tomar as providências necessárias. Quando
não seja capaz de coisa pior! Assim, de agora em diante, eles são dois contra um. Ele, pelo
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menos, dá a entender claramente que não vai ter coragem de tratar o subordinado com a
dureza necessária, agora que vamos entrar numa região desabitada. Preciso dar um jeito de
ficar livre dele. ( APROXIMA-SE DOS DOIS) Mandei você tomar conta, para a bagagem ser
bem arrumada: agora vamos ver se fez o que eu mandei. ( REPUXA COM FORÇA UMA DAS
CORREIAS DA AMARRAÇÃO, ATÉ ARREBENTAR.) Isso é bagagem bem arrumada? Se a
correia arrebenta no caminho, é um dia que vamos ficar parados. Mas você está querendo é
isto mesmo: ficar parado.
GUIA: Eu não quero parar coisa nenhuma. E se ninguém puxar com tanta força, a correia não
vai arrebentar.
COMERCIANTE: Como? Então ainda quer me desmentir? Essa correia arrebentou ou não?
Tenha a coragem de dizer, na minha cara, que a correia não está arrebentada! Não posso
mais confiar em você. Quando tentei tratar vocês decentemente, eu cometi um erro: com
vocês, não se pode fazer nada. Não preciso de um guia que não sabe impor respeito ao resto
do pessoal. Você parece mais capacitado para ser cule, e não para se guia. Tenho razões até
para desconfiar que anda enchendo os ouvidos do pessoal...
COMERCIANTE ( PERPLEXO): Ele não me entende. Neste caso, não haverá pessoa
alguma que possa dizer para onde eu fui. E o pior é essa corja sabe que não há ninguém.
GUIA (AO CULE): Foi um erro eu me sentar com você. Fique de olho, que esse sujeito não
presta! ( DÁ AO CULE O PRÓPRIO CANTIL COM ÁGUA.) Fique com este cantil de reserva,
bem escondido! Se vocês se perderem- como é que você pode acertar o caminho?- ele, com
toda a certeza, vai lhe tomar o cantil... Agora eu vou lhe ensinar o caminho.
CULE: Não faça isso! Ele não deve nos ver conversando: se me mandar embora, estou
perdido. E a mim ele nem tem que pagar nada, porque eu não sou sindicalizado como você.
Eu só tenho a perder.
ESTALAJADEIRO (RECEBENDO A CARTA, COM UMA MESURA) : Mas ele não é guia...
COMERCIANTE ( DE SI PARA SI): Ah, então ele bem que compreende! Antes fingia não
compreender: ele sabe como são essas coisas, e não queria servir de testemunha. ( AO
ESTALAJADEIRO SECAMENTE: ) Faça o favor de ensinar ao meu cule o caminho de Urga!
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COMERCIANTE: Já estou vendo que vai ser uma luta! ( TIRA O REVÓLVER DO COLDRE E
PÕE-SE A LIMPÁ-LO. ENTREMENTES, CANTA: )
COMERCIANTE: Pé na estrada!
GUIA: Não sei se o meu colega chegou a aprender bem. Acho que ele aprendeu muito
depressa.
COMERCIANTE: Porque está tão alegre e canta tanto, meu amigo? Não tem medo nenhum
dos assaltantes? Pensa que de seu, mesmo, não podem tirar nada, pois nada lhe pertence: o
que você tem a perder pertence a mim ...
COMERCIANTE: Ah, sim, por causa dos assaltantes... Mas alguém precisa ver para onde é
que você está me levando. Porque é que você vem atrás de mim? Passe na frente! (
CONTINUAM A ANDAR EM SILÊNCIO. O COMERCIANTE FALA CONSIGO MESMO: )
Nesta areia, de fato, os rastros ficam muito visíveis. Naturalmente, pensando melhor, seria
ótimo apagar os rastros.
CULE: Nosso caminho era o certo, patrão. O que estamos vendo aí é o rio Myr. Nesta época
do ano ele não costuma ser difícil de atravessar; mas na enchente ele puxa com muita força e
a gente corre perigo de vida. E agora ele está na enchente.
CULE: Às vezes a gente precisa esperar até oito dias, até poder passar para o outro lado
sem nenhum risco.
COMERCIANTE: Isso é o que nós vamos ver! Não podemos ficar nem um dia esperando.
COMERCIANTE: Quando estiver dentro d’água, você vai logo sair nadando. Não vai poder
fazer outra coisa. Ora, você não é capaz de uma visão como eu tenho. Porque razão nós
temos de chegar a Urga? Então você não vê, seu idiota, que é um serviço que se presta à
humanidade quando se tira petróleo da terra? Quando o petróleo é tirado da terra, abrem-se
estradas de ferro, e o bem-estar é geral: tem pão e tem comida, e Deus sabe o que mais. E
quem é que vai fazer isso? Nós! Tudo depende da nossa viagem. Imagine que todos os olhos
deste mundo estão voltados para você, um homenzinho só! E você ainda hesita em cumprir o
seu dever?
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Do perigo sai um
respirando aliviado na margem alcançada:
vai pisar no que é seu,
vai Ter comida fresca.
Já o outro sai do perigo
a arquejar para o nada:
esperam por ele, o debilitado,
perigos novos. Serão ambos valentes?
(AO COMERCIANTE ): Me deixe descansar pelo menos a metade de um dia! Estou cansado
de carregar a bagagem. Tendo um descanso, talvez eu possa chegar à margem de lá.
COMERCIANTE: Eu sei de um jeito melhor: vou encostar o cano do revólver nas suas
costas! Quer apostar como chega logo à outra margem? (VAI EMPURRANDO O CULE NA
FRENTE, E DIZ CONSIGO MESMO: ) Meu dinheiro me faz ter medo dos ladrões e esquecer
o rio.
(CANTA: )
É assim que o homem supera
o deserto e o rio em alta,
supera a si mesmo e alcança
o petróleo de que há falta.
6 ACAMPAMENTO NOTURNO
COMERCIANTE: Eu já tinha dito que hoje você não precisava armar a tenda, porque
travessia do rio quebrou o braço. ( O CULE CONTINUA EM SILÊNCIO O QUE ESTAVA
FAZENDO.) Se eu não puxasse para fora d’água, com toda a força, você teria morrido
afogado. ( O CULE CONTINUA) Embora eu não tenha culpa do acidente - aquele tronco de
árvore podia muito bem ter batido em mim e não em você – essa é uma desgraça que lhe
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aconteceu quando você estava de viagem comigo. O dinheiro que eu tenho aqui é muito
pouco, mas o meu Banco tem Agência em Urga e lá eu indenizo você.
COMERCIANTE: Que resposta mais seca! Cada vez que me olha é para me fazer sentir que
eu o prejudiquei. Esses carregadores são uma cambada de gente maldosa! (AO CULE: )
Você agora pode ir-se deitar. ( AFASTA-SE E VAI SENTAR-SE MAIS LONGE.) Garanto que
a desgraça do braço quebrado incomoda a ele menos do que a mim : essa gentinha não faz
muita questão de estar inteira ou mutilada, e não enxerga nada mais alto do que a beira do
prato. Doentes por natureza, nem se preocupam mais consigo mesmos. Assim como quem
joga fora uma coisa que não saiu certo, eles jogam fora suas próprias pessoas, que saíram
erradas. Só quem dá certo é que luta! (CANTA: )
COMERCIANTE: Ele estava escutando...Alto! Pare aí! O que é que você quer?
COMERCIANTE: Você não fique deslizando por aí de noite: eu não gosto disso. Quando
alguém chega perto, eu quero ouvir os passos. E também, quando falo com uma pessoa, eu
gosto de olhar para os olhos dela. Vá-se deitar, e não se preocupe demais comigo. ( O CULE
RETIRA-SE PARA O FUNDO.) Espere! Você fica na tenda! Eu fico sentado aqui porque
estou acostumado com ar fresco. (O CULE ENTRA NA TENDA.) Eu bem que gostaria saber
o que foi que ele ouviu do que eu cantava. (PAUSA.)Que estará ele fazendo agora?
(CONTINUA OCUPADO COM ALGUMA COISA)
CULE: Tomara que ele não perceba nada! Não é fácil cortar bem o capim, com um braço só.
COMERCIANTE: Estúpido é quem não toma cuidado! Confiar é sinal de estupidez! Por minha
causa, esse homem sofreu um acidente que é capaz de deixá-lo aleijado para o resto da vida:
é inteiramente justo que ele queira ir à forra! E o homem forte, quando está dormindo, não é
mais forte do que o homem fraco quando está dormindo. O ser humano não devia ter
necessidade dormir! É claro que seria muito melhor estar sentado dentro da tenda: aqui, ao
relento pode-se pegar uma doença. Mas qual doença seria tão perigosa quanto a criatura
humana? Por pouco dinheiro esse homem faz uma caminhada comigo, que tenho muito
dinheiro.Mas a estrada é tão cansativa para um quanto para o outro. Quando ele dava
mostras de cansaço, acabava apanhando. Quando o Guia foi sentar-se com ele, mandei o
Guia embora. Quando ele, talvez mesmo por causa dos ladrões, ia apagar os nossos rastros
na areia, viu-se tratado com desconfiança. Quando deu sinal de medo, na beira do rio, teve
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de olhar para o cano do meu revólver. Como é que eu vou dormir na mesma tenda com um
homem desses? A mim ele não convence de que está conformado com tudo isso! Eu só
queria saber o que ele está maquinando lá dentro! (VÊ-SE O CULE, NA TENDA, DEITANDO-
SE TRANQUILAMENTE PARA DORMIR.) Louco seria eu, se fosse para aquela tenda!
7 A ÁGUA PARTILHADA
COMERCIANTE: E agora?
CULE: Se for para bater em mim, patrão, não bata no meu braço machucado! Daqui em
diante, eu não sei mais o caminho.
COMERCIANTE: Quando eu lhe perguntei se tinha compreendido, você não disse que tinha?
CULE: Eu tinha medo que o senhor me despedisse. Só sei que a gente vai seguindo os
poços d’água...
COMERCIANTE: Siga em frente! E não me queira fazer de idiota! Sei muito bem que já
passou por aqui antes.
CONTINUAM A MARCHA.
CULE: Mas não seria melhor esperarmos pelos que vêm atrás de nós?
COMERCIANTE: Não!
CONTINUAM A MARCHA.
COMERCIANTE: Mas, afinal, para onde você está indo? Assim vai para o norte; o leste é lá!
(O CULE TOMA A NOVA DIREÇÃO.) Alto aí! Que foi que deu em você? ( O CULE FICA
PARADO, SEM OLHAR O COMERCIANTE) Por que não me olha de frente?
COMERCIANTE: Espere, seu vagabundo! Eu jálhe mostro como deve ser meu guia! (BATE
NELE) Agora sabe onde é que fica o leste?
CULE: Lá!
COMERCIANTE: Então você não estava indo para cá? Não era para cá que você estava
indo? (BATE NO CULE)
COMERCIANTE: Passe para cá o seu cantil com água! (O CULE ENTREGA O CANTIL) Eu
poderia agora partir do princípio de que essa água toda é minha, porque você me guiou mal.
Mas isso eu não vou fazer: vou repartir a aguá com você. Beba um gole, e depois vamos em
frente! (DE SI PARA SI:) Eu me descontrolei; numa situação como esta, eu não devia Ter
batido nele. Por aqui, nós já passamos: veja só, as marcas dos nossos pés!
CULE: Quando passamos por aqui, ainda não podiamos estar muito longe do caminho.
COMERCIANTE: Pode armar a tenda. O nosso cantil esta vazio. No meu também não tem
mais nada. (SENTA-SE NO CHÃO, ENQUANTO O CULE ARMA TENDA, E AS
ESCONDIDAS BEBE ÁGUA DO PRÓPRIO CANTIL. DIZ DE SI PARA SI.) Ele não deve
perceber que eu ainda tenho água; senão, se tiver na cabeça uma única centelha de bom-
senso, ele me mata. Se chegar perto de mim, leva um tiro. (TIRA O REVÓLVER DO
COLDRE E PÕE NO COLO) Se ao menos pudéssemos voltar ao último poço por onde
passamos! Minha garganta está completamente seca. Por quanto tempo um homem será
capaz de suportar a sede?
CULE: É melhor entregar a ele o cantil cheio que o guia me deu no posto. Senão, se nos
encontrarem e eu ainda estiver vivo, com ele assim quase morto de sede, podem me
processar.
COMERCIANTE: Jogue fora esta pedra! (COM UM TIRO DE REVÓLVER, ABATE O CULE,
NO MOMENTO EM QUE, SEM NADA COMPREENDER, O OUTRO CONTINUA A
OFERECER-LHE O CANTIL COM ÁGUA.) Pronto! Seu animal! Você agora recebeu o que
merecia!
9 JULGAMENTO
GUIA: (À MULHER:) A senhora não é a mulher do morto? Eu sou o guia que contratou o seu
marido. Ouvi dizerem que, neste processo, a senhora pede uma punição para o comerciante
e uma indenização. Eu vim logo correndo para cá, pois tenho prova de que o seu marido foi
morto sem culpa alguma: está aqui na minha saca.
ESTALAJADEIRO ( AO GUIA: ) Se eu ouvi bem, você tem uma prova em sua saca. Mas eu
lhe dou um conselho: deixe a prova dentro da saca!
MULHER: Meu marido carregou a bagagem deste senhor pelo deserto de Jahi. Pouco antes
do fim da viagem, esse senhor matou-o com um tiro. Embora nem por o isto meu marido volte
a viver, eu peço que o assassino seja punido.
MULHER: É, porque eu e meu filho pequeno ficamos sem aquele que nos dava o sustento.
JUIZ: ( À MULHER:) Eu não censuro a senhora por isso: a exigência de ordem material não
constitui nenhum demérito para a senhora. ( AOS MEMBROS DA SEGUNDA CARAVANA: )
Atrás da expedição do comerciante Karl Langmann vinha uma segunda expedição, à qual se
foi juntar, depois de despedido pelo comerciante, o guia da primeira caravana. A menos de
uma milha de distância do caminho trilhado, podia-se avistar a expedição malograda. Que
foi que os senhores viram, quando chegaram perto?
COMERCIANTE: Nunca.
JUIZ: Encontra–se no recinto o guia despedido, que fez parte da expedição na primeira parte
da viagem?
GUIA: Eu!
GUIA: Até onde posso saber, o que comerciante queria era chegar a Urga o mais depressa
possível, por causa de uma concessão.
CHEFE DA SEGUNDA CARAVANA: Fora do comum, não: eles levavam um dia de vantagem
e mantinham essa vantagem.
JUIZ ( AO COMERCIANTE: ) E para isso o senhor não pode Ter deixado de forçar o seu
pessoal.
JUIZ ( AO GUIA: ) O acusado não lhe deu ordens,expressas para forçar o carregador a
andar mais depressa?
GUIA: Eu não forcei mais que o de costume; até menos, por sinal.
JUIZ: E não devia , por acaso?... O carregador, a quem o senhor nem podia tratar
amistosamente, dava a impressão de ser um homem revoltado?
GUIA: Até que nem. Ele aguentava tudo, porque, pelo que me dizia, tinha medo de perder o
emprego: ele não era sindicalizado.
JUIZ: Assim, tinha de engolir muita coisa, não é ? Responda! Não fique aí pensando o tempo
todo em cada resposta que tem a dar! A verdade sempre vem à tona.
JUIZ ( AO COMERCIANTE: ) Depois disso, aconteceu alguma coisa que pudesse dar motivo
à agressão do carregador?
JUIZ: Ouça: o senhor não deve fazer-se de mais inocente do que é. Assim não vai dar em
nada, homem. Se tratava o seu carregador com luvas de pelica, como explicas o ódio que ele
tinha do senhor? É só tornando esse ódio justificável, que o senhor poderá justificar também
que agiu em legítima defesa. Pense bem!
COMERCIANTE: Uma coisa é preciso confessar: bati nele uma vez! Bati, sim!
JUIZ: Ah! E o senhor acha que, por causa dessa única vez, o carregador ficou tão cheio de
ódio?
COMERCIANTE: Não, mas eu também encostei o revólver nas costas dele, quando ele não
queria atravessar o rio. Durante a travessia do rio, ele quebrou um braço: culpa minha,
também.
JUIZ: Então, vejamos! Logo depois de despedir o guia, o senhor deu motivos para o
carregador odiá–lo. E antes? (AO GUIA, EM TOM ENERGICO:) Reconheça de uma vez que
o homem tinha ódio do comerciante! Quando se pensa bem, aliás, isso é até óbvio: é bem
compreensível que um homem, mal remunerado, forçado com violência a enfrentar um
grande perigo, vendo–se prejudicado até em sua saúde, e arriscando a vida quase a troco de
nada, para um outro Ter vantagem, acabe tendo ódio desse outro...
JUIZ: Vamos agora interrogar o estalajadeiro do posto HAN, que talvez nos possa dizer
alguma coisa para ajudar a termos uma idéia clara do relacionamento entre o comerciante e
seus empregados. (AO ESTALAJADEIRO:) Como é que o comerciante tratava os homens
dele?
ESTALAJADEIRO: Bem...
JUIZ: Quer que mande evacuar o recinto? O senhor acha que, dizendo a verdade, pode
trazer prejuízo aos seus negócios?
ESTALAJADEIRO: Ao guia ele chegou até a dar cigarro, e pagou o salário sem discutir. E o
carregador também era bem tratado.
JUIZ: O lugar onde o senhor trabalha é o último posto de polícia, nesse itinerário?
JUIZ: Ah,sei! Nesse caso, a amabilidade do comerciante era mais uma questão de
circunstâncias, por pouco tempo: era, por assim dizer, uma amabilídade tática. Na guerra
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também os nossos oficiais faziam questão de trataras tropas de maneira tanto mais amável
quanto mais se aproximavam da frente de batalha. Amabilídades desse tipo não querem
dizer, naturalmente, nada.
COMERCIANTE: Ele, por exemplo, estava sempre cantando, enquanto caminhávamos. A partir
do momento em que o ameacei com o revólver, para forçá–lo a atravessar o rio, nunca mais o
ouvi cantar.
JUIZ: Ele estava, portanto, bastante irritado; o que é perfeitamente compreensível. E eu retomo
de novo o exemplo da guerra: lá também se podia compreender perfeitamente a gente simples
do povo, quando dizia a nós, oficiais: pois é, vocês fazem a guerra de vocês, mas é também a
de vocês que nós fazemos! Assim também o carregador poderia dizer ao comerciante: o
senhor está fazendo o seu negócio, mas o negócio que eu faço é também do senhor!
COMERCIANTE: Foi o que eu pensei, quando ele avançou contra mim com aquela pedra na
mão:. Eu sabia que ele me odiava. Quando entramos na região desabitada, fiquei noite e dia
de sobreaviso. Eu só podia imaginar que ele viria para cima de mim na primeira oportunidade.
Se eu não tivesse atirado, o morto seria eu!
MULHER: Eu só queria dizer uma coisa: ele não pode Ter agredido esse homem, ele jamais
agrediu ninguém!
GUIA: Pode ficar descansada: a prova da inocência dele está aqui na minha saca.
GUIA: Pois então veja o que a pedra tem dentro! ( DERRAMA A ÁGUA DO CANTIL.)
PRIMEIRO JUIZ ADJUNTO : Isto é um cantil com água, não é pedra nenhuma: ele ia oferecer
água ao senhor!
SEGUNDO JUIZ ADJUNTO: Agora, tudo indica que ele não pretendia em absoluto matar
ninguém.
GUIA ( ABRAÇANDO A VIÚVA DO MORTO: ) Viu? Consegui provar: ele era inocente. Foi só
por um acaso excepcional que eu pude provar isso: eu mesmo tinha dado o cantil d’água a ele,
quando partiu do último posto, e o estalajadeiro é testemunha de que o cantil é meu.
JUIZ: Como pode ser isso? ( AO COMERCIANTE: ) Ele ia dar de beber ao senhor!
JUIZ: Não era pedra nenhuma: não está vendo que é um cantil com água?
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COMERCIANTE: Mas eu nunca podia imaginar que fosse um cantil com água: aquele homem
não tinha motivo algum para me dar de beber! Eu não era amigo dele.
GUIA: Deve ter imaginado que o comerciante estava com sede. ( OS JUÍZES SORRIEM UNS
PARA OS OUTROS.) Decerto por um sentimento de humanidade. ( OS JUÍZES TORNAM A
SORRIR. ) Talvez até por imbecilidade, e por isso eu acho que ele não tinha nada contra o
comerciante.
COMERCIANTE: Só se ele era muito imbecil, mesmo. Um sujeito que, por minha causa, sofreu
um acidente capaz de deixá-lo aleijado para o resto da vida, e logo num braço! Nada mais
justo, da parte dele, do que querer ir à forra.
COMERCIANTE: Por um pouquinho de dinheiro à toa, ele se prestava a andar com uma
pessoa como eu, que tenho dinheiro à beça! É verdade que o caminho era tão árduo para ele
como para mim.
JUIZ: O senhor quer dizer que tinha razão em supor que o carregador tivesse alguma coisa
contra a sua pessoa. Dadas as circunstâncias, portanto, o senhor teria atirado numa criatura
inofensiva, tão somente por não poder imaginar que era inofensiva. Isso acontece, vez por
outra, com os nossos policiais: atiram no meio de uma multidão de manifestantes, gente
absolutamente pacífica, só por não poderem conceber que essa gente não esteja pronta para
arrancá-los de cima dos cavalos e linchá-los. Então os policiais atiram, a bem dizer, só por
medo; e o fato de terem medo é uma prova de bom-senso. Agora, o senhor quer dizer que não
podia saber que o carregador constituía uma exceção...
JUIZ: Então, é isto: que motivos poderia ter o carregador, para dar de beber ao seu carrasco?
OS JUÍZES RETIRAM-SE.
CHEFE DA SEGUNDA CARAVANA: O senhor não tem medo de nunca mais arranjar
emprego?
JUIZ (AO COMERCIANTE:) O tribunal tem mais uma pergunta a lhe fazer: por acaso o senhor,
matando o carregador, não saiu com vantagem?
COMERCIANTE: Pelo contrário! Eu precisava dele, para o negócio que ia fechar em Urga: era
ele quem carregava os mapas e as tabelas de que eu tinha necessidade. Eu não estava em
condições de carregar sozinho as minhas coisas!
JUIZ: Então eu vou proferir a sentença! O Tribunal considera provado que o carregador
aproximou-se do patrão, não com uma pedra, e sim com um cantil d’água. Ainda partindo
dessa premissa, porém, era muito mais provável que ele estivesse pensando em matar o
patrão, com um cantil, do que em lhe dar de beber. O carregador pertencia a uma classe que
tem , efetivamente, razões para sentir-se prejudicada. Para pessoas da classe do carregador,
defender-se contra um abuso que o deixasse lesado na partilha da água, era uma simples
questão de bom-senso. Para pessoas desse tipo, com seus pontos de vista limitados e
unilaterais, aferrados a um único aspecto da realidade, parecia até bastante justo vingar-se
dos que as maltrataram: no dia do ajuste de contas, só teriam a ganhar. O comerciante não
pertencia à mesma classe do carregador, de quem só poderia esperar o pior. O comerciante
jamais poderia acreditar em qualquer gesto de camaradagem por parte do carregador, a quem
ele havia confessadamente maltratado: o bom-senso lhe dizia que sobre ele pesavam as mais
graves ameaças, e o despovoado da região devia trazê-lo cheio de apreensões. A ausência de
polícias e de juízes possibilitava ao emprego arrancar-lhe à força a sua ração de água , e o
encorajava mesmo a fazer isso. O acusado, portanto, agiu em legítima defesa, tanto no caso
de Ter sido realmente ameaçado, quanto no caso de apenas sentir-se ameaçado. Isto posto,
absolve-se o acusado, e não se toma conhecimento da queixa da mulher do morto.
===FIM===