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JOÃO BATISTA NETO

Caso 1 – Cuidado do Paciente


A figura do médico autônomo, aquele que encerrava em si mesmo a prática clínica e
abrigava o controle de todos os fatores relativos às suas intervenções, tornou-se apenas
um arquétipo que, infelizmente, ainda habita o inconsciente de muitos profissionais
modernos.
O “empoderamento”, perante a sociedade, de outras categorias não médicas,
determinante para a abordagem multiprofissional; a rápida geração e difusão do
conhecimento científico, razão da especialização; e a consciência de que a qualidade
do diagnóstico e do cuidado prestados, como síntese da competência clínica do
profissional da saúde, não basta para que o paciente obtenha o melhor desfecho
possível para o mal que lhe aflige fez com que várias mudanças ocorressem na saúde
pública. Como consequência, a qualidade em serviços e sistemas de saúde tornou-se
não só tema central nas discussões sobre a reforma do sistema de saúde, mas também
frequente destaque na mídia global.
QUALIDADE-SEGURANÇA EM SAÚDE
O amplo contorno que a segurança, um dos componentes da qualidade, vem adquirindo
desde o último quartil do século XX decorre não apenas desse novo olhar sobre o setor
saúde, mas também é reflexo de pesquisas científicas sobre os reais benefícios e
potenciais riscos que as novas intervenções oferecem.
O Institute of Medicine (IOM) publicou, em 1999, um dos livros mais citados em
publicações relativas à qualidade e à segurança – To Err Is Human: Building a Safer
Heath System. A partir da divulgação desse relatório, o tema segurança do paciente
ganhou relevância. Esse relatório se baseou em duas pesquisas de avaliação da
incidência de eventos adversos (EAs) em revisões retrospectivas de prontuários,
realizadas em hospitais de Nova York, Utah e Colorado.
Nessas pesquisas, o termo evento adverso foi definido como dano causado pelo
cuidado à saúde e não pela doença de base, que prolongou o tempo de permanência
do paciente ou resultou em uma incapacidade presente no momento da alta. O relatório
apontou que cerca de 100 mil pessoas morreram em hospitais a cada ano vítimas de
EAs nos Estados Unidos. Essa alta incidência resultou em uma taxa de mortalidade
maior do que as atribuídas aos pacientes com HIV positivo, câncer de mama ou
atropelamentos. Em média, 10% dos pacientes internados sofrem algum tipo de evento
adverso e destes 50% são evitáveis.
A assertiva primordial dessa publicação é a de que “o cuidado na saúde não é tão
seguro como deveria ser e um conjunto substancial de evidências aponta para os erros
médicos como uma das principais causas de morte e lesões”.
A questão da segurança em saúde, apesar desse destaque, é apenas um dos aspectos
da qualidade em saúde.
1. Componentes da Qualidade
a. Eficácia – capacidade que o desenvolvimento tecnocientífico tem de
promover melhorias no cuidado da saúde, considerando-se condições ótima
de aplicabilidade.
b. Efetividade – o nível real que o desenvolvimento tecnocientífico consegue
atingir.
c. Eficiência – considera a habilidade em diminuir-se o custo do cuidado sem,
entretanto, comprometer a qualidade.
d. Otimização – o equilíbrio entre a melhoria do cuidado e os custos dessa
melhoria.
e. Aceitabilidade – considera a expectativa e desejos do paciente e seus
familiares.
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f. Legitimidade – conformidade das ações às preferências sociais expressas


em princípios éticos, valores, normas, leis e regulamentos.
g. Equidade – conformidade com o princípio da justiça; o que é razoável na
distribuição das ações de saúde, seus benefícios entre a população.
Em outra publicação, o IOM, ao conceituar “qualidade em saúde”, lançou seu olhar não
só para a pessoa na condição de paciente, mas também para a sociedade (saúde da
população). Estabeleceu que a qualidade evolui conforme o grau com que os serviços
de saúde aumentam a probabilidade de se obter os resultados desejados e afirma que
esses resultados devem ser consistentes com o conhecimento profissional corrente.
Deixa, assim, explícita sua adesão à medicina baseada em evidências, apesar de
considerar, sobremaneira, o valor da experiência clínica profissional. Complementou
este conceito detalhando as seis dimensões da qualidade inerentes à excelência dos
serviços de saúde, as quais recomenda como objetivos a serem perseguidos.
2. Dimensões da Qualidade
a. Segurança – evitando lesões aos pacientes, causadas pela ação do próprio
cuidado.
b. Efetividade – provendo serviços baseados no conhecimento científico a
todos aqueles que podem dele se beneficiar e abstendo-se de praticar
serviços naqueles que não se beneficiam.
c. Centrado no paciente – provendo cuidado respeitando as preferências,
necessidades e valores dos pacientes, além de assegurar que seus valores
guiarão todas as decisões clínicas.
d. Oportuna – evitando-se a demora no atendimento e até mesmo retardos que
possam causar danos a ambos, pacientes e aqueles que prestam o cuidado.
e. Eficiente – evitando-se o desperdício, particularmente de equipamentos,
suprimentos, ideias e energia.
f. Equânime – provendo o cuidado com a mesma qualidade, apesar das
características pessoas, como gênero, etnia, localização geográfica e
condição socioeconômica.
Após essas considerações, pode-se melhor compreender o porquê de se referir, com
frequência, à qualidade e à segurança quase como um binômio na sua teorização, muito
embora, na prática clínica, verifiquem-se algumas importantes diferenças.
TAXONOMIA
A Classificação Internacional para a Segurança do Paciente (ICPS) foi desenvolvida
pela OMS para facilitar a comparação, medição, análise e interpretação de informações
que melhorem o cuidado do paciente, já que o uso inconsistente da terminologia e a
variedade de definições - existem pelo menos 24 diferentes conceitos de erro e 14
definições de evento adverso dificultam a comparação dos indicadores e resultados
entre as instituições de saúde.
A elaboração de uma taxonomia da área da Segurança do Paciente é fundamental, pois
torna consistente o uso de termos e conceitos e classificações, de forma acessível,
compreensível e adaptável. Dentre os critérios subjacentes à classificação (ICPS),
destacam-se a identificação e definição de conceitos-chave da área de Segurança do
Paciente; a adequação linguística e cultural das definições e a conformidade com outras
classificações da OMS.

Os termos mais importantes são:

1. Segurança do paciente – redução, a um mínimo aceitável, do risco de dano


desnecessário associado ao cuidado de saúde.
2. Evento – algo que acontece com o paciente ou envolve o paciente.
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3. Incidente – evento ou circunstância que poderia ter resultado, ou resultou, em


dano desnecessário ao paciente. Incidentes podem ser oriundos de atos
intencionais ou não intencionais.
4. Risco – probabilidade de um incidente ocorrer.
5. Perigo (hazard) – circunstância, agente ou ação que pode causar dano.
6. Erro – definido como uma falha na execução de um plano de ação conforme
pretendido ou aplicação de um plano incorreto. Pode ocorrer por fazer-se a coisa
errada (erro de ação) ou por falhar-se em fazer a coisa certa (erro de omissão)
na fase de planejamento ou na fase de execução. Erros são, por definição, não
intencionais, enquanto violações são intencionais. Tanto erros quanto violações
aumentam o risco, até mesmo se um incidente não ocorre realmente
7. Violação – divergência deliberada de um procedimento, um padrão ou uma
regra. Embora raramente maliciosas, as violações podem se tornar rotineiras e
automáticas em certos contextos.
8. Dano – dano da estrutura ou função do corpo e/ou qualquer efeito deletério dele
oriundo. Inclui doenças, dano ou lesão, sofrimento, incapacidade ou disfunção e
morte, e pode, assim, ser física, social ou psicológica. Dano associado ao
cuidado de saúde: dano surgido por ou associado a planos ou ações realizadas
durante o cuidado de saúde, em vez de a uma doença de base ou lesão.
9. Lesão – dano para os tecidos causado por um agente ou um evento.

** Pela ICPS, certas formas de dano, como uma incisão para laparotomia, por exemplo,
são necessárias, não sendo, portanto, consideradas incidentes. Já erros, violações,
abusos ao paciente e atos deliberadamente inseguros ocorridos no cuidado de saúde
são incidentes.

10. Sofrimento – experiência de algo subjetivamente desagradável. Inclui dor, mal-


estar, náusea, vômito, depressão, agitação, medo e aflição.
11. Incapacidade – qualquer tipo de limitação relacionada à estrutura ou função do
corpo, limitação de atividade e/ou restrição de participação na sociedade,
associada a um dano passado ou presente.
12. Circunstância notificável (incidente notificável) – circunstância em que houve
potencial significativo para o dano, mas o incidente não ocorreu. Exemplo: um
desfibrilador presente no Centro Cirúrgico que não funciona, apesar de não ter
sido necessário o seu uso.
13. Near miss – incidente que não atingiu o paciente; erro que não se concretiza no
paciente. Exemplo: erro na dispensação do medicamento percebido antes de
ser administrado ao paciente. Este tipo de incidente é, atualmente, definido por
vários autores brasileiros como quase erro. Nesses casos, o erro ocorreu de fato,
porém foi interceptado antes que atingisse o doente. O que houve foi um
incidente com potencial de dano, ou seja, potencial evento adverso, definido pela
OMS como um erro grave ou incidente que tenha o potencial para causar evento
adverso, mas não ocorreu por acaso ou porque foi interceptado
intencionalmente. Portanto, o near miss deve ser entendido como potencial
evento adverso e não como quase erro.
14. Incidente sem dano – evento atingiu o paciente, mas não causou dano
discernível; o erro se concretiza no paciente, mas não causa dano; quase lesão.
Exemplo: a unidade de sangue incompatível acabou sendo transfundida para o
paciente, mas não houve reação.
15. Incidente com dano (Evento adverso) – incidente que resulta em dano ao
paciente; erro que se concretiza no paciente e causa dano. Exemplo: é feita
infusão de unidade de sangue incompatível no paciente cirúrgico e este morre
por reação hemolítica.
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16. Ações tomadas para reduzir o risco – ações tomadas para reduzir, administrar
ou controlar qualquer dano futuro ou probabilidade de dano associado a um
incidente. Essas ações podem ser pró-ativas ou reativas. Ações pró-ativas:
podem ser identificadas por técnicas como análise de efeito e análise
probabilística de risco. Ações reativas: são aquelas tomadas em resposta aos
aprendizados (insights) ganhos depois de um incidente ocorrido.
17. Falha no sistema – refere-se a uma falta, desarranjo ou disfunção no esquema
operacional, nos processos ou na infraestrutura de uma organização.
18. Melhoria no sistema – resultado de cultura, processos e estruturas que estão
relacionados à prevenção de falha no sistema e à melhoria da segurança e da
qualidade.
19. Análise das causas – processo sistemático segundo o qual os fatores que
contribuem para um incidente são identificados pela reconstrução da sequência
de eventos e pelo constante questiona- mento do porquê da ocorrência do
incidente, até a sua elucidação.

A harmonização da terminologia sobre segurança do paciente no Brasil é um artifício


útil e necessário para a melhoria da qualidade das publicações sobre esse tema, pois
auxiliará pesquisadores e profissionais da área a padronizar conceitos e descritores,
facilitando a busca pelos artigos e a citação desses.

DESAFIOS GLOBAIS PARA REDUÇÃO DE RISCO

Quanto às ações para reduzir os riscos e mitigar os EAs, a OMS priorizou duas, que
foram denominadas de desafios globais: reduzir a infecção associada ao cuidado em
saúde, por meio da campanha de higienização das mãos, e promover uma cirurgia mais
segura, pela adoção de uma lista de verificação antes, durante e após o ato cirúrgico.
Outras soluções têm sido estimuladas pela OMS, tais como: evitar erros com
medicamentos que tenham nomes e embalagens semelhantes; evitar troca de
pacientes, ao prestar qualquer cuidado – administrar medicamento, colher amostra para
exame, infundir bolsa de sangue e etc.; garantir uma correta comunicação durante a
transmissão do caso; retirar as soluções eletrolíticas concentradas das áreas de
internação dos pacientes e controlar a sua utilização; criar mecanismos de controle de
soluções eletrolíticas concentradas; garantir a medicação correta em transições dos
cuidados (conciliação medicamentosa); evitar a má conexão de tubos, catéteres e
seringas; e usar seringas descartáveis .

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