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Revista Bioética

ISSN: 1943-8042
bioetica@portalmedico.org.br
Conselho Federal de Medicina
Brasil

Sporleder de Souza, Paulo Vinicius


O médico e o dever legal de cuidar: algumas considerações jurídico-penais
Revista Bioética, vol. 14, núm. 2, 2006, pp. 229-238
Conselho Federal de Medicina
Brasília, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=361533244012

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O médico e o dever legal de cuidar:
algumas considerações jurídico-penais

Resumo: Este trabalho aborda alguns aspectos jurídico-penais surgidos a partir da eventual inobser-
vância do dever legal de cuidar por parte dos médicos. Sob esse prisma, pode-se afirmar que a vio-
lação do dever legal de cuidar dos pacientes abrange duas formas de responsabilidade penal do
médico: a responsabilidade penal por culpa (culpa penal médica) e a responsabilidade penal por
omissão (omissão penal médica). São ainda analisados os elementos que configuram o tipo de cul-
pabilidade dos crimes dolosos, culposos e omissivos.

Palavras-chave: Aspectos jurídico-penais. Crime. Responsabilidade. Omissão. Vínculo. Culpa.


Imprudência. Negligência. Imperícia

O ato de cuidar é dever ético e legal que incumbe a todos os


médicos em relação a seus pacientes. No entanto, nem sempre
esses deveres são cumpridos. Casos de descuido médico e suas
conseqüências não constituem fenômenos raros no cotidiano e
com certa freqüência aparecem nos meios de comunicação
quando da ocorrência de mortes ou lesões graves de pacientes.
Paulo Vinicius Sporleder Este artigo apresenta o conjunto de circunstâncias nas quais
de Souza essas ocorrências podem ser caracterizadas como crime, tal
Doutor em Direito (Universidade
de Coimbra/Portugal), professor como definido na perspectiva dogmática, analisando a doutri-
adjunto de Direito Penal da
PUCRS e advogado
na legal e a caracterização das condutas típicas, ilícitas e
culpáveis que configuram o conceito analítico de crime.

A culpa penal médica

Além do dolo, da deliberação de violar a lei, por ação ou omis-


Bioética 2006 14 (2): 229-238

são, com pleno conhecimento de causa, o fato culposo é uma


das formas básicas de caracterização do crime. O papel cada vez
maior que o mesmo vem assumindo na criminalidade pode ser
atribuído à crescente tecnificação e aos riscos da atual sociedade.

Em direito penal, o fato culposo, a responsabilidade do médi-


co por culpa, deriva da constatação dos seguintes elementos:
a) violação do dever objetivo de cuidado; b) previsibilidade

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objetiva do resultado; c) princípio da confiança; vida cotidiana –, tê-las sempre presentes na
d) previsibilidade subjetiva; e) imputabilidade, consciência, e de orientar-se no sentido de evi-
potencial consciência da ilicitude e exigibilidade tar tais conseqüências, abstendo-se de realizar o
de conduta diversa. comportamento que possa ser causa do efeito
lesivo, ou somente realizá-lo sob especiais e
Violação do dever objetivo suficientes condições de segurança 2.
de cuidado
Todavia, esse dever objetivo de cuidado pode ser
Para se responsabilizar penalmente alguém por violado ou infringido por três formas de culpa:
culpa faz-se necessário que a conduta do agente imprudência; negligência e imperícia – aliás,
tenha nexo causal com o resultado produzido. expressamente previstas no art.18, II do Códi-
Além da necessária causação involuntária de go Penal 3.
um resultado (morte, lesões corporais etc.), é
indispensável que ocorra a chamada violação do Por imprudência entende-se a culpa na sua
dever objetivo de cuidado. forma ativa, que pode ocorrer devido precipi-
tação, imoderação, afoiteza, insensatez ou con-
O dever objetivo de cuidado é aquele que todas duta arriscada por parte do médico. Por exem-
as pessoas medianamente prudentes precisam plo, o médico que acelera o procedimento duma
ter no cumprimento das normas jurídicas cirurgia por qualquer motivo ou a realiza
(explícitas ou implícitas) contidas em leis ou embriagado e, em ambos os casos, o paciente
regulamentos. Também se caracteriza como acaba morrendo.
dever objetivo, o cuidado na observância de
normas não-jurídicas de convivência, existentes A negligência é a culpa na forma passiva, quan-
em dada sociedade e impostas pela vida de do há desleixo, desatenção, displicência ou falta
relação. Mais precisamente, segundo Biten- de cautela na conduta do médico. Exemplifica
court, dever objetivo de cuidado consiste em: tal conduta causar lesões corporais ao paciente
reconhecer o perigo para o bem jurídico tutela- por esquecer agulha de sutura ou compressa de
do e preocupar-se com as possíveis conseqüên- gaze dentro do seu organismo; ou por, dis-
cias que uma conduta descuidada pode pro- traidamente, não esterilizar os instrumentos
duzir-lhe, deixando de praticá-la, ou então, exe- cirúrgicos.
cutá-la somente depois de adotar as necessárias
e suficientes precauções para evitá-lo 1. Considera-se imperícia a falta de habilidade
ou competência técnica no exercício de deter-
No mesmo sentido, Assis Toledo afirma: dever minada arte, profissão ou ofício1. Para que
objetivo de cuidado consiste em preocupar-se haja imperícia, portanto, pressupõe-se certa
com as possíveis conseqüências perigosas de sua qualidade de habilitação para o exercício
conduta (perigo para os bens jurídicos protegi- profissional. Com efeito, a imperícia médica
dos) – facilmente reveladas pela experiência da pode ocorrer se o médico não souber praticar

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uma intervenção cirúrgica ou prescrever dado constituirá em forte indício de contrariedade a
medicamento. tal dever. Todavia, adverte Figueiredo Dias que
a estas normas ‘técnicas’ não poderá atribuir-se
Para Bitencourt, imperícia não se confunde o mesmo relevo indiciador que se confere às
com erro profissional, pois esse é um acidente normas ‘jurídicas’, em particular porque aque-
escusável, justificável e, no mais das vezes, las podem ter na sua base interesses meramente
imprevisível, que não depende do uso correto e ‘corporativos’ antes que, imediatamente, de
oportuno dos conhecimentos e regras da ciên- defesa de bens jurídicos, e porque o progresso
cia. Aduz o autor que esse tipo de acidente não técnico pode ter facilmente determinado a
decorre da má aplicação de regras e princípios ultrapassagem destas regras por outras mais
recomendados pela ciência, devendo-se à perfeitas e mais atuais; não estando assim o tri-
imperfeição e precariedade dos conhecimentos bunal dispensado, em caso algum, de compro-
humanos. O erro profissional ocorre no campo var a sua adequação ao caso de espécie4.
do imprevisto e transpõe os limites da prudên-
cia e atenção humanas1. Por outro lado, pode-se dizer que não viola o
cuidado objetivamente devido o agente que fiel-
Geralmente, o dever objetivo de cuidado está mente atende às normas corporativas dadas pela
fixado em normas administrativas ou discipli- ciência, experiência ou prática habitual, embora
nares. No caso dos médicos, a culpa decorrerá, estejam em constante evolução5. Por fim, quan-
sobretudo, se a sua atividade não corresponder to mais perigosa for a atividade maior deve ser a
ao que estatui a respectiva lex artis (ou legis prudência e vigilância do agente, não apenas em
artis), que diz respeito às normas corporativas razão das previsões regulamentares, mas tam-
da profissão. Sobre as mesmas leciona bém em razão das sugestões da expe-riência do
Figueiredo Dias: trata-se de normas escritas de dia-a-dia e da própria experiência científica 1.
comportamento (não jurídicas), fixadas ou
aceites por certos círculos profissionais e análo- Por isso, em domínios altamente especializados
gos e destinadas a conformar as atividades como os que envolvem a atividade médica – e
respectivas dentro de padrões de qualidade e, que importam especiais riscos para bens jurídi-
nomeadamente, a evitar a concretização de cos significativos, como a vida e a integridade
perigos para bens jurídicos que de tais atividades da pessoa – exige-se ao agente cuidado redobra-
pode resultar 4. do (cuidado especial). Ele não deve agir antes de
se informar ou se esclarecer bem a respeito dos
As normas corporativas de caráter técnico, cor- riscos relativos à intervenção cirúrgica a qual o
rentes neste domínio de atividade profissional, paciente será submetido, sobretudo quando não
são fonte por excelência de aferição dos deveres se encontre em posição de os avaliar correta-
objetivos de cuidado por parte dos médicos. mente e com segurança: se [o médico] não con-
Sua eventual inobservância – seja por seguir alcançar a informação ou o esclareci-
imprudência, negligência ou imperícia – se mento necessários, deve omitir-se à conduta

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projetada), pois, como leciona Roxin: quem e prudente. Segundo Fiqueiredo Dias, o que
não sabe de algo deve informar-se; e quem não aqui serve de critério é a não correspondência
pode fazer algo, deve abandoná-lo 6. Portanto, do comportamento àquele que, em idêntica
exemplifica o autor, quando uma paciente situação, teria um homem fiel aos valores pro-
comunica ao médico que “tem alguma coisa no tegidos, prudente e consciencioso 4.
coração” é imprudente proceder a uma aneste-
sia geral sem prévios exames complementares; De acordo com a previsibilidade do resultado, a
além disso, o médico não perfeitamente a par culpa classifica-se em consciente e incons-
do tratamento de uma doença deve informar-se ciente. Há culpa inconsciente quando o agente
a respeito na literatura especializada. não previu o resultado que podia (e devia) pre-
ver, resultado esse previsível pelo homo medius.
Previsibilidade objetiva do resultado Já a culpa consciente ocorre quando o agente
prevê a possibilidade de ocorrência do resultado,
Como visto, a inobservância do cuidado objeti- mas espera convictamente que não ocorra por
vo exigível é importante indicativo da culpa do confiar demasiadamente em sua capacidade de,
agente. Entretanto, faz-se ainda necessária a alguma forma, evitá-lo. Por fim, se o resultado
ulterior verificação de outro elemento comple- ocorrido for totalmente imprevisível, não
mentar (não menos relevante) para se atribuir haverá delito algum, pois se tratará então de
culpa a alguém: a previsibilidade objetiva do caso fortuito ou força maior, que constituem
resultado. exatamente a negação da culpa1.

Previsibilidade objetiva do resultado significa a Princípio da confiança


capacidade de qualquer pessoa razoável e pru-
dente prever a possibilidade de ocorrência do Em alguns casos, para além da inobservância
resultado. Assim, será exigível o cuidado objeti- do dever objetivo de cuidado e da previsibilidade
vo quando o resultado era previsível para uma objetiva do resultado, a doutrina recorre ao
hipotética pessoa-padrão medianamente dili- princípio da confiança como critério dogmático
gente e prudente (homo medius), nas condições necessário para se poder imputar um fato cul-
em que o agente atuou, tendo-se em vista as poso e, assim, responsabilizar penalmente
circunstâncias do fato. Por conseguinte, tanto a alguém por essa forma de crime. Ressalte-se,
inobservância do dever objetivo de cuidado porém, que atualmente está muito em voga na
quanto a previsibilidade objetiva do resultado doutrina jurídico-penal a “Teoria da imputação
são critérios que devem ser constatados pelo objetiva”, que estabelece outros critérios dog-
intérprete (juiz, promotor ou advogado) a partir máticos para a determinação do crime culposo7.
da comparação entre a conduta realizada pelo
agente no caso concreto com aquela conduta Segundo este princípio, quem se comporta de
que teoricamente seria a esperada de pessoa acordo com a norma de cuidado objetivo deve
hipotética considerada razoavelmente diligente poder confiar que o mesmo sucederá com os

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outros 4. O princípio da confiança encontra o Previsibilidade subjetiva
seu fundamento material no princípio da auto-
responsabilidade de terceiros, pois esses tam- Enquanto os elementos anteriores – violação
bém são seres responsáveis, devendo responder do dever objetivo de cuidado, previsibilidade
por seus próprios atos se se comportarem des- objetiva do resultado, princípio da confiança –
cuidadamente. Noutros termos: como regra fazem parte do tipo de injusto, a previsibilidade
geral não se responde pela falta de cuidado subjetiva integra o denominado tipo de culpa-
alheio, antes o direito autoriza que se confie em bilidade do crime culposo. Nessa circunstância,
que os outros cumprirão os deveres de cuidado 4. a questão de saber se o agente se encontrava em
condições, segundo os seus conhecimentos e
O princípio da confiança tem especial capacidades pessoais, de ter observado o dever
importância em matéria de divisão de tarefas objetivo de cuidado no caso concreto configura
no âmbito das equipes médicas que costumam interrogação sobre a culpabilidade nos crimes
realizar intervenções cirúrgicas. Assim, qual- culposos.
quer membro da equipe médica pode confiar
numa atuação dos outros membros adequada A culpabilidade dos crimes culposos – que não
às normas de cuidado (legis artis), sem prejuízo difere da culpabilidade dos crimes dolosos –
de que, se erros forem previsíveis ou vierem a consiste na reprovabilidade pessoal pela realiza-
ser efetivamente cometidos, devem ser impedi- ção da conduta típica e ilícita. Especificamente,
dos ou corrigidos pelos colegas e, particular- a culpabilidade nos crimes culposos está em
mente, pelo chefe da equipe4. função da reprovabilidade pessoal, da falta de
observância, por parte do agente, nas circuns-
Todavia, o princípio da confiança não se aplica a tâncias em que se encontrava, do cuidado
membros da equipe ainda em fase de aprendiza- exigível; da diligência ordinária ou especial a
gem ou treinamento, como médicos residentes, que estava obrigado5. Ao contrário do homem
por exemplo. Nesses casos exige-se, aliás, espe- médio (abstrato), leva-se agora em consideração
cial fiscalização dos demais membros da equipe as qualidades e capacidades pessoais do agente
médica, sob pena de também concorrerem cul- enquanto homem concreto. Ademais, a previ-
posamente. Como aponta Roxin, o princípio da sibilidade de que se cogita para determinação da
confiança deve retroceder quando os interven- culpabilidade (previsibilidade subjetiva) será
tores possuem especiais deveres de vigilância ou sempre a previsibilidade pessoal, que considera
outras missões de controle. Ou seja, o médico as possibilidades concretas do agente nas cir-
que dirige a operação deve ter especial atenção cunstâncias em que atuou5.
frente ao médico assistente ainda inexperiente6.
Assim, os médicos supervisores também podem Por conseguinte e para exemplificar, será respon-
responder culposamente pelo fato caso não te- sabilizado penalmente por culpa (homicídio cul-
nham fiscalizado devidamente os médicos assis- poso) o cirurgião renomado e magistral que, por
tentes mais inexperientes. pressa ou desleixo, deixa morrer um paciente na

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sala de cirurgia por ter utilizado no caso apenas constitui a essência do crime omissivo. Con-
as capacidades correspondentes ao cirurgião figura-se o crime omissivo, portanto, quando o
“médio” – e não aquelas de que pessoalmente agente não faz o que pode e deve fazer, quando
dispõe e está em condições de empregar. juridicamente é obrigado no caso concreto e
não o faz. Assim, viola norma por não fazer o
Porém, segundo Figueiredo Dias, muitas vezes que ela exige.
é compreensível a objeção de que o agente dota-
do de capacidades especiais nem sempre estará Os crimes omissivos dividem-se em omissivos
em condições de as prestar ou não lhe será próprios e omissivos impróprios e, para se con-
exigível que esteja sempre pessoalmente cretizarem, ambos requerem a violação do dever
disponível para um desempenho ou um rendi- legal de agir, desde que haja capacidade concre-
mento máximo4. Também é prevista a eventual ta de agir por parte do agente. Com efeito,
impossibilidade pessoal de perceber ou de ocorre o crime omissivo (próprio ou impróprio)
cumprir o dever objetivo de cuidado ou inca- quando se descumpre ou se desobedece a uma
pacidade pessoal de prever o resultado devido a norma imperativa ou mandamental, que deter-
certos defeitos corporais; faltas de inteligência, mina a prática de uma conduta não realizada
de saber, de experiência, de sensibilidade4 ou em pelo agente. Todavia, embora tenham elemen-
conseqüência do medo, susto, fadiga etc.5 – tos comuns, há outras características que dife-
fatores suscetíveis de excluir a culpabilidade do renciam os crimes omissivos próprios dos omis-
agente nos crimes culposos. sivos impróprios.

Potencial consciência da ilicitude e Omissão própria


exigibilidade de conduta diversa
Os crimes omissivos próprios ou puros são
Além de ser capaz de se autodeterminar e com- assim chamados porque possuem uma tipologia
preender o caráter ilícito do fato (ser imputá- própria. São previstos em tipos penais específi-
vel), para ser considerado culpável por crime cos, como os exemplos dos arts. 135 e 269 do
culposo o agente deve agir com a potencial Código Penal.
consciência da ilicitude; saber que está contra-
riando o direito, ou seja, ter consciência das Para que o agente (médico) responda por tais
exigências objetivas de cuidado8. Além disso, a crimes basta a abstenção da conduta devida
conduta praticada não deve estar conforme a (omissão do dever normativamente imposto),
exigível pelo direito no caso concreto. pois os crimes omissivos são crimes de mera con-
duta, que independem de resultado para se con-
A omissão penal médica sumar. Assim, o resultado que eventualmente
surgir dessa omissão será irrelevante para a con-
O direito penal contém normas imperativas e sumação do crime, podendo apenas configurar
proibitivas. A violação das normas imperativas uma majorante ou uma qualificadora 1.

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Consuma-se o crime de omissão de socorro, omissão; c) a ocorrência da situação geradora
por exemplo, quando o agente, com a simples do dever jurídico de agir1. Em relação a esse
abstenção da conduta devida, deixa de prestar último, vale referir que nos crimes omissivos
assistência nas condições previstas no art. 135 impróprios o dever legal de agir para impedir o
do Código Penal. Como refere Bitencourt, resultado deriva da posição ou situação de
pode acontecer, porém, que a pessoa em perigo, garantia. Os garantes ou garantidores são um
à qual foi omitido o socorro, venha a sofrer grupo restrito de agentes escolhidos pelo legis-
uma lesão grave ou até morrer, concretizando lador que têm especial relação de proteção com
uma conseqüência danosa, produzida por um bens jurídicos alheios1, devendo garantir a não
processo causal estranho ao agente, no qual se ocorrência de um resultado que os lese ou os
negou a interferir. Nesse caso o agente é ponha em perigo. Segundo Prado, a posição de
responsabilizado por crime omissivo próprio, garantidor – elemento objetivo da autoria –
isto é, pela simples omissão, pela mera inativi- decorre do estreito vínculo existente a priori
dade. Nessa hipótese, o eventual resultado, entre o omitente e o bem jurídico protegido 9.
morte ou lesão grave, constituirá somente uma
majorante da pena 1, não sendo condição para a Por conseguinte, a fonte do dever legal de agir
consumação do delito. Enfim, os crimes omis- para evitar o resultado está formalizada na lei e
sivos próprios são sempre dolosos. as hipóteses em que o agente assume a condição
de garantia são: a) tenha por lei obrigação de
Omissão imprópria cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra
forma, assumiu a responsabilidade de impedir o
Os crimes omissivos impróprios ou impuros resultado; c) como seu comportamento anterior,
são crimes materiais, que exigem, indispen- criou o risco da ocorrência do resultado. Há que
savelmente, a ocorrência de determinado resul- se ressaltar, no entanto, que para Figueiredo
tado naturalístico para sua consumação. Neles, Dias: a verdadeira fonte dos deveres e das
o agente não tem simplesmente o dever de agir, posições de garantia reside em algo muito mais
mas o dever de agir para evitar o resultado. O profundo, por força das exigências de soli-
dever de agir é para evitar ou impedir a ocor- dariedade do homem para com os outros ho-
rência de determinado resultado. Ademais, os mens dentro da comunidade, ou seja, será a
crimes de omissão imprópria não possuem ‘proximidade existencial’ do ‘eu’ e do ‘outro’, o
tipologia própria, adequando-se tipicamente princípio dialógico do ‘ser-com-os-outros’ e ‘ser-
aos tipos comissivos. Por isso, são também para-os-outros’, o exercício da virtude cristã da
denominados crimes comissivos por omissão. ‘caridade’ e do ‘amor do próximo’ que criam os
deveres e as posições de garantia 4.
Segundo o art.13, § 2º do Código Penal são
elementos dessa modalidade de omissão: a) a Contudo, alerta o autor: toda a manifestação
abstenção da conduta que a norma impõe; b) a imposta de solidarismo tem de se apoiar em um
ocorrência do resultado em decorrência da claro vínculo jurídico 4.

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Quanto à fonte originadora da posição de mais correta seria a tipificação no art.135,
garantia relativa aos médicos, há dois entendi- parágrafo único do Código Penal, pois inexis-
mentos na doutrina. Para uns, a base legal da tia um vínculo relacional de proximidade
garantia está prevista na alínea a, como advo- entre o agente e a vítima. Hipótese diversa,
ga Bitencourt; para outros, a fonte jurídica de porém, é a dos médicos plantonistas dos hos-
garantia dos médicos está localizada na alínea pitais e pronto-socorros, pois ao se omitirem
b, posição a que se filiam, entre outros, Prado (dolosa ou culposamente) responderão logica-
e Assis Toledo. No entanto, independente- mente por homicídio (doloso ou culposo),
mente de qual seja a hipótese legal de garantia, pois a sua posição de garantia é considerada
não há dúvidas de que esses agentes de saúde permanente e não depende de qualquer vín-
têm a especial função de garantia de bens culo de proximidade com o paciente. Vale
jurídicos – sobretudo de bens como a vida e a ainda frisar que o vínculo relacional de pro-
saúde – dos pacientes. Dessa forma, se des- ximidade compreende a proximidade física,
cumprir o dever de agir, abstendo-se de realizar isto é, saber se o médico estava próximo do
a conduta devida e não impedindo o resultado, local da vítima, assim como a proximidade
o médico será considerado o causador deste contratual, saber se a vítima havia tido ante-
mesmo resultado e responderá pelo crime cor- riormente algum contato – formal ou infor-
respondente, seja doloso ou culposo, já que os mal – do médico em relação ao paciente.
crimes de omissão imprópria podem ter as
duas características. Assim, se o médico, in- Silva Sánchez observa ser muito discutido o
tencionalmente, deixar de atender determina- tema de quais são as situações em que os médi-
do paciente em perigo de vida, o qual em vir- cos atuam como garantidores. Porém, aduz que,
tude dessa omissão venha a morrer, responderá quer seja da perspectiva político-criminal quer
pelo crime de homicídio (doloso), mas não pelo seja da dogmática, não parece ser aceitável tornar
de omissão de socorro. os médicos garantidores da vida ou da saúde de
pessoas que não se comprometeram a tratar
Contudo, não se pode dizer que o médico porque isso estenderia sua responsabilidade a
nunca responda pelo crime de omissão de limites absurdos 10. Diante disso e de acordo com
socorro. Em alguns casos, em vez do crime de a posição da doutrina dominante, esse autor con-
homicídio, o médico poderá responder pelo sidera que devem ser reduzidas as hipóteses de
crime de omissão de socorro se não tiver qual- garantia do médico àqueles casos em que este
quer relação de proximidade com o paciente. tenha assumido efetivamente o tratamento do
Isso pode ocorrer, por exemplo, quando um paciente e naqueles onde o paciente esteja nas
paciente desconhecido e à beira da morte lhe mãos do médico. No entanto, adverte que a
solicita, via telefone, atendimento médico. posição jurídica do médico de urgências ou do
Todavia, o médico dolosamente se omite médico de plantão é diferenciada e estes são
(deixa de atendê-lo) e o paciente vem a fale- garantes, mesmo que não assumam voluntaria-
cer. Neste caso, a conseqüência jurídico-penal mente o tratamento de determinado paciente.

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Potencial consciência da ilicitude e objetiva do resultado; princípio da confiança;
exigibilidade de conduta diversa previsibilidade subjetiva.

A culpabilidade dos crimes omissivos não apre- A omissão (penal) médica deriva de outros dois
senta peculiaridades em relação à dos crimes requisitos: a violação do dever legal de agir e a
culposos, sendo a reprovabilidade pessoal pela capacidade concreta de agir. Ademais, há duas
abstenção da atividade devida. Na realidade, a modalidades de omissão em que o médico pode ser
culpabilidade nos crimes omissivos é idêntica a enquadrado: a omissão própria e a omissão
dos crimes culposos e dolosos; depende, por- imprópria, sendo que, em alguns casos, a doutri-
tanto, da configuração dos seguintes elemen- na tem dificuldades de apontar qual a melhor
tos: imputabilidade, potencial consciência da solução dogmática para se responsabilizar penal-
ilicitude e exigibilidade de conduta diversa (ou mente o médico por sua omissão, numa ou noutra
exigibilidade de conduta conforme o direito). hipótese, motivo pelo qual pretendeu-se aprofun-
Para ser considerado culpável por crime omissi- dar um pouco nesse sentido com a sugestão dog-
vo próprio ou impróprio (doloso ou culposo), mática do vínculo relacional de proximidade entre
além de ser imputável (capaz de se autodeter- médico e paciente, critério que pode vir a auxiliar
minar e compreender o caráter ilícito do fato), na determinação da modalidade criminosa omissi-
o agente deve agir com a potencial consciência va para fins de responsabilidade médica.
da ilicitude (saber que está contrariando o di-
reito) e a sua conduta praticada não deve estar Enfim, além desses elementos, que configu-
conforme àquela exigível pelo direito no caso ram os tipos de injusto culposo e omissivo,
concreto (exigibilidade de conduta diversa). respectivamente, foram analisados os elemen-
tos componentes do tipo de culpabilidade de
Considerações finais cada crime, que, aliás, são idênticos para
todas as modalidades de crime existentes,
Este estudo do direito penal médico analisa o sejam dolosos, culposos ou omissivos. Os ele-
dever legal (jurídico-penal) de cuidar dos médi- mentos ou requisitos mencionados são
cos em geral, apontando que a responsabilidade imputabilidade, potencial consciência da ili-
criminal dos mesmos redunda da violação do citude e exigibilidade de conduta diversa.
dever legal que lhes incumbe cuidar dos Ademais, isso também visa atender a uma
pacientes, decorrente de culpa ou omissão. análise dogmática mais adequada dos crimes
em tela diante do conceito analítico de crime,
A culpa penal médica é caracterizada a partir da buscando elucidar os parâmetros legais que
constatação dos seguintes elementos: violação definem a responsabilidade dos cuidadores,
do dever objetivo de cuidado; previsibilidade inerente à sua prática profissional.

237
Resumen

El médico y el deber legal de cuidar: algunas consideraciones jurídico-penales


Este trabajo aborda algunos aspectos jurídico-penales que surgen de la eventual inobservancia del deber
legal de cuidar por parte de los médicos. Bajo tal prisma, se puede afirmar que la violación del deber
legal de cuidar de los pacientes abarca dos formas de responsabilidad penal del médico: la
responsabilidad penal por culpa (culpa penal médica) y la responsabilidad penal por omisión (omisión
penal médica). Son analizados, aún, los elementos que configuran el tipo de culpabilidad de los crímenes
dolosos, culposos y omisivos.
Palabras-clave: Aspectos jurídico-penales. Crimen. Responsabilidad. Omisión. Vínculo. Culpa. Impru-
dencia. Negligencia. Impericia.

Abstract

Doctors and the legal duty of caring: some legal-penal considerations


This paper discusses some legal-penal aspects which emerge from an eventual non-observance of the
doctors' legal duty of caring. From this perspective, we might say that violating the legal duty of caring
patients includes two ways of penal responsibility of doctors: penal responsibility by blame (doctor's
penal blame) and penal responsibility by omission (doctor's penal omission). We also analyze elements
which configure the type of culpability of felonious crimes, misdemeanor crimes and omission crimes.
Key words: Penal law aspects. Crime. Responsibility. Omission. Binding. Fault. Recklessness. Negli-
gence. Malpractice.

Referências

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Contato

Paulo Vinicius Sporlerder de Souza - pvsouza@rigel.pucrs.br

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