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Acorde, tem um desconhecido

mandando na sua vida


Vivemos semidespertos e nosso inconsciente toma muitas das nossas decisões. Como
sair desse estado?

Victor Lisboa
Mente e atitude

O Experimento Bargh

O modo como você anda, o quão persistente você é, qual seu nível de egoísmo e até
mesmo o que você comprará no supermercado: sinto muito, mas quem decide essas
coisas banais e outras tantas mais importantes não é você.

Em 1996, o psicólogo John Bargh realizou um experimento simples mas de implicações


perturbadoras. Ele dividiu voluntários em dois grupos e pediu que formassem frases
com palavras dadas por sua equipe. Mas um dos grupos tinha uma peculiaridade: sem
perceberem, algumas dessas palavras eram relacionadas à velhice (esquecido, careca,
ruga, etc). Em seguida, Bargh pedia que todos os voluntários caminhassem até outra
sala, mais distante, informando que lá haveria mais testes, e cronometrava secretamente
o tempo que levavam no percurso.

Por incrível que pareça, os voluntários do grupo com palavras associadas à velhice
caminhavam mais lentamente que os do outro grupo, como se fossem idosos.
Posteriormente, todos os voluntários disseram não ter percebido as palavras
relacionadas à velhice e tampouco notado algo de pouco natural no seu próprio jeito de
caminhar.

O teste foi repetido várias vezes, com rigor científico, e o resultado foi sempre o
mesmo.

Até então, a ideia de que mensagens subliminares (no sentido de informações apenas
percebidas pelo inconsciente de alguém) fossem capazes de realmente orientar o
comportamento humano era uma espécie de “lenda urbana” da psicologia. Mas, a partir
do experimento de Bargh, novas experiências foram desenvolvidas para apurar a
extensão desse efeito de mensagens associativas no comportamento humano mais
básico.
Em 2006, uma equipe de psicólogos publicou os resultados de um experimento
chamado The Psychological Consequences of Money ("As Consequências Psicológicas
do Dinheiro"). Essencialmente, se tratava de um experimento semelhante ao de John
Barg, mas com palavras e símbolos relacionados ao dinheiro, que os participantes
não percebiam, mas eram repassadas ao seu inconsciente.

Nesse caso, os pesquisadores constataram que os membros do grupo que receberam


anteriormente mensagens subliminares associadas a dinheiro persistiam o dobro do
tempo na tentativa de resolver um desafio lógico-matemático de difícil solução. Por
outro lado, esses mesmos participantes se mostravam muito mais egoísta quando se
tratava de ajudar os colegas, ainda que a ajuda não os prejudicasse.

Ou seja, quando as pessoas estão rotineiramente submetidas a um contexto social em


que o dinheiro é um assunto onipresente, elas se tornam mais determinadas, mas ao
mesmo tempo mais individualistas.

Também em 2006, outro experimento demonstrou que um grupo de pessoas orientado a


pensar em atos vergonhosos de seu passado antes de participar de um jogo de palavras
tendia a escolher, no jogo, palavras associadas com limpeza. Esse teste progrediu para
outro em que parte dos voluntários deveriam imaginar estarem praticando um homicídio
- tal grupo, em uma posterior simulação de compra no supermercado, adquiriu mais
produtos de limpeza (sabão, detergente, etc.) que os demais participantes.

A um resultado semelhante chegou o mundialmente aclamado neurologista António


Damásio. Em 1996, ele desenvolveu uma série de testes que comprovaram que o ser
humano não toma decisões racionais mesmo que o contexto exija racionalidade.
Segundo a pesquisa de Damásio, tomamos decisões inconscientemente motivados
por emoções e, disfarçando esse fato para nós mesmos, criamos justificativas
aparentemente racionais para essas escolhas. Quando questionados, os indivíduos
sinceramente afirmavam que sua escolha foi pautada por considerações racionais,
mas Damásio desenvolveu uma espécie de jogo capaz de revelar quando, na
verdade, as decisões eram tomadas por emoções.

Dezenas de outros experimentos similares estão sendo documentados nos últimos


tempos, todos realizados e repetidos o número suficiente de vezes para serem validados
segundo criteriosos parâmetros científicos. E em todos eles, os participantes afirmaram
ao final não terem percebido as mensagens subliminares que influenciaram seu
comportamento.

Todas essas pesquisas demonstram, de forma sólida e objetiva, que o pilar central das
teorias psicológicas tradicionais realmente existe. Não se trata de uma pressuposição
abstrata, sem fundamento: o inconsciente, aqui entendido como uma parte de nossa
psique que escapa ao controle da nossa consciência, tem o poder de, frequentemente,
dar a última palavra em relação ao nosso comportamento.

E a conclusão final desses experimentos bem resumida por Daniel Kahneman, psicólogo


que ganhou o Nobel de economia por desenvolver uma teoria que estuda a tomada de
decisão humana inclusive sob o enfoque econômico: gostamos de pensar que somos
senhores de nossas atitudes e decisões, mas é um estranho quem conduz nossas vidas. 
Após falar de algumas dessas pesquisas em seu aclamado livro Rápido e Devagar,
Kahneman arremata: "você acabou de ser apresentado a esse estranho que existe em
você mesmo, que talvez esteja no controle sobre grande parte do que você faz, embora
você raramente vislumbre isso".

E esse estranho é manipulável, facilmente influenciável. Um político habilidoso, uma


agência publicitária ou mesmo um líder religioso que souber puxar as cordas certas será
capaz de conduzir o seu destino como o de um marionete, por mais que você não admita
isso, por mais que você se julgue especial e diferente de seus contemporâneos.

E tudo isso porque você está dormindo, neste exato momento.

Acorde.

Gurdjieff e o sonho acordado

O armênio George Ivanovich Gurdieff faz parte daquele grupo de loucos geniais do


século XX, que misturavam insights reveladores com pirações às vezes perigosas, grupo
ao qual pertenciam figuras como Colin Wilson, William Reich, Aleister
Crowley, Jodoroswki e tantos outros doidos de variado grau de periculosidade social.
Sabendo separar o joio do trigo, a teoria maluca das ideias proveitosas, podemos
aprender um bocado com Gurdjieff.

Para ele, estamos sempre adormecidos, seja durante o sono noturno, seja com os
olhos abertos ao longo do dia, ocasião em que nos iludimos de que estamos
totalmente despertos.

Para entendermos o que ele quer dizer, precisamos compreender alguns aspectos
elementares dos sonhos. Quando dormimos à noite, ficamos apenas parcialmente e não
completamente isolados do mundo externo, sem perceber o que ocorre lá fora. Afinal,
fechamos nossos olhos para dormir, mas não nossos ouvidos e os demais sentidos de
nosso corpo.

Então, às vezes, percepções do mundo real vazam para dentro de nossos sonhos, e nós
incorporamos esses estímulos ao que sonhamos no momento. Todos nós já passamos
por esse tipo de experiência. Às vezes, sentimos sede e sonhamos que estamos bebendo
água. Dentro de nosso sonho um carro buzina, um telefone toca ou alguém nos chama
pelo nome, e logo em seguida despertamos para descobrir que no mundo real um carro
estava mesmo buzinando, nosso celular realmente tocava ou alguém de fato tentava nos
despertar.

Isso ainda acontece quando estamos supostamente acordados, pois em certo sentido
ainda continuamos a sonhar, e quem sonha de olhos abertos é alguém chamado “Ego”.

E o ego sonha porque tende a organizar todas experiências do mundo em torno de si,
como se tudo o que ocorresse tivesse ele, direta ou indiretamente, como protagonista,
como personagem central para o qual todas as coisas, todos os eventos, convergem.
Assim, a única diferença entre estar dormindo e estar acordado seria apenas do grau de
profundidade do ato de sonhar realizado pelo Ego. Isso porque os sonhos são formados
por fragmentos de estímulos do mundo lá fora e por elementos que estão em nosso
inconsciente. Há, por assim dizer, uma mistura de realidade e de subjetividade.

Durante o dia, a quantidade de percepções do mundo lá fora que vazam para esse nosso
"sonho" é muito maior, e o Ego se encarrega de ajustar todos esses estímulos exteriores
para formar uma narrativa coerente que confundimos com a realidade, mas que não
passa de algo imaginado - pois, no centro da narrativa, nós somos os protagonistas e a
verdade é que o mundo existe, as pessoas vivem e as coisas acontecem
independentemente de nossa existência.

Vamos lembrar do exemplo da buzina e do celular. Quando estamos acordados,


percebemos a realidade ao nosso redor, e estamos conscientes quando um carro buzina
ou toca nosso celular. Podemos, assim, interagir com o mundo lá fora.

Porém, para Gurdjieff, não percebemos os estímulos externos tais como são, mas os
selecionamos e os interpretamos conforme nossa perspectiva de Ego que está em parte
acordado e em parte sonhando.

Da mesma forma como, enquanto dormimos à noite, a matéria de nosso sonhar é o


conjunto de elementos pertencentes ao inconsciente somado a algumas percepções da
realidade, enquanto estamos acordados durante o dia essas percepções, mais numerosas,
são misturados pelo Ego condicionamentos da infância, traumas, preconceitos, desejos
frustrados, temores, expectativas e pressuposições sobre como gostaríamos que as
coisas fossem.

Para explicar esse processo, há um conceito muito útil formulado pela psicologia. Trata-
se do fenômeno da projeção. Assim como um antigo projetor de cinema projeta na tela
branca cenas de um filme, da mesma forma nosso Ego projeta nos acontecimentos
suposições e circunstâncias que não são reais, mas que correspondem, de forma por
vezes simbólica, ao que está dentro de nós e que somos incapazes de reconhecer
conscientemente.

Estamos parcialmente dormindo nesse exato momento justamente porque nosso


estado de semidespertar é repleto dessas projeções.

Esse é o motivo pelo qual, muitas vezes, um pequeno incidente no trânsito acaba em
violência desproporcional. Também é a razão pela qual uma rivalidade entre torcidas de
futebol pode ser a dar lugar a um homicídio, ou um pequeno desentendimento entre
familiares ou amigos pode resultar num grande desentendimento, com todos magoados
de forma incompreensível.

Matar por um time, agredir por causa de um pedaço de metal motorizado ou magoar-se
por um incidente minúsculo: fatos insignificantes que resultam em grandes tragédias. É
que, envolvendo os fugazes e pouco relevantes eventos da vida real, há camadas e
camadas de projeções resultantes de nosso estado semidesperto.
Nesses casos e em muitos outros, quem discute, agride ou se magoa não está realmente
enxergando o outro ser humano na sua frente, mas uma mistura da outra pessoa com
uma projeção de algo que existe apenas na sua cabeça. Porém, como sonhamos
acordados, julgamos ter existência concreta coisas que estão apenas em nossa mente. É
assim que nosso Ego mantém uma narrativa coerente, mas falseada, sobre sua
importância no mundo.

Mas se a diferença entre nosso sonho noturno e nosso sonho diurno está apenas no grau
em que os estímulos internos vazam para nosso sono, há algum modo de realmente
despertar?

E como despertar?

Para Gurdjieff haveria, ao lado do adormecer noturno e do "sonambulismo"


diurno, um terceiro estágio de consciência. Esse seria o estado de pleno despertar.

É dessa forma que o bigodudo armênio definia o conceito oriental de "iluminação"


e seus equivalentes ocidentais, como a "beatitude": não haveria nada de místico
nesses estados, o iluminado não seria alguém que atingiu um nível de
espiritualidade superior. Quem se ilumina simplesmente acordou no sentido de não
misturar e confundir as coisas do mundo real com elementos do seu mundo
subjetivo - a vida lá fora não é mais uma tela branca na qual seu ego projeta, sem
perceber, conteúdos que estão aqui dentro. Ele reconhece as coisas tal como são.

Essa, curiosamente, era a visão que outro maluco beleza, Wilhelm Reich, tinha sobre a
personalidade de Jesus Cristo. Para Reich, não se tratava do "filho de Deus", e
tampouco de um alienígena ou ser de alguma forma espiritualmente distinto dos
outros humanos. Ele teria sido apenas um homem que despertou mais do que seus
contemporâneos, e seu assassinato não começou no momento da crucificação, mas
quando seus discípulos passaram a tratá-lo como uma espécie de divindade,
deturpando suas palavras.  

Nesse caso teríamos, na história de Cristo, um ensinamento importante a tirar. Quando


chegamos a esse terceiro estágio, a essa experiência de um maior despertar, aqueles que
ainda estão dormindo e sonhando projetam em nós o conteúdo de seu sonho: não nos
entendem e tampouco nossas palavras, então nos tratam como se fôssemos seres
espiritualmente superiores. Isso é uma estratégia defensiva com a qual o Ego impede
que possamos ir mais além e superá-lo. Afinal, se aquele sujeito que fala coisas
maravilhosas não é como nós, mas sim uma criatura de natureza divina, estamos
dispensados do compromisso de chegar ao estágio em que ele se encontra.

Mas no momento em que despertamos, já não nos enganamos mais e somos


capazes, ao menos em parte, de reconhecer o mundo e as coisas tal como de fato
são. Percebemos a realidade dentro da modesta capacidade de nossa consciência,
mas essa capacidade está disponível em sua potencialidade mais plena pois não
está contaminada por conteúdos do inconsciente. Estamos acordados e possuímos a
noção mais precisa possível dos estímulos externos, de modo a perceber a complexidade
e ambiguidade de cada situação ou ser com que entramos em contato, e a dificuldade
peculiar de adaptá-los nas categorias mentais que nossa mente formula.

Mas ainda não chegamos ao que importa: há algum modo de não sonharmos mais?

Nesse ponto, a primeira atitude mentalmente saudável é abandonar qualquer tipo


de obsessão pela ideia de "despertar". Gurdieff era, em grande parte, obcecado com a
noção de que podíamos atingir uma consciência mais plena, e exigia incondicional
adesão de seus discípulos que deveriam fazer exercícios diários de atenção para não se
deixar “adormecer” no cotidiano.

Porém, um dos segredos da vida que nos poupa de sofrimento desnecessário é não
exigir de si um desempenho de perfeição a 100%. Admitir que a natureza humana é
falha e que graus menores de sucesso, atingíveis sem o sacrifício de nossas relações
humanas, são possíveis, é a atitude mais recomendável.

É por isso que se começarmos com uma compreensão de que qualquer pequeno
despertar diário, por menor que seja, já é uma vitória, estamos no caminho certo.
Seremos capazes de nos desculpar e compreender quando nos apanharmos
dormindo diante de uma situação, projetando no mundo real o que é “sonho" de
nossa mente, e seguiremos um trajeto suave, sem atritos e obsessões, para um
caminho de melhor qualidade de vida.

E qualidade de vida é uma palavra importante, pois deixa claro que, nesse tópico, o
fundamental é ser prático e não filosófico. Não queremos chegar a um estágio de
superioridade metafísica - queremos é viver bem e reduzir o sofrimento dos seres ao
nosso redor. Isso porque ainda não respondemos claramente como chegar a um maior
despertar.

Ocorre que a segunda atitude mental saudável é não se deixar prender a qualquer
filosofia ou doutrina específica que nos sirva como forma de despertar. Pois ao
lado do risco da "obsessão", também há o risco de "fanatização" com uma das
variadas doutrinas e técnicas que podem nos fornecer para deixarmos de dormir
acordados.

Porque há, sim, vários métodos capazes de servir como via para um maior
despertar. O grande truque é considerarmos todos esses métodos e doutrinas como
instrumentos, úteis dentro de determinados limites e contextos, e não como
verdades absolutas que trazem a panaceia para nossa situação.

E se adotarmos essa postura, praticamente quase todas as atividades de


desenvolvimento humano, da Yoga à prática de nosso esporte favorito, tornam-se
ferramentas para o despertar.

Dito isso, uma das práticas mais antigas e eficientes para começar a trilhar o
caminho de um maior despertar é a meditação. Por assim dizer, a ela é uma
"tecnologia de despertar" desenvolvida no Oriente. Há, na verdade, vários tipos de
meditação, e a experiência de cada uma delas é tão particular que é como se fosse
uma roupa que se ajusta à cada pessoa conforme suas particularidades. Mas todas
induzem, de uma forma ou de outra, nossa mente a ficar mais atenta aos seus
processos internos e à relação com o mundo externo.

Lama Padma Samten

E modernamente, arrisco dizer que o Ocidente desenvolveu modernamente sua própria


tecnologia de despertar, embora sobre ela ainda recaia muita incompreensão e acusações
injustas, em grande parte vindas de pessoas que jamais tomaram o cuidado de realmente
estudá-la com a profundidade e atenção que ela existe, e que confundem o mapa com o
terreno que ele tenta representar. Trata-se da psicanálise, que se desenvolveu muito após
o passo inicial dado por Freud (e as principais críticas de leigos voltam-se muito a esse
fundador, ignorando o que foi revisto e reformulado ao longo de um século) e que nos
auxilia a compreender até onde a nossa percepção do mundo circundante é afetada e
mesmo falseada por elementos internos.

Existe, assim, um ponto de encontro entre a prática oriental da meditação e o


procedimento ocidental da psicanálise. Seja pelo treino da desindentificação entre a
consciência e os pensamentos (meditação), seja pelo trabalho de reconhecimento da
representações emocionais/simbólicas (psicanálise), ambas as experiências partem de
pontos díspares (a meditação, do treino da consciência; a psicanálise, do labor com o
inconsciente) para atingir um objetivo comum: a habilidade de distinguir o que há de
real daquilo que há de onírico.

Um mundo com pessoas mais despertas é um mundo de pessoas mais amorosas em suas
relações e mais responsáveis em seus atos. Quem acordou um pouco mais do
sonambulismo diário é capaz de ter a abertura necessária para construir uma sociedade
realmente evoluída, em que o centro de nossas decisões não é o ego, mas o bem estar
coletivo.

Fazemos, por fim, amizade com o desconhecido que há em nós e que comanda nossas
vidas. Trazemos ele à luz, reconhecemos os seus objetivos confusos, medos ocultos e
desejos inconfessos. E ele se torna menos manipulável, menos cego em seus passos. Na
verdade, ocorre a fusão entre nós e uma parte de nosso ser que ignoramos. Por fim,
abrimos nossos olhos um pouco mais, pois eles estão fechados neste exato momento, e
sonhamos sem perceber.

Portanto, despertemos.

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