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Nexo de causalidade em avaliação do dano corporal

Autor(es): Vieira, Duarte Nuno; Corte-Real, Francisco


Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/32123
persistente:
DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0400-8_3

Accessed : 29-Apr-2020 11:46:39

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Aspectos práticos
da avaliação do dano
corporal em Direito Civil

Coordenação

Duarte Nuno Vieira


José Alvarez Quintero

Biblioteca Seguros
Junho 2008 Número 2 CAIXA SEGUROS
(Página deixada propositadamente em branco)
Biblioteca Seguros 61

III - Nexo de Causalidade em


Avaliação do Dano Corporal 1

Duarte Nuno Vieira


Francisco Corte-Real

INTRODUÇÃO
Toda a perícia médico-legal de avaliação de a perícia. Não raras vezes, é mesmo uma das suas
danos corporais é dominada pelas questões rela- principais dificuldades, podendo revestir-se de
tivas à imputabilidade e ao nexo de causalidade. assinalável complexidade e melindre, dado colocar
Na realidade, na presença de uma alteração da o estabelecimento da imputabilidade em jogo
integridade psico-física é ao médico perito que múltiplos elementos, nomeadamente o diagnósti-
compete dizer se as lesões observadas são con- co médico, a dúvida científica, problemas de even-
sequência de um determinado evento e se as se- tuais estados anteriores ou até o segredo médico.
quelas que a vítima alega e cuja realidade consta- Uma decisão errada relativamente à imputabilidade
tou, estão ligadas a tais lesões. pode levar a uma injustiça num sentido ou noutro.
A problemática do nexo de causalidade no É, aliás, a justo título que em todas as abordagens
âmbito da avaliação de danos corporais constitui deste tema se insiste que os principais erros de pe-
assim, indiscutivelmente, assunto de particular ritagem são erros de imputabilidade. Por isso falar
relevância. A sua abordagem e ponderação é um de nexo de causalidade constitui sempre um desa-
dos momentos mais nobres e delicados da perí- fio estimulante, mas também, e simultaneamente,
cia médico-legal, um momento decisivo para toda um desafio gerador de alguma preocupação.

1 Este texto, baseado em conferência proferida pelo primeiro autor em 2000 e em artigo publicado pelo segundo no ano de 1997,

é dedicado à memória de Claude Rousseau. Segue de perto muitas das suas considerações e reflexões doutrinárias sobre este tema,
designadamente as proferidas no contexto das memoráveis palestras que realizou em Coimbra nos finais dos anos 80 e início dos anos
90, no âmbito de Seminários sobre Avaliação do Dano Corporal promovidos por Oliveira Sá. Agradecem ainda à Dr.ª Hélène Hughes-Béjui,
sucessora de Claude Rousseau nas funções que este exercia no AREDOC, a cedência de documentação sobre esta matéria.
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Na abordagem do nexo de causalidade em por um dado acidente é a causa do prejuízo sofri-


avaliação de danos corporais é fundamental, antes do pela vítima.
de mais, dissociar o procedimento médico do pro- A análise do nexo de causalidade representa
cedimento jurídico. É fundamental que se com- a etapa intermediária entre a imputabilidade
preenda que existe uma diferença entre o pro- médica e a causalidade jurídica, é o caminho per-
cedimento médico, que procura estabelecer uma corrido desde o evento até à situação, a expli-
relação entre a alteração da integridade psico- cação da causa(s), da(s) sua(s) modalidade(s) de
-física de uma dada pessoa e um determinado acção e do(s) seu(s) papéis respectivos.
evento, e o procedimento jurídico, que tem por O estabelecimento da causalidade é com-
missão atribuir as consequências dessa alteração petência do jurista. O estabelecimento da imputa-
ao responsável pelo evento, isto é, pelo acto ou bilidade médica e a análise do nexo que a funda-
omissão que provocou as lesões, com tudo o que menta é tarefa do perito médico. O perito médi-
do ponto de vista jurídico se pode daí retirar no co está presente para informar o jurista, para
plano da responsabilidade do autor desse evento o esclarecer, para o ajudar na decisão que este
e da reparação da vítima. terá de tomar relativamente à causalidade. E não
Deve, pois, distinguir-se a imputabilidade basta, por vezes, que dê uma resposta afirmativa
médica da causalidade jurídica, distinção um ou negativa. É frequentemente preciso (sempre
pouco artificial mas esclarecedora entre duas preciso, acrescentaríamos) que explique o racio-
etapas que são efectivamente diferentes. É certo cínio que sustenta a passagem da causa ao
que estes termos - imputabilidade e causalidade - efeito, isto é, a imputabilidade, no caso dos danos
são, evidentemente, muito vizinhos e, por isso, cuja apreciação é de índole médica. A imputabili-
com frequência utilizados indistintamente pelos dade médica é pois, de certa forma, a explicação,
médicos e pelos juristas. Mas possuem significa- frequentemente simples, mas por vezes muito
dos diversos. A imputabilidade médica (também complexa, dos mecanismos fisiopatológicos que
chamada causalidade médico-legal) é a relação permitiram às lesões iniciais gerar lesões tempo-
entre a situação psico-física de um determinado rárias ou permanentes, apesar, por exemplo, dos
indivíduo e um determinado facto, é o elemento eventuais tratamentos. Esta explicação deve, natu-
que permite admitir cientificamente a existência ralmente, ser cientificamente coerente. E esta
de uma ligação entre um qualquer evento e um coerência supõe desde logo que as lesões iniciais
estado patológico, uma alteração na integridade sejam perfeitamente conhecidas e que as seque-
psico-física; por exemplo, entre um acidente de las tenham sido perfeitamente inventariadas
viação e uma fractura ou entre uma fractura e analisadas.
e uma dor articular. A causalidade jurídica será Como escreveu Claude Bernard, “o raciocínio
a qualidade da causa, a relação entre a responsa- será sempre justo quando se basear em noções
bilidade do autor do evento (do tal acto ou omis- exactas e factos precisos; mas poderá apenas
são) e a situação considerada; é o elemento que, conduzir ao erro sempre que as noções ou os fac-
em direito, permite admitir que um determinado tos em que se apoia estejam primitivamente
acto é a causa de uma determinada situação; por impregnadas de erros ou de inexactidões”.
exemplo, que o erro cometido pelo responsável Assinale-se desde já que esta tarefa médica
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de estabelecimento da imputabilidade e de e Cordonnier, em 1925, critérios que muitos


análise do nexo de causalidade não difere subs- outros vieram depois repetir ou reagrupar de for-
tancialmente quer o evento inicial corresponda mas diversas e que (um pouco injustamente)
por exemplo a uma intervenção médica, quer seja surgem frequentemente designados na literatura
de qualquer outra natureza, nomeadamente, médico-legal por critérios de Simonin, talvez por
e com bastante mais frequência, um acidente. ter sido este um dos autores que mais contribuiu
Tem apenas a característica de ser por rotina para a sua melhor explicitação e divulgação.
mais complexa nalgumas situações particulares, Em número de sete na sua versão original
como nos casos de dano médico. (e não vislumbramos razões substanciais para
seguir os reagrupamentos ou modificações pro-
CRITÉRIOS PARA O ESTABELECIMENTO postas posteriormente por diversos autores),
DO NEXO DE CAUSALIDADE estes critérios constituem uma preciosa ajuda
Na abordagem ao problema do nexo de à reflexão e à decisão. Devem, todavia, ser inter-
causalidade, melhor dizendo da imputabilidade pretados com precaução e com a consciência
médica, a primeira etapa consistirá em avaliar plena de que nenhuma regra doutrinal estipula
e estabelecer, se existe, no plano médico, uma que a verificação de um determinado número
relação de causalidade entre o evento (o tal aci- desses critérios permite concluir pela imputabili-
dente de viação, por exemplo) e as lesões cons- dade, sendo todavia certo que a verificação de
tatadas e/ou entre estas lesões e as sequelas alguns é absolutamente obrigatória. Envolvem,
alegadas e confirmadas. A esta primeira questão como veremos, três aspectos essenciais: a sede
o médico perito deve responder negativamente (localização das lesões e sequelas), o tempo (inter-
ou positivamente, consoante o caso. Dito de valo de aparecimento e continuidade evolutiva) e a
outra forma, e para facilitar o raciocínio, podemos explicação patogénica (a fisiopatologia das lesões
considerar que esta primeira etapa obedece à lei e sequelas). Analisemos então cada um deles:
do tudo ou nada. Nesta conformidade, ou não há
nenhuma razão científica susceptível de explicar 1.º O primeiro critério é o da verosimilhança
a relação de causalidade e não há assim imputa- científica ou, por outras palavras, o de uma natu-
bilidade, ou então, e pelo contrário, esta relação é reza adequada do acto ou evento em causa para
possível. Nesta segunda hipótese, isto é, a ser produzir as lesões ou sequelas evidenciadas. Este
possível a relação, entrar-se-á então na aprecia- primeiro critério é, simultaneamente, o mais sim-
ção da imputabilidade. Importará, a partir daqui, ples e o mais subtil. Na maioria dos casos é, como
descrever e analisar todos os elementos que pos- sabemos, bem evidente. Mas em situações mais
sam fundamentar uma decisão relativamente ao complexas, o perito médico terá de tomar em
nexo de causalidade, melhor dito à imputabili- consideração múltiplos elementos, nomeadamen-
dade, procedimento que será o objecto da segun- te os dados actuais da ciência e a sua própria
da etapa. experiência.
Para esta segunda etapa, o perito médico
dispõe então de um certo número de critérios, 2.º O segundo critério a ponderar envolve a
inicialmente propostos e definidos por Muller certeza diagnóstica. Consiste em determinar com
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exactidão as lesões e a sua natureza adequada da área específica nessa interpretação, quando
à etiologia em causa. É um critério capital. Como tal se justifique. É que as lesões iniciais podem
seria possível imputar a uma determinada causa não ser necessariamente as que estão expressas
um estado do qual se ignora a natureza? É uma nesse relatório. E se apenas tem disponível o
simples questão de bom senso, devendo o bom relatório médico e não o exame em si, há que
senso ser a primeira qualidade do médico e, por- indicar claramente esse facto no relatório pericial
tanto, do médico perito. da avaliação efectuada e saber recorrer à utiliza-
Confrontando todos os elementos, poderá o ção do modo condicional na sua elaboração.
médico perito dizer se existe um conjunto de
argumentos suficientemente probatórios para 3.º O terceiro critério a ter em consideração
admitir como verdadeiras certas lesões iniciais. é o da integridade pré-existente da região ou da
Se esse conjunto de argumentos se afigura função atingida, isto é, a exclusão da pré-existên-
escasso ou de má qualidade, deverá então indicar cia de dano. Quando não preenchido, este critério
que as lesões iniciais não são verdadeiramente obriga necessariamente à ponderação de dois
conhecidas e que, como tal, não é verdadeira- aspectos: por um lado, a eventual intervenção
mente possível afirmar que as sequelas cons- de um estado anterior (problemática particular-
tatadas lhes sejam imputáveis. Nada impedirá mente complexa e que mais adiante abordare-
de acrescentar que, se novos elementos vierem mos detalhadamente) e, por outro, a considera-
a permitir estabelecer esta imputabilidade, pode- ção de um eventual impulso evolutivo do estado
rá ser admissível tal conclusão. Na realidade, os patológico. Para melhor concretização do que
decisores encarregues do processo poderão vir a pretendemos assinalar, poderemos utilizar como
dispor dos elementos necessários para solucionar exemplo uma situação de esclerose em placas.
por si o problema, se novos elementos probató- Os conhecimentos científicos actuais permitem
rios lhes forem aportados ou se estimarem que o saber que um traumatismo não pode provocar
conjunto de argumentos, embora limitado, é sufi- uma esclerose em placas, mas que pode desen-
ciente. Mas sejamos claros, se foram propostas cadear um impulso evolutivo. O perito pode pois
conclusões na hipótese de documentos comple- admitir (e depois explicar) o nexo de causalidade
mentares virem a esclarecer as lesões iniciais, é entre o acidente e um impulso verificado no
conveniente indicar com precisão a que lesão ou quadro patológico da esclerose em placas.
lesões iniciais nos referimos.
Ainda uma nota sobre um ponto fundamen- 4.º O quarto critério a ponderar é a con-
tal: de cada vez que é possível ter conhecimento cordância de lugar, isto é, a adequação entre a
de exames complementares iniciais, uma radio- região atingida no contexto do evento e a sede da
grafia ou um ECG por exemplo, é necessário que lesão. Os aparentes paradoxos, embora muitas
na medida das suas possibilidades técnico-cientí- vezes absolutamente evidentes para o médico,
ficas o médico perito os procure também inter- devem ser explicados ao destinatário (ou desti-
pretar e que não se limite a copiar o relatório, natários) do relatório pericial (segurador, jurista,
a não ser para dizer se partilha ou não da opinião magistrado, etc.) que pode não ter (e não tem
nele expressa. Ou até que peça a ajuda de colega frequentemente) conhecimentos técnicos que
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lhe permitam compreender a situação. É o caso, 6.º Encadeamento anátomo-clínico ou, por
por exemplo, de uma paralisia dos membros infe- outras palavras, continuidade evolutiva. Trata-se
riores provocada por um traumatismo abdominal. de critério encadeado com o anteriormente refe-
A lógica médica que explica tais aparentes para- rido e que pode ser determinante, sobretudo
doxos deve ser claramente explicitada pelo perito quando o tal intervalo abordado no ponto anterior
no estabelecimento do nexo de causalidade. é demasiado longo. Um período silencioso dema-
siado alargado pode impedir, por vezes, o estabe-
5.º A adequação temporal, isto é o interva- lecimento de uma determinada imputabilidade.
lo entre o acto ou evento e o aparecimento das Entre o evento e o dano a imputar-lhe deve existir
lesões, é outro critério importante, a interpretar uma continuidade sintomatológica, uma sucessão
em função de cada caso particular. Nem sempre de factos fisiopatológicos que torne plausível e
as queixas são imediatas. Existem lesões que aceitável uma cadeia causal, indo do evento até à
não poderão ter qualquer relação com um deter- última expressão do dano, conforme aos dados
minado evento se surgem distanciadas deste da experiência clínica.
por um considerável e silencioso intervalo de
tempo. Trata-se pois de avaliar se um determi- 7.º Finalmente, a realidade do facto ou do
nado intervalo livre entre o evento em causa e evento associado às lesões observadas, ou seja,
a primeira constatação médica do dano é ou não a exclusão de uma causa estranha. Esta é uma
compatível com uma determinada correlação condição indispensável à qual se pode juntar
etiológica. a intensidade do traumatismo. Este último critério
À questão de qual a duração aceitável deste completa o da verosimilhança, referido logo no
intervalo, apenas poderemos responder que não início, particularmente no domínio dos trauma-
existem regras absolutas. Cada caso é uma situa- tismos psíquicos ou emocionais.
ção particular a ser ponderada em função do
conhecimento científico, da experiência profis- Sublinhe-se, uma vez mais, que estes sete
sional e do exame pericial concretizado. Perante critérios (que como vimos envolvem aspectos
um intervalo demasiado longo, por exemplo, cronológicos, etiológicos, topográficos, quantita-
compete ao médico perito avaliar se as declara- tivos, etc., aspectos estes que têm servido de
ções da vítima são medicamente aceitáveis e base a outras propostas de classificação) não de-
coerentes, se o seu comportamento após os fac- vem constituir senão elementos de reflexão, a
tos é medicamente plausível, se tal é cientifica- serem interpretados cuidadosa e ponderada-
mente sustentável. Note-se a este propósito que mente em cada situação concreta.
o perito pode (e deve) formular uma opinião É precisamente esta cuidadosa ponderação
sobre a aparente boa fé do examinado. Deve no âmbito da análise de cada caso submetido
aliás ser capaz, após diversos anos de exercício a perícia, que permitirá ao perito médico obter
da medicina e da actividade pericial, de proceder uma primeira resposta à problemática em apreço.
a um diagnóstico psicológico elementar das víti- E se esta é positiva, deve então assinalar a impu-
mas que examina, na condição de despender tabilidade, não esquecendo que deve dar apenas
o tempo necessário para as examinar. uma opinião técnica ao jurista a quem compete
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o poder de decisão quanto à causalidade. A impu- NEXO DE CAUSALIDADE CERTO OU


tabilidade, o nexo de causalidade, é apenas um HIPOTÉTICO, DIRECTO OU INDIRECTO,
elemento de informação destinado ao decisor, EXCLUSIVO OU PARCIAL
para o ajudar a pronunciar-se sobre a causalidade A imputabilidade, ou se quisermos o nexo de
e, por consequência, sobre a responsabilidade causalidade, pode ser certo ou hipotético, directo
da reparação. ou indirecto, exclusivo ou parcial. A estes dife-
Dos sete critérios referidos, considera-se por rentes tipos chegará o perito médico pela pon-
razões óbvias como um dos mais relevantes o da deração dos sete critérios referidos.
verosimilhança, assente não apenas sobre o bom Se o nexo é certo (isto é, o evento foi segu-
senso e uma sólida cultura médica e médico- ramente a causa das lesões e/ou das sequelas
-legal, mas igualmente sobre uma adequada docu- observadas), directo (ou seja, as lesões e/ou
mentação bibliográfica e estatística. Três outros sequelas resultaram directamente do evento)
critérios são constantes e obrigatórios: a reali- e total (nenhuma outra causa para além do even-
dade e intensidade do agente causal, a integri- to em apreço teve responsabilidade na afectação
dade prévia da região atingida e a certeza do da integridade psico-física constatada), não exis-
diagnóstico actual. Os restantes três (concordân- tem dificuldades. A situação é clara. A discussão
cia de local, intervalo de aparecimento e con- sobre esta matéria no relatório pericial pode ser
tinuidade evolutiva) são obviamente susceptíveis breve, porventura até dispensável. Esta eventuali-
de variar com a patologia em causa. dade é, felizmente, bastante frequente.
A análise minuciosa destes sete critérios Mas se assim não é, terá então o perito
pode permitir, pois, ao perito médico chegar a médico de entrar na terceira etapa do seu
uma convicção que corresponde a uma certeza raciocínio, que implicará sempre (deverá implicar)
científica, tal como já assinalámos previamente. relatórios periciais particularmente descritivos e
Mas, sublinhe-se também uma vez mais, não explicativos de toda a problemática em jogo.
termina aí o trabalho do perito médico. Este Vejamos como proceder pericialmente em cada
deve explicar o nexo de causalidade para possi- uma das situações em que o nexo de causalidade
bilitar uma interpretação lógica pelo jurista não seja certo, directo e total, podendo ser sim
a quem compete, exclusivamente, a decisão hipotético, indirecto ou parcial.
sobre a causalidade. E se porventura o médico
não consegue chegar a esta certeza científica, NEXO DE CAUSALIDADE HIPOTÉTICO
deve então expressar a dúvida. Isto porque não A imputabilidade será hipotética quando
lhe compete tomar decisão que não releva da a análise dos critérios relativos ao nexo de causa-
técnica médica e cujas consequências se re- lidade não consente o seu estabelecimento com
portam sobre a responsabilidade de um indiví- segurança, sucedendo todavia que o perito médi-
duo e a reparação do prejuízo sofrido por outro. co também o não pode afastar formalmente.
Numa tal eventualidade de dúvida, esta será Numa situação destas, não lhe resta outra alter-
explicitada através da análise do nexo de cau- nativa senão a de consignar no relatório pericial
salidade hipotético, que seguidamente abor- as suas dúvidas. E o decisor deverá encontrar
daremos. nesse relatório todos os argumentos que são
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a favor da imputabilidade médica e todos aque- esta dúvida num hábito, numa prática de rotina
les que se lhe opõem. Mas significa isto que, por tradutora de uma posição de comodismo pericial e
regra, o médico perito se deve então limitar ape- que, eventualmente, será na maioria das vezes
nas a enunciar uns e outros? Diríamos que não. benéfica para o responsável, pois na dúvida o juiz
Consideramos que é obviamente desejável que, irá abster-se de condenar. O perito médico que
por regra, o perito médico procure tomar alguma duvida frequentemente não interessa à Justiça;
posição, ainda que sabendo que se pode pontual- aquele que não duvida nunca é pouco fiável a essa
mente equivocar. A medicina não é uma ciência mesma Justiça. Quando efectivamente não sabe,
exacta e todo o perito médico pode errar no esta- ou quando não lhe foi possível chegar a nenhum
belecimento da imputabilidade. Mas o que o peri- tipo de convicção, o perito médico deve então ter
to deve evitar também é concluir sempre com a honestidade e a coragem de o dizer, fornecendo
dúvida nestas situações, sob o pretexto de que ao decisor os elementos susceptíveis de o ajudar.
a medicina não é uma ciência exacta e que não
há nunca elementos de certeza. É para este juízo NEXO DE CAUSALIDADE INDIRECTO
de valores que ele intervém. Para, recorrendo O carácter por vezes indirecto do nexo de
nomeadamente aos seus conhecimentos técni- causalidade pode colocar um problema que im-
co-científicos, à literatura médica, aos elementos porta elucidar, se se pretende responder correc-
estatísticos, ou a outros especialistas a quem, tamente à missão pericial de avaliação de danos
eventualmente, tenha solicitado algum apoio na corporais.
decisão, procurar formular um juízo de valor que Do ponto de vista médico e no contexto do
possa ajudar o decisor que, naquela matéria nexo de causalidade, o carácter directo ou indi-
específica, não possui a formação e conhecimen- recto visará a filiação patogénica entre a causa
tos necessários, a competência específica que ao e o efeito. Por outras palavras e a título de exem-
perito médico é reconhecida em tais matérias. plo, será indirecta para o médico a ligação entre
É pois importante situar a fronteira da dúvi- um traumatismo abdominal e a seropositividade
da, o que não é fácil, repousando o raciocínio para a SIDA, na sequência de uma laparotomia
científico médico mais frequentemente sobre e da esplenectomia que necessitou de uma trans-
dúvidas que sobre certezas. Deve evitar-se con- fusão. É, pois, necessário que o médico explique
cluir pela dúvida quando, em consciência técnica esta ligação indirecta, para que o decisor possa
e científica, temos a nossa “íntima convicção”. compreender e tirar as consequências sobre
Esta expressão, de Claude Rousseau, não é por- o plano da responsabilidade do autor e da repa-
ventura a mais feliz, mas pode ser evocada numa ração do dano sofrido pela vítima. O relatório
aproximação ao raciocínio jurídico, podendo o pe- pericial deve assim, também nestes casos, ser
rito médico ter uma convicção técnico-científica. descritivo e comportar, em particular, uma expli-
Sublinhe-se, todavia, que se é de evitar con- cação sobre o nexo de causalidade e das razões
cluir frequentemente pela dúvida, deve também que fundamentam tal ligação indirecta.
evitar-se ser sempre categórico na conclusão.
O perito médico pode, e deve, reconhecer que não NEXO DE CAUSALIDADE PARCIAL
sabe. O que está, pois, em causa é não transformar A imputabilidade parcial é talvez o elemento
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mais frágil do nexo de causalidade. Se a imputa- consequências iniciais foram ampliadas por este
bilidade é parcial, isso significa (tal como a própria estado intercorrente (por exemplo uma terapêuti-
designação implica) que há outra causa (ou ca inadequada) e que procure determinar o que
causas) susceptível de ter contribuído para a situa- seria imputável às lesões iniciais, tal como estas
ção que observamos, ou seja, outra causa concor- normalmente evoluiriam por si só, e o que é devi-
reu com o evento em apreço para a realização do do a esse estado intercorrente. Deve descrever
efeito. Esta outra causa poderá ser um estado esta outra causa e, se for caso disso, o carácter
intercorrente, uma predisposição ou estado ante- indirecto do seu nexo com o evento, dando o
rior. Estamos aqui no domínio do que classica- maior número de detalhes possível, mas sempre,
mente se designava na doutrina médico-legal por repete-se, sem tomar posição sobre uma even-
concausas preexistentes, simultâneas ou super- tual responsabilidade. Se a causa intercorrente
venientes, algumas das quais poderão estar tam- é susceptível de ter um responsável, compete
bém em análise no contexto do ponto anterior. ao jurista, ao julgador, tirar as consequências.
Note-se que nas situações de causalidade Nas explicações dadas pelo perito médico, procu-
parcial o perito médico deverá explicar todas rará o jurista (e deverá encontrar) qual teria sido a
estas outras causas que concorreram para a reali- realidade do dano, da afectação da integridade
zação do efeito, procurar explicar a sua influência psico-física da pessoa que está a ser pericialmente
no resultado, sem todavia pré-julgar as conse- avaliada, se não tivesse havido a segunda causa.
quências que daí serão retiradas no plano da Competirá ao jurista determinar as modali-
responsabilidade e da reparação e, em nossa opi- dades de reparação, condenando o responsável
nião, sem tomar posição sobre o eventual grau pelo evento inicial pela reparação integral das
de partilha de responsabilidade. O médico explica sequelas ou condenando-o a reparar apenas
e o juiz tomará a decisão. O médico não se deve aquelas de que é directamente responsável, con-
substituir ao juiz. soante as situações e a jurisprudência. Mas para
Cada uma destas possibilidades - estado o decisor poder fazer correctamente esta dis-
intercorrente, predisposição ou estado anterior - tinção, o perito médico terá de ter definido clara-
merece uma análise individual. Assim: mente as diferentes imputabilidades.

a) Estado intercorrente: engloba-se nesta b) Predisposição: a predisposição não é


designação todo o evento de saúde, acidente ou mais, em boa verdade, do que uma variedade de
outro, ocorrido no contexto ou depois do evento estado anterior, e como tal deverá ser, quando
inicial em apreço e que possa ser também uma possível, tratada pericialmente (será pois inte-
das causas do estado actual (estamos perante grável nas clássicas concausas preexistentes).
situações integráveis nas clássicas concausas Só que é um estado anterior muito particular.
simultâneas e supervenientes). Este estado inter- Um estado anterior que por definição estava
corrente pode até estar indirectamente ligado ao mudo, que era frequentemente ignorado (estas
evento inicial. situações respondem frequentemente a um esta-
O que deve fazer o perito médico nestas situa- do psicológico, mental ou a factores de risco).
ções? É necessário que indique claramente se as Não é nada fácil a sua abordagem. O médico,
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mesmo que convencido, não tem habitualmente anterior pode ter tido sobre a evolução do
argumentos para comprovar esta predisposição processo patológico decorrente do evento
e sobretudo a fatalidade da sua transformação (aspecto a que voltaremos posteriormente),
patogénica. São angústias a consignar no o perito médico deve também explicar a influên-
relatório. cia que sofreu o estado anterior em virtude
deste. Na realidade, o estado anterior pode ter
c) Estado anterior: o estado anterior pode sido exteriorizado (tornado patente), descompen-
ser de diferentes naturezas: afecção crónica, sado, acelerado ou agravado pelo evento em
sequelas de doença ou acidente prévio, estado apreço e cuja imputabilidade à afectação da
constitucional, etc. Encontram-se com alguma integridade psico-física actual está em jogo.
frequência situações periciais no âmbito da ava- Estas quatro modalidades evolutivas do estado
liação de danos corporais em que existe um esta- anterior podem aliás associar-se, sendo possível
do anterior, situações nas quais o perito médico que a descompensação, por exemplo, surja asso-
se pode encontrar perante a alternativa causal ciada a agravação. Explicando o mecanismo pluri-
sobejamente abordada na literatura médico-legal. factorial, o perito médico permitirá ao decisor
Note-se que não se destaca aqui a distinção entre retirar consequências no plano da responsabili-
“antecedentes” e “estado anterior”, sendo este dade da reparação. Mas o que são então cada
último o conjunto de antecedentes susceptíveis uma destas várias modalidades evolutivas?
de interferirem no processo patológico que se A exteriorização (alguns autores preferem
segue a um determinado evento, mas deve apro- a expressão desencadeamento) é a passagem de
veitar-se o ensejo para relembrar que a deontolo- um estado latente, conhecido ou desconhecido,
gia médica obriga o perito médico a revelar ape- mas silencioso, ao estado patente.
nas os antecedentes que constituem um estado A descompensação difere da situação pré-
anterior potencialmente relacionado com a situa- via no sentido em que o estado anterior era já
ção em análise. patente, ou seja conhecido, mas estava estabi-
O estado anterior pode não ter tido qualquer lizado. O evento veio fazer evoluir este estado.
interferência na afectação da integridade psico- A aceleração caracteriza-se por uma preci-
-física em análise, mas pode também ser uma pitação do processo evolutivo, sendo a evolução
causa possível das lesões ou sequelas que a víti- a que se previa para a doença pré-existente, mas
ma apresenta. Nesta segunda hipótese, o perito sendo o intervalo evolutivo encurtado. Por outras
médico está obrigado a investigá-la cuidadosa- palavras, a patologia era já por si evolutiva, mas
mente. Os dois factores - estado anterior e evento a curva evolutiva verticaliza-se (acelera-se) em
em causa - podem associar-se (é o clássico proble- consequência do evento.
ma da concausa pré-existente). Quanto ao agravamento, traduz como o
Se o estado anterior constitui uma das próprio nome indica uma diferença do nível de
causas do estado patológico, da afectação cons- afectação da integridade psico-física, diferença
tatada da integridade psico-física, existe um esta que deve ser ponderada na avaliação pericial.
mecanismo plurifactorial designado por cúmulo Nestes casos o perito deve informar sobre o papel
causal. Independentemente do papel que o estado que desempenhou o estado anterior no agravar
70 III - Nexo de Causalidade em Avaliação do Dano Corporal

da evolução ou sobre aquele que desempenhou decisor têm necessidade de informações que os
o evento no agravar do estado anterior. Esta ajudem a decidir e o perito é o melhor colocado
aproximação deve levar o perito médico a consi- para as fornecer (se for verdadeiramente um peri-
derar no seu raciocínio (e a consignar no relató- to médico). Tem, por isso, a obrigação de desen-
rio) a abordagem do tríptico clássico reiterada- volver todos os esforços no sentido de obter
mente assinalado na doutrina médico-legal: e formular a melhor aproximação possível.
1.º) Qual seria a evolução decorrente do
evento sem o estado anterior? ASPECTOS PARTICULARES
2.º) Qual seria a evolução do estado anterior NA PONDERAÇÃO PERICIAL DE
sem o evento? UM ESTADO ANTERIOR
3.º) Qual foi a evolução resultante do com- Pela complexidade da sua análise, o estado
plexo estado anterior-evento? anterior justifica ainda mais algumas reflexões
Responder à terceira questão é relativa- adicionais, no contexto das quais retomaremos
mente fácil pois trata-se da descrição de um esta- alguns dos seus aspectos já abordados.
do objectivo. Existem obviamente maiores dificul- Relembramos que quando falamos em estado
dades na resposta às duas primeiras questões e, anterior, estamos a falar em factores anteriores ao
em qualquer circunstância, a resposta nunca evento em questão, factores dos quais o perito se
pode ter uma absoluta certeza científica. Esta é, apercebe no decurso da perícia (ou que por vezes
aliás, uma das circunstâncias que confere nobre- lhe são até referidos pelo examinando), e que
za e interesse à perícia de avaliação do dano cor- podem ter influenciado a evolução das lesões e a
poral, pelo desafio e estímulo que representa e a dimensão da afectação da integridade psico-física
que já inicialmente aludimos. A qualidade da res- a cuja valorização pericial está a proceder.
posta dada, será reflexo da qualidade do perito. A valorização do estado anterior depende,
Para ajudar a proporcionar argumentos ao em grande medida, e como muitos outros aspec-
decisor, o perito médico dispõe dos seus conheci- tos no âmbito de perícias de avaliação dos danos
mentos de patologia, da sua experiência, de corporais, do ramo do direito em que a perícia se
estatísticas, de documentação científica, de espe- processa. No âmbito do direito do trabalho, por
cialistas diversos a quem pode recorrer, e deve exemplo, estão legalmente definidas e publicadas
procurar obter toda a documentação clínica da regras que devem ser aplicadas quando se veri-
pessoa que avalia, sobretudo a que possa facultar fique a existência de um estado anterior 2. Mas tal
informação sobre a evolução do estado anterior não sucede no campo da avaliação do dano corpo-
nas semanas, meses ou anos que antecederam o ral de natureza cível. Isto tem conduzido a que na
evento. O médico poderá ter a tendência a hesi- prática pericial neste domínio se venham verifi-
tar nestas situações, a não responder com o pre- cando formas diversas de proceder à valorização
texto que só poderia formular hipóteses e que de um estado anterior, seguindo modalidades mais
não sabe predizer o futuro, mas o regulador e o frequentemente dependentes de interpretações

2 Veja-se a Lei dos Acidentes de Trabalho.


Biblioteca Seguros 71

individuais ou de extrapolações indevidas de co-responsabilização atribuída a patologias ante-


regras de outras áreas do direito (sobretudo do riores nas consequências de alguns eventos, não
direito do trabalho), do que da assunção de um se deveria também valorizar um estado anterior
pensamento autónomo específico que deve carac- anormalmente saudável e robusto? A resposta
terizar a avaliação de natureza cível do dano é obviamente negativa. Se o estado anterior
corporal. resulta num benefício para o próprio (que ficou
Ora ninguém contestará que embora a avalia- com menos sequelas que qualquer outro indi-
ção do dano corporal de natureza cível deva ser víduo de constituição física menos robusta),
personalizada, é desejável (diríamos mesmo exi- o facto da reparação nunca poder ultrapassar
gível) que a metodologia em que se baseia essa o prejuízo causado, implicará necessariamente
mesma avaliação siga uma norma aplicável a que o responsável pelo dano “beneficie” também
todos os casos. A não ser assim, corre-se o risco no montante indemnizatório a pagar. Excluindo
de poderem dois peritos valorizar de forma diver- este tipo de situações, aliás não muito frequentes
sa o estado anterior do mesmo examinando, ou na prática pericial, interessam-nos, sobretudo,
valorizar de forma diversa situações similares, os casos em que as lesões provocam um agrava-
podendo isso implicar, por exemplo, a determi- mento do estado anterior ou em que este último
nação de incapacidades permanentes bastante influencia negativamente a normal evolução das
diferentes, mesmo tendo-se verificado igual avalia- primeiras.
ção pericial das sequelas apresentadas. Coloca-se, desde já, o problema de se saber
Sublinhe-se que quando nos referimos a quais das situações susceptíveis de constituírem
influência ou a alterações na evolução das lesões um estado anterior deverão ser consideradas
resultantes de um estado anterior, apenas as concausas atendíveis, para, num momento poste-
consideramos no sentido negativo, ou seja, no rior, poder eventualmente o responsável pela pro-
sentido do agravamento, pois admitindo que dução do dano vir a ser responsabilizado pelo
determinado estado anterior pudesse ter influên- decisor pela totalidade das sequelas. Uma pessoa
cia positiva sobre a evolução de uma lesão, tal idosa que sofra um determinado dano traumático
facto não mereceria, por razões óbvias, valoriza- e que, em virtude das consequências normais do
ção médico-legal. Seria, por exemplo, a situação envelhecimento se encontre fisicamente mais
do atropelamento de um atleta com uma massa fragilizada, sofrerá, provavelmente, mais lesões
muscular de tal modo desenvolvida, que, por esse e de maior gravidade (sendo também a consoli-
motivo, não sofreria lesões tão significativas dação dessas lesões mais tardia e as sequelas
(consolidariam mais rapidamente e com menos delas resultantes provavelmente mais significati-
dores) do que um outro indivíduo de desenvolvi- vas), do que um adulto jovem. Um recém-nascido
mento muscular mediano. No primeiro caso have- ou uma criança de pouca idade, não resistirão
ria provavelmente menor prejuízo para a vítima certamente da mesma forma que um adulto
no que se refere à maioria dos parâmetros de a determinados traumatismos violentos. Uma
dano habitualmente considerados no âmbito da mulher grávida poderá apresentar complicações
avaliação dos danos corporais em direito civil. pós-traumáticas menos frequentes noutras pes-
Poderia perguntar-se se, em coerência com a soas. Em todas estas situações existe, indubita-
72 III - Nexo de Causalidade em Avaliação do Dano Corporal

velmente, um estado anterior que influencia ou anteriormente ao acidente em questão e do


pode influenciar negativamente a evolução das evento traumático resultem lesões e sequelas,
lesões. Mas poderá responsabilizar-se, no todo ou pode acontecer não haver qualquer influência
em parte, a evolução das lesões a esse estado desse estado anterior na evolução das lesões
anterior? A resposta nunca poderia ser positiva, e nas sequelas delas resultantes, nem estas
nem se poderia argumentar que, nesses casos, terem tido qualquer consequência sobre a pa-
existia uma determinada situação patológica tologia anterior. Ainda assim, como iremos ver,
anterior que, em parte, deveria ser responsável podem surgir dificuldades na abordagem pericial.
pelas consequências, porque não se trata de Para uma melhor sistematização do que pre-
patologias, mas antes, de vulnerabilidades anáto- tendemos assinalar, analisemos separadamente
mo-fisiológicas normais para a idade e situação. a ponderação dos vários parâmetros de dano
Estamos perante as classicamente designadas habitualmente valorizados em Portugal na avalia-
concausas preexistentes fisiológicas, não atendí- ção do dano corporal de natureza cível: Data de
veis pericialmente, devendo nestes casos ser esta- Consolidação, Incapacidade Temporária Geral,
belecido um nexo de causalidade total, ou seja, Incapacidade Temporária Profissional, Quantum
imputando as consequências, na sua totalidade, Doloris, Dano Estético, Incapacidade Permanente
ao evento traumático em questão. Geral, Incapacidade Permanente Profissional e
Mas a valorização pericial de situações envol- Prejuízo de Afirmação Pessoal.
vendo estados anteriores começa a ser complexa Seguindo a sistematização referida, começa-
quando esse estado anterior envolve uma pato- ríamos pela data de consolidação, que, neste pri-
logia estabelecida ou latente. Nestas condições meiro grupo de situações, não seria influenciada
podem verificar-se inúmeras situações distintas, pelo estado anterior, seguindo-se, assim, a nor-
que habitualmente e por facilidade de aborda- mal evolução das lesões, como se de um indiví-
gem, se agrupam em três tipos: duo saudável se tratasse. A existir influência, esta-
ríamos perante situação a englobar num dos ou-
1.º) O evento traumático não agravou o esta- tros grupos referidos acima e que iremos abordar
do anterior, nem este teve influência negativa posteriormente. Mas já quanto à incapacidade tem-
sobre as consequências daquele. porária geral, a situação poderá ser mais ambí-
2.º) O estado anterior teve influência negati- gua. Suponhamos que se tratava de um indivíduo
va sobre as consequências do evento traumático. que, por qualquer motivo, congénito ou pós-
3.º) O evento traumático agravou o estado -traumático, já não possuía o membro superior
anterior ou exteriorizou uma patologia latente. esquerdo à data de um atropelamento. Suponha-
Analisemos como proceder em cada um mos, ainda, que deste evento resultou uma frac-
destes distintos grupos de situações. tura do braço direito, implicando a imobilização
gessada desse membro. O estado anterior não
1.ª) 0 evento traumático não agravou o influencia a normal evolução da lesão, mas colo-
esta-do anterior, nem este teve influência nega- ca-se o problema de determinar a incapacidade
tiva sobre as consequências daquele. temporária geral.
Quando existe uma patologia estabelecida Durante o período em que mantém o gesso,
Biblioteca Seguros 73

o sinistrado não poderá exercer actividade com das indemnizações serem reduzidas e tardias, con-
o seu membro imobilizado e, como não tem o tudo, a discussão seria outra, interessante sem
membro superior esquerdo, estará altamente dúvida, mas não relacionada com o problema em
incapacitado em termos de autonomia, necessi- questão. A forma de compensação dos danos
tando, inclusivamente, da ajuda de uma terceira anteriores enquadra-se num âmbito que não é o
pessoa na execução das suas actividades diárias. da peritagem médico-legal, portanto, fora do âmbi-
Colocam-se assim duas hipóteses na valorização to da nossa discussão.
da incapacidade temporária geral: ou se faz a No decurso da peritagem de avaliação de da-
avaliação como se não tivesse qualquer amputa- nos corporais, o perito médico pode desconhecer
ção anterior, argumentando que o condutor do o facto de ter sido ou não atribuída uma incapaci-
veículo não tem responsabilidade sobre essa dade ou uma indemnização anterior. Não pode
amputação e, por isso, não deverá ser prejudica- basear-se na informação do examinado, nem
do ao ter que indemnizar num montante superior fazer dois tipos de valorização: considerar tudo
àquele que seria obrigado caso atropelasse um como resultante do acidente quando não houver
indivíduo sem esse estado anterior; ou se avalia incapacidade atribuída anteriormente; e conside-
o caso concreto como um todo, personalizando rar apenas os danos agora provocados quando tal
e atribuindo uma incapacidade temporária geral, incapacidade já tiver sido atribuída. O perito tem
como se tudo resultasse do acidente, pelo facto que fazer o relatório seguindo sempre a mesma
de, na realidade, o ofendido ter ficado temporaria- metodologia de avaliação, que consiste na valo-
mente muito incapacitado 3. Deveremos optar rização apenas da incapacidade directamente
pericialmente pela primeira hipótese. Desde logo, resultante do próprio traumatismo, ou seja, a que
porque admitindo que a amputação do membro resulta, nesta situação particular, da imobilização
superior esquerdo tinha resultado de um acidente gessada de um membro superior.
de viação ou de trabalho, o ofendido poderia ter Assim, e em conclusão, o perito médico deve
recebido ou estar a receber, uma indemnização avaliar um examinado unicamente pelas lesões
ou pensão por esse facto. Se houvesse, agora, resultantes do traumatismo em questão, consi-
uma nova valorização (referimo-nos, por enquan- derando que não apresenta qualquer outra
to, unicamente, à incapacidade temporária), que lesão 4. Esta será a regra geral a ser usada em
considerasse tudo como consequência deste avaliação do dano de natureza cível quando existe
atropelamento, a vítima poderia receber duas um estado anterior significativo, mas com as no-
vezes pelo mesmo dano, e o responsável pela tas que adiante referiremos. Mas, na linha do
produção do dano estaria a indemnizar algo mais anteriormente assinalado, deve realçar no seu
do que os danos causados. Ora este, em princí- relatório pericial o agravamento temporário que o
pio, não deverá ter de se responsabilizar por evento provocou nas capacidades do examinado
danos que não causou. Poderia referir-se o facto portador do estado anterior e recorrer à análise

3 Excluímos a hipótese de opção por situações intermédias entre as duas, o que provocaria cálculos complexos e apenas traria desvantagens.
4 «- Les lésions de membres ou organes atteints par l'accident doivent être évaluées sans tenir compte d'un état antérieur d'infirmité

pouvant affecter d'autres membres ou organes.» (Cf. Bulletin Médecine Légale, Toxicologie. Vol. 22, 2 (1979), p.198).
74 III - Nexo de Causalidade em Avaliação do Dano Corporal

do tal tríptico previamente descrito a propósito do porque senão estaria a subverter o objectivo
estado anterior. geral da perícia médico-legal em direito civil que
Continuando a abordagem sistemática dos consiste em transmitir ao juiz a avaliação das con-
parâmetros habitualmente valorizáveis, passaría- sequências que determinado traumatismo pro-
mos à Incapacidade Temporária Profissional. Quando duziu em determinada pessoa. O perito também
falamos em Incapacidade Profissional, seja Tempo- não deve tentar fazer suposições de quando
rária ou Permanente, temos que nos aproximar voltaria o ofendido a trabalhar caso possuísse o
das metodologias adoptadas em direito do traba- membro superior esquerdo. Deve, simplesmente,
lho, onde as regras estão claramente definidas e referir a Incapacidade Temporária Profissional
divulgadas. Essa aproximação consiste, necessaria- com que esteve em determinado período, com
mente, na adopção de uma das ideias subjacentes as referidas limitações. Fica assim salvaguardado
ao direito do trabalho, que é a capacidade restan- o princípio da capacidade restante, próprio do
te para o trabalho. Deveremos sempre manter a direito do trabalho.
ideia de capacidade restante quando valorizamos o Passamos, em seguida, ao Quantum Doloris.
estado anterior. Aplicaremos, novamente, a regra geral, atenden-
Considerando o mesmo exemplo que temos do apenas às dores físicas e psicológicas resul-
vindo a referir (de um indivíduo que não possuía tantes do traumatismo em questão. Perante o
o membro superior esquerdo e, que ao ser vítima indivíduo do nosso exemplo inicial (vítima de atro-
de atropelamento, fracturou o braço direito, com pelamento, de que resultou fractura do braço),
necessidade de imobilização gessada), suponha- mas que tinha já uma artrose num joelho, e está a
mos agora que o ofendido era telefonista à data ser examinado no decurso de um processo de
do acidente, atendendo o telefone apenas com a avaliação médico-legal, o perito médico não deve-
mão direita, a única que possuía. Como devere- rá obviamente valorizar as dores estranhas ao pro-
mos fazer a valorização da Incapacidade Tempo- cesso traumático em causa. Ou seja, faz a avalia-
rária Profissional? O perito médico deverá afirmar ção das dores resultantes da fractura do braço,
que o ofendido se encontra com uma Incapaci- mas não valoriza as dores da artrose do joelho ou
dade Temporária Profissional total relativamente à por qualquer outra patologia que nada tenha a ver
actividade profissional que exercia, com as limi- com o evento e as suas consequências.
tações inerentes a quem só tem um membro Quanto ao Dano Estético, os comentários
superior. É importante a referência a este último serão os mesmos que para o Quantum Doloris.
aspecto, para o tribunal ter conhecimento de que Ou seja, consideraremos o nosso examinado
o traumatismo foi responsável por uma Incapaci- como se não apresentasse a amputação do mem-
dade Temporária Profissional total num indivíduo bro superior esquerdo e valorizaremos, de modo
que já tinha alguma incapacidade. Seria diferente independente, as sequelas estéticas resultantes
se o indivíduo não tivesse qualquer incapacidade do traumatismo (mantém-se a mesma regra
anterior e retomasse o trabalho com o membro geral). Suponhamos que, como sequela da frac-
imobilizado, socorrendo-se do outro membro tura do braço direito resultou uma cicatriz de cinco
superior saudável. O perito médico não pode centímetros de diâmetro. Tal sequela seria valorizá-
valorizar ambas as situações da mesma forma, vel por exemplo como um Dano Estético de grau 2
Biblioteca Seguros 75

na escala de 7 graus habitualmente utilizada. Se, que as sequelas resultantes do acidente exigiriam
além da cicatriz, valorizássemos também a ampu- esforços suplementares, no exercício da sua acti-
tação do membro superior esquerdo, atribuiría- vidade, relativamente às limitações inerentes
mos, por exemplo, um Dano Estético de grau 7 da à ausência de um membro superior que já apre-
mesma escala, o que não reflectiria as consequên- sentava à data do acidente. Relembra-se que, no
cias específicas do traumatismo em questão. que se refere ao exercício da actividade profissio-
No que se refere à Incapacidade Permanente nal, a existência de esforços acrescidos constitui,
Genérica, as considerações serão semelhantes às por si só, um factor a ponderar em sede de cálcu-
já efectuadas quando nos referimos à Incapacida- lo da indemnização a atribuir 5,6.
de Temporária Geral. Se como resultado da frac- Se tivesse resultado uma grande limitação
tura no braço direito, o nosso examinado ficasse da flexão do cotovelo direito, que implicasse uma
com uma limitação da flexão do cotovelo, que, reduzida mobilidade desse membro superior, que
por hipótese, valorizaríamos em 10% de Incapaci- não permitisse, consequentemente, a continua-
dade Permanente Geral parcial, então concluiría- ção da sua actividade profissional, diríamos, por
mos que, em consequência do referido acidente, exemplo, que as sequelas resultantes do acidente
resultaram sequelas anátomo-funcionais que se são impeditivas do exercício da profissão de tele-
traduzem numa Incapacidade Permanente Genéri- fonista, que o examinado refere ter, assim como
ca parcial fixável em 10%, portanto, independen- de outras profissões, na área da sua preparação
temente da amputação anterior do outro mem- técnico-profissional, atendendo às limitações ine-
bro superior (regra geral). Mas, e uma vez mais na rentes à falta de um membro superior, que já
linha do anteriormente assinalado, indicando ago- apresentava à data do acidente.
ra a expressão do agravamento definitivo que o Nos casos em que possa haver lugar a atri-
evento provocou nas capacidades de um indiví- buição de um Prejuízo de Afirmação Pessoal, con-
duo com um determinado estado anterior e re- siderar-se-ão apenas as sequelas das lesões resul-
correndo também aqui à análise do mesmo tríp- tantes deste acidente, mas observando sempre o
tico previamente referido. seu estado anterior. Suponhamos que o nosso
Quanto à Incapacidade Permanente Profissio- examinado era desportista profissional de tiro com
nal atenderemos também ao princípio da capaci- pistola quando sofreu este acidente de que resul-
dade restante. Ou seja, no caso do nosso examina- tou uma acentuada limitação da mobilidade do
do (telefonista, que não possui o membro superior cotovelo direito, o que o impossibilitou de
esquerdo), se a limitação da flexão do cotovelo prosseguir com essa actividade desportiva, que lhe
direito consequente ao acidente permitisse a acti- dava muita satisfação pessoal. Perante esta situa-
vidade profissional, implicando, contudo, maior ne- ção, o Prejuízo de Afirmação Pessoal terá que ser
cessidade de esforços com esse membro, diríamos significativamente valorizado, independentemente

5 «Toda a formulação conclusiva que assumir cariz matemático é pouco recomendável.» (Cf. SÁ, Oliveira, Fernando. Clínica Médico-Legal da

Reparação do Dano Corporal em Direito Civil. Coimbra: APADAC, 1992. p.93.)


6«10. Le fait pour la victime de devoir fournir des efforts accrus afin d'obtenir dans son travail le même résultat constitue un préjudice ouvrant

droit à réparation.» Anexo da Resolução (75) 7, Conselho da Europa, relativa à reparação do dano em caso de lesões corporais ou morte.
76 III - Nexo de Causalidade em Avaliação do Dano Corporal

de haver ou não amputação do outro membro. das lesões e condicionando as sequelas delas
Ou seja, o Prejuízo de Afirmação Pessoal é de resultantes, em qualquer um dos parâmetros
tal modo personalizado que ainda mais se justi- habitualmente sujeitos a valorização. Dizemos em
fica uma individualização da apreciação deste qualquer um, porquanto o estado anterior pode
parâmetro, pelo que não poderemos estabelecer ter influência apenas num dos parâmetros, ou em
regras gerais de valorização. Uma avaliação cuida- dois, ou nalguns, ou mesmo em todos. Uma
da das sequelas e consequentes limitações em determinada patologia ou sequela anterior pode
comparação com o estado anterior será sempre implicar tratamentos mais dolorosos, provocar
necessária, de modo a formular-se uma conclu- uma consolidação mais tardia das lesões, ou ainda,
são ajustada à realidade. justificar sequelas mais graves.
Em resumo, quando o examinando que está Mas quem deverá apreciar e avaliar a influên-
a ser avaliado pelo perito médico, for possuidor cia do estado anterior? E que estado anterior de-
de uma qualquer patologia ou lesão anterior ao verá ter importância médico-legal e ser, portanto,
evento traumático em questão, que seja inde- atendível?
pendente das consequências deste evento, deve- A responsabilidade pela apreciação e avalia-
rão ser valorizadas tais consequências como se ção tem obviamente que recair sobre o perito
não houvesse estado anterior, como se o indiví- médico. Embora sabendo que a decisão final per-
duo fosse são à data do acidente, com as notas tence ao tribunal, designadamente em termos
referidas para as Incapacidades Profissionais da responsabilização de alguém pelos danos avalia-
(Temporária e Permanente). Mas assinalando sem- dos. Só quem for detentor simultaneamente de
pre o agravamento temporário e definitivo que o conhecimentos médicos e médico-legais estará
evento provocou nas capacidades de um indiví- apto a examinar e discutir a influência de uma
duo portador de um estado anterior relativa- determinada patologia ou sequela sobre a evolução
mente aos parâmetros de dano em que tal se de lesões subsequentes a um evento traumático.
justifique, numa discussão reflexiva que contem- Relativamente à segunda questão, será o
ple a análise das seguintes questões: Quais as próprio perito médico, com base nos seus conhe-
consequências decorrentes do evento sem o cimentos, que apreciará a influência do estado
estado anterior? Quais as consequências decor- anterior sobre a evolução da situação, não descu-
rentes do estado anterior sem o evento? Quais rando a anotação, completa e cuidada, das suas
as consequências resultantes do complexo esta- justificações e respectivas fundamentações, no
do anterior-evento? capítulo Discussão do relatório médico-legal.
Os exemplos a referir são de tal modo
2.ª) 0 estado anterior teve influência negati- numerosos, devido à sua diversidade, que serão
va sobre as consequências do evento traumático. avaliados, caso a caso, pelo perito médico (frac-
Ao contrário do que se passava na situação turas em indivíduo com patologia óssea após
precedente, estaremos aqui perante casos em traumatismo ligeiro, complicações infecciosas
que existe influência do estado anterior nas con- pós-traumáticas em doente neutropénico, etc).
sequências do traumatismo, ou seja, o estado an- No entanto, tal como anteriormente referi-
terior interfere, prejudicando a normal evolução do, certas situações (as fisiológicas) não serão
Biblioteca Seguros 77

atendíveis como estado anterior, em termos lesão traumática, num indivíduo sem patologia
médico-legais, ou seja, não deverão influenciar a anterior, normalmente não o fazemos com base
valorização feita pelo perito médico dos vários num valor médio retirado da nossa experiência
parâmetros a contemplar em sede de direito civil. e dos dados da ciência médica sobre o que é
Falamos, para reutilizarmos os mesmos exemplos usual acontecer, mas vamos procurar obter infor-
a que já recorremos, da imaturidade própria das mação clínica sobre a evolução daquela situação,
crianças, da propensão para algumas compli- naquele indivíduo, que nos permita fundamentar
cações existente nas grávidas e da debilidade típi- bem a data que vamos propor. Sabemos que há
ca dos idosos. Não seria correcto o perito excluir uma grande variabilidade que deve ser atendida
a valorização de um atraso de crescimento pós- e, na medida do possível, não nos devemos seguir
-traumatismo, pelo facto de se tratar de uma por valores médios (a não ser que não exista
criança; ou excluir a valorização de uma compli- outra possibilidade, por exemplo ausência com-
cação hipertensiva porque se tratava de uma pleta de informação sobre a evolução das lesões,
grávida; ou ainda excluir a valorização de uma e no contexto de séria ponderação pericial da
consolidação demorada e difícil apenas por se verificação de arrastamentos indevidos de baixas
tratar de um idoso. Estas consequências deverão temporárias ou altas demasiadamente precoces).
ser avaliadas na sua globalidade, devendo ser Se durante um determinado exame o perito
totalmente imputadas à agressão traumática. médico se aperceber, por exemplo, da existência
Como deverá então proceder-se na valoriza- de um período exageradamente prolongado de
ção pericial do dano corporal em direito civil, nas Incapacidade Temporária relativamente ao que é
situações em que um estado anterior influenciou as habitual, deverá tentar conhecer a(s) razão(ões)
consequências de determinado evento, a afectação pela(s) qual(ais) tal fenómeno se verificou e averi-
verificada na integridade psico-física da vítima? guar se não haverá factores a que deva atender,
Deverá procurar seguir-se aqui a seguinte tais como, desleixo do indivíduo no seu tratamen-
regra geral: só não valorizar o que for devido à to, prolongamento voluntário dos períodos de
influência do estado anterior. Esta regra é formu- baixa clínica, ou existência de alguma patologia
lada, por vezes, de outra forma: imputar ao trau- anterior que atrase a consolidação das lesões.
matismo aquelas que seriam as consequências Nestes casos, o perito, apoiando-se na própria
normais e habituais resultantes da lesão traumá- experiência, não deverá imputar ao traumatismo
tica. Mas porque deverá ser preferida a primeira as consequências determinadas pelo estado ante-
formulação, relativamente à segunda? Se optásse- rior. Não poderemos esquecer que um indivíduo
mos pela segunda, estaríamos a estandardizar a com patologia anterior ao traumatismo também
evolução das lesões, indo contra um dos princí- apresenta variabilidade e que as consequências
pios gerais da avaliação do dano de natureza não devem habitualmente ser ponderadas por
cível, que é a da personalização do dano. Se não recurso a valores médios, mas sim personali-
agimos habitualmente dessa forma quando zadas. Por exemplo, se em consequência de um
observamos qualquer outro examinado, porque o atropelamento um indivíduo é submetido a uma
haveríamos de fazer agora? Ao tentarmos esta- cirurgia abdominal em que é descoberta uma
belecer uma data de consolidação, após uma patologia tumoral que implica o prolongamento
78 III - Nexo de Causalidade em Avaliação do Dano Corporal

do internamento por mais alguns meses, esse Quais as consequências resultantes do complexo
período não deverá ser considerado, visto ser estado anterior-evento?
devido ao estado anterior, não estando, portanto, Como já referimos, a qualidade da resposta
relacionado com o acidente. será reflexo da qualidade do perito.
Em suma, o perito médico, com base nos
seus conhecimentos, tem que fazer uma cuidada 3.ª) 0 evento traumático agravou o estado
observação de cada um dos parâmetros médico- anterior ou exteriorizou uma patologia latente.
-legais que devem ser alvo de valorização e justi- Há que distinguir, por serem distintas, as duas
ficar em quais desses parâmetros terá existido situações acima referidas. Começaremos, então,
influência da patologia anterior. E como deve, pela primeira, na qual o traumatismo agravou
o perito médico, exprimir a influência da patolo- o estado anterior de um determinado examinado.
gia anterior sobre os diversos parâmetros do O responsável pela produção do dano deverá ser
relatório? Tem duas formas de o fazer. Uma seria responsabilizado pelos danos por ele causados
referir que o acidente é responsável por metade, e não pelos já existentes. Terá, assim, que haver
um terço, ou qualquer outra proporção, de deter- uma diferença entre as duas situações, designa-
minado parâmetro de dano (p.ex., da Incapacida- da por agravamento, que o perito deve avaliar,
de Permanente que apresenta) 7. Temos profun- para depois o decisor estipular se deverá ser alvo
das reservas sobre este posicionamento pericial de compensação indemnizatória por parte do
seguido por alguns, face à assinalável e incontor- responsável.
nável fluidez que o envolve. Outra (quanto a nós Quais os parâmetros que poderão ser alvo de
a metodologia preferível), será proceder a uma agravamento? Usualmente, apenas os parâme-
estimativa do que seria a valorização do parâme- tros de Dano Permanente que estão estabelecidos
tro de dano em causa sem a influência do estado anteriormente ao acidente, ou seja, Incapacidade
anterior. Adquire novamente neste contexto a sua Permanente Geral, Incapacidade Permanente Pro-
máxima plenitude, a ponderação reflexiva sobre fissional e Dano Estético, além dos casos menos
as três questões sempre recorrentes a propósito frequentes do Prejuízo de Afirmação Pessoal 8.
das situações envolvendo um estado anterior: Mas, considerando as lesões ou sequelas
Quais as consequências decorrentes do evento estabelecidas anteriormente ao evento em
sem o estado anterior? Quais as consequências questão, três tipos de situações poderiam estar
decorrentes do estado anterior sem o evento? presentes:

7 «L'expert doit alors faire la part de l'une et l'autre de ces étiologies, en évitant de rendre l'une ou l'autre responsable de la totalité des trou-

bles. Pour cela, il fera intervenir son sens clinique et étudiera ce que pourra être l'évolution normale de l'affection découverte, en tenant compte
des conditions et de l'intensité du traumatisme, des constatations initiales, éventuellement du délai écoulé entre l'accident et le déclenchement
des troubles. Il appréciera la part de l'aggravation. Il est difficile de donner une règle stricte pour cette appréciation. Peut-être est-ce un cas où
il y aura intérêt à évaluer l'I.P.P. telle qu'elle existe et rendre l'accident responsable d'une part: la moitié - le tiers, ou une proportion équitable.»
(Cf. C. ROUSSEAU - "L'état antérieur en Droit commun". Annales de Médecine Légale. Vol. 43, nº6 (1963), p.516).
8 Estamos a excluir as situações excepcionais, nas quais tenha havido dois acidentes consecutivos, influenciando, o segundo, as consequências

do primeiro, ainda em fase de Dano Temporário; neste caso, teríamos que fazer uma avaliação e valorização independente das consequências
de cada um deles, nos diversos parâmetros.
Biblioteca Seguros 79

a) ou teria havido um acidente anterior se- agravamento do estado do joelho, resultando


guido de uma avaliação pericial em direito civil; uma anquilose que o impediu de continuar o seu
b) ou tratar-se-ia de qualquer outro tipo de trabalho. Uma vez que não fazemos uso de cálcu-
acidente ou doença avaliado num outro ramo los aritméticos na avaliação de incapacidades
(p.ex. em direito do trabalho); profissionais em direito civil, demonstraríamos
c) ou poderia haver uma patologia ou seque- essa diferença comparando a situação actual
las de acidente precedente, e não haver qualquer com a anterior, do seguinte modo: As sequelas
avaliação pericial feita. anátomo-funcionais são impeditivas do exercício
Começando pelo primeiro caso: (a), em que da profissão de pedreiro de F... considerando que
já há uma avaliação em direito civil, se esta tiver as sequelas que já apresentava anteriormente ao
sido realizada de uma forma cuidada e completa, acidente, exigiam esforços suplementares no
obedecendo às leges artis da avaliação pericial exercício da sua actividade profissional. O tribunal
neste domínio do direito, poderá bastar a com- fica, assim, a conhecer as consequências do
paração pericial com a situação após o segundo agravamento no desempenho da profissão do
acidente para ser relativamente simples saber e examinado 9.
avaliar em que parâmetros houve agravamento. Supondo que havia sido atribuído ao exami-
Não tendo existido uma avaliação correcta, a situa- nado um Dano Estético de grau 3 (pelo facto de
ção será mais problemática. anteriormente ao acidente o examinado apresen-
Suponhamos que determinado indivíduo era tar marcha claudicante) e que, em consequência
portador, há vários anos, de uma artrose fémuro- do segundo acidente, o examinado ficou com
-tibial pós-traumática, a nível do joelho direito, anquilose do joelho (necessitando de apoio, numa
tendo-lhe sido proposta uma Incapacidade Per- canadiana), poderíamos qualificar o Dano Estético
manente Geral parcial de 10%. Após um segundo actual de grau 4. Acrescentaríamos, no entanto, o
traumatismo, desenvolveu-se uma anquilose que, facto de o examinado possuir já um Dano Estético
por hipótese, pretendemos valorizar com uma anterior ao acidente, qualificável no grau 3 assi-
Incapacidade Permanente Geral parcial fixável em nalando, deste modo, em que medida houve
30%. O agravamento, atribuído ao segundo trau- agravamento neste parâmetro.
matismo, seria de 30% - 10% = 20%. Estes 20%, Deverá acrescentar-se que se incluem neste
iriam certamente influenciar o montante indem- ponto (em que se considera haver agravamento do
nizatório a atribuir pelo decisor. estado anterior) os casos em que, apesar de
Consideremos, ainda, que o mesmo indiví- não ter sido afectada a mesma estrutura anató-
duo era pedreiro e que, devido à artrose resul- mica, foi afectada a mesma função. Referimo-nos,
tante do primeiro acidente, necessitava de esfor- por exemplo, à função visual. Se determinado
ços suplementares para exercer a sua actividade indivíduo possuía, anteriormente ao acidente,
profissional. Após o segundo acidente, houve um cegueira unilateral (a que, por hipótese, foi

9 «Il appartient, en effet, au magistrat d'évaluer seul le préjudice et, ce qu'il attend de l'expert, c'est une précision sur l'état avant et sur l'état

après.» (Cf. C. ROUSSEAU - «L'état antérieur en Droit commun». Annales de Médecine Légale. Vol.43, nº6 (1963), p.517).
80 III - Nexo de Causalidade em Avaliação do Dano Corporal

atribuída uma Incapacidade Permanente Geral âmbito do direito civil.


parcial de 30%), e se, após um acidente, fica Como interpretaria, o perito médico, essa
com cegueira total, então, deverá ser feita uma I.P.P. (Profissional) de 10% para valorizar o esta-
avaliação global da situação (atribuindo por do anterior? Somente com valor indicativo, pois
exemplo 90% de incapacidade) e subtrair os em direito do trabalho avalia-se a perda da
30% que tinha anteriormente (sendo 60% impu- capacidade de ganho, sendo os pressupostos da
tados ao acidente). Em resumo, houve um agra- atribuição de um determinada taxa de incapaci-
vamento da função visual, por responsabilidade dade diferentes dos usados em direito civil.
do acidente. Além disso, não existirá qualquer referência re-
Não poderíamos terminar esta alínea sem lativa à Incapacidade Permanente Geral ou ao
uma breve referência a um método internacional- Dano Estético, elementos não contemplados
mente bastante utilizado, de início aplicado no na avaliação em Direito do Trabalho (note-se
âmbito do direito do trabalho, mas cuja aplicação que o dano estético poderá sê-lo em algumas
muitos generalizaram à avaliação do dano corpo- circunstâncias).
ral de natureza cível, nesse gosto tão discutível Como resolveria o perito médico esta situação?
pelas pseudofórmulas matemáticas na aprecia- Teria, em primeiro lugar, que se basear na
ção de danos corporais. Referimo-nos à fórmula informação do examinado e procurar obter dados
de Gabrielli. clínicos que lhe permitissem conhecer quais dos
Tal fórmula compreende dois factores - C1 parâmetros do Dano Permanente tinham sofrido
(capacidade anterior ao evento traumático em agravamento (poderia ter havido agravamento
questão) e C2 (capacidade após o evento trau- da Incapacidade Permanente, mas não do Dano
mático em questão) - e permite o cálculo da per- Estético, ou vice-versa). No(s) parâmetro(s) em
centagem da incapacidade a atribuir ao evento que houve agravamento, teria que se atribuir
trau-mático que estamos a avaliar da seguinte uma valorização relativa ao estado anterior, após
forma: o que se atribuiria uma nova valorização relativa
% da nova incapacidade = C1-C2/C1 x 100. à situação actual, apresentando-se as conclu-
A aplicação desta fórmula, nomeadamente sões da mesma forma que fizemos, na alínea
no campo da avaliação do dano corporal de anterior, ou seja, como uma diferença entre as
natureza cível, está ainda pouco generalizada em duas situações.
Portugal.
Finalmente, e quanto à terceira situação
Quanto ao segundo caso anteriormente assi- anteriormente assinalada (referida na alínea c)),
nalado (situação referida na alínea b)), poderia relativa ao caso de não existir qualquer avaliação
acontecer ter uma determinada vítima sofrido pericial realizada a sequelas de evento anterior ao
anteriormente um acidente de trabalho, cujas que motivou o exame actual, tal como na situa-
sequelas mereceram uma valorização, em ter- ção precedente, teríamos que fazer uma avalia-
mos de I.P.P. (Profissional), de 10%, por exemplo. ção do estado anterior, uma outra avaliação da
É posteriormente vítima de acidente de viação, situação actual, e exprimir as conclusões com base
cujas consequências estão a ser valorizadas no nas diferenças, que traduzirão o agravamento 10.
Biblioteca Seguros 81

Por último, se se tratar da exteriorização mos, um dos problemas mais delicados na apre-
de uma patologia latente, deverá ser feita uma ciação e estabelecimento da imputabilidade
avaliação específica para cada situação. Se não médica. Por isso lhe dedicámos uma atenção mais
fosse medicamente provável que essa patolo- detalhada. Mas convirá sublinhar que a melhor
gia se viesse a revelar, então o traumatismo em apreciação a esta problemática será sempre o
questão deverá ser pericialmente responsabiliza- raciocínio cientificamente fundamentado sobre
do por ela 11, 12. as três questões primordiais neste âmbito e a
Poderia argumentar-se que não seria correc- sua clara explanação no relatório pericial, ques-
to para o autor do traumatismo ter que indem- tões que repetimos uma última vez: Quais
nizar em montante superior ao necessário outra as consequências decorrentes do evento sem
pessoa sem essa patologia latente. Mas menos o estado anterior? Quais as consequências de-
correcto seria se o ofendido, que vivia e prova- correntes do estado anterior sem o evento?
velmente viveria sempre sem que a patologia se Quais as consequências resultantes do complexo
exteriorizasse, ficasse afectado pela patologia estado anterior-evento?
e sem direito a ressarcimento indemnizatório,
a estabelecer pelo decisor com base na infor- Analisámos a perspectiva pericial da aprecia-
mação pericial. ção e estabelecimento da imputabilidade médica.
Os problemas médico-legais são todavia par- A esta seguir-se-á a intervenção do jurista que,
ticularmente complexos quando existe dúvida se, fundamentando-se na informação do perito mé-
sem o traumatismo, a patologia se exteriorizaria dico, estabelecerá a causalidade jurídica.
ou não, ou sabendo-se que provavelmente se A causalidade jurídica obedece a teorias que
exteriorizaria, se tal aconteceu mais cedo que não podem servir para analisar a imputabilidade
o previsto13. Só uma discussão específica para médica e que, aliás, também não se impõem ao
cada caso, bem balizada pelos conhecimentos jurista em certa circunstância. São apenas meios
científicos do momento, poderá permitir obter colocados à disposição deste para orientar o seu
alguma resposta, não se podendo, pois, estabele- raciocínio. Na prática, o jurista escolhe a teoria
cer metodologias gerais para essas situações. que se lhe afigura mais adaptada ao caso que lhe
O estado anterior constitui, como assinalá- é submetido, tendo certamente em consideração

10 «Pour permettre au juge d'apprécier la part d'un état antérieur dans des séquelles post-traumatiques, l'expert devra dans tous les cas, don-

ner la description la plus complète possible, d'une part de l'incapacité physiologique et psychologique, d'autre part, de l'incapacité profession-
nelle et économique de la victime avant et après le fait dommageable.» (Cf. Bulletin Médecine Légale, Toxicologie. Vol.22, nº6 (1979), p.708).
11 «Si l'état antérieur ne s'était pas manifesté avant le fait dommageable et que le traumatisme joue un rôle révélateur ou aggravant, la jurispru-

dence décide que la totalité du dommage est à la charge du responsable, mais le juge peut modérer éventuellement le montant de la répara-
tion.» (Cf. Bulletin Médecine Légale, Toxicologie. Vol.22, nº6 (1979), p.708).
12 «Le droit à réparation intégrale est ouvert lorsque l'affection préexistante n'a été révélée que du fait de l'accident (cassation 2e. civile,

6 avril 1973, 14 février 1974, 28 novembre 1974, 13 octobre 1976; cassation criminelle 10 avril 1973).» (Cf. Bulletin Médecine Légale,
Toxicologie. Vol.22, nº2 (1979), p.196).
13 «Les difficultés juridiques les plus usuelles sont celles qui ont trait à l'apparition d'un état antérieur latent, ignoré du sujet lui-même, et à la

prévision, d'une manière générale, de ce qu'aurait été l'évolution de l'état antérieur sans l'accident.» (Cf. Bulletin Médecine Légale, Toxicologie.
Vol.22, nº2 (1979), p.200).
82 III - Nexo de Causalidade em Avaliação do Dano Corporal

o quadro jurídico no qual se insere o assunto e descreva a imputabilidade nos seus diversos
(penal, civil, administrativo, etc.). Estas teorias são elementos: o nexo entre o evento e as lesões,
várias: teoria da causalidade adequada, teoria da o nexo entre as lesões e as queixas, o nexo entre
equivalência das condições, teoria da causa próxi- as queixas e as constatações. Devendo o perito
ma, etc. Sendo desejável que o perito médico as médico responder de forma precisa e concisa à
conheça, deve todavia abster-se de as aplicar no missão pericial em direito civil, isso não o impede
seu raciocínio médico. É óbvio que se pode obter (antes o deve estimular) de, nestas situações,
uma melhor colaboração entre o jurista e o médi- comentar, numa discussão bem fundamentada,
co se cada um compreender os métodos do a sua opinião sobre o nexo de causalidade.
outro, mas cada um deve permanecer no seu O nexo de causalidade tem que assentar em
domínio. sólidas bases científicas. Ora, como escreveu
Salienta-se que para além destas teorias Claude Bernard, “a ciência repele o indeterminado;
clássicas, foi proposto por dois nomes grandes do e quando, em medicina pericial, se fundamentam
mundo da avaliação e reparação de danos corpo- opiniões na inspiração médica ou numa intuição
rais, Barrot e Nicourt, a adaptação da reparação mais ou menos vaga das coisas, estamos fora da
às modalidades de intervenção de estado ante- ciência e damos o exemplo da medicina pericial
rior em caso de cúmulo causal. Agrada-nos par- fantasista que pode oferecer grandes perigos
ticularmente a perspectiva destes autores e por quando nas mãos de um ignorante inspirado!
isso lhe dedicamos estas linhas finais. Conside- O verdadeiro perito médico aprende a duvidar e a
ram assim, que se há a exteriorização (desen- abster-se perante a ignorância. Quando não temos
cadeamento) ou descompensação do estado demonstração científica, devemos salvaguardar-
anterior, a reparação da incapacidade é devida na -nos sempre de conclusões altivas e absolutas”.
medida em que a vida anterior era normal. Se há Como dizia Brouardel “é melhor dizer durante a
agravamento, só o grau de agravamento deve ser instrução do processo: eu não sei, que confessar
tomado em consideração. Se se trata de acele- durante a audiência em Tribunal: eu não sabia”.
ração, a reparação deverá intervir nos limites do
tempo desta aceleração.
Em resumo e em jeito de conclusão numa
abordagem que já vai longa mas que deixa ainda
muito por dizer, a formulação da opinião médico-
-legal relativa à imputabilidade e ao nexo de
causalidade não se reveste de nenhuma dificul-
dade quando a imputabilidade é certa, directa e
exclusiva. O simples facto de assinalar na dis-
cussão que as lesões derivam de tal evento
traumático e deixam tais sequelas será suficiente.
Em contrapartida, quando assim não sucede,
importa que o perito médico exponha em detalhe
as suas certezas e as suas dúvidas, que analise
Biblioteca Seguros 83

BIBLIOGRAFIA
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SÁ, Fernando Oliveira - Clínica médico-legal da reparação do dano corporal em Direito Civil. Coimbra: APADAC, 1992.
Biblioteca Seguros
Publicação da Caixa Seguros
Co-edição Caixa Seguros e Imprensa da Universidade de Coimbra

Título
Aspectos práticos da avaliação do dano corporal em Direito Civil
Coordenação
Duarte Nuno Vieira e José Alvarez Quintero
Tradução
Sónia Almeida
Design
Liquid Design
Impressão
SerSilito - Empresa Gráfica, Lda.

ISBN 978-989-8074-31-7

Depósito Legal 279157/08

Julho 2008
CAIXA SEGUROS, SGPS, S.A.

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