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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Pós-Graduação em Artes Visuais / Instituto de Artes

ALDO LUÍS PEDROSA DA SILVA

TECNOSCOPIA:
a necessidade de “ver” e “ser visto” na contemporaneidade e sua implicação nas
artes visuais

TECHNOSCOPY:
the necessity to “see” and “be seen” in contemporary times and its implication in the
visual arts

CAMPINAS
2018
ALDO LUÍS PEDROSA DA SILVA

TECNOSCOPIA:
a necessidade de “ver” e “ser visto” na contemporaneidade e sua implicação nas
artes visuais

TECHNOSCOPY:
the necessity to “see” and “be seen” in contemporary times and its implication in the
visual arts

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes Visuais do Instituto
de Artes da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos
exigidos para a obtenção do título de
Doutor em ARTES VISUAIS.

Thesis presented to the Postgraduate


Program in Visual Arts of the Institute of
Arts of the University of Campinas in
partial fulfillment of the requirements to
obtain the Doctorate degree in VISUAL
ARTS.

Orientador: PROF. DR. JOSÉ EDUARDO RIBEIRO DE PAIVA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL


DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO ALDO LUÍS
PEDROSA DA SILVA, E ORIENTADA PELO PROF. DR.
JOSÉ EDUARDO RIBEIRO DE PAIVA.

CAMPINAS
2018
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Silva, Aldo Luís Pedrosa da, 1983-


Si38t SilTecnoscopia : a necessidade de "ver" e "ser visto" na contemporaneidade e
sua implicação nas artes visuais / Aldo Luís Pedrosa da Silva. – Campinas, SP
: [s.n.], 2018.

SilOrientador: José Eduardo Ribeiro de Paiva.


SilTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Sil1. Voyeurismo. 2. Exibicionismo. 3. Vigilância eletrônica. 4. Arte e tecnologia.


5. Arte contemporânea. I. Paiva, José Eduardo Ribeiro, 1959-. II. Universidade
Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Technoscopy : the necessity to "see" and "be seen" in the
contemporary times and its implication in the visual arts
Palavras-chave em inglês:
Voyeurism
Exhibitionism
Electronic surveillance
Art and technology
Contemporary art
Área de concentração: Artes Visuais
Titulação: Doutor em Artes Visuais
Banca examinadora:
José Eduardo Ribeiro de Paiva [Orientador]
Edson do Prado Pfutzenreuter
Sérgio Niculitcheff
João Carlos Massarolo
João Henrique Lodi Agreli
Data de defesa: 15-01-2018
Programa de Pós-Graduação: Artes Visuais
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

ALDO LUÍS PEDROSA DA SILVA

ORIENTADOR: PROF. DR. JOSÉ EDUARDO RIBEIRO DE PAIVA

MEMBROS:

1. PROF. DR. JOSÉ EDUARDO RIBEIRO DE PAIVA


2. PROF. DR. EDSON DO PRADO PFUTZENREUTER
3. PROF. DR. SÉRGIO NICULITCHEFF
4. PROF. DR. JOÃO CARLOS MASSAROLO
5. PROF. DR. JOÃO HENRIQUE LODI AGRELI

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade


Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca


examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica da aluno.

DATA DA DEFESA: 15.01.2018


AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família, amigos e também a todos


que fizeram parte desta caminhada de pesquisa,
iniciada há mais de oito anos, ainda no âmbito do
mestrado, e que culmina nesta tese de doutorado.
Muitas pessoas foram fundamentais nesse processo
e para agradecê-las nominalmente seriam
necessárias várias páginas. Meus sinceros
agradecimentos a todos vocês! Agradeço
especialmente ao meu brilhante orientador, Prof. Dr.
José Eduardo Paiva; à toda banca examinadora que
me concedeu a honra de poder contar com suas
ilustres contribuições; aos psicólogos Liliane Além-
Mar e André Moreno pelo fundamental auxílio no
tratamento das questões na área da psicologia; e a
toda a equipe de produção e elenco do longa-
metragem “#ninfabebê”, trabalho artístico de
extrema importância para esta pesquisa e para
minha carreira.
RESUMO

Nomeada como “Tecnoscopia: a necessidade de ‘ver ’ e ‘ser visto’ na


contemporaneidade e sua implicação nas artes visuais”, a presente tese é realizada na
linha de pesquisa de “Multimeios e Arte”, durante o período de 2013 a 2017, no âmbito
do Doutorado em Artes Visuais da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
estado de São Paulo, Brasil, sob a orientação do Prof. Dr. José Eduardo Ribeiro de
Paiva. Este estudo possui como principal objeto a tecnoscopia, terminologia aqui
criada com o objetivo de tratar do voyeurismo, do exibicionismo e da vigilância na
contemporaneidade, dados por meio da mediação tecnológica. Constata-se que há a
necessidade de “ver” e “ser visto” na atualidade, advinda principalmente da
onipresença das máquinas eletrônico-digitais conectadas em rede no cotidiano de
pessoas do mundo todo. A partir disso, instaura-se um estado de coisas global que
emerge de complexas relações multidisciplinares que abarcam diferentes áreas do
conhecimento, tais como: psicologia, psicanálise, sociologia, filosofia, economia,
política, teoria da comunicação, publicidade, entretenimento, arte etc. Dentre elas, a
arte é primordial para o entendimento e o enfrentamento de tais questões. Em
consonância a isso, a tese discorrerá sobre os três vértices da tecnoscopia
contemporânea em um primeiro momento para, a seguir, confrontá-los com poéticas
artísticas visuais significativas nesse ínterim. Este trabalho é uma continuidade da
pesquisa acadêmica iniciada no Mestrado em Artes realizado na Universidade Federal
de Uberlândia (UFU), Minas Gerais, Brasil, no período de 2010 a 2012, com orientação
da Profa. Dra. Beatriz Basile da Silva Rauscher.

Palavras-chave: Tecnoscopia; Voyeurismo; Exibicionismo; Vigilância; Arte.


ABSTRACT

Entitled “Technoscopy: the necessity to ‘see’ and ‘be seen’ in contemporary times and
its implication in the visual arts”, the present thesis is conducted in the line of research
“Multimedia and Art” during the period from 2013 to 2017, on the scope of Doctorate in
Visual Arts of Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), state of São Paulo,
Brazil, under the guidance of Professor José Eduardo Ribeiro de Paiva. This study has
as main object the technoscopy, terminology created here with the purpose of dealing
with voyeurism, exhibitionism and surveillance in the contemporaneity, made through
technological mediation. It is noted that there is a necessity to “see” and “be seen”
nowadays, mainly due to the omnipresence of electronic-digital machines connected in
a network in the routines of people around the world. Starting there, a global state of
affairs emerges from complex multidisciplinary relationships that embrace different
knowledge areas, such as: psychology, psychoanalysis, sociology, philosophy,
economics, politics, communication theory, advertising, entertainment, art etc. Among
them, art is primordial for the understanding and the confrontation of such questions. In
accordance to that, the thesis will discuss the three vertices of contemporary
technoscopy at a first moment to confront them after that with significant visual artistic
poetics in the meantime. This work is a continuation of the academic research that
begun in the Masters in Arts held at Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Minas
Gerais, Brazil, from 2010 to 2012, with the guidance of Professor Beatriz Basile da
Silva Rauscher.

Keywords: Technoscopy; Voyeurism; Exhibitionism; Surveillance; Art.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO …………………………………………………………………………….………… 10

1. VOYEURISMO: INSTAURAÇÃO DA TECNOSCOPIA ……………………………..……..…. 17

1.1 VOYEURISMO: NECESSIDADE E “FOME DE VER” ……………………….…..……… 19

1.1.1 PARAFILIAS E ESCOPOFILIA …………………………………..……….…..…….. 20

1.1.2 ATENÇÃO, CURIOSIDADE E FETICHISMO ……..……………….…..…….….. 29

1.2 TECNOSCOPIA: VOYEURISMO COMO ÁPICE DO TRIÂNGULO ESCÓPICO ….… 40

1.2.1 SOCIEDADE TECNOSCÓPICA …………………….……………….…..…….….. 43

1.2.2 VOYEURISMO INTERATIVO E WEB 2.0 …………………….…….….…..…….. 51

1.2.3 TECNOSCOPIA …………………………………..……….…..………………….….. 58

1.3 VOYEURISMO E A ONIPRESENÇA DAS IMAGENS MAQUÍNICAS ..…….…..…….. 73

1.3.1 ANTECEDENTES VOYEURISTAS ……..……….………….………………….….. 77

1.3.2 PRODUÇÕES VOYEURISTAS TECNOSCÓPICAS .…………………..…….….. 88

1.3.2.1 FOTOGRAFIA ……..……….………………………….………………….….. 91

1.3.2.2 CINEMA ……..……….………………………….……………………….….. 111

1.3.2.3 AUDIOVISUAL: TV, VÍDEO E ARTE COMPUTACIONAL ……….…….. 127

2. EXIBICIONISMO: “COMBUSTÍVEL” TECNOSCÓPICO ….……………..…………….….. 141

2.1. EXIBICIONISMO TECNOSCÓPICO: DEPENDÊNCIA E ESPETÁCULO …….…… 143

2.1.1. NECESSIDADE DE “SER VISTO”: PARAFILIAS E TRANSTORNOS .…..… 145

2.1.2. ESPETÁCULO EXIBICIONISTA E AS NOVAS SUBJETIVIDADES ………… 159

2.2. SELFIE, STREAMING E SEXTING: TRÊS S DO EXIBICIONISMO TECNOSCÓPICO


……..………………………………….….………………………….……………………….….. 166
2.2.1. R-EVOLUÇÕES DO AUTORRETRATO ……..……….…………………….….. 168

2.2.1.1 SELFIE …………………….…………………….……………………….….. 173

2.2.1.2 BLOG …………………….…..………………….……………………….….. 179

2.2.1.3 STREAMING ……….…..……………………….……………………….….. 182

2.2.2. EROS E TÂNATOS: SEXO E MORTE ……….…………………………….….. 185

2.2.2.1 SEXTING …….………………………………….……………………….….. 191

2.2.2.2 LEAK …………………………………………….……………………….….. 196

2.2.2.3 CYBERBULLYING …………………….……….……………………….….. 201

2.3. ARTE EXIBICIONISTA TECNOSCÓPICA …….……….….……………………….….. 208


2.3.1. “EU” EM IMAGEM: EXIBICIONISMO FOTOGRÁFICO ………………..…….. 211

2.3.2. “EU MESMO” EM MOVIMENTO: AUDIOVISUAL ………………….…..…….. 224

3. VIGILÂNCIA: VÉRTICE DERRADEIRO DA TECNOSCOPIA ………….…………..…….. 235

3.1. PANÓPTICO ………………………………………………………………………..…….. 237

3.1.1. BENTHAM, FOUCAULT E ORWELL ………..…………………………..…….. 239

3.1.2. VIGILÂNCIA PANOPTISTA ELETRÔNICA …..…………..……………..…….. 244

3.2. PÓS-PANÓPTICOS TECNOSCÓPICOS …..………………..…..……………..…….. 249


3.2.1. BANÓPTICO: ESPIONAGEM, GUERRA E A CULTURA DA INSEGURANÇA
..……………………………….….………………………….……………………….….… 255
3.2.2. SINÓPTICO: SNOWDEN E MÍDIAS SOCIAIS ………..…..………..…..…….. 267

3.3. IMAGENS DE VIGÍLIA E ARTE ENGAJADA ……..……………………………..…….. 276

3.3.1. ARTE E VIGILÂNCIA ……..…..……………………….………….….………….. 279

3.2.2. ARTE-ATIVISMO ……..…..……………………….………………………..…….. 293

4. TECNOSCOPIAS: PRODUÇÕES AUTORAIS ………….………………………..…….….. 307

4.1. OLHO MÁGICO (PEEPHOLE) | TCP#01 (TECNOSCOPIA 01) ……..………….….. 310

4.2. TELESCÓPIO (TELESCOPE) | TCP#02 (TECNOSCOPIA 02) ……..…….…….….. 324

4.3. JANELA (WINDOW) | TCP#03 (TECNOSCOPIA 03) ……..……………..……….….. 333

4.4. À ESPREITA (LURKING) | TCP#04 (TECNOSCOPIA 04) ……..………..……….….. 340

4.5. LE VOYEUR { PARIS HÔTEL } | TCP#05 (TECNOSCOPIA 05) ..……………….….. 347

4.6. MAGIC MIRROR ON THE WEB | TCP#06 (TECNOSCOPIA 06) ……………….….. 354

4.7. #NINFABEBÊ (#BABYNYMPH) | TCP#07 (TECNOSCOPIA 07) ……………….…... 362

CONSIDERAÇÕES FINAIS ……..…..……………………….………………………..…..…….. 383

REFERÊNCIAS ……..…..……………………….………………………..………………..…….. 386


10

INTRODUÇÃO

Mesmo sem colisão, essa co-existência de tecnologias e de estados


de consciência leva a traumas e tensões todas as pessoas vivas.
Nossas atitudes mais comuns e convencionais parecem subitamente
transmudadas, metamorfoseadas em gárgulas e máscaras grotescas
(MCLUHAN, 1972, p. 336).

A incontrolável necessidade de “ver” e “ser visto” na contemporaneidade


decorre de questões socioculturais globais que tomaram forma ao longo das últimas
décadas. É fato que essa necessidade se instaura e se perpetua em ritmo
diretamente proporcional à evolução dos dispositivos técnicos que mediam o olhar e
a comunicação humana, tecnologias onipresentes na paisagem urbana. Tais
dispositivos dão aos sujeitos a sensação de “onividência eletrônica em rede”, mas se
trata, de fato, de uma onividência de “mão dupla” ou de “muitas mãos”, pois, ao
mesmo tempo em que o indivíduo vê “tudo o que quiser”, ele também é visto por
mais pessoas do que imagina.
Diante disso, esta pesquisa se vale de três conceitos-chave: o voyeurismo, o
exibicionismo e a vigilância. O grande desafio ao tratá-los como objetos de pesquisa
se dá na tentativa de transferi-los para uma discussão contemporânea, visto que
pertencem a áreas diversas e tradicionalmente são tratados há, pelo menos, um
século. Aplicá-los na contemporaneidade e no âmbito de uma sociedade
extremamente dependente dos meios tecnológicos se torna tarefa árdua,
decorrendo numa ampla pesquisa iniciada há quase uma década e que culminou
com esta tese.
O meio contemporâneo transforma as coisas e, da mesma maneira que as
limita, também oferece novas possibilidades. Transpor o voyeurismo, o exibicionismo
e a vigilância para o novo meio “maquínico” e definir um eixo conceitual que os
contemplassem e os situassem de forma consistente na atualidade foi o grande
desafio epistemológico enfrentado por este autor em seus estudos acadêmicos, ao
passo que a “bagagem” conceitual foi aplicada, testada, analisada e sentida de
forma poética em trabalhos artísticos autorais.
A presente tese se apresenta como a continuidade da pesquisa acadêmica
iniciada no Mestrado em Artes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Minas
Gerais, Brasil, realizada no período de 2010 a 2012, na linha de “Práticas e
Processos em Artes Visuais”. Com o título “Poéticas do Olhar: escopofilia e
11

panoptismo em uma produção videográfica”, a dissertação foi orientada pela Profa.


Dra. Beatriz Basile da Silva Rauscher. Conforme esse assunto, o estudo focou os
conceitos de escopofilia e panoptismo e a produção artística em vídeo. Tais
expressões são diretamente ligadas ao voyeurismo e à vigilância, e se apresentam
como vieses que serão detalhadamente discutidos nesta tese, de forma a tentar
salientar os desdobramentos significativos ocorridos no trânsito entre a pesquisa de
mestrado e o estudo de doutorado.
Outra questão em foco é a produção videográfica. Como a linha de pesquisa
trabalhada no mestrado se dava no contexto de práticas e processos artísticos, ela
pressupunha um trabalho poético em artes visuais que deveria ser realizado
concomitantemente à pesquisa teórica. Nesse âmbito, quatro produções artísticas
em vídeo (ou videoartes) foram desenvolvidas como tratamentos crítico-poéticos aos
conceitos de voyeurismo e vigilância, que se apropriavam das questões teóricas da
dissertação, ao passo que deram pressupostos para novas análises e abordagens
em um processo de retroalimentação comum às pesquisas poéticas em artes
visuais.
Ao finalizar qualquer investigação, é comum perceber que várias questões
foram negligenciadas ou não tratadas de maneira adequada. No mestrado,
constatou-se que a pesquisa necessitava de um tratamento mais aprofundando dos
conceitos trabalhados, ao passo que necessitava integrar à estes o exibicionismo,
conceito antes tido unicamente como um desdobramento do voyeurismo. Ao
ingressar no doutorado, foi possível dar continuidade e solucionar os problemas
encontrados na dissertação de mestrado. Neste âmbito, esta tese se apresenta
como culminância do estudo de doutorado em Artes Visuais realizado na
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), estado de São Paulo, Brasil, entre
2013 e 2017. Ela se integra à linha de pesquisa “Multimeios e Arte”, com orientação
do Prof. Dr. José Eduardo Ribeiro de Paiva.
Alguns dos principais problemas de pesquisa encontrados serviram para o
levantamento das seguintes indagações: O voyeurismo, o exibicionismo e a
vigilância global, instaurados no contexto social, ainda podem ser tratados conceitual
e epistemologicamente como foram através das décadas, de maneira tradicional?
Se sim (ou não), qual o papel dos dispositivos tecnológicos contemporâneos que
atuam como mediadores do olhar e da comunicação humana nesse ínterim? Qual o
12

papel da cultura visual e das artes visuais nesse âmbito? Essas questões,
diretamente ligadas às recentes transformações do capitalismo, se originaram do
sistema econômico vigente ou, em contrapartida, tratam de mudanças psicossociais
que impactaram diretamente o consumo e a indústria cultural? Para onde tudo isso
aponta? Qual é o futuro? Todas indagações são dignas de reflexão e se colocam
como uma tendência acadêmica e cultural de crítica e análise, o que comprova a
contemporaneidade e a importância de tais discussões.
Um dos primeiros pontos de embate no início da pesquisa de doutorado se
refere à definição da correta metodologia de abordagem dos três conceitos.
Coincidentemente, esta investigação se iniciou em agosto de 2013, enquanto
“explodia” o escândalo da vigilância global americana, no qual o ex-consultor da
National Security Agency (NSA, Agência de Segurança Nacional dos Estados
Unidos), Edward Snowden, expôs as táticas e ferramentas de vigilância pelas quais
o governo americano mantinha nações de todo o mundo sob vigília. Dentre várias
tecnologias e métodos diversos da NSA, havia o polêmico uso de informações
apropriadas diretamente dos maiores serviços digitais da atualidade: Google,
Microsoft, Yahoo, Facebook, PalTalk, AOL, Skype, YouTube e Apple – isso
explicitava, de maneira prática, a intrínseca correlação abordada no mestrado entre
voyeurismo e vigilância (escopofilia e panoptismo). No entanto, ela também
apontava uma potencialização das questões antes discutidas e trazia, em
consequência, novos desdobramentos e problemas metodológicos a serem
solucionados.
O primeiro (e principal problema) se referia à forma de tratamento de ambos
os conceitos. No mestrado, eles foram separados e categorizados, ou seja, em
alguns momentos se apontava determinada prática ou produto como voyeurista,
enquanto outros eram vistos como vigilantes. Claro que as inter-relações entre eles
eram exaltadas a todo o momento, mas, para além disso, há uma indissociabilidade
entre ambas. Outra questão se relacionava ao tratamento do exibicionismo como um
item significativo nesse contexto, por meio do qual se instaura um “olhar voyeurista”
e, consequentemente, ele permite que a vigilância delatada por Snowden se
instaure, dado que as informações que nutrem a vigilância global são “publicadas”
de modo consensual pelos sujeitos que explicitam sua intimidade de maneira
inerentemente exibicionista. Isso ocorre ao passo que os “voyeurs de plantão”
13

aproveitam para observar a intimidade alheia em um “jogo de sedução” ininterrupto e


que esboça a necessidade contemporânea de “ver” e “ser visto”, fazendo circular a
“máquina” que move o capitalismo.
Diante dessa relação indissociável entre voyeurismo, exibicionismo e
vigilância, a pesquisa se propôs a defender como tese a criação de um novo
conceito – tecnoscopia –, para abarcar em si mesmo todas as questões que
decorrem dos referidos termos. Esse neologismo referencia-se a um “olhar mediado
pela máquina”, um tipo de “olhar” que advém da constante necessidade de “ver” e
“ser visto”, dada a facilidade ou o incentivo oferecido pelos dispositivos tecnológicos
onipresentes na vida de uma significativa parcela dos sujeitos de todo o mundo. A
etimologia da palavra tecnoscopia e a escolha pelos termos que a formam (“tecno” e
“escopo”) serão apresentadas e detalhadas no primeiro capítulo desta tese, mas
cabe aqui dizer que o novo conceito fora criado dentre uma miríade de
possibilidades e, então, escolhido como o mais representativo para as questões em
discussão.
O principal enfoque desta tese concerne ao tratamento teórico-epistemológico
das questões que formam e decorrem da tecnoscopia. É interessante justificar que o
método de análise ora proposto tentou tratar da maioria dos temas relacionados à
tecnoscopia e de maneira completa. Por isso, a quantidade de informações aqui
incluída é proporcional à amplitude da temática em si, ainda em constante expansão
e sobre a qual autores do mundo todo ainda se “debruçam”, dada, principalmente, a
sua importância para a contemporaneidade e o futuro.
A pesquisa se valeu de diversas áreas, sobretudo de psicologia, psicanálise,
sociologia, filosofia, teoria da comunicação, entre outras. Além delas, as artes
visuais são fundamentais, pois o objeto artístico é indispensável para esta pesquisa.
Mesmo se a presente tese não fizesse parte de um trabalho acadêmico na área de
artes visuais de per si, a arte como área de conhecimento deveria também ser
apropriada, como ocorre em trabalhos de diversos autores, inclusive de outros
campos do conhecimento.
Convém salientar que a arte é indissociável às questões tecnoscópicas. É por
meio de produtos culturais visuais que a tecnoscopia chega ao seu público-alvo,
mas, em contrapartida, várias poéticas de importantes artistas contemporâneos
14

abordam criticamente tal conceito para proporem modelos de enfrentamento a


problemas e situações iminentes.
Nesse contexto, é importante dizer que esta tese elencará e analisará
produções de diversos artistas, inclusive, de seu próprio autor – estas últimas, a
partir da retroalimentação entre pesquisas teórica e poética. Diferentemente do
mestrado, este estudo não se propõe a trazer o trânsito entre a prática poético-
artística autoral e a abordagem teórica como objetivo principal de investigação, e sim
tratar conceitual e criticamente a tecnoscopia para, então, abordar suas implicações
nas artes visuais contemporâneas. Dentre as produções artísticas elencadas,
considerou-se apropriado analisar alguns trabalhos do autor da tese para contribuir
com a análise, visto que ele possui um trabalho artístico significativo no âmbito desta
temática. Claramente, esta verificação será realizada com o devido distanciamento
que é dado, inclusive, às demais poéticas.
A tese será dividida em quatro capítulos, sendo três dedicados a cada
seguimento da tecnoscopia – voyeurismo, exibicionismo e vigilância,
respectivamente –; e o último se volta às poéticas autorais citadas. Mesmo diante da
separação entre os três vieses tecnoscópicos, a discussão tentou seguir uma
sequência lógica de apresentação de todos os fatos, teorias e conceitos vinculados
a cada um dos “vértices” do triângulo tecnoscópico, além de definir uma ideal ordem
de apresentação dos conceitos bases. Por conseguinte, o voyeurismo apresentou-se
como o principal viés tecnoscópico, dada a grande necessidade de “ver” na
contemporaneidade, algo que decorre diretamente de uma grande vontade de “ser
visto” (se exibir), que será tratada no segundo capítulo. O terceiro, então, fechará o
triângulo tecnoscópico situando os outros dois “vértices” em face de uma vigilância
político-capitalista e que se vale de diversos produtos e serviços eletrônicos que
podem ser considerados voyeuristas e exibicionistas de per si. Constatar-se-á,
nesse processo, que os dois primeiros capítulos enfocarão mais em questões
psicossociais, enquanto o terceiro trará aspectos inerentes à política e à economia
contemporânea.
Nos três primeiros capítulos haverá também uma divisão entre a análise
teórica e a reflexão sobre os produtos artísticos e culturais relacionados. A
metodologia escolhida visou separar, de maneira relativamente didática, a discussão
15

teórico-conceitual, em um primeiro momento, das produções em artes visuais e dos


demais produtos da cultura visual e capitalista a posteriori.
Claro que essa separação não pode ser realizada sempre, pois há obras de
artes inerentes a alguns pontos da discussão e que devem ser apresentadas nesse
momento. Mas, na medida do possível, preferiu-se traçar a priori o eixo conceitual
para depois explicitar as implicações culturais nas artes e nos meios visuais que se
valem de “máquinas tecnoscópicas”. É importante justificar que as questões sociais
e os pressupostos teóricos criticados pelos artistas nessas produções são
apresentados anteriormente às produções artísticas relacionadas; com isso, a
exposição dessas obras partirá da premissa de que o leitor já estará de posse das
informações e saberá fazer as relações necessárias para o entendimento das
poéticas ora destacadas. Assim, algumas análises de obras serão relativamente
curtas, pois elas visam demonstrar a produção de fato para a reflexão, e não
retomar aspectos já discutidos.
O quarto e último capítulo elencará sete produções do autor, elaboradas com
o objetivo de tratar poeticamente a tecnoscopia. Por esse motivo, elas foram
nomeadas como “tecnoscopias”, através da sigla TCP, que segue ao nome da obra.
As quatro primeiras produções são inerentes ao mestrado, enquanto as três últimas
foram produzidas concomitantemente ao doutorado. Dentre elas, vale destacar a
última poética – o filme em longa-metragem “#ninfabebê | TCP#07” –, trabalho mais
importante dentro das produções tecnoscópicas, em que foi concentrada boa parte
do tempo de realização do próprio doutorado. Ele foi concebido na tentativa de
explicitar as discussões sobre a tecnoscopia de maneira mais popular e acessível ao
grande público; por isso, houve a escolha pela linguagem do cinema.
Esta tese tomou a liberdade de tratar dos temas supracitados a partir de uma
metodologia de escrita que permitisse a análise do eixo conceitual principal de
pesquisa de uma maneira relativamente sequencial, com vistas a facilitar tanto a
pesquisa de per si como a leitura futura. Por isso, houve, em certa medida, a quebra
da estrutura tradicional e oficial de escrita de tese desta universidade, que sugere a
divisão dos itens de pesquisa em tópicos pré-definidos, tais como: introdução,
objetivos, revisão da literatura, materiais e métodos, resultados, discussão,
conclusão, análise estatística, referências etc. Nesse âmbito, esta tese se permitiu
seguir uma estrutura literária mais próxima a um livro comum, dividindo os capítulos
16

de acordo com as temáticas trabalhadas, em detrimento da divisão em uma


estrutura metodológica de pesquisa – mesmo que todos os itens tradicionais estejam
contemplados, pois essa alteração se deu apenas no formato e não prejudicou o
conteúdo obrigatório a ser tratado. Acreditando que a liberdade é inerente e
fundamental à pesquisa em arte, essa escolha se justifica por proporcionar ao futuro
leitor uma experiência crítica e reflexiva que poderia se perder na estrutura
tradicional de escrita de tese.
Assim, espera-se que o leitor consiga, a partir da discussão teórica e das
poéticas elencadas, refletir criticamente acerca da realidade instaurada e sobre o
que está por vir. Mais do que esgotar o assunto, esta tese objetiva a apontar um
caminho, em que as informações abordadas tratam de temáticas amplas por
natureza, dada a contemporaneidade dos temas e seus respectivos
desdobramentos diários. Mesmo diante da considerável quantidade de páginas do
texto a seguir, ainda há muito o que se analisar. Entretanto, pretende-se que o
trabalho possa auxiliar os estudiosos do tema e demais leitores, sobretudo em face
dos “limbos” epistemológicos e das dificuldades de análise já discorridas. Nesse
ponto, a arte contribui significativamente como ferramenta e área de conhecimento
para a abordagem crítica de um estado de coisas que se impõe e que, com certeza,
fará parte da realidade social por muitos anos.
17

CAPÍTULO 1. VOYEURISMO: INSTAURAÇÃO DA TECNOSCOPIA

Diana, deusa e rainha da caça, banhava-se quando foi surpreendida


pelo olhar de Actéon. Em seu estado mais vulnerável, nua, despida
de suas roupas e armas, entregue aos cuidados íntimos, vestiu-se
primeiro de vergonha, e em seguida, de ira. Ela, deusa da caça, ele,
exímio caçador; antes, equiparados de um mesmo lado da espreita.
O símbolo da caça não pode ser reconhecido em sua vulnerabilidade
e nada fazer. Seria o aval, a permissão. Seria reconhecer que uma
vez caçador, outra presa. Mas Diana é deusa, não se submete à
segunda condição (CROSMAN, 2015, p. 191).

Na história da humanidade, as relações entre o “ver” e o “ser visto”


desdobraram-se em complexos meandros ao longo dos tempos. A figura do homem
como observador e da mulher como ser observado datam das primeiras histórias
escritas e, desde então, definem o olho e o ato de ver como elementos fundamentais
no âmbito das relações sexuais. No entanto, as novas investidas do “olhar
contemporâneo” transcendem questões antes postas, promovendo ações recíprocas
entre os “olhares” masculinos e femininos.
O ato de observar e ser observado nos dias atuais instaura novos tipos de
subjetividades que põem em cheque noções seculares sobre privacidade e vida
pública. Esse novo “olhar” é potencializado por lentes, telas e dispositivos
tecnológicos diversos, onipresentes no contexto urbano a nível mundial. Nesse
ínterim, o voyeurismo transcende sua origem inerente à sexualidade humana e se
torna sujeito ativo em face de um estado de coisas contemporâneo.
A palavra voyeur é de origem francesa e significa “aquele que vê”. Ela se
refere a uma pessoa que obtém prazer ao observar os atos sexuais ou a intimidade
de outra(s) pessoa(s). Esta pessoa apenas observa, sem participar ativamente da
relação sexual. Para que o voyeurismo seja pleno, não deve haver consentimento do
observado – o voyeur se mantém oculto. Quando há o consentimento, o voyeurismo
se desfaz, dando lugar ao seu referente oposto: o exibicionismo. Na maioria dos
casos, o indivíduo voyeurista registra o que vê por meio de fotografias ou vídeos e
consegue prazer erótico ao se masturbar, quando visualiza o material captado.
18

Nesses termos, a referida expressão foi apropriada pela língua portuguesa 1 e


por outros idiomas. Em espanhol, seu correspondente direto é mirón, que deriva de
mirar, “olhar”. Em inglês, um indivíduo voyeurista é conhecido como peeping tom2;
no entanto, o vocábulo voyeur também é usado nesse idioma.
Neste capítulo haverá uma análise detalhada do conceito voyeur e de seus
desdobramentos históricos e contemporâneos. Para tanto, significativos estudos da
psicologia e da psicanálise irão se somar às abordagens artísticas, sociológicas,
filosóficas e da teoria da comunicação, que objetivarão ao entendimento do
voyeurismo em sua essência.
A posteriori, as implicações na contemporaneidade do voyeurismo serão
analisadas a partir da hipótese de que há um tipo de voyeurismo interativo,
“mediado”, “transmutado” e “distorcido”, surgido em face da onipresença tecnológica.
A partir dessa abordagem, decorrerão questões relacionadas ao exibicionismo e à
vigilância e, assim, o conceito tecnoscopia, neologismo criado para a presente
pesquisa, servirá de suporte teórico para tratar a tese.
Por fim, serão elencadas e analisadas algumas produções artísticas visuais,
além de alguns produtos da indústria cultural contemporânea que abordam essas
nuances e que compõem uma parcela significativa da cultura visual atual. Tais
produções advêm de um escopo muito mais amplo, mas se tornaram referência para
a análise do objeto em questão.
A maioria das obras e produtos valeram-se de imagens “maquínicas”, ou seja,
foram produzidas e/ou exibidas por meio de máquinas. Tenciona-se constatar, ainda,
que o aumento das produções culturais visuais que remetem ao voyeurismo é
diretamente proporcional ao desenvolvimento das tecnologias mediadoras do olhar
humano.

1 Por esse motivo, a palavra voyeur, assim como as expressões derivadas dela, não serão
apresentadas em itálico nesta tese. É importante frisar aqui que, seguindo esta lógica, todos os
termos estrangeiros que foram apropriadas pelos dicionários de português brasileiro também não
estarão em itálico no texto.

2 Peeping Tom surgiu em referência direta ao personagem homônimo descrito no famoso conto
anglo-saxão que relata o suposto fato em que a bela Lady Godiva (990-1067), esposa do Conde
Leofrico (968-1057), cavalgou nua pelas ruas da cidade em oposição aos altos impostos cobrados
pelo próprio marido aos cidadãos da cidade inglesa de Coventry – a nudez de Godiva foi a condição
de Leofrico para que as taxas fossem minimizadas. Durante a cavalgada, apenas um sujeito, de
nome Peeping Tom, ousou olhar para a mulher nua e, por isso, ele foi condenado à cegueira (em
algumas versões do conto, o personagem foi morto por esse fato).
19

1.1 Voyeurismo: necessidade e “fome de ver”

Aumont (1993) e Cabas (2010) abordam que a necessidade, o instinto (ou a


pulsão, na concepção freudiana 3) de ver a intimidade do outro transcende o objetivo
primordial do funcionamento do olho humano: ver para zelar, se guiar pelo mundo e
proteger a própria vida. Enquanto isso, Assoun (1999) discorre que, da mesma
forma que a boca serve não apenas para o beijo, mas também para comer e falar,
de maneira análoga, os olhos não percebem somente a mudança do mundo exterior,
importante para a conservação da vida, como também as propriedades e os
“encantos” dos objetos, pelos quais são elevados ao nível de objetos de escolha
amorosa.
Ademais, Canevacci (2008, p. 3) estabelece analogias entre o olho e a boca
ao dizer que, quando o olho é aberto, ele se dilata de maneira semelhante à boca,
“[...] cujos lábios/pálpebras se abrem sobre uma língua/íris. A sua pupila é a língua.
Tateia e saboreia visões, as deglute corroendo-as com a saliva. Saliva de lágrimas
que dissolvem imagens”. Assoun (1999, p. 24) dá continuidade a essa reflexão ao
citar que o olho:

[...] não se contenta em preencher sua função “animal” de


monitoração do mundo exterior – etimologicamente, o olhar é
exatamente o guardião – ele detalha o corpo do outro, do objeto
erótico. Ele o despe com o olhar: digamos mais precisamente que,
para a função de autoconservação, o olho basta (é suficiente “estar
de olho” no mundo e nos seus acontecimentos). É para preencher
sua função de objeto erótico que o olhar advém ao olho.

Por sua vez, Carvalho (2011, p. 124) assevera que “[...] todos os instintos
orgânicos que atuam em nossa mente podem ser classificados como fome ou amor”,
em que há sempre uma “[...] ‘queda de braço’ entre os instintos de autoconservação
(fome) e os instintos sexuais (amor) pelo controle dos mesmos órgãos” (idem). Freud
(1996a, p. 79) já havia posto as relações existentes entre as pulsões sexual e de
nutrição, também se valendo da palavra “fome” para isso: “[...] falta à linguagem
vulgar (no caso da pulsão sexual) uma designação equivalente à palavra ‘fome’”.
O voyeurismo originalmente se apresenta como um meio para estabelecer a
relação sexual, pois o olho e o ato de olhar são fundamentais para a excitação.

3 As diferenças e relações entre necessidade, instinto e pulsão serão detalhadamente analisada a


seguir.
20

Nesse jogo de observar o outro e se excitar sexualmente, a visão humana promove


o primeiro contato (visual) entre os parceiros. Nesse momento decorre a forte
necessidade de olhar (mirar) o objeto de desejo (parceiro sexual) com intensa
atenção e curiosidade libidinal; em decorrência disso, o sujeito observado se
transforma em objeto de desejo fetichizado por aquele que observa.
Essa vontade se caracteriza como um tipo de “fome”, e a satisfação se faz
quando o objeto de desejo é conquistado (“comido”). “Olho” e “boca” trocam de
papéis constantemente, pois ambos possuem funções primárias biológicas (comer
para nutrir e ver para sobreviver) e secundárias psicológicas (beijar e observar para
promover a excitação dos órgãos sexuais). Não obstante, a expressão “comer o
outro” é usada pejorativamente em várias línguas para se referir ao ato sexual.
Como metáfora, a palavra “fome” caracteriza o desejo voyeurista e ajuda no
entendimento deste último em seus meandros psíquicos, principalmente nos estudos
decorridos da psicanálise freudiana e no âmbito das psicopatologias
contemporâneas. Essas questões se complicam, à medida que o voyeurismo e seus
desdobramentos se desligam dos estudos originais, pois passam a atuar em âmbito
cultural global – essa será a primeira discussão deste trabalho e norteará o estudo
subsequente.

1.1.1 Parafilias e escopofilia

Em âmbito clínico, o voyeurismo é visto como uma parafilia (psicopatologia


em contexto sexual) e chamado de mixoscopia4. Segundo a APA (2014), o termo
parafilia se refere ao interesse sexual intenso e persistente que utiliza artifícios
diversos para a excitação em detrimento da estimulação genital “tradicional”, dada
por meio de carícias consentidas com parceiros humanos. Conforme a abordagem
citada pelo DSM-55 , as parafilias são comuns na atividade sexual humana – muitos

4 Esse termo possui significado análogo ao voyeurismo e se apresenta como terminologia inerente à
área da psicologia clínica.

5 O DSM (“Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders” ou “Manual Diagnóstico e


Estatístico de Transtornos Mentais”) consiste em uma ferramenta utilizada por profissionais da área
da saúde mental em grande parte do mundo. Ela lista diferentes tipos de transtornos mentais e
sugere critérios para diagnosticá-los de acordo com a Associação Americana de Psiquiatria (American
Psychiatric Association – APA).
21

indivíduos necessitam de “fantasias parafílicas” para conseguir a excitação sexual.


No entanto, a parafilia se torna um transtorno parafílico, a partir do momento em que
causa sofrimento ou prejuízo ao indivíduo, dano ou risco de dano pessoal a outro
sujeito. Em resumo, “[...] uma parafilia é condição necessária, mas não suficiente,
para que se tenha um transtorno parafílico, e uma parafilia por si só não
necessariamente justifica ou requer intervenção clínica” (ibidem, p. 685). Essa
abordagem é fundamental para o entendimento desta pesquisa, mesmo que não
enfoque necessariamente as questões de tratamento clínico do voyeurismo, assim
como as demais parafilias que serão analisadas no decorrer do texto.
No âmbito da psicologia, o entendimento de que as parafilias são condições
“normais” e “aceitáveis” nas atividades sexuais humanas é novo e relativamente
polêmico. Anteriormente, o manual-referência para diagnóstico e tratamento dos
transtornos mentais era o DSM-4, publicado em 1994 e com última edição em 2002.
No DSM-4, todas e quaisquer parafilias eram tratadas como transtorno,
independentemente se causavam ou não prejuízo físico ou social para o indivíduo
paralítico ou outrem. Já a última versão do manual, o DSM-5, publicada em 2013
nos Estados Unidos e em 2014 no Brasil, mudou por completo o entendimento das
parafilias, diagnosticando-as como transtorno apenas quando elas causam prejuízo
para o parafílico ou a sociedade.
A mudança de abordagem é de suma importância, pois o que será discorrido
a posteriori constata que as últimas duas décadas, justamente o intervalo de tempo
entre as publicações de ambos os manuais, foram definitivas para a instauração de
uma “realidade tecnoscópica6“. Diversos autores como Bauman e Lyon (2013) e
Sibilia (2016) tratam dessa época como intervalo de tempo onde houve a definição
de uma sociedade extremamente dependente das tecnologias da comunicação, que
pôs em cheque as antigas barreiras existentes entre o público e o privado e
instaurou um novo tipo de subjetividade a nível global. Nesses 20 anos, o DSM
tornou-se mais flexível, possivelmente na tentativa de acompanhar a transformação
social, o que foi motivo de comemoração por parte dos especialistas em saúde
mental, ao passo que levantou questionamentos e críticas ferozes de outra parte.
No DSM-4, o transtorno parafílico era diagnosticado simplesmente se
atendesse a um determinado número de critérios expostos pelo manual, mesmo se

6 O conceito tecnoscopia, objeto de pesquisa desta tese, será apresentado posteriormente.


22

o indivíduo nunca executasse sua vontade parafílica. Para essa versão, as parafilias
eram caracterizadas por anseios, fantasias ou comportamentos sexuais recorrentes
e intensos que envolvem objetos, atividades ou situações incomuns e que causam
sofrimento significativo ou prejuízo social, ocupacional ou em outras áreas
importantes da vida do indivíduo parafílico (APA, 2002). Já o DSM-5 se ocupa mais
com a concretização do comportamento do que com o desejo em si – que várias
pessoas têm mas não o concretizam.
Além do voyeurismo aqui analisado, o DSM-5 lista uma série de parafilias e
seus decorrentes transtornos, tais como:

[...] transtorno exibicionista (expor os genitais), transtorno frotteurista


(tocar ou esfregar-se em indivíduo que não consentiu), transtorno do
masoquismo sexual (passar por humilhação, submissão ou
sofrimento), transtorno do sadismo sexual (infligir humilhação,
submissão ou sofrimento), transtorno pedofílico (foco sexual em
crianças), transtorno fetichista (usar objetos inanimados ou ter um
foco altamente específico em partes não genitais do corpo) e
transtorno transvéstico (vestir roupas do sexo oposto visando
excitação sexual) (APA, 2014, p. 686).

De acordo com o manual, esses transtornos foram tradicionalmente


selecionados e listados por duas razões principais: são relativamente comuns e
alguns implicam ações nocivas e potencialmente danosas a outros indivíduos. No
âmbito desta tese, vários deles serão apropriados para o entendimento do estado de
coisas contemporâneo.
O DSM-4 trabalhava com tipos de transtornos categóricos. Para ser
considerado um transtorno, o sujeito tinha de se encaixar em cinco dos dez critérios
listados pelo manual. Caso estivesse categorizado apenas com quatro dos cinco
critérios, ele não era visto como “doente” (ou seja, que necessitava de uma
intervenção profissional imediata), mesmo se trouxesse um grande prejuízo
operacional, social e comportamental, entre outros prejuízos biossociais.
Enquanto isso, o DSM 5 tentou passar de uma lógica categórica para algo
mais “palpável”, abordando uma lógica dimensional. No DSM-4, uma pessoa poderia
apresentar poucos sintomas; no entanto, seu prejuízo físico e social era maior do
que aquele diagnosticado em uma pessoa que atendia a cinco ou mais critérios do
manual. Nessa perspectiva, a intensidade dos sintomas é mais importante do que a
quantificação deles; logo, os critérios listados no DSM-5 são mais guias para
23

entender e diagnosticar uma determinada situação do que conceitos herméticos


obrigatórios, apresentando-se como um balizamento global para o clínico entender
se a intervenção será necessária.
Para uma análise adequada da dicotomia entre “normalidade” e “transtorno”
segundo as diferentes abordagens do DSM-4 para o DSM-5, considera-se um
pedófilo, por exemplo, o indivíduo que navega pela internet e interage com um site
de pornografia infantil – esse já é o desejo concretizado de per si. Agora, se dois
sujeitos adultos fantasiam que ambos são adolescentes em uma aventura sexual, a
parafilia pedofílica ocorre apenas no “jogo sexual” e, por isso, não é diagnosticada
como transtorno. Mesmo sendo uma situação repleta de ramificações, complexa e
polêmica por natureza, o entendimento que o DSM-5 tem dessa dicotomia é mais
prático, pois, quando o parafílico causa prejuízo social, ele deve ser tratado
clinicamente.
Assim sendo, o sujeito não precisa necessariamente estuprar uma criança
para ser diagnosticado como pedófilo, visto que, ao entrar em um site criminoso, ele
já está contribuindo com a pedofilia digital. Todavia, quando o desejo é administrado
apenas como um estímulo na fantasia sexual “adulta” e “normal”, ela se apresenta
como uma parafilia que não necessita de uma intervenção imediata. Sobre esse
abandono da lógica categórica, Cruz (2014, p. 46) afirma que:

[...] a maior vantagem da representação dimensional é que não há


perda de informações e a flexibilidade máxima é preservada. Além
disso, não há desvio da atenção do atípico em favor do típico ou
distorção da percepção dos indivíduos situados próximo ao limite
entre duas categorias adjacentes. No entanto, a utilização de
sistemas dimensionais também tem desvantagens. Eles não
apresentam a facilidade de descrição dos sistemas categoriais. Além
do mais, não adianta, por exemplo, definir determinado distúrbio
dimensionalmente se as decisões terapêuticas impõem dicotomias
categoriais para se utilizar ou não um determinado procedimento
terapêutico.

Ainda diante das desvantagens citadas, o DSM-5 é o que melhor representa a


contemporaneidade, uma vez que se propôs a acompanhar as transformações
sociais. A partir de sua lógica dimensional, existem parafilias que não são
consideradas transtornos em si, ao passo que, no DSM-4, todas eram categorizadas
como tal. Claramente, essa é uma questão complexa, para que o risco de um
24

investimento aprofundado possa se tornar uma “armadilha epistêmica” nesta tese.


No entanto, o abandono de tais questões é igualmente arriscado, pois a mudança no
âmbito dos tratamentos na psicologia clínica evidencia uma mudança de paradigma
social.
Para melhor promover essa discussão e minimizar riscos conceituais, esta
pesquisa propõe uma abordagem metodológica que analisará uma miríade de fatos
que se interconectam e contribuem na instauração da realidade estudada sem,
necessariamente, se aprofundar de maneira demasiada em teorias específicas de
áreas diversas. Em síntese, o método de pesquisa será equivalente à própria
pluralidade do objeto em estudo, uma vez que o neologismo tecnoscopia é
composto pela somatória conceitual de voyeurismo, exibicionismo e vigilância, e
pelo fato de a área acadêmica desta tese (artes visuais) necessitar da contribuição
de outras áreas para a análise de questões artísticas de per si, sobretudo de
psicologia, psicanálise, teoria da comunicação, sociologia, filosofia, entre outras.
O voyeurismo sempre foi a mais recorrente das parafilias e diagnosticado
como transtorno predominante do sexo masculino. O DSM-4 já relatava há quase
duas décadas que, embora os parafílicos raramente procurassem tratamento clínico,
o amplo mercado da pornografia sugeria que sua prevalência na comunidade fosse
bem maior (APA, 2002). A satisfação final para o voyeur se dá no momento do
orgasmo, em geral produzido pela masturbação realizada durante o ato voyeurista in
loco ou mais tarde, em resposta à recordação do que testemunhou ou captou por
meios técnicos.
Ambos os DSMs destacam que o início do comportamento voyeurista
geralmente ocorre antes dos 15 anos de idade, e o curso tende a ser crônico, com
maior prevalência e passível de ser diagnosticado após os 18 anos. Esses
indivíduos tendem a escolher uma profissão ou desenvolver um passatempo ou
trabalho que os coloque em contato com o estímulo desejado.
De fato, o voyeurismo é primordial no âmbito da sexualidade humana. Como
parafilia inerente às atividades sexuais de todos os gêneros (heterossexuais e
homossexuais, masculino e feminino), ele se apresenta como um dos itens
fundamentais para a excitação sexual humana: o “olhar o outro” é comumente o
primeiro caminho para o encontro sexual e o sexo preliminar. No entanto, até que
ponto a parafilia é um comportamento saudável, adequado, social e inserido no
25

desviante7 , sob a lógica dimensional do DSM-5? E quando essa atividade precisa de


ajuda, tratamento, observação e intervenção psiquiátrica, psicológica, neurológica ou
legal? De fato, no tratamento clínico contemporâneo, é o grau de intensidade das
atividades ocorridas que define o transtorno e, na maior parte dos casos, o
transtorno ocorre quando a atividade voyeurista se torna forma exclusiva de
atividade sexual, em detrimento de qualquer contato físico com o parceiro. Mas,
ainda assim, essas são complexas questões que rondam o voyeurismo e outras
parafilias recorrentes na sociedade contemporânea.
No âmbito dos primeiros estudos da psicanálise, Freud (1996b) deu
preferência ao termo escopofilia8, para tratar de questões relativas ao voyeurismo e
à pulsão de tomar o outro como objeto, submetendo-o a um olhar fixo e curioso. O
voyeur sempre elege um objeto de desejo: uma única pessoa, várias pessoas ou
mesmo uma parte específica do corpo de uma pessoa. Tendo o objeto de desejo
escópico à vista, ele varre todo o campo visual com seu olhar até que esteja
satisfeito. Nesse sentido, Freud (1996a) afirma que a finalidade da pulsão escópica
é a satisfação visual, em que olhar a partir de uma pulsão escópica prevê uma
satisfação final, tal qual o gozo no ato sexual, para que o círculo pulsional voyeurista
se feche.
Aumont (1993, p. 124) certifica que a noção de pulsão, segundo a psicanálise
freudiana, aparece como um tipo de remodelagem da noção de instinto, a
representação psíquica das excitações provenientes do interior do corpo e que
chegam ao psiquismo, decorrente do momento “[...] do encontro entre uma excitação
corporal e sua expressão em um aparelho psíquico que visa dominar essa
excitação”. Nesse entremeio, Roudinesco e Plon (1998, p. 628) relatam que a
palavra pulsão surgiu na França em 1625 e é derivada do termo latim pulsio, que
designa o ato de impulsionar e, empregada por Sigmund Freud pela primeira vez em

7 Desviante é a relação comportamental entre sujeitos (na maioria dos casos, parceiros sexuais)
parafílicos e “normais”, ou entre pessoas com parafilias diferentes. No comportamento desviante,
ambos sujeitos conseguem conviver bem mesmo diante das diferenças.

8 Para que o texto seja mais fluido e inteligível, é utilizado apenas o termo voyeurismo em detrimento
aos conceitos de escopofilia ou mixoscopia. Os três vocábulos são similares conceitualmente e, para
não correr o risco de sobrecarregar o texto com diferentes conceitos que tratam das mesmas
questões, o voyeurismo foi eleito como o representante. No entanto, a palavra escopofilia é utilizada
em algumas expressões compostas, tais como: desejo escópico, sociedade escópica, pulsão
escópica, entre outras. É importante informar que o conceito criado no âmbito desta tese
(tecnoscopia) também é derivado diretamente de escopofilia.
26

1905, “[...] tornou-se um grande conceito da doutrina psicanalítica, definido como a


carga energética que se encontra na origem da atividade motora do organismo e do
funcionamento psíquico inconsciente do homem”.
Para Freud (1996b), a fonte da pulsão é um processo excitatório num órgão,
e seu alvo imediato consiste na supressão desse estímulo orgânico; por
conseguinte, a pulsão escópica é um caso particular da noção geral de pulsão, a
qual aciona a necessidade de ver. O referido psicanalista identificou dois grupos de
pulsões: as voltadas para a satisfação sexual – “pulsões sexuais” – e as
relacionadas à conservação da vida – “pulsões egoicas”, destacando que a pulsão
escópica é um dos principais fatores no âmbito da seleção natural, ao permitir que o
objeto sexual (homem ou mulher) se desenvolvesse em termos de beleza através
dos tempos. Nesse caso, o olho é considerado uma zona erógena, pois, mesmo
sem ser participante no ato sexual em si, é importante por promover a excitação
sexual (FREUD, 1996a).
Como já abordado, o “olhar” é o primeiro passo para a relação entre dois
indivíduos que culminará (ou não) no sexo. Para Aumont (1993, p. 125), a pulsão
escópica:

[...] compõe-se de um objetivo (ver), uma fonte (o sistema visual),


enfim, um objeto. Este último, o meio pelo qual a fonte alcança seu
objetivo, foi identificado por Jacques Lacan como o olhar.
Compreende-se que esse conceito de pulsão escópica, implicando a
necessidade de ver e o desejo de olhar, tenha encontrado aplicação
no domínio das imagens.

Jacques Lacan deu continuidade aos estudos de Freud neste ínterim,


enquanto Carl Jung, contemporâneo de ambos, confrontou algumas questões
freudianas. Ainda diante de uma incompatibilidade epistemológica entre os estudos
de Jung e Freud, é importante citar como esses autores, referências na psicanálise,
abordaram as pulsões e a libido. Jung não se dedicou às pulsões sexuais assim
como Freud, e isso se deve ao fato de o primeiro ter admitido apenas uma única
classe de energia mental (a libido), ao passo que Freud se voltou às pulsões
expressas na dualidade (pulsões do ego e sexuais). Jung, inclusive, dá preferência
ao termo arquétipo, no que tange às denominações instinto e pulsão, utilizando-o
como representação psicológica de instinto, na tentativa explicar o aspecto universal
dos padrões de comportamento humano provenientes do inconsciente coletivo e que
27

serviram de substrato para a construção de mitos, ritos e fábulas (GOMES, 2015).


Essas divergências acabaram por levar Freud e Jung ao rompimento, quando o
segundo considerou a libido como um “impulso” voluntário (ROUDINESCO; PLON,
1998).
Roudinesco e Plon (1998, p. 471) mencionam que libido é um termo latino
que significa desejo e designa uma energia própria do instinto sexual. Freud retomou
o vocábulo de maneira distinta, para se referir à manifestação da pulsão sexual na
vida psíquica, à sexualidade humana em geral e à infantil em particular, “[...]
entendida como causalidade psíquica (neurose), disposição polimorfa (perversão),
amor-próprio (narcisismo) e sublimação”. Ao fazer isso:

Freud subverteu o velho jargão dos especialistas. Fez da libido o


móbil de um escândalo, que apareceria, a partir de 1910, nas
múltiplas resistências opostas à psicanálise em todos os países,
sendo ela sempre e por toda parte qualificada de doutrina
pansexualista: “germânica” demais aos olhos dos franceses, “latina”
demais para os escandinavos, “judaica” demais para o nazismo e
“burguesa” demais, enfim, para o comunismo, ou seja, tal como para
Jung, sempre “sexual” em demasia (ROUDINESCO; PLON, p. 474).

Segundo Gomes (2015), a libido é um dos construtos teóricos basilares da


teoria psicanalítica que, a priori, se referia a uma pulsão, instinto ou energia
estritamente sexual, mas que posteriormente passou a se relacionar às energias de
vida e morte (Eros e Tânatos). Enquanto desejo, ela é importante para este estudo,
inclusive nas abordagens freudianas que a dispõem como energia sexual; por
conseguinte, se relaciona com o voyeurismo e outras parafilias e “perversões” que
serão analisadas, tais como o fetichismo, o exibicionismo, o narcisismo, o
masoquismo e a pedofilia.
No âmbito escopofílico, o desejo (ou a libido) tende a voltar a si mesmo e
transformar “[...] o desejo em objeto, eliminando todo o contato físico e descartando
todo fim reprodutivo” (CARVALHO, 2011, p. 125). Para esse autor, a pulsão apenas
contorna o objeto do desejo, em que o sujeito não procura a satisfação total, pois, se
o instinto se satisfizer por completo isso paradoxalmente significa seu fim.
Para que não se esgote na satisfação, o instinto precisa circular. Ele não
atinge seu objeto de desejo, e sim o contorna para voltar ao sujeito. Essa concepção
também contraria parcialmente a abordagem freudiana, que tem a satisfação como
finalidade do ato voyeurista. Nessa abordagem, há mais relações com o caráter
28

parafílico e crônico do voyeurismo enquanto transtorno, como visto em face dos


DSMs, do que em uma abordagem psicanalítica tradicional, como as de Freud. Se o
voyeurismo não se esgota na imagem buscada e procura por novos “desejos
escópicos”, o ciclo tende a se tornar vicioso e crônico, como o é de fato enquanto
psicopatologia.
Em muitos casos de voyeurismo sexual crônico, o “olhar pulsional”, quando
ativado, já traz em si uma carga de condenação vinda do próprio indivíduo. À
medida que o olho cai sobre o ímpeto da pulsão escópica, “[...] a ferocidade do
recalque aumenta e assume a forma de um censor que exige castigo [...] castigo
moral” (CABAS, 2010, p. 50). Muitos parafílicos sofrem por se considerarem
dependentes dessa pulsão e por não terem controle sobre ela. Freud (1996b, p. 124)
já apontava que os instintos e as pulsões levam o indivíduo “[...] a fazer o que não
quer, mas também a achar que faz por que quer”.
Assim como as demais parafilias, o voyeurismo foi categorizado durante muito
tempo como perversão, termo derivado do latim pervertere e empregado em “[...]
psiquiatria e pelos fundadores da sexologia para designar, ora de maneira pejorativa,
ora valorizando-as, as práticas sexuais consideradas como desvios em relação a
uma norma social e sexual” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 583). Para esses
autores: 


Se a sexualidade perversa não tem limites, é porque se organiza


como um desvio em relação a uma pulsão, a uma fonte (órgão), um
objeto e um alvo. A partir desses quatro termos, Freud distinguiu dois
tipos de perversões: as perversões do objeto e as perversões do
alvo. Nas perversões do objeto, caracterizadas por uma fixação num
único objeto em detrimento dos demais, ele incluiu, por um lado, as
relações sexuais com um parceiro humano (incesto,
homossexualidade, pedofilia, autoerotismo) e, por outro, as relações
sexuais com um objeto não humano (fetichismo, zoofilia,
travestismo). Nas perversões do alvo, distinguiu três espécies de
práticas: o prazer visual (exibicionismo, voyeurismo), o prazer de
sofrer ou fazer sofrer (sadismo, masoquismo), e o prazer pela
superestimação exclusiva de uma zona erógena (ou de um estádio),
isto é, ou da boca (felação, cunilíngua) ou do aparelho genital
(ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 585).

Nesse contexto, o voyeurismo é caracterizado como uma perversão de alvo e


é considerado um prazer visual. No entanto, ele e algumas perversões se
transfiguraram nos últimos tempos e vêm, cada vez mais, abandonando seu status
pejorativo e de atividade marginal e ilegal, para habitarem a cultura contemporânea
29

e se imporem como elementos sociais, de comportamento e comerciais incentivados


e capitalizados pela mídia, transcendendo sua origem sexual, como será analisado a
seguir.

1.1.2 Atenção, curiosidade e fetichismo

Como uma perversão visual e de alvo na concepção freudiana, para que o


voyeurismo se faça, torna-se necessário um olhar atencioso e sistematicamente
focado em seu alvo para a quista satisfação. O alvo pode compreender uma parte
do corpo de outra pessoa vista por trás de um decote, alguém se despindo e sendo
observado por um sujeito oculto ou mesmo a “clássica espiada” pelo buraco da
fechadura ou pelo olho mágico. Tal qual um telespectador que “zapeia” canais e
“varre” toda a programação televisiva em busca de algo que lhe interesse, o voyeur
busca intermitentemente por potenciais alvos escópicos e, quando os encontra, foca
toda a sua atenção neles, até que satisfaça seu desejo. De acordo com Carneiro et
al. (2005), quando o indivíduo é posto como objeto, o observador se interessa de
maneira crescente ao que vê e transforma o olhar em desejo, momento em que o
fenômeno do voyeurismo se estabelece nesse circuito afetivo. A pulsão escópica
freudiana está ativa desde o início do jogo voyeurista, e a necessidade tende a
aumentar, até se esgotar na satisfação de ver aquilo que tanto se quer ver. No
momento em que o olho se dirige para determinada imagem por pulsão – e munido
da forte necessidade de olhar –, ele pode transcender a situação de ver para se
guiar pelo mundo (básica à sobrevivência humana) e, então, se entregar ao
voyeurismo.
Lacan (1985a, p. 229) arrazoa que o objeto do desejo é a causa do desejo, e
esse é o objeto da pulsão; ademais, há desejos que partem de outros desejos, isto
é, “[...] trata-se apenas do desejo de que, por exemplo, alguém lhe proibiu alguma
coisa. Pelo fato de lhe terem proibido, você não pode fazer outra coisa, durante
algum tempo, senão pensar naquilo”. Enquanto isso, Freud (1996b) expõe que a
progressiva ocultação do corpo, advinda com a civilização, desperta uma
curiosidade sexual que gera a procura pela revelação das partes cobertas. A
vontade de ver o que está velado – nesse caso, o corpo oculto pelas roupas –, é um
30

fator preponderante no desenvolvimento do desejo voyeurista e no surgimento da


pulsão escópica. Dessa maneira, o olhar voyeurista, além de atencioso, é curioso.
Por eleger outra pessoa ou uma parte do corpo dela como objeto de desejo
para a observação escópica, o olhar voyeurista adquire também meandros de
fetichismo. De acordo com Roudinesco e Plon (1998), a expressão fetiche é
derivada da palavra portuguesa feitiço e foi apropriada pelos fundadores da
sexologia para nomear atitudes em que o parceiro sexual privilegia uma parte do
corpo do outro em detrimento das demais. Segundo Steele (1996), em sua
etimologia, o vocábulo fetiche possui duplo significado, denotando encanto mágico
num viés e, no outro, fabricação, artefato e sinais. Enquanto perversão sexual ou
psicopatologia parafílica, tal expressão é caracterizada “[...] pelo fato de uma das
partes do corpo (pé, boca, seio, cabelos) ou objetos relacionados com o corpo
(sapatos, chapéus, tecidos etc.) serem tomados como objetos exclusivos de uma
excitação ou um ato sexuais” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 235). Para Freud, o
fetichismo em relação a partes ou objetos escolhidos atua, na verdade, como
substituto da própria pessoa e, no caso da visão fetichizada masculina, a parte do
corpo observada “[...] funciona para o sujeito como substituto de um falo atribuído à
mulher, e cuja ausência é recusada por uma renegação” (idem).
Ainda na atualidade, o fetiche é um conceito que transpassa o campo das
perversões sexuais e é abordado por várias áreas do conhecimento, com enfoque
epistêmico relativamente diferenciado entre elas: antropologia, filosofia, economia
política, sociologia, religião, psiquiatria, psicanálise e artes. Em razão dessa
característica mutante, ele é um termo comumente controverso, e algumas de suas
abordagens também serão analisadas nesta tese; todavia, o foco será
prioritariamente na psicanálise freudiana e na psicologia clínica para o entendimento
do termo e o emprego desse conceito no âmbito psicossocial e artístico-cultural. Em
seus estudos, Freud “[...] identificou a dimensão fetichista de todas as formas de
perversão (exibicionismo, voyeurismo, coprofilia), mostrando que, nesses casos, o
fetiche é portador de todos os outros objetos” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 235).
Nesse caso, a abordagem freudiana justifica o estudo do fetiche no âmbito do
voyeurismo e sua relação com o exibicionismo, algo que será feito posteriormente.
Para Freud (1996b), o fetiche substitui um detalhe do corpo do indivíduo (ou
algo portado por ele) pela própria pessoa em si. Nesse momento, há uma
31

“coisificação” do observado, e todo ato voyeurista, atencioso e curioso promove essa


“objetificação”. Porém, pode-se afirmar que, em parte dos casos, o olhar atencioso,
curioso e fetichista contempla a pessoa como um todo – quando o voyeur observa
ocultamente uma pessoa se despindo, por exemplo, ele logo tenta ver o todo. Assim,
ocorre uma inversão, em que o sujeito total é transformado em objeto de desejo e
“coisificado”, servindo apenas para a satisfação visual em detrimento da relação
física de per si. Isso de fato também acontece quando os detalhes erógenos dos
corpos são flagrados em específico, como seios femininos, nádegas masculinas etc.
Mas, em complemento à concepção freudiana – em que tais detalhes ou peças de
vestuário (sapatos, calcinhas, cuecas etc.) são substitutos do sujeito –, quando a
pessoa na sua totalidade é vista e quista com extrema atenção e curiosidade visual,
ela se torna nada mais do que um objeto a ser contemplado.
Assoun (1999) chama de brilho o que confere um caráter fetichista ao objeto
de contemplação (a pessoa), quando o perverso (o voyeur) faz “brilhar” o objeto. Já
Canevacci (2008) se vale do termo atrator para caracterizar o “atrativo escópico” que
parte do ser observado e toma de assalto o olhar do voyeur, fazendo-o, então,
“brilhar”. Para esse autor:

[...] todo atrator é, de qualquer modo, uma alteração do olho. É um


fazer-se olho, um fazer-se olhar que – fazendo-se coisa-que-vê – se
assimila à relação processual ligada aos fetiches visuais. Deste
modo, o olho se faz (é um fazer-se ATRATOR) objeto de modo
simétrico e dialógico ao objeto que se faz sujeito, mesmo quando,
por meio das pressões fetichistas, cada objeto se muda
constantemente em sujeito ou vice-versa (CANEVACCI, 2008, p. 29).

O atrator, nesse caso, é um coeficiente atrativo do olhar extremamente


fetichista, em que se “[...] relaciona àquele comportamento altamente dinâmico do
olhar contemporâneo que – independentemente do ponto de observação – tende a
convergir na direção de um outro ponto: este ponto é o atrator” (CANEVACCI, 2008,
p. 40).

Um exemplo clássico que pode ser utilizado para descrever um


atrator é uma bolinha que rola sobre um plano. A bolinha é a pupila.
Devido ao atrito, o movimento da bolinha tenderá a convergir sempre
para uma situação na qual a velocidade é nula. Isto é o atrator: o
movimento zero. Então, quando o movimento é zero significa que o
olho – que está distraidamente rolando sobre os panoramas visuais –
é atraído por um código que paralisa a sua retina (CANEVACCI,
2008, p. 40-41).
32

Esses são três importantes parâmetros que podem definir a ocorrência de um


olhar voyeurista, que se caracteriza por ser atencioso, curioso e fetichista. Reis Filho
(2012) revela que esse tipo de “olhar erotizado” pode ser também chamado de
volitivo, a partir dos estudos de Gilles Deleuze, Félix Guattari, Vivian Sobchack e
Laura Marks, que definiram um “olhar tátil” que encoraja o espectador a se envolver
mais com a imagem, através de uma postura ativa que o leva a querer participar da
construção do que observa, quando não vê tudo aquilo que deseja. Nesse caso, ele
precisa preencher as lacunas da imagem velada com sua imaginação e, então, se
aproximar escopicamente, na tentativa de desvelar os detalhes do que vê quase
como se tateasse a imagem. Marks (apud REIS FILHO, 2012, p. 87) raciocina que,
nas observações desse tipo de olhar, “[...] somos convidados a abrir mão da
distância, da clareza ótica e nos aproximar do corpo da imagem, colocando em
movimento um olhar íntimo e detalhado. Aqui, trata-se, antes de tudo, de acariciar,
de tocar o outro, não de apreendê-lo ou dominá-lo”.
É claro que o envolvimento ativo, “tátil” para o autor, ocorre apenas na esfera
abstrata, na imaginação do observador, que se envolve de forma tão plena com a
imagem que quase pode “tocá-la”, além de ter a necessidade de preencher suas
lacunas em um princípio, de certa maneira, “gestaltiano”. Como um ato voyeurista, a
observação continua sendo feita à distância, mas a relação psicológica com o
observado é próxima, volitiva. Mesmo que em certa medida destoe do olhar
escopofílico, o olhar volitivo é importante para a discussão, conquanto ele também
prevê uma satisfação de nível “tátil-erótica”.
Esta discussão, até então, situou o voyeurismo no âmbito da sexualidade
humana. Porém, na contemporaneidade, constata-se que ele se aplica a outros
fatores da vida humana, ou seja, está instaurado (e incentivado) pela cultura
consumista dominante. Nesse ínterim, grande parte dos atos que se relacionam com
esse novo tipo de voyeurismo são não eróticos, o que pode dificultar a compreensão
dessa constante advinda de questões relativas à sexualidade. Tal ponto é, como já
abordado, um dos principais objetos de análise na pesquisa e define a tecnoscopia
na sociedade, como será discorrido a posteriori. Para que uma vontade voyeurista
surja diante de atividades e/ou imagens eróticas ou não, o que se vê deve sempre
despertar um olhar atencioso, curioso e fetichista.
33

Dos três fatores, o fetichismo pode ser considerado um item definidor do


voyeurismo, sobretudo a partir lógica freudiana da pulsão escópica. Claramente, o
olhar voyeurista deve surgir diante de atenção e curiosidade constantes, mas ele se
instaura ao ter o outro como objeto de desejo – essa “tomada” de outrem como
objeto traz meandros fetichistas.
O termo fetichismo se origina do “[...] modo como os exploradores
portugueses tentaram traduzir um processo relacional do tipo sagrado difundido em
muitas populações africanas, definido, em sua opinião, como ‘pagão’, ‘idólatra’,
‘mágico’” (CANEVACCI, 2008, p. 240). Nessa concepção, há um processo de
iconolatria referente à adoração de “imagens” sagradas e pagãs, advindas dos
povos conquistados pelos europeus e que ainda seguiam tradições pré-cristãs; logo,
o fetiche surge como uma adoração iconólatra plena. No âmbito religioso
supracitado, a relação com a imagem observada (adorada) pode levar a um estado
de êxtase, tal qual o orgasmo no ato sexual.
É interessante discorrer sobre a relação entre religiosidade e sexualidade no
âmbito da adoração de imagens com cunho fetichista. Para tanto, a escultura “O
Êxtase de Santa Teresa” (Figura 1), também conhecida como “A Transverberação de
Santa Teresa”, de 1652 e de autoria do escultor do barroco italiano Gian Lorenzo
Bernini (1598-1680), é exemplar.
Nessa imagem, Santa Teresa exibe uma feição “orgásmica” de êxtase
“divino”, diante de um anjo que aponta uma flecha “do amor” para ela. Há, na
imagem, relações entre sacralidade cristã e mitologia greco-romana, próprias do
período pós-renascentista. O “anjo-cupido” parece querer desvirginar a “santa-ninfa”
e a observa como um voyeur – esta última goza em êxtase, como se ela se
masturbasse diante do anjo. Mesmo diante de um caráter profano da obra, ela exibe
um aspecto sacro e místico ao mostrar explicitamente um momento de relação
íntima com o sagrado. Tal entendimento é interessante na perspectiva do fetichismo
e auxilia na compreensão do voyeurismo, principalmente na miríade de imagens
contemporâneas: quando há um êxtase (gozo) diante de uma imagem (erótica,
sagrada ou quaisquer outra), a relação observador-imagem transpassa uma
contemplação unicamente estética e se define de forma transcendente
(“orgásmica”), tornando a relação mais plena, instintiva e pulsional.
34

!
Figura 1. “O Êxtase de Santa Teresa”, de Gian Lorenzo Bernini. Escultura em mármore. 1647-1652.
Fonte: <http://thiagof-amorim.blogspot.com.br/2012/12/o-extase-de-santa-teresa.html>. Acesso:
10/05/2017.

Canevacci (2008) aponta que o fetichismo impõe uma importância sexual


exagerada ao objeto fetichizado. Para o autor, muitas vezes são tidos como objetos
de fetiche sexual “[...] uma parte do corpo muito pouco apropriada para os propósitos
sexuais (o pé, os cabelos) ou um objeto sexual que esteja em evidente relação com
a pessoa sexual, melhor ainda, com a sua sexualidade (capas de vestuário, roupas
íntimas)” (idem, p. 246).
As relações entre voyeurismo e fetichismo são diversas diante das questões
sexuais elencadas nesta pesquisa. De maneira semelhante ao voyeurismo, o
fetichismo também é uma parafilia recorrente e diagnosticada pelos DSMs. É
interessante analisar que, no âmbito do DSM-4, o fetiche era a única das parafilias
considerada socialmente aceitável. Conforme discorrido anteriormente, o DSM-4
tratava as parafilias como transtornos, diferentemente do DSM-5. No entanto, o
fetichismo se apresentava como exceção, pois era considerado fundamental à
excitação sexual. No DSM-4, essa parafilia já era mais flexível que as demais, pois,
até certo ponto, o fetichismo era algo “normal” e saudável, mas poderia se tornar um
transtorno de acordo com seu grau de intensidade. Ou seja, hoje, com o DSM-5,
todas as parafilias são abordadas como o fetichismo era no DSM-4.
35

Conforme o DSM-4, o fetichismo envolvia o uso de objetos inanimados


chamados de “fetiches”: calcinhas, soutiens, meias, sapatos, botas ou outras peças
do vestuário feminino. O sujeito geralmente se masturba enquanto toca o objeto do
fetiche ou pede que o parceiro sexual o use durante o sexo – em vários casos, na
ausência dos “fetiches”, os homens podem apresentar disfunção erétil (APA, 2002).
A iconolatria sexual é evidente aqui, mas a noção de fetichismo pode transpassar o
foco em objetos inanimados e, como Freud anteviu, é possível considerar partes
específicas dos corpos dos observados “fetiches” (isso é também conhecido como
parcialismo). O DSM-5 cita que:

[…] partes do corpo altamente erotizadas associadas ao transtorno


fetichista incluem os pés, os dedos dos pés e os cabelos. Não é
incomum que os fetiches sexualizados incluam tanto objetos
inanimados quanto partes do corpo (p. ex., meias e pés sujos). Em
virtude disso, a definição de transtorno fetichista agora reincorpora o
parcialismo (i.e., foco exclusivo em uma parte do corpo) em seus
limites (APA, 2014, p. 701).

Mas, segundo Steele (1996), o tratamento dado pelo DSM ao fetichismo no


âmbito psicopatológico é muito ortodoxo e destoa de uma natureza mais “liberal” –
no contexto do fetiche enquanto uma variante sexual “volátil” e “mutante” – e, por
esse motivo, o estudo da psicologia clínica é pouco popular entre os entusiastas do
Em análise decorrente, Steele (1996) também aborda que ainda no século
XIX, o sexologista Richard von Krafft-Ebing definiu como fetichistas todos os sujeitos
masculinos que se sentiam sexualmente atraídos por certos detalhes do corpo
feminino ou peças do vestuário das mulheres.

Many men, of course, are sexually attracted to clothing items such as


high-heeled shoes and silky panties, or prefer sexual partners with a
particular physical characteristic, such as large breasts or long, red
hair. Are they all fetishists? The early sexologists tended to think so
(STEELE, 1996, p. 11).

Tal categorização do fetichismo sexual como um comportamento exclusivo do


sexo masculino perpassou séculos. Ainda hoje, no senso comum, o homem é o
sujeito voyeur e fetichista por natureza, enquanto a mulher é vista como objeto de
contemplação, algo notório na popularidade e no sucesso comercial das lingeries
femininas nos últimos 50 anos. No entanto, Steele (1996) afirma que alguns
psiquiatras e demais profissionais ignoram a possibilidade de as mulheres terem
36

perversões fetichistas próprias. A diferenciação de gêneros é alvo de estudos,


inclusive na área neurobiológica, que notou que a maior inclinação do sexo
masculino para o voyeurismo, fetichismo e demais parafilias se deve a questões
neurológicas, sobretudo porque a área do cérebro responsável pela sexualidade
masculina está diretamente ligada ao sistema visual.

As the psychologist Glenn Wilson writes: “It is probably no accident


that the brain area responsible for assertive male sexuality is a part of
the hypothalamus that is close to the visual input system (the preoptic
nucleus)”. If male sexuality evolved to be “target-seeking,” this may
be one reason “why men are particularly prone to the distortions of
sexual inclination we call paraphilias.” Wilson’s research into sexual
fantasies reveals striking gender differences, including a much
greater emphasis in men’s fantasies on visual, voyeuristic, and
fetishistic themes. Male fantasies often include references to clothing
items, “such as black stocking and [garterbelts], sexy underwear,
leather, or nurses’ uniforms; for example, ‘A sixteen-year-old virgin
dressed in a short-skirted school uniform.’ “Men apparently have this
type of fantasy two and a half times more often than women. One
might speculate that such articles of clothing act (at least for some
men) as, in effect, artificial secondary sexual characteristics that
serve as indicators of the sexual desirability and availability of the
female (STEELE, 1996, p. 24).

Isso demonstra, mais uma vez, a importância da visualidade nas relações


sexuais. Todavia, é importante frisar que essa é apenas uma variável de um
complexo contexto, no qual outras questões influem diretamente e promovem a
necessidade de “ver” e “ser visto” sobreposta aos gêneros e que afeta a todos,
homens e mulheres numa relação indissociável entre as diferentes parafilias aqui
abordadas: voyeurismo, fetichismo, exibicionismo, masoquismo, pedofilia etc. Na
psicologia clínica, essas relações entre as diferentes parafilias e transtornos são
chamadas de comorbidade9. As parafilias analisadas nesta tese são, em sua
maioria, comórbidas, mas, para além apenas das comorbidades, toma-se aqui a
liberdade de relacioná-las a aspectos sociais, filosóficos, históricos, entre outros.
Steele (1996) também garante que, com a modernização, os homens
reclamaram que as oportunidades de observar as genitais femininas diminuíram
quando as mulheres adotaram o uso das calcinhas. Mas, a partir disso, um novo tipo
de voyeurismo direcionado para as roupas de baixo surgiu, o que enfatiza mais uma

9O termo comorbidade refere-se a transtornos e parafilias que se relacionam com outros (transtornos
e parafilias), no momento em que eles atuam juntos, ou seja, quando um tipo de transtorno
acompanha outro já diagnosticado.
37

vez a comorbidade entre voyeurismo e fetichismo. Casadei (2008) relata que, de


maneira paradoxal, o século XVIII foi uma das épocas em que mais tentaram
esconder as roupas de baixo, ocultando-as por completo, assim como de maior
fetichização dessas peças, sobretudo por conta do puritanismo, somado à maior
exigência por limpeza. “Cobrindo artificialmente o corpo, especialmente as genitais,
as roupas de baixo estimulam a curiosidade sexual, guardando a promessa e a
expectativa da exposição” (STEELE, 1996, p. 117).
Ademais, Casadei (2008, p. 10) analisa que o surgimento do biquíni nos anos
1940 marcou uma ruptura nas questões relacionadas ao público/privado, “[...] porque
essa ‘expectativa de exposição’, que antes pertencia ao âmbito privado, passa a
integrar o âmbito público”. Dessa maneira, os últimos anos da primeira metade do
século XX já apontavam para uma publicização da intimidade, o que previa um
voyeurismo e um exibicionismo mais amplos que começariam a se esboçar, num
primeiro momento, a partir de peças de vestuários fetichizadas.
Para Canevacci (2008, p. 260), “[...] o olho não é mais só um instrumento
sensorial do voyeur, quanto um órgão reflexivo que se faz ele mesmo fetiche. O olho
é gerador de todo fetish”. Nesses termos, fetichismo e voyeurismo se
complementam, principalmente diante do “turbilhão” de imagens (fetichizadas) que
“inundam” a comunicação visual contemporânea, chamada pelo referido autor de
“metrópole comunicacional”. A partir de um olhar voyeurista focado de maneira
curiosa e atenciosa, o objeto de desejo, agora fetichizado, “brilha” e se deixa
observar, até nutrir a escopofilia daqueles que observam.
Flusser (2011) já apontava que o homem, em vez de se servir das imagens
em função do mundo, passa a viver em função delas. Segundo o autor, o homem
não mais decifra as cenas das imagens como significado do mundo, mas o próprio
mundo passa a ser vivenciado como um conjunto de cenas. Tais imagens, que se
relacionam ao fetichismo do olhar, se apresentam nos bens de consumo
contemporâneos e foram analisadas por autores que criticaram sua predominância e
onipresença fetichista, do ponto de vista do comunismo capitalista.
Karl Marx, em “O Capital”, realizou um estudo pioneiro acerca do fetichismo
no âmbito econômico, do qual diversos autores se basearam em suas análises.
Marx (2013) se valeu do significado original da palavra fetiche para tratar de uma
espécie de “feitiço”, referente às relações humanas com os itens de consumo
38

inerentes ao capitalismo. Salienta-se a necessidade da obtenção da mercadoria e,


para o autor, a mercadoria (fetichizada) traz em si mesma a carga de objeto de
desejo, mas não deixa de ser, em momento algum, um simples produto
manufaturado ou mecanizado. Mesmo assim, a relação entre homem e mercadoria é
plena, principalmente por conta da fetichização:

Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias surge, como a


análise anterior já mostrou, do caráter social peculiar do trabalho que
produz mercadorias. Os objetos de uso só se tornam mercadorias
porque são produtos de trabalhos privados realizados
independentemente uns dos outros. O conjunto desses trabalhos
privados constitui o trabalho social total. Como os produtores só
travam contato social mediante a troca de seus produtos do trabalho,
os caracteres especificamente sociais de seus trabalhos privados
aparecem apenas no âmbito dessa troca. Ou, dito de outro modo, os
trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho
social total por meio das relações que a troca estabelece entre os
produtos do trabalho e, por meio destes, também entre os
produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus trabalhos
privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não como
relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios
trabalhos, mas como relações retificadas entre pessoas e relações
sociais entre coisas (MARX, 2013, p. 133).

Marx (2013, p. 130) aponta que, em um primeiro momento, toda mercadoria


parece ser algo óbvio e trivial, mas, na verdade, ela é dotada de “[...] sutilezas
metafísicas e melindres teológicos”. O caráter místico ou de feitiço da mercadoria –
ou seja, fetichista – transcende o próprio valor utilitário, pois adquire um valor
estritamente social. Por exemplo, “[...] a forma da madeira é alterada quando dela se
faz uma mesa. No entanto, a mesa continua sendo madeira, uma coisa sensível e
banal. Mas tão logo aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa
sensível-suprassensível” (idem, p. 131).
Debord (2003) norteia novas questões sobre a fetichização dos itens de
consumo ao revelar que, na sociedade moderna, há uma crescente
espetacularização das coisas. Seus estudos sobre a sociedade do espetáculo são
imprescindíveis para a discussão desta tese e serão retomados outras vezes. No
que tange à espetacularização das mercadorias, em específico, evidencia-se um
sistema de “imagens-objetos”, em que “[...] o espetáculo é a principal produção da
sociedade atual” (idem, p. 12).
39

Em consonância com Adorno (1996), Debord (2003, p. 19; 21) expõe que a
alienação do espectador dos objetos de consumo ocorre à medida que o objeto é
contemplado de forma quase inconsciente:

[...] quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita
reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele
compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. [...] É
pelo princípio do fetichismo da mercadoria, a sociedade sendo
dominada por “coisas suprassensíveis embora sensíveis”, que o
espetáculo se realiza absolutamente. O mundo sensível é substituído
por uma seleção de imagens que existem acima dele, ao mesmo
tempo em que se faz reconhecer como o sensível por excelência.

Então, o fetiche é um elemento inerente ao capitalismo espetacularizado


moderno e contemporâneo. Logo, pode-se constatar que ele influi diretamente no
entendimento do voyeurismo em dois níveis: a partir das questões psicossociais já
descritas, pelas quais o fetichismo é o terceiro elemento do “olhar voyeurista” e que
define a transformação do sujeito observado em uma “coisa-objeto”; e nos vários
objetos e mercadorias inerentes ao capitalismo, que ganham um espectro de
adoração e desejo e são fetichizados a partir de uma necessidade quase
inconsciente de consumo.
Nesse ínterim se inserem uma miríade de “imagens-objetos” e “objetos-
dispositivos tecnológicos” que se valem do voyeurismo e se apresentam como
mercadorias fetichizadas, nas quais o voyeurismo é o próprio motor de seu
consumo. Orihuela (2014, p. 4) certifica que:

[...] la necesidad imperiosa de ver para gozar es un rasgo del


capitalismo tardío. La publicidad estimula el consumo de las
mercancías a través del dictamen del goce. Por ello no es nada
fortuito que las mercancías se publiciten de manera sexuada (la
cosificación de la mujer responde a tal imperativo) o animen a
experimentar una sensación intensa (viajes de aventura, creatividad
laboral, experiencia amorosa y demás).

As questões relativas às milhares de imagens de cunho voyeurista-


exibicionista, dadas por meio da mediação das máquinas e que definem um
capitalismo tecnológico fetichista e espetacularizado, serão discutidas a seguir.
40

1.2 Tecnoscopia: voyeurismo como ápice do triângulo escópico

A relação homem/tecnologia data de milhares de anos, desde o paleolítico. É


inerente à espécie humana o uso de ferramentas para a execução de suas
atividades e, nesse viés, tratar a tecnologia ou a técnica como algo exclusivo dos
últimos séculos é incorreto. Na verdade, ocorreu nos últimos séculos, pelo menos
desde a Primeira Revolução Industrial no século XVIII, uma relação homem/máquina
recíproca e cada vez mais interdependente.
Muito se fala na contemporaneidade sobre a dependência tecnológica, mas o
ser humano sempre dependeu de tecnologias, das mais simples às mais complexas.
Com o surgimento da mecanização, seguido pelas eras eletrônica e digital, a
máquina alcança um status diferente de qualquer outra tecnologia anterior e se nutre
da dependência provocada por ela mesma para evoluir, criando um círculo vicioso
que a coloca no cerne de muitas questões sociais hoje em voga.
Coincidentemente (ou consequentemente), os últimos grandes movimentos
da revolução burguesa, sobretudo a Revolução Francesa de 1789, ocorreram quase
que de maneira concomitante à Primeira Revolução Industrial, o que evidencia a
relação máquina/capitalismo como historicamente indissociável. Assim, constata-se
que as máquinas estão no cerne do capitalismo, principalmente na
contemporaneidade. Sobre a relação homem/máquina/capitalismo, Deleuze e
Guattari (1997, p. 138) abordam que:

[...] certamente, é o Estado moderno e o capitalismo que promovem


o triunfo das máquinas e, notadamente, das máquinas motrizes (ao
passo que o Estado arcaico tinha no máximo máquinas simples);
mas estamos falando, então, de máquinas técnicas, extrinsecamente
definíveis. Justamente, não se é submetido à servidão pela máquina
técnica, mas, sim, sujeitado. Nesse sentido, parece que, com o
desenvolvimento tecnológico, o Estado moderno substituiu a
servidão maquínica por uma sujeição social cada vez mais forte. Já a
escravidão antiga e a servidão feudal eram procedimentos de
sujeição. Quanto ao trabalhador “livre” ou nu do capitalismo, ele leva
a sujeição à sua expressão mais radical, uma vez que os processos
de subjetivação não entram mais nem mesmo nas conjunções
parciais que interromperiam seu curso. Com efeito, o capital age
como ponto de subjetivação, constituindo todos os homens em
sujeitos, mas uns, os “capitalistas”, são como os sujeitos da
enunciação que formam a subjetividade privada do capital, enquanto
os outros, os “proletários”, são os sujeitos do enunciado, sujeitados
às máquinas técnicas onde se efetua o capital constante.
41

Ora servidão, ora sujeição, a máquina se porta como motor do capitalismo.


Nos dias atuais, os dispositivos maquínicos onipresentes na paisagem, fetichizados
e, por isso, adorados e “indispensáveis” para a vida contemporânea, geram
sujeições complexas, em que os sujeitos deixam as máquinas (e consequentemente
seus operadores) invadirem suas vidas – suas intimidades. Nesse caso, instaura-se
uma necessidade de “ver” e “ser visto” a partir da mediação tecnológica (ou
maquínica), na qual o voyeurismo está no ápice de um triângulo de forças nomeado
nesta tese como tecnoscopia.
Esse estado de coisas (voyeurista e maquínico ou, então, tecnoscópico, como
será melhor discorrido a posteriori) é complexo, pois trata de uma série de
transformações conjuntas que vão além das questões psicossociais (antes descritas
e que são importantes de fato), mas também se baseia em uma mutação do próprio
capitalismo, enraizado no tecido social. O novo tipo de capitalismo, ou
neocapitalismo, é também dependente da máquina em sua constituição
contemporânea, o que leva os teóricos da conspiração a preverem a queda do
capitalismo caso haja um “apocalipse tecnológico” ou um bug em larga escala.
Conspirações à parte, Deleuze e Guattari (1997, p. 179) inferem que, no tocante ao
capitalismo mundial integrado, “[...] um novo espaço liso é produzido onde o capital
atinge sua velocidade ‘absoluta’, fundada sobre componentes maquínicos, e não
mais sobre o componente humano do trabalho”.
As interdependências complexas criaram artifícios que objetivam manter o
“sistema” sempre ativo e operante. Nesse âmbito, a tecnoscopia é ferramenta
fundamental e, talvez, o maior combustível contemporâneo do capitalismo
tecnológico. Ela se constitui e se instaura, à medida que afeta setores artísticos,
culturais, sociais, comerciais, industriais e governamentais, além de interferir
diretamente na estrutura psíquica da população global, alterando comportamentos e
quebrando as barreiras convencionadas entre o que é público e privado. Isso ocorre,
principalmente, seguindo a lógica de Marx, Adorno e Debord (2003, p. 111), porque
“[...] as relações internacionais tendem à homogeneização das formações sociais”.
Com isso, a massa uniforme necessita “ver” e “ser vista” e, assim, se sujeita ou
serve aos operadores da “grande máquina”. Vale ressaltar que são inúmeros “[…] os
indícios de que estamos vivenciando uma época limítrofe que prenunciaria um corte
42

na história: uma passagem de certo ‘regime de poder’ para um outro projeto político,
sociocultural e econômico” (SIBILIA, 2016, p. 25).
Os desdobramentos dos novos tipos de relações entre o homem e a
tecnologia, no que tange a “ver” e “ser visto”, trazem mudanças sociais significativas
e parecem anunciar um novo momento “divisor de águas”. Sobre isso, Sibilia (2016,
p. 155) continua ao indagar:

[...] como mapear estas transformações? Para começar, já se tornou


um lugar-comum aludir à sensação de viver num perpétuo presente,
como uma característica inerente à contemporaneidade. Com a crise
dos modelos de temporalidade que nortearam a era moderna, hoje
se desenvolvem outras formas de vivenciar a passagem do tempo e
a inscrição cronológica de nossas ações. O assunto foi muito
debatido nas duas últimas décadas do século XX, como um dos
traços do pós-modernismo: um debate marcado pela descrença na
linearidade do progresso, pela crise dos grandes projetos
sociopolíticos modernos e do sentido histórico e, inclusive, pelo
suposto fim da história graças à consagração de um presente eterno
e imutável.

Viver em um eterno presente é algo que o sujeito contemporâneo parece já


ter se acostumado. “Tudo ao mesmo tempo agora” é a máxima atual e, em âmbito
sociocultural, há uma superestimação do quantitativo em detrimento do qualitativo.
Debord (2003, p. 22) já previa isso quando esboçou a sociedade do espetáculo há
exatos 50 anos, em que o desenvolvimento do capitalismo espetacularizado:

[...] exclui o qualitativo estancando, enquanto desenvolvimento, a


passagem qualitativa: o espetáculo significa que ele transpôs o limiar
da sua própria abundância; isto ainda não é verdadeiro localmente
senão em alguns pontos, mas já é verdadeiro em escala universal,
que é a referência original da mercadoria, referência que o seu
movimento prático confirmou, definindo a terra como mercado
mundial.

A quantidade infindável de “produtos tecnoscópicos” constatam essa


importante questão, e, à medida que a tecnologia avança em número e evolui em
funcionalidade, um voyeurismo tecnológico e seus desdobramentos em face da
tecnoscopia também crescem proporcionalmente, instaurando-se de maneira global.
Isso não quer dizer que são gerados ganhos qualitativos com relação à qualidade de
vida ou ao desenvolvimento artístico-cultural. Pelo contrário, o estado de coisas traz
mais preocupações, ao invés de apontar uma direção palpável, pois se nota um
43

movimento de homogeneização e banalização próprio de uma sociedade do


espetáculo (DEBORD, 2003).
McLuhan (1974) já afirmava que uma sociedade nunca está apta a enfrentar
de imediato as consequências das tecnologias recém-surgidas. Esse autor ficou
conhecido por propor que o meio (tecnológico) era, na verdade, a própria mensagem
(em si mesma); logo, não simplesmente trazia a mensagem como um receptor (uma
mídia), como diziam as teorias da comunicação até então. Ele relatou que:

[...] as consequências sociais e pessoais de qualquer meio – ou seja,


de qualquer uma das extensões de nós mesmos – constituem o
resultado do novo estalão introduzido em nossas vidas por uma nova
tecnologia ou extensão de nós mesmos (MCLUHAN, 1974, p. 11).

De fato, McLuhan (1974) foi um visionário, ao dizer as tecnologias elétricas (e


hoje digitais) seriam extensões do sistema nervoso central humano. Para ele, os
homens estariam em pouco tempo conectados uns aos outros em uma rede de
trocas ininterruptas realizada por meio de elétrons e bits.
Em face do que fora salientado, a seção a seguir tentará relacionar as
análises antes postas acerca do voyeurismo no âmbito psíquico e social com as
abordagens supracitadas, entre outras que situam o voyeurismo no cerne de uma
questão socioeconômica “tecnocapitalista” que instaura a tecnoscopia.

1.2.1 Sociedade tecnoscópica

Bauman e Lyon (2013, p. 24) abordam que, no mundo das relações


eletronicamente mediadas, o “[...] anonimato já está em processo de autoerosão no
Facebook e em outras mídias sociais. O privado é público, é algo a ser celebrado e
consumido tanto por incontáveis ‘amigos’ quanto por ‘usuários’ casuais”. Na
contemporaneidade, a antiga noção de privacidade é trocada pelos 15 minutos de
fama de Warhol ou, melhor dizendo, pelos 15 likes de fama das mídias sociais. Se
exibir é a ordem do dia, mas o exibicionismo narcísico e/ou tecnoscopicamente
dependente10 serve para nutrir seu correspondente oposto: o voyeurismo. Afinal, se
não houver para quem mostrar, por que algo seria mostrado?

10Questões sobre exibicionismo, narcisismo e dependência tecnoscópica serão melhor tratadas no


Capítulo 2.
44

Os sujeitos se exibem, na esperança de serem notados e publicitados (hoje,


“compartilhados”). Ao mesmo tempo, um olhar atencioso e curioso “varre” a rede
mundial de informações atual em busca de imagens íntimas alheias que satisfaçam
uma pulsão escópica estabelecida na mediação eletrônica de telas e interfaces. Tais
imagens, das exibicionistas às não consentidas, podem nutrir desejos sexuais ou de
outra natureza. Nesse momento, a pessoa vista se transforma em objeto de desejo
e, então, se estabelece o voyeurismo de acordo com a tríade de características
descritas anteriormente: atenção, curiosidade e fetichismo.
Esse exemplo do voyeurismo no âmbito das redes sociais informáticas se
apresenta entre vários tipos de possíveis atos voyeuristas contemporâneos que
ocorrem diária e continuamente por meio de dispositivos mediadores do olhar
humano e dos serviços vinculados a eles. O atual mundo capitalista global e
consumista lança mão de produtos e serviços culturais, utilitários e de
entretenimento, em que o “olhar para a intimidade alheia” se faz presente em
diversos níveis. Pode-se dizer que há um voyeurismo geral, no qual olhar para a
intimidade do outro pode nutrir um outro tipo de escopofilia, não relacionada, a priori,
com questões estritamente sexuais.
Nas palavras de Conceição e King (2014, p. 182), a mídia social nos últimos
anos superou a pornografia como atividade mais acessada na internet. Além disso:

1 em cada 8 novos casados nos EUA em 2011 se encontraram


através das mídias sociais. Um estudo do Departamento de
Educação dos EUA revelou que, em média, estudantes online têm
desempenho melhor do que aqueles recebendo instrução
pessoalmente. 80% das empresas usam redes sociais para
recrutamento. [...] Ashton Kutcher (ator) e Britney Spears (cantora)
têm mais seguidores no Twitter que a população da Suécia, Israel,
Suíça, Irlanda, Noruega e Panamá.

Conceição e King (2014) ainda salientam que o termo rede social foi utilizado
no século passado para designar um conjunto complexo de relações entre membros
de um sistema social. Por volta dos anos 1950, passou a se referir aos padrões de
laços existentes entre diferentes grupos e categorias sociais, como tribos, famílias,
gênero, etnia etc. Na Sociologia e na Antropologia Social, a terminologia foi
amplamente utilizada no final do século XX para tratar de questões que abarcavam
diferentes áreas do conhecimento, tais como “[...] a antropologia, a biologia, os
estudos de comunicação, a economia, a geografia, as ciências da informação, a
45

psicologia social, a socioIinguística e, sobretudo, no serviço social” (ibidem, p. 179).


Sua adoção para nomear as redes informáticas ocorreu no início do século XXI,
após o advento da web 2.011, e logo se tornou um vocábulo conhecido por todos os
usuários da internet. As relações da terminologia no âmbito das interações online
com as concepções sociológicas do termo são importantes para esta análise, sendo
retomadas várias vezes, com enfoque nas atividades contemporâneas de “ver” e
“exibir” a intimidade.
Enquanto isso, Samuel (1994) relata que, na sua época, o que era visto como
o ápice do voyeurismo se dava no entusiasmo em abrir um álbum de família,
transformando ocasiões informais e a intimidade familiar em espetáculo público.
Hoje, o álbum de família, além de ser público, está disponível a todos, e não
simplesmente às pessoas próximas. Convém salientar que outras atividades
corriqueiras perderam sua privacidade e são publicizadas sem rédeas para o
voyeurismo de multidões.
No século XX, Lacan (1985b) considerava sua sociedade como “onivoyeur”,
em face de um tipo de sensação disseminada na qual a mulher se sentia sempre
observada pelo olhar voyeurista masculino. Segundo o autor, o “onivoyeurismo” se
dava “[...] na satisfação de uma mulher em se saber olhada, com a condição de que
não se mostre isto a ela” (idem, p. 76). Mas é interessante analisar uma mudança
contemporânea no entendimento das questões relativas ao gênero: se antes a
parafilia voyeurista era quase exclusivamente ligada ao sexo masculino, agora, o
público feminino talvez seja seu maior representante, sobretudo nas redes sociais da
web.
A onividência proporcionada pelas máquinas incita o sujeito contemporâneo a
“brincar de Deus”: pode-se ver o que quiser, quem quiser e quando quiser – pelo
menos se acredita nessa possibilidade. É claro que essa onividência se dá de
maneira recíproca, e aqui está o perigo: ao mesmo tempo em que o outro é visto,
aquele que vê também é observado por mais pessoas do que se imagina – em um
processo cíclico e vicioso.
Nesse ínterim, Baudrillard (1969, p. 90) afirma que, em um jogo voyeurista/
exibicionista, “[...] eu sei o segredo do outro, mas não digo, e ele sabe que eu sei,

11 A web 2.0 será analisada no próximo item desta tese


46

mas não levanta o véu; a intensidade entre os dois nada mais é que o segredo do
segredo”. De acordo com Gois (2012, p. 2-3):

[...] essa cumplicidade nada tem a ver com uma informação oculta ou
recalcada similar a catarse psicológica, provocada no setting
terapêutico ao revelar os interditos do inconsciente, mas na
suspensão do segredo que o observador tem em se satisfazer
através do olhar sobre o outro e esse sucessivamente capturado pelo
prazer em ser observado.

É interessante notar como essas considerações em referência ao voyeurismo


e ao exibicionismo, principalmente no âmbito de suas origens psicossociais, são
também válidas e contundentes no entendimento de tais conceitos em face da
onividência proporcionada pelas máquinas na contemporaneidade.
Bruno (2009; 2013), em recentes estudos sobre o referido tema, aponta que
os diferentes períodos históricos possuem regimes de visibilidade diretamente
relacionados às tecnologias e às relações de poder ora estabelecidas. A autora se
refere à sociedade contemporânea como pertencente a um já instaurado regime
escópico. Esse conceito foi embasado na noção de regime de Foucault,
apropriando-se também do termo proposto em um primeiro momento por Christan
Metz em 1984, e, em seguida, por Martin Jay, em 1993.
Para a tese, a noção de regime escópico tratada por Bruno (2009; 2013) é tão
quanto necessária para o entendimento do que se toma a liberdade de chamar, em
decorrência direta do que foi discutido, de “sociedade escópica”. O desenvolvimento
das tecnologias de visão e das redes informáticas que permitem a observação de
cenas diversas, muitas delas compostas pela intimidade alheia, potencializa um
estado voyeurista global numa sociedade escópica já imersa em um regime
escópico. Logo:

[...] a proliferação de reality shows na televisão (no fim dos anos


1990 e início dos anos 20001) e de práticas de exposição e narrativa
do eu na internet nos levaram a interrogar as topologias que aí se
redesenhavam: do público e do privado; da intimidade e da
sociabilidade; da interioridade e da exterioridade. Neste mesmo
âmbito, a integração de câmeras de fotografia e vídeo a dispositivos
móveis de comunicação (telefones celulares, laptops, palmtops),
associada à profusão de plataformas digitais de compartilhamento de
conteúdo audiovisual, tornou possível uma ampla circulação de
imagens de toda ordem, produzidas por uma multidão diversificada
de indivíduos nos contextos e nas condições mais distintas (BRUNO,
2009, p. 7).
47

Ver o que quiser e quando quiser parece promover a “tríade oni” tão
importante para esta pesquisa: onividência, onipresença e onipotência. Afinal, quem
não gostaria de “brincar de Deus” nessa cultura de imagens facilmente acessáveis?
Sibilia (2016, p. 78) irrompe que, “[...] além de mais interativos e dispostos a
compartilhar suas experiências, os sujeitos estão se tornando ‘mais visuais do que
verbais’”. De fato, “[...] o rádio levou 38 anos para atingir 50 milhões de usuários,
enquanto a internet levou apenas 4 anos. O Facebook conquistou 200 milhões de
usuários em seu primeiro ano de vida” (CONCEIÇÃO; KING, 2014, p. 181).
É inegável que o desenvolvimento dos novos meios técnicos prioriza e
potencializa a exploração visual global, a partir de interfaces táteis em sua maioria:
controle remoto, mouse de computador, teclados, telas touchscreen etc. Tais
dispositivos, tidos como extensões dos sentidos humanos, na concepção de
McLuhan (1974), permitem que sistemas visuais (e audiovisuais) sejam acessados e
controlados por meio do tato e, mais recentemente, por controles de voz. Ainda
assim, a interface tátil é a mais comum, e assim o será provavelmente por algumas
décadas.
Flusser (2007, p. 36), assim como McLuhan (1974), discorre sobre o fato das
tecnologias serem, potencialmente, formas de próteses técnicas do homem: “[...] as
ferramentas, as máquinas e os eletrônicos são como imitações das mãos, como
próteses que prolongam o alcance das mãos e em consequência ampliam as
informações herdadas geneticamente graças às informações culturais,
adquiridas” (FLUSSER, 2007, p. 36). Mais do que evoluções biológicas no sentido
“darwiniano”, feitas em face do desenvolvimento genético adaptável ao meio, a
tecnologia seria uma evolução de nível cultural, quando a cultura permite ao homem
criar extensões de si mesmos para se adaptar ao ambiente, potencializando suas
funções.
Nessa evolução tecnocultural, Flusser (2007, p. 36) previu tipos de homens
tecnológicos surgidos a partir da Primeira Revolução Industrial: “Primeiro, o homem-
mão, depois, o homem-ferramenta, em seguida, o homem-máquina, e finalmente, o
homem-aparelhos-eletrônicos”. O autor continua, ao abordar que:

Fica cada dia mais evidente que a relação homem-aparelho-


eletrônico é reversível, e que ambos só podem funcionar
conjuntamente: o homem em função do aparelho, mas, da mesma
maneira, o aparelho em função do homem. Pois o aparelho só faz
48

aquilo que o homem quiser, mas o homem só pode querer aquilo de


que o aparelho é capaz. Está surgindo um novo método de
fabricação, isto é, de funcionamento: esse novo homem, o
funcionário, está unido aos aparelhos por meio de milhares de fios,
alguns deles invisíveis: aonde quer que vá, ou onde quer que esteja,
leva consigo os aparelhos (ou é levado por eles), e tudo o que faz ou
sofre pode ser interpretado como uma função de um aparelho
(FLUSSER, 2007, p. 40-41).

A dependência tecnológica é vista como inerente à contemporaneidade, em


que a recíproca relação homem-máquina é algo que foi (e ainda é) objeto de
importantes estudos. Na miríade de trocas e retroalimentações, o “ver” e o “ser visto”
têm papel especial para a perpetuação desta reciprocidade. O “olho maquínico” se
une ao humano ou o substitui em diversas ocasiões. Flusser (2007, p. 47) relata
que, para além da inter-relação, chegou-se a um ponto em que o homem se
escraviza diante da máquina:

As máquinas são simulações dos órgãos do corpo humano. A


alavanca, por exemplo, é um braço prolongado. Potencializa a
capacidade que tem o braço de erguer coisas e descarta todas as
suas outras funções. É “mais estúpida” que o braço, mas em troca
chega mais longe e pode levantar cargas mais pesadas. Desse
modo, a relação “homem-máquina” inverteu-se de tal modo que as
máquinas não serviam aos homens, mas estes serviam a elas.
Haviam-se convertido em escravos relativamente inteligentes de
máquinas relativamente estúpidas.

Os discursos de Flusser (2007) e McLuhan (1974) datam de meados do


século XX e ainda se mostram muito contemporâneos. A dependência das máquinas
eletrônicas afeta vários níveis da vida humana, chegando a alterar a própria
subjetividade e os meandros psicossociais a nível global. Nessa interdependência,
McLuhan (1974, p. 34) cita que “[...] os homens logo se tornam fascinados por
qualquer extensão de si mesmos em qualquer material que não seja o deles
próprios”, em que os dispositivos que se apresentam como extensões técnicas úteis
ao homem são, ao mesmo tempo, tomados como itens de ostentação e de valor
afetivo. Isso favorece o que o referido autor chama de estado de “[...] efeito narcótico
e de entorpecimento das novas tecnologias” (idem, p. 47). Esse autor utiliza as
expressões narcisismo e efeito narcótico para se referir ao mito de Narciso, com
vistas a traçar um paralelo entre essa mitologia e as novas tecnologias:
49

[...] tem havido cínicos que insistem em que os homens se


apaixonam profundamente por mulheres que reflitam sua própria
imagem. Seja como for, a sabedoria do mito de Narciso de nenhum
modo indica que ele se tenha enamorado de algo que ele tenha
considerado como sua própria pessoa. É claro que seus sentimentos
a respeito da imagem refletida teriam sido bem diferentes, soubesse
ele que se tratava de uma extensão ou repetição de si mesmo. E não
deixa de ser um sintoma bastante significativo das tendências de
nossa cultura marcadamente tecnológica e narcótica o fato de
havermos interpretado a história de Narciso como um caso de
autoamor e como se ele tivesse imaginado que a imagem refletida
fosse a sua própria! (MCLUHAN, 1974, p. 43).

A paixão pela máquina faz os homens tomá-la como continuidade de seus


próprios corpos, como se reconhecessem a si mesmos nela. Hoje, diversos
dispositivos estão mais portáteis e com interfaces amigáveis, o que permite que eles
sejam utilizados quase que ininterruptamente. McLuhan (1974) também salienta que
as tecnologias enquanto próteses técnicas dos corpos humanos acabam por
amputar os sentidos e substituí-los. Para o autor, as autoamputações de sentidos
ocorrem ao passo que se elege uma extensão para substituir determinado sentido
amputado – essa é mais uma razão para que uma extensão-prótese mergulhe os
indivíduos em um estado de entorpecimento.

Pesquisas médicas, como as de Hans Selye e Adolphe Jonas


sustentam que todas as extensões de nós mesmos, na doença ou na
saúde, não são senão tentativas de manter o equilíbrio. Encaram
essa extensão como “autoamputação” e acham que o dispositivo da
estratégia ou da força autoamputativa é acionado pelo organismo
toda vez que a energia perceptiva não consegue localizar ou evitar a
causa da irritação. Embora não estivesse na intenção de Jonas e
Selye fornecer uma explicação para a invenção e a tecnologia
humanas, o certo é que nos deram uma teoria da doença que chega
a explicar por que o homem é impelido a prolongar várias partes de
seu corpo, numa espécie de autoamputação. Sob pressão de
hiperestímulos físicos da mais vária espécie, o sistema nervoso
central reage para proteger-se, numa estratégia de amputação ou
isolamento do órgão, sentido ou função atingida. Assim, o estímulo
para uma nova invenção é a pressão exercida pela aceleração do
ritmo e do aumento de carga. No caso da roda como extensão do pé,
por exemplo, a pressão das novas cargas resultantes da aceleração
das trocas por meios escritos e monetários criou as condições para a
extensão ou “amputação” daquela função corporal. Em
compensação, a roda, como contrairritante das cargas crescentes,
resultou em nova intensidade de ação pela amplificação de uma
função separada ou isolada (o pé em rotação). O sistema nervoso
somente suporta uma tal amplificação através do embotamento ou
do bloqueio da percepção. A imagem refletida do moço é uma
autoamputação ou extensão provocada por pressões irritantes.
Como contrairritante, a imagem provoca um entorpecimento ou
choque generalizado que obstrui o reconhecimento. A
50

autoamputação impossibilita o autorreconhecimento. O princípio da


autoamputação como alívio imediato para a pressão exercida sobre o
sistema nervoso central prontamente se aplica à origem dos meios
de comunicação, desde a fala até o computador (MCLUHAN, 1974,
p. 26-27).

A abordagem de McLuhan, assim como outros autores como Bauman,


Flusser, Adorno, Deleuze, Benjamin e Foucault, trazem um interessante contraponto
ao discurso progressista e otimista do desenvolvimento tecnológico. Eles explicitam
uma dependência ainda mais cega em face das tecnologias contemporâneas, se
comparada às suas antecessoras, que compromete o senso crítico perante uma
realidade já instaurada. Na visão de Deleuze (1992, p. 3), por exemplo, cada
sociedade possui certos tipos de máquinas que evidenciam as características que
lhe são inerentes:

As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples,


alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares
recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o
perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as
sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira
espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo
passivo é a interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus.
Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma
mutação do capitalismo.

Deleuze (1992), ao abordar a sociedade de controle contemporânea12,


demonstra como a “realidade maquínica” é ligada ao capitalismo global que a toma
como principal engrenagem. Por sua vez, Adorno (1978, p. 289) assinala que os
produtos tecnológicos contemporâneos despertam “[...] a ilusão de que o que é
coisificado e mediatizado é um refúgio de imediatismo e de vida”. Os dispositivos
técnicos que se apresentam como mediadores, ou melhor, como próteses da visão
humana são os que mais se destacam e se perpetuam dentre os demais produtos
capitalistas. Benjamin (1992, p. 107) já relatava em 1931 que “[...] o analfabeto do
futuro não será quem não sabe escrever, e sim quem não sabe fotografar”.
Nesse contexto, Zygmunt Bauman tratou, em grande parte de seu prolífico
trabalho, como as mudanças sociais contemporâneas, principalmente aquelas
relacionadas aos desenvolvimentos tecnológicos, promovem uma certa “liquidez
social”:

12As sociedades disciplinares, de controle e de vigilância, na concepção de Deleuze, Foucault,


Bauman, entre outros, serão profundamente analisadas no Capítulo 3, em item específico.
51

[...] as sociedades modernas parecem tão fluidas que faz sentido


imaginar que elas estejam numa fase ‘líquida’. Sempre em
movimento, mas muitas vezes carecendo de certezas e de vínculos
duráveis. [...] As condições atuais podem ser descritas como
modernidade “tardia”, possivelmente “pós-modernidade” ou, de modo
mais pitoresco, modernidade “líquida” (BAUMAN; LYON, 2013, p. 4).

Carente de uma base sólida, a liquidez se relaciona diretamente com a


digitalização do “ver” e do “ser visto” e como isso quebra as antigas barreiras
existentes entre o público e o privado. Sibilia (2016, p. 48) cita que os autores que
indagam a sociabilidade líquida ou a cultura somática atual se referem também às
“[...] personalidades alterdirigidas e não mais introdirigidas, construções de si
orientadas para o olhar alheio ou ‘exteriorizada’, não mais introspectivas nem
intimistas”. A autora diz que tais questões evidenciam a transição do “homo psico-
lógico” da sociedade industrial para um certo “homo tecno-lógico” do capitalismo
informatizado, assim como profetizou J. C. R. Licklider, um dos pioneiros nos
estudos da internet em 1968: “[...] daqui a uns poucos anos, o homem será capaz de
se comunicar de forma mais efetiva através de uma máquina do que face a
face” (idem, p. 79).
Com o surgimento da web 2.0, a proposta de interatividade desse novo
serviço une em definitivo internet e vida cotidiana, criando novos tipos de relações
interpessoais, regimes de poder e maneiras antes impensadas de “ver” e “interagir”
com a intimidade alheia, como será discorrido a seguir.

1.2.2 Voyeurismo interativo e web 2.0

O uso da máquina é quase indispensável para a satisfação escopofílica do


voyeur contemporâneo. Hoje, um voyeur no âmbito sexual dá preferência às
imagens de registro (vídeos e fotografias) para se satisfazer, em detrimento da
satisfação “in loco” e “ao vivo”, como era a priori. Ele abre mão de se “aventurar” em
meio à sociedade para, agora, buscar cenas voyeurísticas na internet ou na TV – na
segurança de seu lar. Quando decide se aventurar na paisagem urbana, tende a
levar consigo sua câmera, e não usa unicamente o artifício da visão humana. Nesse
último caso, ele se masturba (última etapa da satisfação escopofílica) tempos depois
de uma captação realizada com sua câmera, ao visualizar o conteúdo captado
52

anteriormente. Ele prefere isso à masturbação no momento da captação da cena ou


da simples visualização sem o uso de nenhum aparato de registro.
Assim, o olho eletrônico não apenas se equivale ao sentido da visão e o
ultrapassa com suas funcionalidades técnicas (zoom, visão noturna etc.), mas
também substitui o cérebro humano com uma memória mais potente, com a
capacidade de guardar grande quantidade de imagens de maneira mais eficaz e em
“alta definição”. Interessante dizer que Freud (1996b) já afirmava em sua época que
a agitação mecânica causada pelo contato entre o homem e a imagem técnica pode
produzir uma excitação sexual. Para McLuhan (1974, p. 36):

A seleção de um único sentido para estimulação intensa, ou, em


tecnologia, de um único sentido “amputado”, prolongado ou isolado,
é a razão parcial do efeito de entorpecimento que a tecnologia como
tal exerce sobre seus produtores e consumidores. Pois o sistema
nervoso central arregimenta uma reação de embotamento geral ao
desafio de uma irritação localizada.

Nesta sociedade tecnológica, consumista e capitalista, a necessidade


voyeurista de ver o outro pela mediação tecnológica mostrou-se imperativa e para
além apenas das questões de voyeurismo sexual. Portanto, a noção tradicional de
voyeurismo não abarca os novos desdobramentos do “ver” na contemporaneidade, o
que leva esta pesquisa a tentar encontrar outras maneiras de categorizar e entender
tal fenômeno. Considera-se que, hoje, um novo voyeurismo, interativo e tecnológico,
é inerente à sociedade. Ao analisar, por exemplo, as redes sociais da internet que
permitem a interconexão entre pessoas e o compartilhamento de imagens, áudio e
informações textuais em tempo “real”, percebe-se um certo olhar voyeurista
(atencioso, curioso e fetichista) presente em grande parte das atividades dos
usuários online. Mas se trata, de fato, de um voyeurismo interativo, “transmutado” e
“distorcido” que decorre da interatividade em rede.
Sem dúvidas, o surgimento da web 2.0 é o marco zero para o início da
ocorrência do voyeurismo interativo e, em consequência, das novas práticas do “ver”
e do “ser visto” na internet, o que instaurou a nomeada tecnoscopia, que será
discutida a seguir. Bruno (2013, p. 59) denomina a web 2.0 como “[...] a geração de
serviços e plataformas na internet cujo conteúdo é gerado e/ou compartilhado
através da participação do usuário”. O termo surgiu em 2004 e foi usado para
designar a segunda geração de serviços e sistemas da internet que promoveram
53

uma interatividade muito maior entre as plataformas digitais e os usuários. Isso


ocorreu a partir da lógica de que o usuário deixaria de ser unicamente um receptor e
passaria a ser também o emissor da mensagem. Ele contribuiria na alimentação das
informações em todo o sistema, que funcionariam apenas em parceria com o usuário
– sem ele, o sistema seria inútil. Nesse período surgiram os precursores das
primeiras redes sociais: wikis, blogs, fotologs, videologs etc.
Tim O’Reilly, um dos responsáveis pela criação da web 2.0, definiu em 2005
uma série de regras e parâmetros que sustentaram o sucesso da plataforma na
última década. Dentre elas, destacam-se os seguintes itens direcionados aos
provedores dos serviços:

1. Services, not packaged software, with cost-effective scalability. 2.


Control over unique, hard-to-recreate data sources that get richer as
more people use them. 3. Trusting users as co-developers. 4.
Harnessing collective intelligence. 5. Leveraging the long tail through
customer self-service. 6. Software above the level of a single device.
6. Lightweight user interfaces, development models, and business
models (O’REILLY, 2016, n.p.).

Os usuários foram seduzidos pela promessa de serem codesenvolvedores – o


bastante para abdicarem de sua privacidade, inclusive. A web 2.0 foi a ferramenta
ideal para incentivar o exibicionismo em rede, pois agora era fácil “demarcar um
território online” e começar a “existir digitalmente”, criando um duplo da vida humana
no ciberespaço. Hoje, esse fenômeno comunicacional conta com um grande número
de redes e serviços interativo-digitais, como resume Sibilia (2016, p. 19-20), a partir
do desenvolvimento histórico da plataforma e de seus produtos:

Primeiro foi o correio eletrônico, uma poderosa síntese entre o


telefone e a velha correspondência, que se espalhou com força nos
últimos anos do século XX, incrementando enormemente a
quantidade e a agilidade dos contatos. Em seguida, popularizaram-
se os canais de bate-papo ou chats, simbolizados pelo bem-sucedido
ICQ, que logo evoluíram nos sistemas de mensagens instantâneas
do tipo MSN ou Hangout e nas populares redes de interação social
como Orkut, MySpace, Facebook, Twitter, Linkedin, Instagram,
Pinterest ou Snapchat. Paralelamente, surgiram os sites que
facilitariam o compartilhamento de vídeos caseiros, uma categoria na
qual se destacou YouTube; [...] Outra vertente é constituída pelos
aplicativos móveis genéricos como WhatsApp, que acabaram
convertendo as chamadas telefônicas em raridades quase obsoletas,
substituindo-as por um diálogo permanente que se digita na tela do
aparelho celular e costuma vir ilustrado com fotos, vídeos ou sons.
Nesse sentido, não se pode esquecer também o pioneiro Skype, que
há tempos vem permitindo ligações com áudio e imagem em
54

movimento entre duas ou mais pessoas, sem custo algum para além
do acesso à internet, algo que pouco tempo atrás fora uma das
fantasias mais habituais da ficção científica. Continuando esta rápida
revisão do trajet percorrido até agora, logo surgiriam serviços mais
específicos como Tinder, Grindr ou Happn, que se destinam a
contatar possíveis parceiros sexuais localizados em áreas próximas
ao local onde cada usuário se encontra no momento. Essa sucessão
de novidades foi transformando a tela de qualquer computador – e,
em seguida, a dos versáteis aparelhos móveis como os tablets e os
smartphones, que driblam quase todos os limites espaciais ou
temporais – em janelas sempre abertas e ligadas a quantidades
crescentes de indivíduos.

Os jovens dos dias atuais, nascidos durante ou após a “explosão” dos


serviços da web 2.0, são hoje conhecidos como “nativos digitais”, de acordo com
termo criado em 2001 pelo escritor norte-americano Mark Prensky. Esses “nativos”,
também chamados de “millennials”, trazem subjetividades que se diferem das
gerações pré-internet (os “imigrantes digitais”, na concepção de Prensky), e são
considerados como a própria mudança em si mesmos. Para Sibilia (2016, p. 24)
esses jovens “[...] usuários, leitores ou espectadores são convocados a participar,
compartilhar, opinar e se exibir de um modo considerado ‘proativo’”. Isso traz uma
série de alterações frente às antigas noções psicossociais, entre elas as formas de
“ver” e “ser visto” na contemporaneidade.
Um voyeur era, em sua origem, um observador oculto e anônimo que
espreitava sua vítima sem que ela notasse a presença dele. Hoje, ao “zapear” os
diversos conteúdos compartilhados por “amigos” nas redes sociais e ao observar a
banalidade da vida alheia, há um potente voyeurismo – atencioso, curioso e
fetichista – em atividade, mesmo que, a priori, não se dê no âmbito sexual. No
entanto, torna-se muito difícil que o usuário-voyeur não interaja com a imagem
observada a partir de funcionalidades diversas, como as famosas “curtidas”, os
“compartilhamentos” e/ou os “comentários”13.
Muitas imagens compartilhadas na internet que tendem a despertar um certo
grau de voyeurismo no usuário observador – tais como fotografias ou vídeos de
situações corriqueiras ou mesmo imagens íntimas e/ou eróticas – são feitas a partir

13 “Curtidas”, “compartilhamentos” e “comentários” são as três principais maneiras de interação com


conteúdos oferecidas pela rede social Facebook: a primeira torna possível que o usuário deixe visível
que gostou de determinada “postagem”; a segunda permite que o usuário divulgue conteúdos
próprios ou de terceiros entre sua rede de “amigos”; e a terceira possibilita que comentários em textos
sejam somados ao conteúdo e fiquem também disponíveis aos demais. É importante ressaltar que
vários serviços da web 2.0 apresentam funcionalidades semelhantes ou idênticas a essas.
55

de uma lógica exibicionista e consensualmente divulgadas pelos próprios indivíduos


que as produziram. O exibicionismo consensual em si não fere o olhar voyeurista,
quando o sujeito que observa está oculto e anônimo, mas a interação com essas
imagens quebra o cânone do anonimato do voyeur que, nesse momento, ingressa
de maneira ativa no jogo de sedução de “ver” e “ser visto”.
Ainda há os incontáveis casos de fotografias e vídeos íntimos “vazados” na
rede sem o consentimento dos retratados14. A maioria deles foi produzida, a priori,
apenas para satisfazer um jogo erótico entre o autorretratado e seu cônjuge no
âmbito da intimidade do casal, mas quando tais imagens “vazam”15 na internet,
normalmente isso decorre da quebra de confiança do parceiro sexual – que as
publica sem um consenso entre ambas as partes; ou a partir de invasões hackers –
com o roubo e compartilhamento de arquivos pessoais. As imagens “vazadas”
acabam “viralizando”16 por toda a rede, em que se torna quase impossível limitar o
acesso a elas. Tais casos se constituem como novos problemas sociais que atingem
principalmente os adolescentes e causam incontáveis transtornos aos envolvidos.
Orihuela (2014, p. 4-5), traz uma interessante abordagem sobre um tipo de
prazer (que ele chama de “gozo”) evidente na visualização de imagens que aludem
ao voyeurismo no âmbito da rede de informações:

[...] el goce estético de la fotografía al negar la privacidad hace que lo


público sea omnipresente. Esta idea apunta a observar que no hay
nada más público que la exposición de las fotografías a través de las
redes virtuales; antes cuando se hacían revelar (y aún se hacen) las
imágenes se exponían a los ojos públicos a través de una
transacción comercial o mediante una exposición artística. Ahora que
se han digitalizado, su exposición se somete al dictamen
indiscriminado del mundo virtual: Goza lo que ves. Tal rasgo ayuda a
entender que el mundo virtual lejos de ser una elaboración ficticia, su
concreción se sustenta en el deseo de sujetos concretos que tienden
a someterse a la lógica perversa del “ojo vigilante”: “ver para gozar”.

Grande parte dos novos voyeurs que buscam por imagens íntimas,
clandestinas e “vazadas” tendem a interagir com elas sem nenhum pudor ou receio

14 Esse fenômeno será investigado com detalhes no Capítulo 2 desta tese.

15 O termo vazar, ou leak, em inglês, refere-se a informações privadas e/ou confidenciais que se
tornam públicas sem o consentimento da parte que as produziu, e também será tratado no Capítulo 2.

16 A expressão viralizar é usada quando conteúdos e informações são disseminados em grande


escala, a partir de compartilhamentos progressivos.
56

de contribuir com o delito de perpetuar o sofrimento da vítima – aquela exposta sem


seu consentimento. Se há inicialmente uma intenção voyeurista dada pela pulsão
escópica ao procurar e ao se deleitar com as imagens, ela logo se “transforma” e se
“distorce” no momento da interação.
Calvert (2004) já propunha reflexões sobre esse novo tipo de voyeurismo nos
primeiros anos do século, principalmente ao analisar um voyeurismo eletrônico dado
por meio da onipresença televisiva na vida de todos. Em decorrência, o autor
começava a analisar o voyeurismo online, que indicava potencialidade nos
primórdios da internet doméstica. Para nomear esse novo voyeurismo, o autor
cunhou o termo mediated voyeurism (voyeurismo mediado), por conta da mediação
tecnológica em ambos os casos: eletrônica, em relação à TV (mass media); e digital,
no que tange à internet. Segundo as palavras do autor:

I use the term “mediated voyeurism” here in a rather generic sense,


one to be distinguished from the psychological definition of voyeurism
described later in this chapter as a sexual disorder or form of sexual
deviance. I borrow here from the definition used by Peter Keough in
relationship to the viewing of violent and sexually explicit movies – as
an “urge to gaze at the alien and the intimate”. The alien and the
intimate tend to be sordid or sensational, but they need not be. Our
voyeurism may be as simple as watching the home movies of others
lives and knowing that we could be “the star of the next show”.
Building on Keough’s definition of voyeurism, I defined mediated
voyeurism [...] as the consumption of revealing images of and
information about others apparently real and unguarded lives, often
yet not always for purposes of entertainment but frequently at the
expense of privacy and discourse, through the means of the mass
media and internet (CALVERT, 2004, p. 23).

Ainda de acordo com o referido autor, as últimas décadas do século XX foram


diferenciais na instauração do voyeurismo como produto cultural para consumo
global, principalmente devido aos programas de reality show e de jornalismo
investigativo. Mas, já nos primórdios do século XXI, notou-se uma guinada rumo a
outro tipo de voyeurismo, ainda “mediado” no entanto mais potente que o anterior –
pois agora ele também é “interativo” 17. O conceito se “transforma”, pois deixa de ser
um voyeurismo tal qual seu cânone e se torna uma “outra coisa”, trazendo questões
relativas ao exibicionismo (e a outras parafilias como o fetichismo, o sadismo, a

17 É importante dizer que os programas de reality show e de jornalismo investigativo já previam um


tipo de interação do público, pois muitos deles pediam a participação do telespectador por telefone ou
mesmo in loco em algumas ocasiões. No entanto, a interação dada pela internet ocorre em nível mais
abrangente, simplificado e democrático.
57

pedofilia etc.), além de se relacionar com uma vigilância capitalista-governamental


global. Ao fazer isso, se modifica no ato da interação com a imagem e “se deforma”,
mas, logo após, volta em direção a si mesmo em um processo cíclico e vicioso em
espiral, “distorcido”. Assim, ele se perde em um “limbo” de abordagens que
transcende a própria mediação tecnológica, sobretudo nas relações dadas entre a
ocultação do sujeito voyeurista e sua exibição consentida.
Orihuela (2014) alega que, em face da relação narcisista com a fotografia do
dia a dia e da interatividade digital “fetichista”, que permite certo tipo de controle
sobre as pessoas observadas/retratadas, está acentuada uma tendência
psicopatológica neovoyeurista na contemporaneidade. O neovoyeurismo proposto
por esse autor se aproxima do voyeurismo interativo tratado por esta tese:

Pero el neo-voyeurismo, que produce la abrumadora exposición


fotográfica narcisista contemporánea acerca de la vida cotidiana, ya
no se circunscribe sólo a objetos sexuados, sino a la necesidad del
goce policíaco sobre sujetos pretendidamente asexuados. El goce
policíaco se caracteriza porque no sólo pretende una satisfacción
individual sino también el ejercer cierto control virtual sobre lo que se
contempla (¿Qué está haciendo el Otro?), generando una
expectación mórbida acerca de lo que los Otros hacen o hicieron
(ORIHUELA, 2014, p. 3).

O que Orihuela (2014) traz como neovoyeurismo contemporâneo diz respeito


à relação entre um proposto voyeurismo nos meios de comunicação e as maneiras
contemporâneas de vigiar. Para isso, o autor se vale da expressão el goce policíaco
(o gozo policiado), enfatizando as relações entre prazer e vigilância. Nesse âmbito,
Bruno (2009, p. 48) assegura que, da mesma forma com que as câmeras de
vigilância atuam, as câmeras de telefones celulares, fotográficas e de vídeo, mesmo
quando não possuem a finalidade da vigília, “[...] participam ativamente da
construção de um regime escópico sobre a cidade que se passa não tanto nos
circuitos de controle, mas sim nos circuitos de prazer, entretenimento e voyeurismo,
onde vigoram uma atenção vigilante e a captura do flagrante”. A autora cunha
também o conceito de “estética do flagrante” para nomear as tramas de imagens
advindas de atividades voyeuristas e vigilantes, pois surgem “[…] de um olhar
amador que reúne aspectos simultaneamente policiais, libidinais e
jornalísticos” (idem, p. 49).
58

El nuevo sujeto narcisista en el mundo virtual es “amigo” del neo-


voyeurista, la amistad virtual cierra una suerte de círculo entre un
director y un actor, en el que ambos cumplen sus roles que permutan
constantemente. Desde luego los roles permutan en función del
goce. Ambos, al igual que Mark no tienen una vida privada porque la
hacen pública. Al margen de si en las fotografías se finja o se
aparente, el instante cobra condición de realidad para el que lo ve.
[...] Ya Nietzsche, figurativamente, anotaba que había hombres que
sólo eran un oído y otros un ojo. En el mundo contemporáneo la
reproducción de la vida pasa por la desarticulación de los sentidos y
en la producción de unos nuevos súbditos del ojo. Tal como se
encuentra el mundo virtual, bajo la hegemonía de los neo-voyeuritas
y los narcisos, se puede observar que si Allan Poe mantenía en
suspenso a sus lectores con “El corazón delator”, las redes sociales
ponen en suspenso al mundo virtual mediante el “ojo
delator” (ORIHUELA, 2014, p. 4-5).

Na última citação, Orihuela (2014) enfatiza a relação entre diferentes


constantes: o sujeito neovoyeurista, o sujeito narcisista (o qual será relacionado ao
sujeito exibicionista, a posteriori) e o ojo delator (“o olho delator” ou “o olho que
vigia”). O autor propõe relações interdependentes entre três conceitos apresentados
nesta tese em face da sociedade escópica e tecnológica contemporânea:
voyeurismo, exibicionismo e vigilância.

1.2.3 Tecnoscopia

De acordo com o discurso anterior, esta pesquisa se propõe a questionar se o


“voyeurismo mediado” cunhado por Calvert (2004), assim como o “neovoyeurismo”
utilizado por Orihuela (2014), entre outros possíveis neologismos derivados da
palavra voyeur, dão conta, a priori, de um estado de coisas complexo e já instaurado
na contemporaneidade. Ainda que o “neovoyeurismo” abarque aspectos relativos às
relações entre voyeurismo, exibicionismo e vigilância, falta certa abrangência
epistêmica à terminologia para fazer com que esse vocábulo seja adequado o
suficiente para analisar as complexas questões acerca do “ver” e “ser visto” por
conta da mediação tecnológica contemporânea, que transpassam a própria noção
de voyeurismo. Diante dessas relações, seria incongruente se referir apenas ao
voyeurismo, seja ao “neovoyeurismo”, ao “voyeurismo mediado” ou a determinadas
expressões já propostas em diversas pesquisas, como transvoyeurismo,
panvoyeurismo, pós-voyeurismo, entre outras. Na ausência de um conceito já
estabelecido que abarque todo o “triângulo de forças escópico” e que permita a
59

análise de imagens, atividades, produtos e serviços que se referem a um olhar


voyeurista, exibicionista e vigilante, concomitantemente, esta pesquisa toma a
liberdade de criar o conceito tecnoscopia, na tentativa de resolver tal problema
conceitual.
O neologismo tecnoscopia tentará abarcar questões relativas ao voyeurismo
interativo, mas que decorrem de situações que evocam também o exibicionismo e a
vigilância contemporâneos ao mesmo tempo. Nessa tríade, o voyeurismo define-se
como o conceito fundamental e ocupa o ápice do triângulo (Figura 2), pois ele é o
precursor dos demais elementos e o que mais está presente na atualidade, mesmo
sendo “transmutado” e “distorcido”. O exibicionismo, também considerado uma
parafilia no âmbito da psicologia, é proporcionalmente oposto ao voyeurismo, e a
vigilância se vale sempre de um “olhar” voyeurista.

!
Figura 2. Representação do “triângulo tecnoscópico”.

Para evidenciar a correlação entre os conceitos, nota-se na atualidade que os


mesmos produtos e serviços que servem ao voyeurismo e ao exibicionismo explícito,
como as atuais redes sociais, são extraordinários sistemas de vigilância e controle
por parte de empresas multinacionais e organizações diversas. Da mesma forma, as
60

onipresentes câmeras de vigilância podem servir à satisfação escópica e voyeurista


de pervertidos. Portanto, voyeurismo, exibicionismo e vigilância se interconectam a
partir de processos recíprocos e simbióticos na contemporaneidade, em uma
realidade tecnoscópica que se constitui “[...] em um novo regime sensorial em que a
visão e a atenção ocupam lugares privilegiados” (BRUNO, 2009, p. 46).
A tecnoscopia apresenta algumas variações etimológicas que, em grande
parte, são válidas semanticamente para esta pesquisa. Ela surge, sobretudo, da
junção das palavras tecnologia e escopofilia, mas, em outras análises, pode-se
considerar os dois hemisférios da palavra separadamente: “tecno” + “scopia”.
“Tecno” tem origem no grego tékhne, que significa arte, habilidade ou talento, ao
passo que “scopia” vem do grego skopós e do latim scopus, referentes a observador,
espião e vigilante. Flusser (2007, p. 182) contribui para o entendimento do termo
“tecno” enquanto técnica e arte. O autor aborda que tékhne também se relaciona
com tekton, que significa carpinteiro:

A ideia fundamental é a de que a madeira (em grego, “hylé”) é um


material amorfo que recebe do artista, o técnico, uma forma, ou
melhor, em que o artista provoca o aparecimento da forma. A objeção
fundamentada de Platão contra a arte e a técnica reside no fato de
que elas traem e desfiguram as formas (ideias) intuídas teoricamente
quando as encarnam na matéria. Para ele, artistas e técnicos são
impostores e traidores das ideias, pois seduzem maliciosamente os
homens a contemplar ideias deformadas.

Arte e técnica sempre coexistiram como faces de uma mesma moeda, mesmo
após as investidas pós-renascentistas em separá-las (“mundo das artes” e o “mundo
da técnica e das máquinas”), que, segundo Flusser (2007), foram desastrosas,
tornando essa cisão insustentável no final do século XIX. A restrição que Platão tinha
defronte à arte e à técnica se devia ao caráter ilusório da transformação das ideias
em matéria. Hoje, os homens se apropriam da arte enquanto técnica ou da técnica
enquanto arte, de maneira ainda mais ilusória que no classicismo grego, pois
emergem em um mundo de aparências que se apresenta como duplo digital do
mundo real, mas não o é: o ciberespaço.
Os termos tékhne e skopós, no âmbito da tecnoscopia, são fundamentais
para a compreensão do estado de coisas instaurado, pois podem remeter a
diferentes, mas complementares, entendimentos desse neologismo: “ver através da
técnica”, “ver por meio da arte”, “a técnica para espiar”, “a arte de vigiar”, entre
61

outras especulações semânticas. Mesmo se esta tese não tratasse de um objeto de


estudo artístico, é certo que seria necessário proceder com uma análise sobre a arte
e seus produtores para entender a realidade tecnoscópica. A arte está
inerentemente ligada à técnica e à tecnologia de cada época, em que as produções
artísticas e culturais realizadas na história da humanidade sempre elucidaram a
relação homem/tecnologia através dos tempos. Autores como Bauman, Virilio e Lévy
chamam essas relações de “tecnossociais”, decorridas de relevantes quebras de
paradigmas científicos ocorridos no último século, em face do que se convencionou
denominar de “tecnociência”. Nesse ínterim, Hauck (2008, p. 53-54) relata que:

[...] as últimas décadas se caracterizaram por um incrível avanço


tecnológico que resultou no fim das certezas científicas e no
inevitável esfacelamento dos paradigmas (im)postos pela ciência
moderna. Paul Virilio refere que graças a Albert Einstein os conceitos
genéricos e absolutos – tempo e espaço – são substituídos por dois
novos termos: velocidade e luz. Posteriormente, as “ondas-
corpúsculos” (Louis de Broglie) e o princípio da indeterminação
(Werner Heisenberg) revelaram o paradoxo que nos impede de
conhecer, simultaneamente, a velocidade e a posição de uma
mesma partícula.

Especificamente, o termo tecnociência surgiu em 1987 com o objetivo de


evitar o constante uso da expressão ciência e tecnologia (HAUCK, 2008). Datam de
anos próximos outras nomeações que derivaram da palavra tecnologia e que
adotaram tecno como um radical seguido do nome da área “miscigenada” às novas
tecnologias: tecnólogo, tecnofobia, tecnoprogressivismo, tecno-holo-democracia,
tecnopsicologia, música tecno, entre outras. Isso permite constatar que houve, no
final do século XX e nas primeiras décadas do século XXI, uma tendência rumo à
“tecnologização” das coisas em diferentes áreas – a tese proposta também se insere
nesse contexto.
O crescimento da quantidade de produtos e serviços artísticos, culturais e de
comunicação (ferramentas, mídias, peças de entretenimento, produções artísticas,
entre outros) que remetem à tecnoscopia (voyeurismo, exibicionismo e vigilância) é
diretamente proporcional ao avanço das tecnologias de captura e exibição de
imagens, ou seja, aos dispositivos mediadores-próteses do olhar humano. Imagens
capturadas por câmeras de vários tipos são compartilhadas em tempo real e formam
um gigantesco banco de informações visuais que, juntamente com demais dados em
62

texto e áudio, criam um ecossistema digital que afeta a forma como o mundo é
vivido e compreendido.
Essas relações novas e “miscigenadas” entre tecnologia, voyeurismo,
exibicionismo e vigilância (relações tecnoscópicas) contam com inúmeras variáveis
que comprometem o entendimento do escopo de análise e geram várias incertezas
– como no âmbito legal, por exemplo. Na legislação atual de diversos países,
quando um sujeito voyeurista é flagrado espiando outra pessoa “in loco” e “ao vivo”,
sem o consentimento dela, a autuação costuma ocorrer em tempo real (flagrante), e
a pena é significativa. Se o indivíduo for flagrado espiando imagens voyeuristas
feitas sem consentimento do observado (e quando aquele não é o autor das
imagens), raramente há pena. Quando o sujeito é então o autor das imagens e ele
não é preso em flagrante, ou seja, no ato do próprio registro, a autuação demora a
ocorrer e pode levar dias, meses ou anos de processo penal – isso evidencia um
novo “limbo” de incertezas e indefinições que a lei e a sociedade contemporâneas
ainda não estão aptas a resolver.
Vários projetos de lei tentaram abarcar essas questões, como o Stop Online
Piracy Act (SOPA) e o Protect IP Act (PIPA) norte-americanos, voltados
principalmente para a proteção de direitos autorais, de imagem e intelectuais, mas
que também abrangem outros aspectos; e o Marco Civil da Internet e a Lei Carolina
Dieckmann no Brasil18 . Mesmo diante dessas iniciativas legais, muitos problemas
relacionados à privacidade digital continuam sem solução e se acumulam nos
tribunais.
Para se ter uma noção quantitativa dos grandes números de dispositivos
técnicos pelos quais decorrem as atividades tecnoscópicas, Belló (2017, p. 39)
informa que, nos dias atuais, quatro bilhões de pessoas utilizam telefones celulares
(hoje conhecidos como smartphones) em todo o mundo e que:

[...] una persona informa de la pérdida de su cartera después de una


media de 26 horas, pero si es el móvil entonces solo son 68 minutos
de media. [...] 65% de las personas con móvil reconocen que no
podrían vivir sin él. [...] Los hombres hablan y gastan más al mes.
Buscan lo último en tecnología al cambiar el móvil. Las mujeres
sacan más partido a sus teléfonos, aunque los consideran como
accesorio de moda, símbolo de estatus y a veces lo usan como arma
de seducción. [...] El 83% de las personas entre 18 y 25 años duerme

18 Esses projetos de lei serão melhor discutidos nos Capítulos 2 e 3 desta tese.
63

con su smartphone. El 44% de la población lo utiliza como


despertador y el 77% lo utiliza e general en la cama.

Tais estatísticas evidenciam como o ecossistema digital é parte indissociável


do mundo físico. Isso não apenas deixa clara a interdependência homem-máquina,
mas também se mostra como uma atividade preocupante, no que tange à
superexposição de informações e imagens íntimas. Uma vez na rede, o controle
sobre os dados produzidos é mínimo; então, o que é “postado” chega a uma terra
sem leis ou regras ainda bem definidas (como relatado anteriormente), sem uma
barreira digital que separe o público do privado. Stelter (2011 apud BAUMAN; LYON,
2013, p. 30) diz que “[...] a internet é o lugar onde morre o anonimato”. Se tudo que é
privado se torna público, de maneira consensual ou não, ele está dado ao novo
voyeurismo interativo-digital. O sujeito que vê o outro possui, também, grande
necessidade de se mostrar; consequentemente, outros o veem e, com isso, instaura-
se um jogo de “ver” e “ser visto” voyeurista, exibicionista e vigilante que se
retroalimenta intermitentemente.
Mais do que uma maneira de denominar um certo tipo de “olhar”, a
tecnoscopia nomeia uma postura, um comportamento e/ou uma subjetividade.
Estas, por sua vez, transcendem unicamente a questão tecnológica e se dão no
ínterim da mediação artística e cultural, de acordo com a dicotomia do termo tékhne.
Esse novo tipo de subjetividade mediada decorre diretamente da quase extinção da
privacidade nos dias atuais, ou pelo menos de como a expressão privacidade era
entendida até então.
Bauman e Lyon (2013, p. 36) validam que a observação contínua da
intimidade foi reclassificada de ameaça para tentação, sendo que a promessa de
maior “[...] visibilidade, a perspectiva de ‘estar exposto’ para que todo mundo veja e
observe, combina bem com a prova de reconhecimento social mais avidamente
desejada, e, portanto, de uma existência valorizada – ‘significativa’”. Boa parte do
que antes era considerado privado se torna público, quando a própria banalidade da
vida é disponibilizada para o consumo público e:

[...] continua sempre disponível, até o fim dos tempos, já que a


internet “não pode ser forçada a esquecer” nada registrado em algum
de seus inumeráveis servidores. Essa erosão do anonimato é
produto dos difundidos serviços da mídia social, de câmeras em
celulares baratos, sites grátis de armazenamento de fotos e vídeos e,
talvez o mais importante, de uma mudança na visão das pessoas
64

sobre o que deve ser público e o que deve ser privado (BAUMAN;
LYON, 2013, p. 34).

A transformação que extingue barreiras antes postas entre o público e o


privado evidencia uma subjetividade tecnoscópica global e faz surgir uma
“sociedade confessional” que, de acordo com Bauman e Lyon (2013, p. 43-44), faz
da exposição pública do privado “[...] uma virtude e uma obrigação públicas, e por
varrer da comunicação pública qualquer coisa que resista a ser reduzida a
confidências privadas, juntamente com aqueles que se recusam a confidenciá-las”.
Da tríade de conceitos que formam a tecnoscopia, o novo voyeurismo
interativo ocupa o ápice do triângulo escópico, pois a necessidade incessante de ver
a intimidade nutre um exibicionismo e uma vigilância massivos. Tal aspecto é
demonstrado pelo grande número de imagens “vazadas”, sensacionalistas, de
celebridades captadas por paparazzi, de denúncia, humor, entre outras captadas por
câmeras ocultas ou apropriadas por outros meios.
Muitas dessas imagens trazem cenas da intimidade de outras pessoas, e
como já dito na maioria das vezes sem o consentimento delas. Por isso, são
voyeuristas de per si, pois não foram produzidas e/ou compartilhadas pelos
autorretratados, ou seja, não partiram de uma lógica narcisista-exibicionista. No que
se refere à vigilância, ela se mescla ao voyeurismo/exibicionismo e atua de maneira
amigável, invisível e insípida. Essa questão, como será vista no decorrer desta
pesquisa, é seu maior trunfo, posto que a vigilância global é nutrida
consensualmente pelos próprios vigiados. Novamente, o exibicionismo e a vigilância
decorrem de um ato voyeurista, em que se instaura o “jogo de sedução”
tecnoscópico contemporâneo.
No âmbito da psicanálise, a palavra “sedução” é conflitiva, pois é “[...]
carregada de todo o peso de um ato baseado na violência moral e física que se acha
no cerne da relação entre a vítima e o carrasco, o senhor e o escravo, o dominador
e o dominado” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 696). Nessa discussão, o caráter
“dominador” daquele que seduz é interessante, pois mostra a relação igualmente
conflitante entre o voyeurista (que pensa “dominar” o observado), o exibicionista
(que deseja ter o “domínio” do olhar atencioso, curioso e fetichista do voyeurista que,
por sua vez, acredita estar “dominando” a pessoa “coisificada”) e o vigilante
(certamente, é o único que possui o “domínio” de fato).
65

Samuel (1994) relata que o prazer de olhar se une às condições sociais de


existência e às questões históricas, geográficas, inovações no ambiente, alterações
domésticas e revoluções no gosto público. Eis aqui um importante problema de
pesquisa: Será que o desenvolvimento técnico (tecnológico e cultural) é o principal
responsável por uma subjetividade tecnoscópica global ou, em sentido oposto,
independentemente da evolução técnica, esta sociedade estaria disposta, de
qualquer maneira, a abrir mão da privacidade?
Bauman e Lyon (2013, p. 37-38) dizem que as mídias sociais, por exemplo,
são um produto da fragmentação social, e não necessariamente o contrário, em que
os usuários:

[...] deviam se sentir solitários demais para serem reconfortados mas


achavam difícil, por um motivo ou outro, escapar da solidão com os
meios de que dispunham. Em segundo lugar, deviam sentir-se
dolorosamente desprezados, ignorados ou marginalizados, exilados
e excluídos, porém, mais uma vez, achavam difícil, quiçá impossível,
sair de seu odioso anonimato com os meios à disposição. Para
ambas as tarefas, Zuckerberg ofereceu os recursos até então
terrivelmente ausentes e procurados em vão; e eles pularam para
agarrar a oportunidade. Já deviam estar prontos para saltar, os pés
sobre o ponto de partida, os músculos retesados, as orelhas
empinadas à espera do tiro de largada.

Dada a “paixão cega” pelas extensões-próteses tecnológicas, os seres


humanos nutrem das potencialidades técnicas para satisfazer os desejos mais
antigos. Bauman e Lyon (2013, p. 66) ponderam que os computadores não são os
culpados pelos problemas sociais contemporâneos, e isso é oposto ao que vários
críticos tecnológicos apontam: “Eles oferecerem a seus usuários uma oportunidade
melhor de fazer o que sempre desejaram, mas não podiam, por falta de ferramentas
adequadas”.
Mas os computadores não devem também ser considerados os grandes
salvadores, assim como outros teóricos costumam discorrer. Sibilia (2016, p. 25)
está de acordo com essa afirmativa:

[...] não são os aparelhos que causam mudanças nos modos de ser,
como costuma se afirmar com excessiva irreflexão mas, ao contrário
parece evidente que os artefatos técnicos são resultado de
processos históricos bem complexos, que envolvem uma infinidade
de fatores socioculturais, políticos e econômicos. Nesse sentido, as
tecnologias são inventadas para desempenhar funções que a
66

sociedade de algum modo solicita e para as quais carece das


ferramentas adequadas.

Anteriormente, o voyeur se aventurava apenas com o artifício da visão,


olhando pelas janelas do prédio vizinho em busca de cenas flagrantes, por exemplo.
Mas agora ele tem uma infinidade de janelas virtuais para satisfazer a escopofilia.
Antes da “sociedade tecnológica”, o desejo voyeurista poderia existir em muitas
pessoas que nunca o demonstraram, pois, por não haver recursos suficientemente
eficazes para oferecer possibilidades de aventuras voyeurísticas aos “menos
corajosos”, tal desejo poderia permanecer inerte e oculto por toda a vida. Diante da
facilidade de se aventurar pela intimidade do outro, o desejo foi “ativado” em cadeia
e se “viralizou”, à medida que as pessoas começaram a usufruir dos incontáveis
produtos e serviços tecnoscópicos. Conforme afirma McLuhan (1974), o ser humano
nunca esteve preparado para fazer frente à inovação tecnológica, que atinge a
sociedade de forma a alterar todo o contexto psicossocial.
Valery (2003, p. 131-132) relata que:

[...] tal como el agua, el gas o la corriente eléctrica vienen de lejos a


nuestras casas para atender nuestras necesidades con un esfuerzo
casi nulo, así nos alimentaremos de imágenes visuales o auditivas
que nazcan y se desvanezcan al menor gesto, casi un signo. [...] No
sé si filósofo alguno ha soñado jamás una sociedad para la
distribución de Realidad Sensible a domicilio.

A separação entre as esferas públicas e privadas da sociedade é uma


invenção histórica e convencionada de acordo com a cultura local, pois, em outras
culturas, ela se configura de modos diferentes. A privacidade como se conhece no
ocidente e nos dias atuais é uma invenção europeia e burguesa dos séculos XVIII e
XIX, advinda das primeiras sociedades industriais modernas e das formas de vida
urbanas. Interessante notar que a noção de privacidade contemporânea surge em
face do desenvolvimento técnico da Primeira Revolução Industrial e, agora, é extinta
ou modificada por completo por conta de um novo patamar do desenvolvimento
técnico, nomeado por alguns teóricos como Terceira Revolução Industrial – a
revolução das tecnologias da informação.
O urbanismo técnico e industrial dos últimos séculos parece também carecer
de um certo desejo de “fazer-se ver”. A arquitetura sempre foi dada ao prazer
estético, mesmo aliada às noções funcionais do design. O homem como um
67

flâneur19, assim como na concepção de Baudelaire, se aventurou pelo espaço da


cidade com seu olhar volitivo de turista, sempre atento e curioso, em que poderia
também fetichizar a arquitetura inerte, como se olhasse para o corpo nu de uma
mulher.
McLuhan (1974, p. 231) diz que “[...] a cidade, como o navio, é uma extensão
coletiva de nossa pele, como a roupa é uma extensão de nossa pele individual”.
Enquanto isso, Canevacci (2008) faz uma série de relações interessantes sobre um
possível fetichismo dado em face da arquitetura, que dialoga com o voyeurismo ao
despertar certo libido no ato de ver, em que utiliza termos como bodyscope e
location para enfatizar as relações entre corpo e arquitetura.
Um exemplo artístico que pode proporcionar interessantes reflexões acerca
das relações entre voyeurismo, arquitetura e urbanismo contemporâneos é o filme
Empire (Figura 3), de Andy Warhol (1928-1987) e produzido no ano de 1964. Danto
(2013, p. 86) relata que a obra tem “[...] mais de oito horas, com o mínimo de
incidentes e um único ator – o próprio edifício do Empire State, filmado de uma
janela do Rockefeller Center com uma filmadora Auricon –, e mostra uma vista
ininterrupta do prédio, rolo após rolo, colados na ordem exata da exposição”. Warhol
costumava tratar do voyeurismo por meio de longos filmes de cenas banais e
cotidianas20. No entanto, em quase todas as demais produções, o voyeurismo se
dava a partir da exibição de atores que interpretavam eles mesmos em atividades
diárias ou em cenas de cunho erótico.
Empire foi a primeira empreitada do artista ao olhar com intenso voyeurismo
para um objeto inanimado – um prédio –, esboçando uma maneira escopofílica de
perceber a cidade, com sua arquitetura inerte, à vista de todos. Danto (2013, p. 88)
completa que:

[...] as imagens no filme Empire não se movem nem um milímetro!


De fato, se projetarmos cenas de Empire em duas telas separadas,
na primeira, o filme inteiro e, na segunda, um still do mesmo filme, as

19 A palavra flâneur é originária do francês e significa "errante", "vadio", "caminhante" ou


“observador”. O verbo flânerie é tido como o ato de passear pela cidade. O termo foi usado por
Charles Baudelaire em sua poesia, para falar sobre um explorador urbano que vagava pelas ruas de
Paris no século XIX. Walter Benjamin retomou o termo de Baudelaire no século XX, relacionando-o
com questões no âmbito do modernismo.

20 Essas produções voyeuristas-tecnoscópicas de Andy Warhol serão analisadas a posteriori nesta


tese.
68

imagens seriam tão idênticas quanto a Brillo Box. [...] Olhando com
muita atenção, até poderíamos ver bolhas e arranhões. Assim, pode-
se dizer que num “retrato em movimento” não é a imagem que se
move, mas é uma tira de celuloide que se move. Warhol andava em
busca da essência das coisas, e raciocinou intuitivamente, como
Sócrates ou seus companheiros, propondo definições e testando-as.
Em Empire, Warhol mostrou que, num “retrato em movimento”, nada
no retrato tem de se mover. Na verdade, somente num retrato em
movimento é que uma coisa pode realmente ficar parada. Afinal,
ninguém que olhe para uma foto do Empire State Building vai
perguntar: “Por que não está se movendo?”.

!
Figura 3. “Empire”, de Andy Warhol. Frame de filme em extra-longa-metragem. 1964. Fonte: <https://
br.pinterest.com/laureng789/warhol/>. Acesso: 01/03/2017.

Agamben (2014, p. 65) também fala sobre esse tipo de olhar voyeurista e
volitivo do flâneur sobre a cidade, que, típico de um olhar de turista, é mais “ativo”
nas velhas cidades, pois elas:

[...] são o lugar eminente das assinaturas que o flâneur lê quase


distraidamente ao longo das suas derivas e dos seus passeios; por
isso as terríveis restaurações, que suavizam e uniformizam as
cidades europeias, apagam suas assinaturas, tornando-as ilegíveis.
E por isso as cidades – e especialmente Veneza – assemelham-se
aos sonhos.

Para Bruno (2013, p. 98), a cidade, agora em face de um voyeurismo


tecnológico, é também importante sobre a compreensão dos novos desdobramentos
69

do “ver” e “ser visto”, em que os “[...] inúmeros olhares sobre a cidade constituem um
repertório diversificado e relativamente desordenado de imagens cujos sentidos e
efeitos são múltiplos”. Hoje, uma nova maneira de se aventurar pelo espaço urbano,
porém, de forma integralmente digital, diz respeito às novas tecnologias de
visualização em 360° de fotografias e vídeos. As mais imersivas contam com o uso
de óculos de realidade virtual, conhecidos como óculos VR – essas tecnologias
foram anunciadas há mais de 20 anos, mas, apenas agora, estão de fato disponíveis
a todos. Dentre as tecnologias se destaca o serviço do Google denominado Street
View, lançado em 2007. Esse sistema, disponível em site e em aplicativos para
smartphones, permite que os usuários possam ver imagens em 360° de vários locais
do mundo, mapeadas pelo Street View Car, um carro da empresa que roda pelas
ruas de diversas cidades realizando fotografias panorâmicas que, quando
compiladas, dão a impressão de imersão digital em determinado local.
O voyeur observador da cidade no Google Street View seria “flâneur
cibernético” que “surfa” (ao invés de “vagar”) pela cidade digital, esta dada à
observação de todo o mundo. Bruno (2013, p. 110) aborda que o:

Street View põe em jogo uma perspectiva do pedestre e do passante


permitindo, pelo comando do zoom, um voyeurismo controlado sobre
a imagem, bem mais nítida em detalhes. Desde o lançamento do
serviço, já são inúmeros os protestos em defesa da privacidade, bem
como os sites que brincam de coletar e disponibilizar os “flagrantes”
capturados inadvertidamente pelas câmeras do Street View Car. [...]
A velha mistura de voyeurismo e vigilância, de policial e libidinal se
atualiza aqui num curioso regime de atenção e observação da cena
urbana, em que o campo perceptivo é a própria imagem.

É visível que vários (senão todos) os meandros da vida pública e privada


parecem agora ser mediados pela técnica. Nesse âmbito, e como já discorrido, o
contato interpessoal mediado se perpetua cada vez mais, o que gera grandes
preocupações. Médicos e psicólogos têm relacionado transtornos depressivos de
grande parte da população e o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
(TDAH) em crianças e adolescentes ao constante uso dos dispositivos tecnológicos,
o que acarreta uma falta de socialização “real”, devido à substituição das relações
cotidianas in loco pelas virtuais.
Bauman e Lyon (2013, p. 49) questionam: “[...] os nomes e fotos que os
usuários do Facebook chamam de ‘amigos’ são próximos ou distantes?”. De acordo
70

com o antropólogo evolucionista da Universidade de Oxford, Robin Dunbar, a mente


humana, por conta de suas limitações biológico-evolutivas, permite apenas um
número relativamente pequeno de amigos significativos. São 150 amigos no total,
segundo o pesquisador, quantia que ficou conhecida como o “número de Dunbar”.
Estes autores afirmam que “você pode estabelecer ‘amizade’ com 500, mil, até 5 mil
pessoas em sua página no Facebook, mas todos, com exceção do núcleo de 150,
são meros voyeurs observando sua vida cotidiana” (BAUMAN; LYON, 2103, p. 51).
Segundo essa abordagem, o voyeurismo tecnoscópico pode se dar, então,
quando a observação da intimidade alheia decorre à parte das relações
significativas. Desse modo, quando há uma relação íntima de fato e no “mundo real”,
talvez não haja voyeurismo de per si, pois ambas pessoas (observador e observado)
promovem constantes “trocas íntimas”, em suas relações interpessoais cotidianas.
Já no momento em que a intimidade alheia não é de fato vivenciada, há o desejo de
ser espectador da vida desconhecida do outro. A palavra espectador (com a letra
“S”) tem origem no termo em latim spectatore e se refere a alguém que observa ou
examina um acontecimento. Ela é sinônima das expressões testemunha,
presenciador, assistente, ouvinte, observador, entre outras. O vocábulo homônimo
expectador (com a letra “X”), por sua vez, advém do latim expectatore e diz respeito
a alguém que tem a expectativa de que alguma coisa aconteça. Não seria, então, o
sujeito voyeurista um es(x)pectador em ambos os sentidos? Uma resposta afirmativa
é válida porque o voyeur é espectador (observador) de uma cena enquanto possui a
expectativa (expectador) de que aquilo que tanto deseja ver se revele.
Enquanto es(x)pectador, o voyeur interativo (tecnoscópico) vê a vida de
outrem, com expetativa de se satisfazer escopicamente. No entanto, há também
uma forma de participação, mesmo que não seja uma participação in loco e
interpessoal de fato. Este novo es(x)pectador digital, diferentemente do voyeur
tradicional e do observador-espectador (passivos), participa da intimidade do outro
ao interagir digitalmente com ela. É possível que para além da interação com as
imagens em âmbito digital (a partir de “curtidas”, comentários e compartilhamentos),
o voyeur pode interagir de maneira psicofisiológica, ao se masturbar. Especulações
a parte, é fato que o sexo, relação tida anteriormente como extremamente íntima e
privada, está cada vez mais pública, ao se deixar mediar pela máquina:
71

O sexo costumava ser a última coisa em que a privacidade


preservava a experiência direta sem a intervenção de modelos. Mas,
quando o sexo se tornou público, quando seu estudo se tornou tão
inevitável quanto o tênis, apareceu o infalível suplente prometendo
uma experiência “real” pela própria consciência do eu que a torna
inacessível. Aqui, como em outras experiências indiretas, o “sentir” é
transformado em produto de consumo (O’DOHERTY, 2002, p. 57).

O chamado “sexo virtual” já existe desde o início da democratização da


internet, mas, nos dias atuais, ele se tornou uma das principais e mais recorrentes
formas de relação sexual e é um dos itens fundamentais para a instauração da
tecnoscopia. A interação sexual exclusivamente mediada coloca em detrimento o
contato físico e, por conseguinte, o olho assume um caráter erógeno importante
nessa relação. É claro que há várias décadas existem o comum sexo por telefone e
o famoso “disque-sexo”. No entanto, os novos recursos visuais (ou melhor,
audiovisuais) são incomparavelmente mais imersivo-interativos, no que tange a
proporcionar prazer sexual (escópico). Na relação sexual mediada pela tecnologia,
pode-se especular que a relação se dá, de fato, entre os sujeitos e a máquina e não
apenas entre os sujeitos mediados pela máquina.
Sobre a relação homem-sexo-máquina, McLuhan (1974, p. 37) já abordava
que:

[...] fisiologicamente, no uso normal da tecnologia (ou seja, de seu


corpo em extensão), o homem é perpetuamente modificado por ela,
mas em compensação sempre encontra novos meios de modificá-la.
É como se o homem se tornasse o órgão sexual do mundo da
máquina, como a abelha do mundo das plantas, fecundando-o e
permitindo o envolver de formas sempre novas. O mundo da
máquina corresponde ao amor do homem atendendo a suas
vontades e desejos, ou seja, provendo-o de riqueza. Um dos méritos
da pesquisa motivacional foi o da revelação da relação entre o sexo
e o carro.

Nesse caso, o meio é realmente a própria mensagem, como defendeu


McLuhan por toda a carreira, pois o que causa a excitação sexual não é a pessoa
conectada do outro lado dos cabos de fibra ótica, mas a ferramenta técnica
mediadora que torna a relação muito mais instigante.
À parte do sexo virtual e interpessoal existe um outro tipo de interação sexual
tecnoscópica que domina a rede mundial de comunicações: a pornografia digital. Os
72

sites pornográficos, conhecidos também como XXX 21, representam pelo menos 30%
do tráfego de dados na web atualmente. De acordo com Ribeiro et al. (2015, p. 8-9)
e “[...] segundo dados da Covenant Eyes, um programa americano de filtragem e
prestação de contas de internet, 68% dos homens jovens assistem pornografia pelo
menos uma vez por semana, contra 32% das mulheres”.

O estudo A Billion Wicked Thougths, escrito pelo neurocientista Ogi


Ogas, indica que este tipo de conteúdo corresponde a 13% das
pesquisas feitas nos principais buscadores e 4% de todos os sites
disponíveis na web. Além disso, a pesquisa Predicting Compulsive
Internet Use, feita em 2006 pelo Addiction Research lnstitute, na
Holanda, afirma que ‘‘de todas as atividades feitas pela internet,
consumir pornografia é a que tem maior potencial para viciar”. Apesar
de alguns desses dados serem contestados, casos de pessoas que
se consideram viciadas em conteúdo erótico tem se tornado cada
vez mais comuns (FAISTING; BRESSAN, 2015, p. 10).

O viciante consumo diário de pornografia reforça o olhar voyeurista, que


prefere se satisfazer “vendo” em detrimento do contato físico. Mesmo no âmbito da
pornografia digital, que a priori parece carecer do feedback do internauta, o
voyeurismo interativo se faz presente diante de inúmeros sites eróticos que
permitem a interação dos usuários, como o brasileiro DreamCam e o precursor
norte-americano JenniCam22, ambos historicamente significativos neste âmbito, mas
já descontinuados.
Em suma, torna-se claro como um novo tipo de voyeurismo tecnológico-
interativo instaura uma tecnoscopia global, que se desdobra em questões relativas
ao exibicionismo, à vigilância e a outras parafilias. Em decorrência, vários
profissionais da saúde mental abordam que há uma banalização dos transtornos
parafílicos em face da realidade tecnoscópica. A disseminação das parafilias na
sociedade, que são publicizadas e incentivadas pela mídia consumista e capitalista
dominante, “nubla” situações e comportamentos que poderiam ser diagnosticados
como transtornos em si. Segundo esta lógica, evidencia-se a existência de pessoas
que, de fato, apresentam prejuízos sociais por conta de um voyeurismo crônico. No

21 XXX é uma terminologia utilizada para nomear sites pornográficos da internet, criada em referência
fonética à palavra sex e também à classificação etária norte-americana X-Rated, utilizada para
produtos destinados à maiores de 18 anos.

22 Este site precursor no âmbito do exibicionismo on-line será analisado no segundo capítulo desta
tese.
73

entanto, por estas acreditarem que estão inseridas em um tipo de comportamento


comum global (uma tendência e um modismo), elas negam ou mesmo desconhecem
as consequências de um transtorno parafílico para suas vidas, pois acreditam estar
dentro da normalidade.
Diante disso, é necessário refletir: Em face dos aspectos discutidos, não é
certo que uma dependência tecnoscópica esteja se perpetuando progressivamente e
chegando a um estado quase crônico? As pessoas têm ficado mais tempo diante
das telas de seus smartphones e computadores, substituindo cada vez mais as
relações físicas pelas virtuais. Estariam todos caminhando rumo a um transtorno
parafílico instaurado globalmente? Essas perguntas irão ficar para a reflexão do
leitor e serão acrescidas de mais indagações no decorrer desta tese.

1.3 Voyeurismo e a onipresença das imagens maquínicas

Características de um suposto voyeurismo são encontradas em diversos


momentos da história humana, principalmente na produção imagética e artística
realizada através das épocas. Como já abordado, o voyeurismo é inerente à
condição humana e, salvo o caráter parafílico crônico moderno, ele sempre foi um
elemento-chave no âmbito da relação sexual. Por isso, exemplos de voyeurismos na
cultura são encontrados desde a pré-história, o que torna esse conceito rico o
suficiente para que sejam realizados vários estudos a partir dele.
Para não correr o risco de saturar esta tese com um levantamento histórico
detalhado e aprofundado, dado que são mais de 30 mil anos de história de imagens
voyeuristas, a metodologia de análise a ser adotada dividirá este subcapítulo em
dois itens. Ambos trarão um levantamento sucinto de importantes obras artísticas
visuais e de algumas imagens e produtos culturais diversos à arte visual (belas
artes) e que se inserem no âmbito das artes aplicadas e da indústria cultural:
publicidade, TV, cinema comercial, design gráfico, entre outros. É claro que o foco
principal se voltará às poéticas artísticas visuais, objeto de pesquisa desta tese, mas
se considera imprescindível retomar outros produtos imagéticos culturais que
ajudarão no entendimento do estado de coisas investigado.
O primeiro subitem tratará de alguns antecedentes voyeuristas significativos
na história da arte e da cultura mundial. Serão analisadas, sucintamente, imagens
74

que dialogaram com o voyeurismo e que são referências históricas. No segundo


subitem serão estudadas obras contemporâneas que se inserem no objeto de
pesquisa da tese de fato: a tecnoscopia. Ademais, elencar-se-ão produções que
aludem ao exibicionismo e à vigilância contemporâneos e/ou que partam de um tipo
de voyeurismo interativo (“transformado” e “distorcido”) mediado pela técnica. Vale
lembrar que técnica e arte, nesta investigação, serão sempre tidas como faces de
uma realidade na qual as máquinas, os homens e seus produtos culturais atuam
conjuntamente e diante de um mesmo estado de coisas – a partir da própria
discussão etimológica da palavra tecnoscopia, em que tékhne se refere, ao mesmo
tempo, à técnica e à arte.
Para isso, será utilizada aqui e nos demais capítulos a expressão “imagens
maquínicas”, para nomear as obras e produções visuais nas quais as imagens são
realizadas e/ou apresentadas por meio de uma máquina: fotografia, cinema, TV,
vídeo e arte computacional. A preferência por usar esse termo em detrimento de
vocábulos comuns, tais como “imagens técnicas” ou “imagens tecnológicas”, se
deve ao fato de se considerar que a arte sempre se nutriu da técnica e da tecnologia
para ser feita, desde os primórdios da humanidade. Em alguns períodos exemplares,
como no Renascimento e no Barroco, a técnica e os meios tecnológicos da época
foram determinantes para a elaboração de obras conhecidas hoje pelo alto grau de
perfeição formal. Com isso, boa parte das imagens aqui citadas foram constituídas a
partir de máquinas que são fundamentais conceitualmente para a própria poética
artística – e não, apenas, do ponto de vista técnico.
Como ferramenta de produção artística, a máquina agrega sentidos e
potencialidades diferentes de outras tecnologias ao longo da história. Um
interessante exemplo contemporâneo neste aspecto é a linguagem do video e da da
chamada videoarte. Mello (2008, p. 115) cita em especial os processos tidos como
desconstrutivos no âmbito do vídeo contemporâneo, que são possíveis apenas pelo
uso de máquinas em específico – câmera eletrônica e computadores, em que

[...] há uma intenção consciente de desmontar a linguagem


videográfica, desmontar um tipo de contexto midiático ou uma
imagem. Relaciona-se a um momento de saturação dos meios
tradicionais da produção da imagem e som, criando interferências
intencionais no seu campo de circulação. Com essas interferências,
as práticas artísticas como o vídeo, em um primeiro momento,
negam o seu caráter preexistente de linguagem, para logo em
seguida afirmá-lo sobre novas circunstâncias criativas. Tais
75

processos desestabilizam as formas convencionais de produção do


signo eletrônico e transitam em torno do deslocamento poético dos
sentidos. Essa ruptura reflete o modo como os artistas se apropriam
dos dispositivos maquínicos do vídeo e promovem novos sentidos
para a imagética contemporânea.

Para Machado (2007), os aspectos desconstrutivos do vídeo são subversivos,


à medida que os artistas produzem obras confeccionadas a partir do afastamento do
uso da ferramenta maquínica da real função do aparelho e para a qual ele foi
originalmente projetado, imprimindo às máquinas e programas uma completa
reinvenção dos meios. Segundo esse autor, as máquinas geralmente não são
projetadas para a produção de arte e, na maioria das vezes, são concebidas em um
princípio de produtividade (capitalista). Ou seja, o artista não apenas lança mão dos
meios tecnológicos de sua época, como também subverte suas funções, usando-os
em fins que talvez não foram sequer vislumbrados pelos técnicos que os projetaram:

[...] o que faz um verdadeiro criador é justamente subverter a função


da máquina, manejá-la no sentido contrário de sua produtividade
programada. Talvez até possamos concluir que um dos papéis mais
importantes do vídeo alternativo seja justamente a recusa sistemática
de submeter-se à lógica do instrumento, ou de cumprir o projeto
industrial das máquinas de enunciação, reinventando, em
contrapartida, a sua função e suas finalidades. As obras
verdadeiramente fundantes e verdadeiramente independentes, em
vez de simplesmente se subordinarem às “possibilidades”
significantes de determinado meio, redefinem inteiramente a nossa
maneira de produzir e de nos relacionarmos com esse meio. Longe
de se deixar escravizar por uma norma, por um modo padronizado
de se comunicar, por uma “linguagem” no sentido restritivo do termo,
cada obra, na verdade, reinventa a maneira de se apropriar de uma
tecnologia enunciadora como o vídeo. Nesse sentido, as
“possibilidades” dessa tecnologia estão em permanente mutação e
crescem na mesma proporção de seu repertório de obras
(MACHADO, 2008, p. 200).

É importante informar que a maioria das obras elencadas a seguir trarão


questões relativas ao tripé tecnoscópico em si, contemplando os eixos voyeurista,
exibicionista e vigilante do tripe. No entanto, serão analisadas obras em que o
voyeurismo, foco deste capítulo, é o mais evidente entre os três conceitos. Essa
abordagem metodológica também se realizará nos capítulos sobre as produções
visuais no âmbito do exibicionismo e da vigilância.
A seleção das obras a seguir, como todas as demais durante a tese, ocorreu
por conta da importância delas no âmbito cultural. Após uma investigação
76

aprofundada, o critério de seleção diz respeito a retomar aquelas mais conceituadas


em um escopo mais amplo e as que se mostraram poeticamente eficazes, no que
tange ao tratamento crítico do assunto em questão.
Foram elaborados alguns requisitos necessários para a escolha dessas
obras. São quesitos do primeiro subitem: 1. Obras significativas no âmbito da
história da arte mundial que tenham relação direta com o voyeurismo “tradicional”; 2.
Obras significativas no âmbito da história da arte mundial que se relacionam ao
voyeurismo “tradicional”, mas que comunguem com questões do voyeurismo
tecnoscópico contemporâneo. Já para o segundo subitem, foram elencados os
quesitos: 1. Obras artísticas visuais contemporâneas significativas que tragam a
relação homem/máquina/voyeurismo; 2. Obras artísticas visuais contemporâneas
significativas que se inserem no âmbito da tecnoscopia (voyeurismo, exibicionismo e
vigilância), nas quais o voyeurismo seja uma característica poética com maior
evidência; 3. Produtos culturais das artes aplicadas e da indústria cultural que sejam
indissociáveis ao voyeurismo tecnoscópico.
A didática metodológica desta tese preferiu dividir este e os demais capítulos
em itens tricotômicos: dois subcapítulos que trarão questões teóricas e discussões
críticas sobre um item em específico da tecnoscopia; e um subcapítulo que se
apropriará do levantamento teórico anterior, para mostrar a culminância da
discussão em poéticas visuais e alguns produtos culturais. Acredita-se que, assim, o
leitor poderá compreender melhor a investigação teórico-poética proposta. Em
decorrência, as produções artístico-culturais deste capítulo não trarão análises muito
aprofundadas. Isso se deve à escolha do método de escrita desta tese, que preferiu
definir o eixo conceitual em um primeiro momento e, concomitantemente, fazer todas
as discussões necessárias nos dois primeiros itens do capítulo. Dessa forma, a
terceira seção discorrerá sobre obras e produtos que se valem da discussão já
realizada, para que o leitor, de posse do conhecimento anterior, compreenda as
obras à medida que faz as devidas relações téorico-poéticas.
Visando um método de análise mais didático, as obras subsequentes serão
relacionadas de acordo com suas similaridades poéticas e estéticas e, por conta
disso, elas não serão apresentadas de maneira cronológica. Para concluir, esta
seção introduzirá diversas linguagens artísticas e seus meios. Por isso, discorrer-se-
á sobre aspectos históricos, estéticos e conceituais das linguagens e dos meios de
77

maneira mais aprofundada, para que o leitor os conheça. Essa discussão


introdutória e a apresentação destes itens não ocorrerá nos próximos capítulos da
tese, pois essas questões serão postas aqui. Salvo isso, os demais modelos
metodológico descritos serão utilizados como parâmetros durante os demais
capítulos da tese.

1.3.1 Antecedentes voyeuristas

A imagem da Vênus (Figura 4), deusa do amor, da beleza e da fertilidade,


versão romana da deusa grega Afrodite, é exemplar na história da arte e foi
retratada em uma diversidade de obras que se referem à exaltação da beleza e da
sexualidade feminina. Por conta disso, elas proporcionam um olhar voyeurista em
grande parte dos casos, pois, em sua maioria, as imagens (esculturas e pinturas,
principalmente) apresentam o corpo feminino com extrema sensualidade, cobrindo
algumas partes erógenas enquanto deixavam outras à vista – quando a nudez não
era total.

!
Figura 4. “Vênus de Milo”, autor desconhecido. Escultura em mármore. Supostamente entre 395 a
330 a.C. Fonte: <https://www.atlasobscura.com/articles/100-years-ago-american-women-competed-in-
serious-venus-de-milo-lookalike-contests>. Acesso em: 02/02/2018.
78

Nas sociedades greco-romanas da antiguidade 23, a escolha pela nudez se


devia à exaltação do corpo humano segundo um ideal antropocentrista. Os véus e
as roupas que cobriam poucas partes dos corpos despertavam uma curiosidade
sexual e um desejo escópico naqueles que as observavam. A figura da deusa Vênus
influenciou diversas obras no decorrer da história, que possuem certa relação com o
voyeurismo. Como exemplo disso, há as famosas pinturas nomeadas como “O
Nascimento de Vênus”, elaboradas em diferentes períodos históricos e por diversos
artistas, tais como Sandro Botticelli (1445-1510), Alexandre Cabanel (1823-1889) e
William-Adolphe Bouguereau (1825-1905). Estas, por sua vez, inspiraram outras
famosas e polêmicas obras, como “A Grande Odalisca”, de Jean-Auguste Dominique
Ingres (1780-1867); e “Olympia” e “Almoço na Relva”, de Édouard Manet
(1832-1883). A polêmica dessas últimas se deve ao fato delas retratarem prostitutas
nuas nas pinturas, o que causou muito desconforto pelo enfrentamento de questões
morais convencionadas pela sociedade burguesa do século XIX.
Outra significativa pintura que remete a um voyeurismo/exibicionismo em
referência à deusa romana é a “Vênus ao Espelho” (Figura 5), de 1647 e de autoria
do espanhol Diego Velázquez (1599-1660). Nela, a deusa deitada na cama observa
a si mesmo nua através de um espelho segurado pelo deus Cupido24, que olha
diretamente para o dispositivo, e não para a figura feminina ao seu lado. Nesse
caso, o voyeurismo se estabelece na forma e no conteúdo da representação,
principalmente pela utilização de um dispositivo mediador, o espelho, repleto de
simbolismos relacionados ao “ver” e ao “ser visto”. O olhar da Vênus, através do
reflexo no espelho, é direcionado ao observador, momento em que se sugere o
descobrimento do voyeur, antes oculto, ao observar a mulher nua deitada de costas;
e/ou um convite para o observador ingressar na relação erótica e exibicionista
mediada pelo espelho e por Cupido, o deus filho de Vênus e o referente romano a
Eros, deus grego. De acordo com a Folha de São Paulo (2007, p. 78-79), com essa
Vênus:

23 Surgidas aproximadamente em 1.200 a.C.

24 O uso do deus Cupido ao lado da mulher deitada aproxima essa obra à escultura já citada nesta
tese “O êxtase de Santa Teresa”, realizada em 1647 por Gian Lorenzo Bernini, artista contemporâneo
de Velázquez. O que leva à reflexão sobre a possível inspiração na deusa Vênus para representar a
imagem da santa na escultura.
79

[...] o artista volta a demonstrar sua capacidade para transcender seu


tempo e renovar as técnicas da pintura e o modo de compreender
seus temas. Basta observar o corpo da jovem para notar que, em
relação aos mutantes cânones da beleza feminina, Velázquez vai ao
encontro dos ideais contemporâneos e se afasta da longilínea e
quase esquelética “Vênus”, de Lucas Cranach, bem como da robusta
“Vênus em frente ao espelho” de Rubens. De modo geral, isso ocorre
porque ao escolher o biotipo da mulher que lhe serviu de modelo,
Velázquez foi fiel a sua concepção de humanizar os temas
mitológicos e seus personagens, como fez em “A forja de Vulcano” e
“As fiandeiras”.

!
Figura 5. “Vênus ao Espelho”, de Diego Velázquez. Pintura à óleo sobre tela. 1647. Fonte: <https://
cocanha.wordpress.com/category/maldades-do-hogarth>. Acesso em: 28/02/2017.

A humanização realística da deusa mitológica faz dessa obra uma das mais
importantes no âmbito da análise dos antecedentes voyeuristas na arte, justamente
pelo seu pioneirismo ao mostrar uma beleza feminina “real” e “banal”, em detrimento
da comum idealização da figura da mulher, sobretudo nas obras que remetem à
deusa Vênus. Assim, essa pintura possui maior relação com o cotidiano e menor
com os grandes temas sacros, mitológicos e bélicos. É interessante dizer que,
devido ao forte simbolismo erótico (entre outras questões), a obra de Velázquez foi
atacada em 1914 por uma militante sufragista e feminista britânica, Mary
Richardson, que causou sérios danos à pintura.
80

Na contemporaneidade, a figura da Vênus ainda mantém forte simbolismo e é


retomada em várias poéticas visuais. Uma delas – “Webcam Venus”25 (Figura 6) –
traz uma interessante relação com a tecnoscopia aqui proposta. De autoria dos
artistas americanos Pablo Garcia (1975-) e Addie Wagenknecht (1981-), a obra de
2013 apresenta várias imagens apropriadas de autorretratos fotográficos e
videográficos sensuais (nude selfies26) contemporâneos que se relacionam
formalmente com famosas pinturas da história da arte, sobretudo renascentistas. A
figura da Vênus é, mais uma vez, retomada nessa poética, pois a maioria das
imagens se refere a pinturas que retrataram a deusa ou que nela se inspiraram. Os
artistas lançam mão de efeitos de desfoque em algumas das imagens, efeitos
comumente usados para cobrir os órgãos sexuais de nus, com o objetivo de
censura. Com isso, são propostas polêmicas indagações: Em qual medida uma
imagem pode ser considerada artística ou pornográfica? Qual a diferença entre os
ideais de beleza e as questões estéticas nas imagens antes produzidas na história
da arte e aquelas hoje disseminadas via web? Seriam as nude performances
contemporâneas as novas vênus, símbolos da beleza e da fertilidade atuais? Nas
palavras de Garcia (2017b, n.p.):

If asked if there is a difference between the Renaissance painting The


Birth of Venus (1486) and a Playboy centerfold, most might say it’s no
contest: one is art and the other pornography. One is of human
ideals, the other smut. Are Botticelli and Hugh Hefner really that
different? Both project fantasy and erotic imagery through the media
of their day. Both are vehicles of gender politics, defining standards of
beauty and sexuality. What if adult performers-already mediated sex
objects-struck “classic” poses? In “Webcam Venus”, we asked online
sexcam performers to replicate iconic works of art. This piece is an
experimental homage to both fine art and the lowbrow internet
phenomenon of cams. Sexcams use webcams and chat interfaces to
connect amateur adult performers with an audience. Users log on to
see men, women, transsexuals, couples and groups broadcast their
bodies and sexuality live for the public, often performing for money.
To create this experiment in high and low brow media, we assumed
anonymous handles and spent a few hours each day for a month
asking performers: “Would you like to pose for me?”.

25Um vídeo contendo as imagens compiladas da obra “Webcam Venus“ pode ser assistido no link
<https://www.vimeo.com/60994603>.
26 Os nude selfies e os demais autorretratos sensuais contemporâneos serão analisados no Capítulo
2 desta tese.
81

!
Figura 6. “Webcam Venus”, de Pablo Garcia e Addie Wagenknecht. Vídeo digital. 2013. Fonte: <http://
www.pablogarcia.org/webcamvenus/kimisquirtx-as-Venus-of-Urbino-1538.jpg>. Acesso em:
08/04/2017.

Existem diversos outros exemplos de obras realizadas em linguagens


artísticas “tradicionais” (pintura, escultura etc.) que também remetem diretamente ao
voyeurismo sexual. Ainda que o foco da análise desta tese concerne às imagens
produzidas por “máquinas” (fotográfica, cinematográfica, videográfica e
computacional), é interessante conhecer algumas produções modernas e
contemporâneas pictóricas e escultóricas que são referências nesse contexto.
O pintor americano Eric Fischl (1948-) é exemplar na representação de cenas
que trazem uma alta carga erótica e, em sua maioria, um evidente contexto
voyeurista – que leva, em consequência, o observador a ocupar a posição de um
voyeur diante de suas pinturas. Nessa diversidade se destaca a obra “Bad Boy” (“O
Menino Mau”), de 1981, um de seus trabalhos mais reconhecidos, em que um
menino se encontra em frente à figura de uma mulher nua que, deitada na cama,
abre as pernas evidenciando sua vagina e, assim, desperta o desejo escópico
sexual do garoto que observa (Figura 7). Ao lado dele, uma natureza-morta
composta por bananas e maçãs completa a composição simbólica, remetendo à
sexualidade e ao pecado original; ao passo que uma bela iluminação “recortada”
perpassa as venezianas do quarto e oferece certa característica fotográfica à
imagem – dada a fidelidade indicial com o mundo “real”. O tema da sexualidade
adolescente é também recorrente em sua produção, com destaque para a pintura
“Sleepwalker” (“Sonâmbulo”), de 1979, em que um adolescente se masturba ao ar
livre, de pé, em cima de uma piscina infantil.
82

!
Figura 7. “Bad Boy”, de Eric Fischl. Pintura à óleo sobre tela. 1981. Fonte: <https://br.pinterest.com/
pin/738308932631660588/>. Acesso em: 13/04/2017.

Por sua vez, o artista brasileiro Fábio Baroli (1981-) também possui uma
proposta poética em seus trabalhos pictóricos que se relacionam a Eric Fischl, ao
remeter ao voyeurismo e à sexualidade adolescente em variadas produções. No
entanto, nem todas as obras voyeuristas desse artista trazem como temática
unicamente a sexualidade, uma vez que partem de um “olhar” sobre a banalidade
cotidiana que representa tanto uma eroticidade quanto as atividades corriqueiras, a
partir de um viés transgressor. Ao se valer de cores supersaturadas na maioria das
pinturas, Fábio trabalha com um tipo de impressionismo contemporâneo ao produzir
imagens naturalistas que, à distância, também são fiéis às imagens do mundo, mas,
quando vistas de perto, evidenciam fortes pinceladas texturizadas. A pintura “Sujeito
da Transgressão #2” (Figura 8), de 2011, é interessante no âmbito voyeurista, ao
representar um garoto adolescente se masturbando enquanto observa outro jovem
dormindo ao seu lado. Para vários de seus trabalhos, Baroli utilizou fotografias
apropriadas da internet ou realizadas por ele ou outrem – muitas delas trazem
motivos voyeurísticos.
83

!
Figura 8. “Sujeito da Transgressão #2”, de Fábio Baroli. Pintura à óleo sobre tela. 2011. Fonte: <http://
itsvvhatever.tumblr.com/post/110755255482>. Acesso em: 13/04/2017.

No entanto, dentre as obras conceituadas no âmbito do voyeurismo, é sempre


referência a importante produção objetual de Marcel Duchamp (1887-1968), “Étant
Donnés” (Figura 9), elaborada em 1946. Nela, o observador deve olhar através dos
orifícios de uma porta de madeira para que veja, por detrás da porta, uma mulher
nua deitada em meio a uma paisagem. A figura da mulher, a paisagem e os demais
objetos de cena foram configurados de maneira a criar uma ilusão tridimensional na
observação, a partir de uma disposição em perspectiva dos itens. De fato, a obra
não exibe apenas uma cena que remete a um voyeurismo, como as demais aqui
descritas, como também utiliza o elemento da porta e suas frestas para convidar o
observador a participar de uma experiência voyeurista individual e íntima. Apenas
um observador, de cada vez, pode ver a cena erótica quase totalmente velada pela
porta, podendo escolher o ângulo ideal para isso.
84

!
Figura 9. “Étant Donnés”, de Marcel Duchamp. Instalação. 1946 . Fonte: <http://
aimagemcomunica.blogspot.com.br/2011/11/marcel-duchamp.html>. Acesso em: 28/02/2017.

À parte de um voyeurismo estritamente sexual, o pintor americano Edward


Hopper (1882-1967) produziu obras inerentemente voyeuristas na primeira metade
do século XX. Ele representou cenas cotidianas e intimistas quase
“cinematográficas”, a partir de planos abertos que exibiam, em grande parte, cenas
de interiores vistas à distância, nas quais personagens solitários habitam espaços
vazios. Um olhar voyeurista se instaura a partir do momento em que o observador é
convidado a ser espectador anônimo da melancólica e íntima solidão dos retratados.
Juntamente a isso, é comum em suas obras o uso de grandes janelas como
elemento simbólico voyeurista e cênico, pois, em vários casos, as pessoas
retratadas olham através delas, como na pintura “Morning Sun” (“Sol da Manhã”), de
1954 (Figura 10). Em 2015 foi produzido o filme “Shirley – Visions of Reality”, do
diretor austríaco Gustav Deutsch (1952-), com base em 13 obras de Hopper. O
longa-metragem conta a história americana do século XX sob a ótica da
personagem Shirley, mulher retratada em “Morning Sun”.
85

!
Figura 10. “Morning Sun”, de Edward Hopper. Pintura à óleo sobre tela. 1954. Fonte: <http://
www.artchive.com/artchive/h/hopper/morn_sun.jpg.html>. Acesso em: 13/04/2017.

No entanto, um tipo de olhar voyeurista sobre a banalidade do cotidiano já


fora realizado com maestria há quase quatro séculos pelo artista do barroco
holandês Johannes Vermeer (1632-1675), que inovou a linguagem pictórica ao
apresentar cenas banais do dia a dia de pessoas comuns. Em sua maioria,
tratavam-se de cenas domésticas e de interiores, imersas em uma atmosfera
luminosa natural. Obras como “A Leiteira” (Figura 11), “Moça com Pichel de Água”,
“Mulher de Azul Lendo uma Carta”, “Mulher Segurando uma Balança”, “A Rendeira”,
entre outras, representam indivíduos comuns em suas atividades corriqueiras,
diferentemente da maioria das pinturas da época, que enfocavam grandes temas
sacros, mitológicos ou bélicos. O artista se porta como um tipo de voyeur que
captura a intimidade de pessoas comuns e transporta a banalidade do cotidiano para
o terreno das artes visuais. Ao observá-las, o olhar transcende a simples
contemplação estética e admira a intimidade alheia com atenção e curiosidade –
esse olhar voyeurista evidencia uma característica indicial e quase fotográfica nas
produções de Vermeer. O uso da palavra fotográfico não é em vão neste caso, pois
86

Vermeer foi um dos pioneiros na utilização da câmara escura27. A pintura elaborada


a partir das imagens captadas e projetadas por lentes e espelhos desse dispositivo
permitiu que Vermeer retratasse suas cenas de maneira vívida e realística.

!
Figura 11. “A Leiteira”, de Johannes Vermeer. Pintura à óleo sobre tela. 1658-1660. Fonte: <http://
noticias.universia.com.br/tempo-livre/noticia/2012/03/28/920363/conheca-leiteira-johannes-
vermeer.html>. Acesso em 20/10/2015.

A série fotográfica “The Neighbours” (Figura 12), produzida pelo fotógrafo


americano Arne Svenson (1952-) em 2012, traz grandes relações com a
representação da banalidade do cotidiano mostrada nas obras de Vermeer. Nessa
série o artista captou, ao longo de 18 meses, imagens das janelas de um prédio
vizinho ao que ele residia, no bairro de Tribeca, em Nova Iorque. Essas fotografias
apresentam cenas banais da vida cotidiana das pessoas que ali habitam e, quando
expostas lado a lado na galeria de arte, elas “[...] se comportam como stills de um
filme da vida real” (NORBIATO; ALZUGARAY, 2014, p. 52), trazendo uma atmosfera

27A câmara escura é um equipamento formado por uma caixa (ou uma sala) com paredes opacas,
que traz em uma das faces um pequeno orifício que permite a entrada de uma faixa luminosa vinda
do exterior. Ao posicionar um objeto de frente ao orifício, nota-se que a imagem refletida e invertida
aparece na face oposta da caixa ou da sala.
87

luminosa que remete às pinturas do Barroco – pois a bela composição dos quadros
e sua iluminação chiaroescura denotam certa mise-en-scène. Tais fotografias foram
realizadas sem o consentimento e o conhecimento dos retratados, o que demonstra
a capacidade do autor em recortar esteticamente a “realidade” e transpô-la para a
arte. Pela maneira que foi captado este trabalho, o artista respondeu a um
processado de invasão de privacidade. “Ao ser entrevistado sobre a decisão da
Suprema Corte de Nova Iorque a seu favor em um processo movido pelos vizinhos
fotografados sem consentimento, Svenson declarou: ‘Eu raramente, senão nunca,
fecho minhas cortinas’” (ibidem).

!
Figura 12. “The Neighbours”, de Arne Svenson. Fotografia. 2012. Fonte: <http://www.artcritical.com/
2013/07/09/arne-svenson/>. Acesso em 13/04/2017.

Nesse entremeio, a comparação entre Svenson e Vermeer mostra uma


recíproca relação existente entre pintura e fotografia: Vermeer se valeu da câmara
escura (o princípio da captação fotográfica) para a realização das suas pinturas,
enquanto Svenson se apropria de elementos estéticos da pintura barroca em sua
obra fotográfica. Ademais, ambas trazem relações intrínsecas com o voyeurismo.
88

Como dito, o aparato técnico da câmara escura utilizado por Vermeer e outros
artistas ao longo dos séculos passados, principalmente desde Leonardo da Vinci
(1452-1519), viria a deflagrar no século XIX a invenção da máquina fotográfica. Esta,
por sua vez, inaugurou uma era de imagens maquínicas, dando o primeiro passo
rumo à tecnoscopia contemporânea. Por esse motivo, as produções que se
apropriam da fotografia, salvo a última aqui citada, e das linguagens e técnicas que
decorreram da invenção fotográfica serão analisadas no item a seguir.

1.3.2 Produções voyeuristas tecnoscópicas

A tecnoscopia na arte pressupõe que a imagem tecnoscópica observada


traga elementos voyeuristas, exibicionistas e vigilantes que são vistos por meio de
uma ferramenta tecnológica, mais precisamente uma máquina – e, sem esta
máquina, a tecnoscopia não se faz. No contexto artístico tecnoscópico, a máquina é
importante para praticamente todas as etapas do processo artístico, sendo utilizada
no âmbito da produção, da exibição, da divulgação e da disseminação do produto e,
em muitos casos, dos esboços e estudos iniciais.
De fato, hoje a máquina é um elemento que perpassa quase todas as etapas
da produção imagética, mesmo naquelas não artísticas de per si, como as imagens
amadoras, da publicidade, da TV, entre outros. A fotografia (um dos principais meios
utilizados neste âmbito) é um bom exemplo da mudança dos tempos em referência
aos suportes e meios. Ela, por muito tempo, não foi dependente da máquina para
sua exibição, visto seu suporte era o papel. Já nos dias atuais, a fotografia tem as
telas como suporte mais usado na exibição, haja vista as várias fotos “postadas” e
visualizadas diariamente na internet.
A partir dessa lógica, é importante frisar, mais uma vez, que a presente
pesquisa toma a liberdade de elencar e analisar algumas “imagens maquínicas” que
não são artísticas a priori e fazem parte de um escopo imagético da cultura
capitalista global. Acredita-se que isso é extremamente necessário, inclusive para o
entendimento da tecnoscopia poética (artística de per si), pois grande parte das
propostas estético-crítico-reflexivas (poéticas) dos artistas se voltam para a
compreensão da cultura visual contemporânea que, em suma, é tecnoscópica.
89

Na contemporaneidade, as relações entre arte e vida, artista e público,


produtos poéticos e cotidiano capitalista estão muito mais atreladas e indissociáveis
do que em qualquer época da história. Mesmo quando uma obra é vista no interior
“sacralizado” de uma galeria de arte, o mundo não se desliga do “sagrado”, e o
ambiente poético da galeria ou do museu (“cubo branco”, na concepção de
O’Doherty) é constantemente contaminado pela vida externa e comum. Isso
evidencia ainda mais a invasão tecnoscópica ao mundo da arte, dado que as
imagens antes idealizadas e sublimadas parecem agora se preocupar com a
banalidade da vida e entregar uma experiência voyeurista ao observador/
es(x)pectador. O’Doherty (2002, p. 90), sobre essa questão, comenta que

[...] artista e público estão, por assim dizer, invisivelmente estatelados


em duas dimensões num território branco. A criação do cubo branco
impoluto, ubíquo, é um dos êxitos do modernismo – criação
comercial estética e tecnológica. Num striptease insólito, a arte lá
dentro se desnuda cada vez mais, até apresentar produtos finais
formais e porções da realidade externa – tornando o recinto da
galeria uma “colagem”. O conteúdo da parede torna-se mais e mais
rico (talvez um colecionador devesse comprar uma galeria “vazia”). A
marca da arte provinciana é ter de abranger muita coisa – o contexto
não substitui o que ficou de fora; não existe um universo de
suposições compreendidas mutuamente.

Outra característica de um certo voyeurismo se evidencia nessa passagem de


O’Doherty (2002), quando o autor pontua que o “desnudamento” (striptease) da arte
para se expor aos olhos comuns e revelar a própria realidade. Ele afirma que o
espectador contemporâneo da arte (também chamado de percebedor ou mais
comumente de observador) é um sujeito diferenciado dos seus antepassados, pois,
agora, parece se portar de maneira diversa ao seu próprio “olho”: “[...] o Olho pode
ser dirigido, mas com menos certeza do que o Espectador, que, ao contrário do
Olho, tem uma ânsia de satisfazer muito maior” (idem, p. 40).
Enquanto o olho observa e analisa, o espectador tem a expectativa de se
satisfazer. Nesse momento, “[...] quando nos tornamos conscientes de estar olhando
para uma obra de arte (olhando para nós mesmos olhando), qualquer certeza sobre
o que estava ‘lá’ é destruída pelas incertezas do processo de
percepção” (O’DOHERTY, 2002, p. 66). No processo do que olhar, como olhar e o
que esse olhar diz a quem olha, a poética artística se comunica com o
es(x)pectador. É preciso se relacionar com a obra para entendê-la, e como a obra
90

trata do próprio mundo nos dias atuais, é preciso entender o mundo para se
relacionar com a obra. Pareyson (2001, p. 108) aborda que:

[...] de fato, não se tem acesso à obra de arte senão pessoalmente,


no sentido de que a obra de arte exige interpretação, isto é, suscita,
por si mesma, uma leitura multíplice, ou melhor, infinita, como
infinitas e sempre diversas são as pessoas dos intérpretes e dos
leitores.

À parte das poéticas artísticas, as imagens da cultura visual que


“bombardeiam” a paisagem urbana se relacionam e dizem muito sobre a
tecnoscopia contemporânea. Santaella (2005) trata de uma convergência entre as
artes e os processos de comunicação nas últimas décadas, o que dificulta a
categorização de produtos enquanto artísticos ou simplesmente midiáticos, visto que
os artistas sempre se valem do que têm à disposição. Por isso, os meios de
comunicação e as mídias em geral (as extensões do homem, na abordagem de
McLuhan (1974)) são um rico campo de atuação para os artistas e vice-versa, em
processos de trocas ininterruptas.

Ao fazerem uso das novas tecnologias midiáticas, os artistas


expandiram o campo das artes para as interfaces como o desenho
industrial, a publicidade, o cinema, a televisão, a moda, as
subculturas jovens, o vídeo, a computação gráfica, etc. De outro
lado, para a sua própria divulgação, a arte passou a necessitar de
materiais publicitários, reproduções coloridas, catálogos, críticas
jornalísticas, fotográficas e filmes de artistas, entrevistas com ele(a)s,
programas de rádio e televisão sobre ele(a)s (SANTAELLA, 2005, p.
14).

Então, a arte faz parte de um ambiente cultural midiático, em que se torna


árdua a tarefa de tentar distinguir até onde um produto é arte ou é “apenas”
comunicação. Coelho (2008, p. 239) retoma a fala de um personagem de um filme
de Godard ao dizer que “[...] cultura é a regra; a arte, a exceção”. A arte
historicamente se apresenta como uma violadora das regras impostas e um
elemento transgressor na cultura:

A arte é vizinha da cultura, mas as aproximações entre uma e outra


acabam na zona movediça que de algum modo delimita os territórios
de uma e outra. As diferenças entre cultura e arte são hoje mais
significativas que suas semelhanças – e agora é possível dizê-lo
porque o espírito do tempo, que não existe mas está sempre aí,
permite e convoca a busca das diferenças muito mais que a das
91

proximidades e das fusões, essa operação típica da modernidade em


todas suas dimensões, da política à filosófica, geradora de tantos
equívocos e angústias. Mas, localizar as diferenças quando se está
acostumado e acomodado na ideia de que a tônica é sempre dada
pelas identidades, pelas igualdades, pela condição de tudo ser igual
a tudo, é tarefa árdua. A noção mesma de uma inequação entre
cultura e arte parece um paradoxo. É adequado que assim seja: o
paradoxo é próprio da contemporaneidade. Então, em quê,
exatamente, a arte se distingue da cultura, contraria o desenho
cultural?

Nesses paradoxos, encontros e desencontros nos limites (ou na falta deles)


entre arte, cultura, comunicação, design, entretenimento, amadorismo, publicidade
etc., se situam as produções dos itens a posteriori. É claro que, devido ao foco de
análise desta tese, priorizar-se-ão as obras poéticas em artes visuais, mas até elas
são contaminadas pelas áreas descritas quando não se valem e se apropriam delas
de fato. Hoje, a arte não se orienta pelo ”ou” (categoria), mas pelo “e” (miscigenação
deliberada); ela é comórbida, assim como a própria tecnoscopia.

1.3.2.1 Fotografia

A máquina fotográfica se mostrou, desde seus primórdios, como uma


ferramenta técnica interessante para a captação e a exibição da intimidade. Por
esse motivo, a presente investigação partirá dela para tratar do proposto voyeurismo
tecnoscópico. Como já abordado, as próximas obras e demais produtos aqui
elencados se valem de imagens maquínicas, ou seja, da utilização de ferramentas
de captação de imagem decorrentes da fotografia: cinema, TV, vídeo e arte
computacional. No entanto, nem todas se dão no âmbito do voyeurismo interativo
antes descrito, pois, para isso, são necessárias ferramentas informáticas digitais.
Elas trazem questões que ultrapassam as obras tratadas anteriormente, visto que,
além de se valerem de ferramentas técnicas (máquinas), se referem à parte ou ao
todo triângulo tecnoscópico – voyeurismo, exibicionismo e vigilância – mesmo que,
nelas, o voyeurismo seja o principal mote.
Sem dúvida, nos dias atuais, a fotografia tem grande importância no âmbito
da tecnoscopia. As incontáveis fotografias espalhadas pela internet exibem a
intimidade de pessoas de diversas partes do planeta e se constituem como elemento
fundamental na instauração de um regime escópico. Nas atuais redes sociais, por
92

exemplo, os usuários exibem fotografias, de forma consentida ou não, do cotidiano


deles para nutrirem a pulsão escópica de pessoas no mundo todo. Esses
observadores voyeuristas podem compor a rede de amigos virtuais dos retratados
ou nem sequer conhecer as pessoas observadas.
A banalidade diária ganha contornos inimagináveis há pouco tempo atrás e se
apresenta como espetáculo na segunda metade do século XX e no início do século
XXI. Talvez esse seja o motivo pelo qual Vermeer (anteriormente tratado) não
conseguiu, em sua época, o sucesso com produções: o espaço privado no século
XVII era considerado sagrado e instransponível. Vermeer quebra essa barreira ao
sublimar o espaço privado para o campo da arte. Hoje, no extremo oposto, aquele
que não abre a porta do lar e exibe sua banalidade corre o risco de cair no limbo dos
“não populares” e conhecer uma solidão digital, tida como mais solitária do que a
real.
Benjamin (1992, p. 103) relata que, ainda em 1907, nos primeiros anos da
fotografia, Lichtwark já tinha dito que “[...] nenhuma obra de arte é contemplada tão
atentamente em nosso tempo como a imagem fotográfica de nós mesmos, de
nossos parentes próximos, de nossos seres amados”. A máquina fotográfica possui
papel imprescindível para a captação e exibição de cenas que dialogam com o
voyeurismo. Muito antes da onipresença das imagens digitais íntimas que povoam a
internet, a fotografia se mostrou, desde seu surgimento, como instrumento eficaz
para a captação do “real”, em face de sua natureza indicial. Bruno (2013, p. 111)
aduz que “[...] o caráter maquínico da fotografia conferia ainda mais veracidade à
imagem”. Com essa tecnologia, a capacidade de “imprimir o real” se torna também
acessível aos não artistas, mas levou certo tempo para a fotografia ser vista como
uma nova forma de arte, devido principalmente às suas propriedades mecânicas.
Em seu surgimento, a máquina fotográfica foi tida unicamente como um
instrumento de registro. Mesmo após ser aceita como ferramenta legítima para a
produção artística, a fotografia ocupa até os dias atuais um espaço de excelência no
âmbito das tecnologias de registro do “real”. Essa possibilidade de “fixar o real” foi,
inclusive, combatida por religiosos na invenção fotográfica. Benjamin (1992, p. 92)
conta que um jornal alemão chegou a declarar que:

[...] fixar efêmeras imagens de espelho não é só uma impossibilidade


[...] mas um projeto de sacrilégio. O homem foi feito à semelhança de
93

Deus, e a imagem de Deus não pode ser fixada por nenhum


mecanismo humano. No máximo o próprio artista divino, movido por
uma inspiração celeste, poderia atrever-se a reproduzir esses traços
ao mesmo tempo divinos e humanos, num momento de suprema
solenidade, obedecendo às diretrizes superiores de seu gênio, sem
qualquer artifício mecânico.

O debate instaurado naquela época buscava argumentos para rebaixar a


fotografia como arte, em face das artes tradicionais. A fotografia possui uma
natureza indicial que proporciona a ela a capacidade de representar o mundo de
maneira mais eficaz do que a pintura. Ela promove um “recorte” do “mundo real”,
preservando eternamente o pequeno fragmento de mundo recortado no universo
das imagens maquínicas. Esse pequeno recorte de uma cena antes em movimento
e agora estática e impressa em papel ou projetada evidencia uma postura fetichista
do observador diante do que foi captado. Os seres presentes na fotografia, outrora
participantes da cena, serão contemplados como objetos e guardados em suporte
bidimensional ou na plataforma numérica de dados binários.
Pelo fato de promover esse tipo de coisificação dos seres fotografados e
permitir que o olhar diante da imagem fotográfica seja atencioso e curioso, pode-se
determinar que a fotografia tende a alimentar uma pulsão escópica, de acordo com o
tripé antes descrito da ocorrência do voyeurismo: atenção, curiosidade e fetichismo.
Benjamin (1992, p. 94) relaciona a câmera fotográfica às pulsões psicanalíticas ao
expor que:

[...] a natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é
outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado
conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre
inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um
homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada
percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele
dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude, através dos seus
recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela o
inconsciente óptico, como só a psicanálise revela o inconsciente
pulsional.

Brea (2014, p. 7) discorre que o que Walter Benjamin tinha como


“inconsciente óptico” se referia à “[...] capacidad de la cámara, del ojo técnico, para
aprehender en su inconsciencia lo que al ojo consciente, educado en el dominio de
la representación, le resulta inaprehensible: el registro mismo de la diferencia, del
acontecimiento”. O inconsciente da máquina capta o que o olho humano
94

“consciente” não consegue captar, mas isso é, de fato, o que o olho voyeurista
gostaria de poder fazer: congelar um momento para “varrer” toda a imagem,
desvelando segredos ocultos até satisfazer sua pulsão.
Nesse sentido, Gunning (2004 apud BRUNO, 2009) relata que o uso
profissional da fotografia em seus primeiros anos, à parte das artes, se deu mais
para a captação de flagrantes sexuais e suspeitas conjugais. Freud, à época,
procedeu com uma interpretação interessante de um caso de paranoia de uma
paciente que estava convencida de estar sendo fotografada, chegando a ouvir o
clique de um obturador da câmera: “Freud atribui à alucinação de sua paciente um
deslocamento auditivo da vibração de seu clitóris excitado” (BRUNO, 2009, p. 50).
A máquina fotográfica apresenta-se como um instrumento ideal para a
realização de imagens que remetem principalmente ao voyeurismo e ao
exibicionismo, como será discorrido no próximo capítulo. Enquanto isso, as imagens
tendem a representar situações de cunho sexuais, a intimidade dos sujeitos ou
apenas as banalidades do cotidiano. A fotografia foi seguida por invenções que
potencializaram a documentação e o registro de imagens do dia a dia – cinema, TV,
vídeo e imagens digitais –, contribuindo para uma cultura visual produzida a partir da
mediação tecnológica. Hoje, a onipresença de imagens em todas as culturas ao
redor do mundo parte do legado deixado pela reprodutibilidade fotográfica.
Samuel (1994) faz outro tipo de abordagem relacionando as fotografias
antigas ao voyeurismo. Para o autor, o voyeurismo tem um papel óbvio no processo
de revelação fotográfica, por exemplo, a partir da recuperação do que até então era
secreto e da exposição de mundos privados, na curiosidade despertada ao se
revelar a imagem no papel fotográfico. O observador de uma fotografia seria o
equivalente a um bisbilhoteiro na concepção desse estudioso, pois ele fica sempre
atrás da cena de registro de pequenos ou grandes eventos, como nas fotografias da
série “Crimean War”, de 1855, produzidas por Roger Fenton (1819-1869), que
mostram oficiais e civis em momentos de lazer com feridos em suas macas e camas.
Outros exemplos deste tipo de ação bisbilhoteira se referem às fotografias de
celebridades que captam as “estrelas” em situação de lazer, ou às fotografias
documentárias em que imagens são captadas dos mais diversos e, por vezes,
desavisados sujeitos: trabalhadores descansando, um casal se acariciando na praia
e até mesmo soldados fotografados no momento da morte. Rivera (2006, p. 3), a
95

partir da concepção de Barthes sobre a indicialidade e o “efeito de real” da


linguagem fotográfica, cita que este:

[...] trata daquele ponto fugidio, de localização lábil, que nos obriga a
fechar os olhos, diante da imagem, pois ele é pontiagudo, capaz de
atingir, furar (os olhos): o punctum. Este é de localização
estritamente subjetiva, justamente porque corresponde ao ponto em
que a foto toca e põe em movimento pulsional o sujeito.

Por vezes, o amadorismo fotográfico denota um voyeurismo, pois geralmente


seus recortes e composições trazem um certo “descuido formal” que remete a uma
imagem de registro. Isso não quer dizer que todas as imagens de registro tenham
cunho voyeurista, mas o es(x)pectador-voyeurista sempre procura, com um olhar
atencioso, curioso e fetichista, elementos nas imagens que as legitimem como
“reais”, e os elementos formais que configuram aspectos de registro fazem isso
ocorrer. Nesse âmbito, pode-se elencar diversos tipos de fotografias: íntimas
conjugais, amadoras do dia a dia, de eventos sociais, realizadas por câmeras
ocultas e paparazzi, tabloides, flagrantes, desastres, grandes acontecimentos, do
jornalismo amador e investigativo, de vigilância e espionagem, entre outras.
Nesse ínterim, é interessante destacar as figuras dos paparazzi como tipos de
fotógrafos voyeuristas por natureza, independentes e que trabalham captando o dia
a dia banal de celebridades midiáticas. A maioria desses fotógrafos realiza trabalhos
sem o consentimento do retratado e se esforçam para captar cenas polêmicas ou
constrangedoras, com o objetivo de vender as imagens para revistas, sites e
programas de TVs. O termo paparazzo é inspirado no personagem Paparazzo, do
filme “La Dolce Vita”, de 1960, dirigido pelo diretor italiano Federico Fellini
(1920-1993).
O paparazzo americano Ron Galella (1931-) é um dos pioneiros da
“profissão”, que se tornou referência para uma futura geração de paparazzi que se
estende aos dias atuais. Galella atualmente se encontra numa zona conflitante de
categorização artística e estética – os museus e as galerias ainda não conseguem
definir o grau de importância de seu trabalho. Hoje, com a disseminação de poéticas
fotográficas enfocadas na banalidade cotidiana, Galella se destaca por ser um dos
primeiros a produzir imagens “não posadas” de pessoas no dia a dia, por mais que
96

fossem de celebridades (Figura 13). De acordo com Gediman (2017, p. 49), Ron
Galella:

[...] was considered a ruthlessly ambitious photojournalist and the


most notorious paparazzo of them all. Although he camera-stalked
many famous people, mainly from the entertainment industry, there
can be no doubt that Jackie was his favorite quarry. Earlier, Galella
had camera-stalked Liz Taylor, Mick Jagger, Elvis Presley, Kate Moss,
Richard Burton, who sent hired hands to steal his film, and Marlon
Brando, who knocked out five of his teeth. Whether or not he was a
voyeuristic stalker, […] Galella was indeed a stalker and also a
wonderful portrait photographer of the rich and famous who knew he
had been chasing them.

!
Figura 13. “Windblown Jackie”, de Ron Galella. Fotografia. 1971. Fonte: <https://www.artsy.net/
artwork/ron-galella-windblown-jackie-new-york>. Acesso em: 09/04/2017.

De fato, o paparazzo se porta como um tipo especial de voyeur conhecido


como stalker, palavra de origem inglesa que significa “perseguidor” e é usada para
nomear pessoas que, de maneira obsessiva, seguem outros indivíduos. Existem
casos obsessivos de voyeuristas stalkers, seja por questões psicopatológicas,
parafílicas ou profissionais, que perseguem incansavelmente suas vítimas e
interferem diretamente na vida das pessoas perseguidas. Exemplo disso é o
97

assassinato do músico John Lennon por um fã, em 1980, e a morte da Princesa


Diana, após um acidente de carro ocasionado pela perseguição de paparazzi em
1997. Na contemporaneidade, a atividade stalker é disseminada na internet e
conhecida como cyberstalking. Do mesmo modo que o “stalking físico”, o
cyberstalking pode se dar em vários âmbitos. De maneira aceitável e
exacerbadamente disseminada nos meios digitais, essa prática ocorre quando
usuários seguem outros usuários (no Facebook, Twitter, Instagram, entre outros) e
acompanham todas as “postagens” do indivíduo seguido. Em um contexto
preocupante e criminoso, o cyberstalking pode ser associado a invasões hackers e
ao cyberbullying28.
No âmbito parafílico, o voyeurismo stalker é muitas vezes advindo de
obsessões sexuais que ocorrem como desdobramento do que Gediman (2017, p. 7)
chama de “erotomania”, referente à crença sem fundamento de que outra pessoa,
muitas vezes um estranho, está apaixonada pelo voyeur que a observa:

The erotomanic sexual stalker, then, is often a jilted lover, who


presumptuously and usually vengefully invades the stalkee’s, or the
victim’s, privacy through unwanted pursuit. In cases of voyeurism, the
invasive, obsessional following most usually occurs through visually
tracking by eye, camera, or binoculars, the object of one’s unwanted
sexual and affectionate desire.

A fotografia, o voyeurismo stalker e a erotomania no contexto midiático têm


grandes relações, principalmente na contemporaneidade. Por conta da tecnologia
digital e da internet, uma forma de paparazzo caseiro, do tipo “faça você mesmo” e
direcionada para pessoas “comuns”, está disseminada por todo o globo. A rede
mundial de informação conta com milhares de imagens que são, inclusive,
divulgadas como voyeuristas em si. Diversos internautas nutrem paixões e grande
adoração pelos indivíduos seguidos por eles, o que reforça a erotomania stalker
nesse tipo de relação.
Já no âmbito artístico existem significativas poéticas modernas e
contemporâneas que discutem essas questões, a partir das quais os próprios
fotógrafos artistas se portam como voyeurs e stalkers, na tentativa de propor
reflexões sobre esse estado de coisas que se instaura mundialmente em alta

28 Questões sobre o cyberstalking e o cyberbullying serão melhor discutidas no Capítulo 02 desta


tese.
98

velocidade, mas que carece de críticas eficazes para o entendimento e o


enfrentamento de tais aspectos. Alguns trataram desses temas a partir de um
voyeurismo “tradicional”, em que se destacam os artistas precursores da linguagem
fotográfica. Nos dias atuais, o voyeurismo já é tratado de maneira
contemporaneizada (tecnoscópica) e faz parte da poética de diversos artistas.
Em se tratando do voyeurismo “tradicional”, o francês Auguste Belloc
(1800-1867), também conhecido como Billon, foi um dos primeiros a usar a
fotografia como instrumento artístico, quando ela ainda não era validada como tal.
Mas o pioneirismo desse fotógrafo se deu na captação de imagens íntimas,
sobretudo em contexto erótico – obscenas e beirando a pornografia. Seus trabalhos
retratavam mulheres que, em grande parte, exibiam as partes erógenas de seus
corpos, seja levantando as saias, puxando as blusas, abrindo as pernas, entre
outras.
Essas fotografias mais exibicionistas do que voyeuristas de per si se somam a
outras com maior teor de voyeurismo produzidas por esse artista, em que as
mulheres são retratadas como se o fotógrafo-observador estivesse oculto. No
entanto, ambos os grupos de fotografias são importantes nesta discussão sobre o
voyeurismo, pois o pioneirismo do fotógrafo ao registrar a sexualidade feminina o
coloca na posição de um voyeur que se vale da máquina fotográfica para a captação
escopofílica. Além disso, ele trabalhava com a tecnologia de captação e exibição de
imagens estereoscópicas (Figura 14).
As fotografias de Belloc, com temática voyeurista-exibicionista sexual, eram
exibidas nos precursores dispositivos de visualização que simulavam as três
dimensões da imagem e exigiam a observação individual, o que reforça
significativamente a experiência voyeurista. Trata-se de uma das primeiras obras
prioritariamente tecnoscópicas, em face do próprio tema e também pela captação e
visualização inerentes às máquinas da época – câmeras (daguerreótipos) e visores,
ambos estereoscópicos. Isso demonstra que a tecnologia de imagens imersivas e
tridimensionais, tão celebrada nos tempos atuais diante dos dispositivos de Virtual
Reality (VR, realidade virtual) e 3D (simulação de uma perspectiva tridimensional), já
datam de mais de um século e meio.
99

!
Figura 14. “Femme Nue Devant un Miroir”, de Auguste Belloc. Fotografia estereoscópica. 1855.
Fonte: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Belloc_stereoscopic.jpg>. Acesso em: 09/04/2017.

Após o pioneirismo de Belloc, o fotógrafo francês Man Ray (1890-1976)


também foi um dos primeiros a se valer da fotografia como prática poética. Ele
trabalhou com o tema do erotismo em diversas produções, e muitas delas remetem
a um certo grau de voyeurismo. Destacam-se nesse entremeio as fotografias
“Kiki” (1928), “Primat de la matière sua la pensée” (1932) e “Meret
Oppenheim” (1933), que retratam mulheres dormindo.
Em uma temática menos voyeurista, mas relativa à discussão tratada
anteriormente, Ray foi um dos primeiros modernos a retomar o tema de Vênus na
nova linguagem fotográfica. Na fotografia “Kiki de Montaparnasse” (Figura 15), de
1923, uma de suas modelos preferidas, Kiki, reproduz a pose da “Vênus de
Milo” (aproximadamente 200 a.C).
Sobre essa imagem, o próprio autor conta a seguinte passagem, relacionando
o mito de Vênus à autenticidade da fotografia enquanto arte na época:

Tenez, regardez ce nu. Un ami avait vu cette photo, et il était tombé


amoureux de mon modèle. Il voulait absolument lui être présenté. Je
lui ai dit: viens, elle est che moi. Et je lui ai montré [...] “la file”: c’téait
un plâtre de la Vénus de Milo [...]. Vous croyez que c’est l’appareil qui
a fait ça? (WARE, 2012, n.p.).
100

!
Figura 15. “Kiki de Montaparnasse”, de Man Ray. Fotografia. 1923. Fonte: <http://afriendinparis.com/
montparnasse-the-roaring-20s/>. Acesso em: 10/04/2017.

Em outro conhecido trabalho de releitura de Man Ray e que se relaciona com


o voyeurismo, principalmente por conta da obra de referência, é “Le Violon d’Ingres”,
de 1924 (Figura 16), a qual se inspira na pintura “O Banho Turco”, de Jean-Auguste
Dominique Ingres, de 1863 (Figura 17). A obra original traz elementos voyeuristas
em um contexto erótico ao apresentar, a partir de um enquadramento arredondado
(que remete ao buraco da fechadura ou ao olho mágico), uma cena em que
inúmeras mulheres se banham juntas.
Outras fotografias de Man Ray, como a série “As Fantasias de Mr. Seabrook”,
de 1930, trazem cenas de teor erótico sadomasoquista que parecem realizadas por
um observador voyeurista amador. Por fim, vale destacar uma obra não fotográfica
desse artista e que também não se enquadra no formato de imagens maquínicas,
mas faz referência explícita ao voyeurismo. Com o próprio título “Le Voyeur”, a obra
de 1960 traz caixas de madeira com um orifício instalado em uma de suas faces
laterais que por sua vez, possui uma espécie de olho mágico que dá a visão para o
conteúdo disponível no interior das caixas – em sua maioria, charutos cubanos.
101

! !
Figura 16. “Le Violon d’Ingres”, de Man Ray. Figura 17. “O Banho Turco”, de Jean-Auguste
Fotografia. 1924. Fonte: <http:// Dominique Ingres. Pintura à óleo sobre tela. 1863.
ineedartandcoffee.blogspot.com.br/2011/02/ Fonte: <http://warburg.chaa-unicamp.com.br/obras/
muse-of-montparnasse.html>. Acesso em: view/1024>. Acesso em: 01/03/2017.
01/03/2017.

Outro importante precursor no âmbito do voyeurismo fotográfico erótico foi o


checo Miroslav Tichý (1926-2011). O artista captou, ao longo de quase um século,
imagens extremamente voyeuristas que retratavam pessoas comuns que, em
grande parte, não tinham conhecimento e não consentiram com a captação (Figura
18), o que o diferencia dos demais precursores Auguste Belloc e Man Ray, pois
demonstra uma intenção voyeurista no ato da própria captação fotográfica, quase
um tipo de paparazzo direcionado a pessoas comuns – ao passo que aqueles que
trabalhavam com o voyeurismo tinham modelos quem posavam e consentiam com o
registro.
A maioria da produção conhecida de Tichý data da primeira metade do século
XX e revela imagens de mulheres captadas em parques e ruas de sua cidade natal,
Kyjov, na Tchecoslováquia. Essas mulheres, em grande parte das imagens, estão
em trajes de banho ou fazendo topless, e muitas fotografias revelam as partes
erógenas dos corpos das retratadas – em outros casos, elas são captadas nas ruas
usando roupas curtas e decotes. As imagens possuem uma estética analógica
imperfeita, muitas desfocadas, danificadas e superexpostas, remetendo a um tipo de
102

amadorismo fotográfico “antigo”, a partir de equipamentos artesanais para a


captação fotográfica produzidos pelo próprio artista.

!
Figura 18. “Untitled”, de Miroslav Tichý. Fotografia. 1950. Fonte: <ttp://www.americansuburbx.com/
galleries/miroslav-tichy-surveillance-pictures-of-women.> Acesso em: 13/04/2017.

Em contexto similar, mas na contemporaneidade, dentre os diversos


fotógrafos que trabalharam com imagens voyeuristas, o japonês Kohei Yoshiyuki
(1946-) é um dos mais importantes. Entre 1971 e 1979, ele registrou na série
fotográfica “The Park” (Figura 19) o que acontecia na noite de três parques de
Tóquio. Para o ofício, Yoshiyuki utilizou uma câmera fotográfica com filme especial e
flash infravermelho, que permitia que as pessoas não percebessem a captação
fotográfica. Segundo Carvalho (2011, p. 122), uma exposição ocorrida em 2007 em
Nova Iorque mostrou ao público as quase desconhecidas imagens voyeuristas
realizadas por esse fotógrafo há quatro décadas: “As fotos mais perturbadoras
expõem casais heterossexuais entrelaçados em encontros furtivos, jogados na
grama ou atrás de arbustos, enquanto uma matilha de voyeurs os espreita e cerca”.
Desses encontros decorrem as mais interessantes imagens quando os voyeurs
103

deixam de ser apenas observadores ocultos e, em vários momentos, tocam suas


vítimas, participando ativamente do jogo erótico. Os casais, em sua maioria, não
apenas sabem que estão sendo observados, como também se deixam tocar pelos
que ali espreitam. Dessa forma, o jogo tecnoscópico se faz, pois o voyeurismo se
soma ao exibicionismo explícito.

!
Figura 19. “The Park”, de Kohei Yoshiyuki. Série fotográfica. 1971-1979. Fonte: <http://
iznotmeizyou.blogspot.com.br/2010/12/kohei-yoshiyuki-beach-house-walk-in.html>. Acesso em
25/03/2015.

Com poética semelhante à de Yoshiyuki, a fotógrafa americana Merry Alpern


(1955-) tornou-se conhecida pelo trabalho com a captação de imagens voyeuristas
sem o consentimento dos retratados, em sua maioria. A obra mais importante é a
polêmica série “Dirty Windows” (Figura 20), realizada entre 1993 e 1994, para a qual
a fotógrafa ocultamente captou imagens de um clube de sexo ilegal em Manhattan,
Nova Iorque.
Alpern, para isso, valeu-se de uma lente grande angular e se escondeu em
um prédio vizinho, no duto de ar, capturando tudo o que acontecia no banheiro do
clube a partir da janela de um dos banheiros. Ela se portou como uma voyeuse que,
para sua pulsão escópica, busca os artifícios possíveis para isso, mesmo se ocorrer
104

de forma ilegal e com riscos ao próprio voyeur. Em outra obra, com cunho também
exibicionista, a artista esconde uma câmera de vídeo dentro de sua bolsa e a leva
para o interior dos trocadores de várias boutiques de moda, captando a si mesma e
as outras mulheres ali presentes. Sobre essa produção, a própria artista diz: “I had
always seen myself quite differently when I looked in the mirror. Suddenly I no longer
knew what I really looked like” (CONTEMPORARY ART, 2010, n.p.). Ambas as obras
têm relações diretas com um tipo de voyeurismo amador disseminado na internet,
em que imagens de cunho sexual, de pessoas se vestindo ou nuas, são flagradas a
partir das janelas de casas e prédios, assim como em trocadores de roupa em lojas,
clubes aquáticos e praias, principalmente.

!
Figura 20. “Dirty Windows”, de Merry Alpern. Série fotográfica. 1993-1994. Fonte: <https://
simsfangch.wordpress.com>. Acesso em 20/03/2017.

Roy Stuart (1962-) é um dos fotógrafos eróticos mais famosos e importantes


da atualidade e, de modo semelhante aos demais aqui citados, tem significativos
trabalhos que remetem ao voyeurismo e ao exibicionismo. Foi um dos artistas da
década de 1970 que tentou unir erotismo, pornografia e arte, e talvez seja um dos
únicos que tenha conseguido certo êxito nesse sentido. Sua visão de sexualidade é
transgressora e subversiva, numa tentativa ininterrupta de quebrar tabus sexuais
ainda existentes. Ao passo que sua estética traz imagens com belos
enquadramentos e iluminação, quase cênicos e cinematográficos, mesmo naquelas
captadas em ambiente externo simulando certo registro amador, como é o caso das
séries fotográficas “Summer in the City” (Figura 21), de 1993, e “La Lavanda dei
Piedi a Campo de’Fiori”, de 1995, em que as modelos são fotografadas a partir de
flagras voyeuristas indiscretos simulados, com suas calcinhas exibidas através de
suas saias: por conta do vento, ao andar de bicicleta, ao sentar nas escadas, ao
lavar os pés, entre outras ações. Tais fotografias mostram um voyeurismo urbano, no
qual o artista se põe como um voyeur que realiza o “flagra” sendo que também, em
105

várias imagens, são vistos voyeurs de fato – sujeitos que passam no momento da
captação e aproveitam para ver “ao vivo” a simulada indiscrição das modelos.
Sobre esse artista, Hansen (2008) diz que, mesmo sendo considerado
apenas um fotógrafo pornográfico por alguns, Stuart tem uma visão crítica e bem
fundamentada de sua arte. Em uma entrevista, ao ser questionado sobre qual seria
a definição correta de erotismo, o artista disse:

[...] em primeiro lugar dever-se-á ter em consideração qual o


significado da palavra erótico. George Bataille explica que o erotismo
difere da sexualidade animal pelo fato de a sexualidade humana
estar limitada por tabus. Sendo o campo de atuação do erotismo a
transgressão desses tabus (HANSEN, 2008, p. 8).

!
Figura 21. “Summer in the City”, de Roy Stuart. Fotografia. 1993. Fonte: <http://
stuartporfolio.tumblr.com>. Acesso em 13/04/2017.

Outra grande referência artística e obrigatoriamente mencionada em qualquer


discussão acerca de questões relativas a voyeurismo, exibicionismo e vigilância é a
artista francesa Sophie Calle (1953-); por disso, as obras delas serão divididas em
analisadas pelos três capítulos desta tese. No âmbito de uma obra em que o
voyeurismo se destaca mais do que os outros itens e que se vale principalmente da
linguagem da fotografia, a produção “Vénitienne Suite” (Figura 22), de 1980, se
106

destaca por apresentar uma série de fotografias que mostram pessoas que foram
seguidas pela artista ao longo de vários meses, juntamente com textos que contêm
anotações sobre o processo.
Na obra, ela se põe no lugar de um voyeur stalker, que persegue suas
“vítimas” sem o conhecimento delas. Sobre esse processo, a artista diz: “[...] por
meses segui estranhos na rua. Pelo prazer de acompanhá-los, não porque me
interessa particularmente. Eu os fotografei sem seu conhecimento, tomei nota de
seus movimentos e, finalmente, perdi a visão e me esqueci deles” (WHITE CUBE,
2011, n.p.). O trabalho de Sophie Calle é inseparável de sua vida, dependendo
muitas vezes da coincidência para que ele aconteça. Para a artista, o sentimento
resultante da perseguição sobre pessoas estranhas pode ser comparado à emoção
de estar apaixonado.
Na verdade, essa famosa obra de Calle apresenta-se como uma releitura do
trabalho “Following Piece” (Figura 23), de Vito Acconci, um dos pioneiros da
videoarte e do uso de imagens maquínicas na arte contemporânea. Ao ser realizada
ainda em 1969, o artista partiu também de um voyeurismo stalker para seguir, todos
os dias e durante um mês, estranhos selecionados aleatoriamente nas ruas de Nova
Iorque, da mesma forma registrando sua experiência com fotografias e textos
contendo relatos daquilo que vivenciou.

!
Figura 22. “Vénitienne Suite”, de Sophie Calle. Série fotográfica. 1980. Fonte: <http://
blog.point101.com/blog/2012/10/29/sophie-calle-suite-vnitienne-and-the-hotel>. Acesso em
19/02/2015.
107

!
Figura 23. “Following Piece”, de Vito Acconci. Série fotográfica. 1969. Fonte: <http://
www.marthagarzon.com/contemporary_art/2010/03/exposed-voyeurism-surveillance-and-the-
camera>. Acesso em 21/04/2017.

Semelhante a essa proposta voyeurista, Calle realizou em 1981 a obra “The


Hotel, Room 47” (Figura 24), para a qual trabalhou por meses como camareira de
um hotel em Veneza e, enquanto arrumava os quartos, fotografava os objetos
deixados pelos hóspedes, com vistas a traçar o perfil dos sujeitos a partir dos
objetos encontrados, das fotografias e de anotações.
Em outra obra com poética próxima às anteriores, todavia mais controversa,
em “The Adress Book”, de 1983, Sophie Calle escreveu uma série de 28 artigos
seguidos de fotografias para o jornal francês Libération, com referência a uma
caderneta de notas encontrada na rua pela artista e pertencente a um desconhecido.
Nesta, a artista traçou um perfil do dono do caderno, a partir das informações
dispostas no objeto. Ela visitou e entrevistou as pessoas listadas e fotografou
atividades que o dono da agenda gostava de fazer. Em um importante livro de artista
que segue o layout original da caderneta, “The Adress Book” se apresenta como
108

uma construção de um perfil textual e imagético de uma pessoa desconhecida, com


a intimidade invadida por uma artista-voyeurista sedenta de curiosidade para
desvelar os mistérios da vida alheia. Por conta disso, o dono do caderno processou
a artista na época da publicação dos artigos.

!
Figura 24. “The Hotel, Room 47”, de Sophie Calle. Série fotográfica. 1981. Fonte: <http://
learn.surbitonhigh.com/hbeighton/2015/10/03/inspiration-from-sophie-calle/the-hotel-room-47-1981-
by-sophie-calle-born-1953>. Acesso em 13/04/2017.

Alison Jackson (1970-) é uma interessante artista contemporânea inglesa que


explora os limites entre a arte e a “invasão” amadora voyeurista da intimidade da
vida das celebridades mundiais. Seus polêmicos trabalhos simulam fotografias
paparazzi realistas, a partir do uso de sósias de famosas personalidades em
atividades íntimas e, em sua maioria, constrangedoras. Já foram alvo de suas fake-
photos críticas as celebridades midiáticas como Kim Kardashian, Kanye West e Hale
Berry, até as figuras políticas, a exemplo de Princesa Diana, Rainha Elizabeth II,
família real britânica, Tony Blair, George Bush e, mais recentemente, Donald Trump
(Figura 25).
109

!
Figura 25. “Donald Trump and Miss Mexico”, de Alison Jackson. Fotografia manipulada. 2017. Fonte:
<http://www.dailymail.co.uk/news/article-3918284/Spray-tans-porn-pageant-queens-Oval-Office-
dodgy-military-regalia-glimpse-life-like-inside-Trump-White-House.html>. Acesso em: 13/04/2017.

Para finalizar este item, uma obra fotográfica contemporânea que transpassa
a bidimensionalidade fotográfica e possibilita uma série de análises no âmbito desta
tese diz respeito à obra “Untitled” (Figura 26), de 2014, de autoria do chinês Cai
Dongdong (1978-). Alguns trabalhos do artista remetem ao voyeurismo sexual e
cotidiano, mas são poeticamente reforçados quando ele se apropria de objetos
simbólicos do dia a dia (lentes fotográficas, espelhos, flechas etc.) que são
literalmente colados (anexados) às fotografias, criando uma espécie de
assemblagem que o próprio artista chama de “fotoesculturas”. Cabe dizer que
algumas imagens são apropriadas de diversas fontes, principalmente da internet, e,
assim, não captadas pelo artista, como é o caso da obra ora analisada. Em
“Untitled”, o artista se apropria de uma fotografia erótica na qual uma mulher nua
(mostrada apenas pelo seu braço e um seio) segura o pênis de um homem. A
fotografia parece ser realizada de maneira amadora e exibicionista por um
dispositivo móvel postado pelo próprio homem autorretratado e deitado na cama
juntamente com a mulher. No entanto, Dongdong cola uma lente de câmera
fotográfica no lugar do pênis do homem, criando uma inquietante imagem em que a
mulher parece segurar a câmera que salta do próprio homem maquinizado.
110

!
Figura 26. “Untitled”, de Cai Dongdong. Fotografia e assemblagem. 2014. Fonte: <https://
www.artsy.net/artwork/cai-dongdong-untitled>. Acesso em: 13/04/2017.

São inúmeras as semelhanças dessa obra com a tecnoscopia aqui proposta.


A relação pênis/objetiva é interessante, pois o zoom fotográfico se assemelha à
ereção peniana, o que simbolicamente permite questões poéticas como: A câmera
poderia ser o substituto tecnoscópico do pênis? De fato, o zoom permite a satisfação
escopofílica do sujeito, permitindo-o observar cenas voyeuristas distantes ou ampliar
e “ver melhor” pequenos elementos que despertam a escopofilia dos indivíduos: um
seio por trás de um decote, as nádegas e a calcinha por baixo da saia etc. Então, o
zoom seria a ereção do sujeito voyeurista, e o momento da gravação em vídeo ou
registro fotográfico da cena flagrante traria o orgasmo (a recompensa). Essa obra de
Dongdong também permite outras análises porque a lente da câmera se direciona
ao observador e parece revelar o voyeur. Em decorrência, há uma “retroalimentação
tecnoscópica”, em que a imagem que demonstra ser realizada a partir de um
exibicionismo amador exibe uma lente-pênis que pode também estar em gravação,
111

com a possibilidade de criar um feedback29 audiovisual tecnoscópico (voyeurista-


exibicionista) em loop infinito.
As últimas obras aqui elencadas mostraram que a fotografia na
contemporaneidade é um suporte também aberto a diálogos e contaminações que
permitem a transcendência da fixidez da fotografia tradicional. Isso faz com que a
fotografia, mesmo depois de mais de 150 anos de surgimento, ainda tenha
significativa importância no âmbito das artes visuais contemporâneas, ao lado dos
dispositivos que derivaram diretamente da máquina fotográfica: cinema, vídeo, TV e
imagens digitais.

1.3.2.2 Cinema

É interessante pensar no voyeurismo a partir do advento da fotografia, pois,


como visto, a máquina fotográfica, pioneira das imagens maquínicas, é indissociável
à história do voyeurismo tecnoscópico. Dela decorreram as imagens maquínicas em
movimento que esboçaram todo o cenário cultural e social contemporâneo. A
superposição de fotografias – ou melhor, de fotogramas na celulose de um filme e
projetadas a uma determinada velocidade – deu origem à primeira mídia técnica
para a exibição de imagens em movimento: o cinema.
De maneira análoga à sua “mãe”, a fotografia, o cinema possuiu uma
significativa e recíproca relação com o voyeurismo, dos primórdios da linguagem até
os dias atuais. Calvert (2004, p. 43) trata de relações entre cinema e voyeurismo que
são inerentes aos próprios artifícios da linguagem:

[...] first, there may be voyeurism in the content of films, as when one
character watches another character or a camera watches a
character. Second, there is voyeurism in the relationship between the
audience and the film – the audience watches the characters on the
screen, gazing at them without interacting with them or interfering
with the action as it unfolds.

Para além dessas relações narrativas e estéticas, vários filmes lançaram mão
do voyeurismo propriamente dito como temática em seus enredos ou remeteram a

29Feedback de vídeo é um tipo de efeito-processo que ocorre quando uma câmera é apontada para
o monitor em que ela está ligada (retorno do vídeo de reprodução). A imagem visualizada mostra um
mosaico em loop (repetição) infinito da imagem, que exibe a si mesma várias vezes.
112

ele a partir de algum recurso estético. Ainda segundo Calvert (2004), Hollywood, por
exemplo, produziu mais de 1.200 filmes de 1900 a 1995, que enfocavam atividades
voyeuristas nos enredos de seus filmes. Somado a isso, é importante dizer que a
câmera cinematográfica deu aos voyeurs (inclusive aos artistas-cineastas-voyeurs)
uma excelente ferramenta para a captação de imagens voyeuristas.
Estudos pioneiros sobre o voyeurismo no âmbito da psicanálise ocorreram
concomitantemente à invenção do cinematógrafo (a primeira câmera
cinematográfica), criada pelos irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière
(1864-1948), em Paris, no fim do século XIX. Rivera (2006) aborda que o cinema e a
psicanálise são contemporâneos, pois, enquanto Freud publicava seus primeiros
estudos, em 1895, os irmãos Lumière faziam as primeiras apresentações públicas
cinematográficas. Para o referido autor, Freud jamais se ocupou dessa nova arte,
mas sempre propunha analogias entre os aparelhos óticos e o aparelho psíquico.
Mesmo que o cinema não tenha relação direta com os estudos psicanalíticos
sobre o voyeurismo na época de sua origem, fica clara a predileção pela captação e
exibição de cenas que remetiam ao voyeurismo nas produções dos primórdios
dessa linguagem. De maneira geral, é certo dizer que o cinema em si mesmo já
transmite a sensação de onividência, pois coloca o público em uma posição
privilegiada e até metafísica, ao possibilitar o espectador de adentrar no enredo das
vidas alheias, na categoria de observador invisível.
Segundo Samuel (1994), vários teóricos do cinema já recorreram às noções
freudianas de escopofilia e de identificação do ego para tentar entender a
popularidade dos gêneros mais importantes de Hollywood. De acordo com o autor,
tais estudiosos dizem que o “prazer de olhar” libera desejos da libido e corresponde
aos desejos de narcisismo primário e de identificação. Machado (1996, p. 125)
aponta que “[...] quando estamos no cinema, submetemos a imagem – a imagem do
outro – a um olhar concentrado e bisbilhoteiro, como se a espiássemos pelo buraco
da fechadura, ocultos nas trevas da sala de exibição”.
Os primeiros filmes realizados pelos irmãos Lumière já traziam cenas de
registros documentais, de certa forma, e mostravam fatos banais do cotidiano: saída
dos empregados de uma fábrica, um trem chegando à estação, crianças brincando,
entre outros. Ainda antes dos Lumière, em 1891, Thomas Edison (1847-1931) criou
o cinetoscópio (Figura 27), um instrumento que permitia que pequenos filmes
113

fossem vistos em visores individuais e exigia a privacidade do espectador, para que


ele pudesse observar as imagens no dispositivo.

!
Figura 27. Fotografia de aparelhos Cinetoscópios (Kinetoscopes) de Thomas Edison. Nova Iorque,
1894. Fonte: <http://wwmundovirtualblog.blogspot.com.br/2010/11/e-assim-nasceuo-cinema.html>.
Acesso em 21/10/2015.

Pode-se dizer que essa tecnologia já se configurava como voyeurista, por


requerer do espectador um olhar atencioso e curioso (e como será visto, fetichista)
e por possibilitar uma experiência privada e individual. Para além desse fato, o
cinetoscópio exibia comumente filmes de apelo voyeurístico, eróticos ou não, e
abarcava uma série de relações com os visores de fotografias estereoscópicas
utilizados por artistas como o fotógrafo Auguste Belloc, já apresentado
anteriormente.
Aumont (2004, p. 43) relata que as pequenas cenas que ali passavam, a
maioria sobre um fundo preto, faziam com que o olhar do espectador apreendesse o
espaço, “[...] chocando-se contra o fundo para voltar sempre para a personagem, em
uma alternância sem fim, que sempre recentraliza, refocaliza, reidentifica o
espectador com seu olhar”. A personagem, sempre alvo da atenção, atrai o olhar do
espectador a todo o momento e ativa sua curiosidade. Devido à exibição
114

individualizada dessas produções, Edison não ficou com o posto de “pai do cinema”,
pois os irmãos Lumière realizaram a primeira projeção pública em 1895 e são, ainda
hoje, conhecidos como os primeiros exibidores de um filme nos parâmetros
cinematográficos atuais.
Machado (2008) arrazoa que situações de voyeurismo eram relativamente
comuns em espetáculos de lanterna mágica, e o cinema deu continuidade à
tradição. O autor relata que diversas produções no início do cinema focalizavam
voyeurs em suas atividades indiscretas. Filmes como “Through the Keyhole in the
Door” (1900), “Down the Hotel Corridor” (1902), “La Fille de Bain Indiscrète” (1902),
“A Search for Evidence” (1903), “Un Coup d’Oeil par Étage” (1904), “The Inquisitive
Boots” (1905), “Peeping Tom in the Dressing Room” (1905), entre outros, mostram
pessoas percorrendo os corredores de um prédio ou de uma casa de banho para
espiar a intimidade dos condôminos ou dos banhistas. O único filme de animação
que restou do Teatro Óptico de Émile Reynaud (1844-1918), “Autour d’une
Cabine” (1893), mostrava um homem que espiava, por meio do buraco da fechadura
de uma cabine de banho, uma bela jovem que lá entrou para se trocar.
Muitos dos primeiros filmes incorporavam aspectos formais que se valiam do
uso de “máscaras” na imagem para evidenciarem situações voyeurísticas comuns,
diferentemente da linguagem moderna e contemporânea do cinema que dá ao
espectador a posição metafísica de observador invisível. Essas “máscaras” tinham,
por exemplo, o formato de um ou dois círculos vazados, ou, ainda, de uma
fechadura (Figura 28), formas que remetiam diretamente ao uso de instrumentos
ópticos para a visualização das cenas ou explicitavam a ocultação do indivíduo
observador. Elas tinham o intuito de demonstrar que o personagem voyeur no filme
observava suas “vítimas” através de lunetas ou binóculos, do buraco da fechadura,
do olho mágico de uma porta, de um buraco na parede etc.
O uso de elementos formais na época colocava o espectador no lugar do
personagem voyeurista e, de maneira quase catártica, transmitia sensações
escopofílicas ao observador. Uma vez que a linguagem do cinema estava em
processo de formação, era importante situar os espectadores em cena, e tais
artifícios serviam para isso. Os espectadores desse período ainda não entendiam a
estética do “observador cinematográfico onividente e invisível”, que se tornou
comum apenas anos mais tarde, principalmente a partir das produções de Edwin S.
115

Porter (1870-1941), D. W. Griffith (1875-1948) e, com mais ênfase, após os


experimentos de Sergei Eisenstein (1898-1948) e dos demais cineastas que criaram
a estética da montagem soviética.

!
Figura 28. “Through the keyhole in the door”, diretor desconhecido. Frame do filme em curta-
metragem. 1900. Fonte: <http://www.tumblr.com/search/19th+century+corset>. Acesso em
23/09/2014.

É fato que o cinema, em toda sua história, pôde apreender o “real” de maneira
ainda mais eficaz do que a fotografia, por trabalhar com imagens em movimento. Há
a impressão de que o voyeurismo é inerente a essa linguagem, ao passo que, na
tecnoscopia, o exibicionismo e a vigilância também se fazem presentes, seja nas
temáticas, em elementos estéticos ou mesmo na maneira como o filme foi produzido.
Mas é claro que, dentre eles, o voyeurismo é um dos principais artifícios para atrair a
atenção do espectador de cinema.
Conceituados cineastas já utilizaram o voyeurismo como importante elemento
narrativo e/ou estético em suas produções. Diversos filmes modernos e
contemporâneos “[...] recuperam numa outra linguagem o tema do buraco da
116

fechadura que é uma das chaves para a compreensão do próprio cinema como lugar
da pulsão escópica” (AUMONT, 2004, p. 126). A título de rápida análise e
conhecimento das principais obras, serão elencadas a seguir algumas significativas
produções nesse contexto.
O filme “Janela Indiscreta” (“Rear Window”), de 1954, do cineasta Alfred
Hitchcock (1899-1980), talvez seja o mais conhecido produto cinematográfico que
trata do voyeurismo realizado até a atualidade. Esse longa-metragem acompanha a
história de Jeff (James Stewart), um fotógrafo que sofreu uma lesão na perna e terá
de ficar confinado a uma cadeira de rodas por vários dias em seu apartamento.
Usando as lentes da câmera fotográfica (Figura 29), ele espia os vizinhos que, “[...]
sem perceber que estão sendo notados, vão desvelando em detalhes sua
privacidade como uma sucessão de narrativas ao olhar intruso de Jeff” (GOIS, 2012,
p. 7).

!
Figura 29. “Rear Window”, de Alfred Hitchcock. Filme em longa-metragem. 1954. Fonte: <http://
a69.g.akamai.net/n/69/10688/v1/img5.allocine.fr/acmedia/medias/nmedia/18/96/71/01/20484903.jpg>.
Acesso em 15/09/2015.

Em determinado momento, o protagonista pensa ter visto um crime cometido


em um dos apartamentos do prédio vizinho e, a partir desse ponto, se entrega à
investigação do suposto crime, ao passo que tenta convencer os coadjuvantes a
acreditarem naquilo que somente ele viu. Segundo Xavier (2003 apud GOIS, 2012,
p. 11), o desejo de descortinar esse crime serve como pretexto para fugir dos
assédios de Liza (Grace Kelly):
117

[...] pois ele aposta o seu prazer na invasão da privacidade dos


vizinhos como meio para adiar o casamento. Além disso, a vontade
do personagem em trazer as provas que incriminem o vizinho, no
fundo seria uma forma de expiar a culpa por violar a privacidade do
outro, ou seja, aquele que comete o crime simbolicamente no lugar
do voyeur, para o prazer do voyeur, e o salva da culpa.

De 1960 e com o nome “Peeping Tom” (no Brasil, “A Tortura do Medo”), o


filme dirigido por Michael Powell (1905-1990) traz um enredo misto de voyeurismo e
suspense psicológico, no qual um empregado de um estúdio de cinema inglês é um
assassino em série, obcecado em captar e gravar a expressão de medo no rosto
das mulheres assassinadas, com o intuito de montar todas as cenas de assassinato
em um documentário. Para Calvert (2004, p. 44), “[...] ‘Peeping Tom’, in fact, would
turn out to be the name of the one of the most controversial horror films ever made”.
Ainda na década de 1960, outro filme referência no domínio do voyeurismo é
“Blow-Up” (conhecido no Brasil como “Blow-Up – Depois Daquele Beijo”), de 1966,
comandado por Michelangelo Antonioni (1912-2007) – sendo este o primeiro filme
em língua inglesa do renomado diretor italiano. A película conta a história do
fotógrafo de moda inglês Thomas (David Hemmings), que encontra um corpo
humano abandonado em um parque londrino, local fotografado pelo personagem no
mesmo dia. Thomas recorre às suas fotografias para tentar encontrar pistas sobre o
possível assassinato. No decorrer da narrativa, o protagonista se lança em uma
investigação pessoal, que se vale de manipulações nas imagens fotográficas para
desvelar o mistério que tanto o perturba.
Um filme clássico do cinema erótico realizado em 1972, “Atrás da Porta
Verde” (“Behind the Green Door”), dirigido pelos irmãos Artie (1945-1991) e Jim
Mitchell (1943 – 2007), apresenta-se como voyeurista, à medida que a curiosidade
do espectador é constantemente ativada para descobrir o que há por trás da porta
verde. A personagem Gloria Saunders (Marilyn Chambers) é raptada e levada para o
misterioso ambiente situado atrás de uma green door (Figura 30), que se torna
objeto de intenso desejo escópico, não apenas por parte do espectador, que quer
saciar sua curiosidade, mas também devido aos outros personagens inseridos no
ambiente, que estão curiosos para desvelar os mistérios do local.
118

!
Figura 30. “Behind the Green Door”, de Artie e Jim Mitchell. Frame do filme em longa-metragem.
1972. Fonte: <http://www.insitu-collective.com/wp-content/uploads/2017/01/MARILYN-CHAMBERS-in-
BEHIND-THE-GREEN-DOOR-1972-behind-the-green-door-.png>. Acesso em 17/09/2016.

Outro clássico do cinema erótico traz o próprio título como “O Voyeur”, nas
versões em português e em inglês (“The Voyeur”), e em italiano se chama “L’uomo
che Guarda”. Esse filme foi produzido pelo renomado diretor erótico italiano Tinto
Brass (1933-), em 1994, e conta a história de Dodo (Francesco Casale), um
voyeurista compulsivo que dá preferência à satisfação sexual unicamente
escopofílica em detrimento das relações físicas. Por esse motivo, sua voluptuosa
esposa Silvia (Katarzyna Kozaczyk), sexualmente frustrada e insatisfeita, se lança
em relacionamentos extraconjugais que instauram uma crise matrimonial, levando
Dodo a nutrir incessantes paranoias.
Visto como um filme referência para uma geração de cineastas
independentes, “Sexo, Mentiras e Videotape” (“Sex, Lies, and Videotape”), do diretor
Steven Soderbergh (1963-), produzido em 1989, também lança mão de um
voyeurismo erótico. Nessa película, o voyeurismo é o próprio tema central,
apresentado na forma de fetiche sexual de um sujeito que entra abruptamente na
vida de um casal em crise amorosa. Logo, ele envolve várias pessoas em seu
projeto pessoal, do casal em crise à cunhada sexy, em que grava mulheres falando
sobre suas experiências sexuais (Figura 31), instaurando um jogo voyeurista/
119

exibicionista por meio de ferramentas analógicas de captação de imagens (vídeo


eletrônico).

!
Figura 31. “Sex, Lies, and Videotape”, de Steven Soderbergh. Frame do filme em longa-metragem.
1972. Fonte: <https://vareverta.files.wordpress.com/2014/01/sex-lies-and-videotape-1989-1080p-
bluray-dts-6.png>. Acesso em 16/09/2016.

Outro filme, um dos primeiros a refletir criticamente sobre a proliferação dos


reality shows na contemporaneidade, foi “O Show de Truman” (“The Truman Show”),
de 1998, com direção de Peter Weir (1944-). O longa-metragem conta a história de
Truman Burbank (Jim Carrey), um personagem real num mundo falso, no qual toda a
realidade conhecida por ele é artificial, desde o aspecto natural do ambiente às
relações sociais. Tudo foi criado pelo diretor de um programa de TV para ser exibido
em todo o mundo como puro entretenimento. A equipe do programa esconde a
verdade de Truman, deixando-o a acreditar que aquela era sua vida, que aquele era
o “mundo real”. Apesar de os reality shows nesta tese serem considerados produtos
mais exibicionistas do que voyeuristas, no caso desse filme, especificamente, o
voyeurismo é mais evidente. O protagonista é vigiado de maneira intermitente (e por
isso tal produto também se relaciona com a vigilância) e não sabe que está
constantemente nutrindo os olhares voyeuristas de milhares de telespectadores no
mundo todo. “‘Estamos enjoados de assistir aos atores interpretando emoções
falsas’, afirmava o sinistro produtor do reality show montado no filme ‘O Show de
Truman’” (SIBILIA, 2016, p. 336). De acordo Sibilia (idem), Truman encantava os
120

espectadores porque ele “[...] não era um ator que interpretava as emoções falsas
de um personagem fictício, mas simplesmente vivia e mostrava suas emoções
autênticas de personagem real, como bem explicara seu produtor”.
À parte dos filmes de ficção, os documentários se apresentam como produtos
audiovisuais que tendem, em diversas ocasiões, a se aproximar de um certo tipo de
voyeurismo. Algumas produções documentárias, principalmente biográficas,
objetivam adentrar na vida de pessoas, simples ou públicas, e descortinar seu dia a
dia para mostrar fragmentos da intimidade, sob um viés investigativo, crítico,
didático, informativo e/ou poético. Para não arriscar a saturar a pesquisa com um
grande número de documentários, uma vez que podem ser encontrados elementos
voyeuristas em muitos deles, esta tese enfocará determinados documentários
realizados como propostas poéticas, nos quais o voyeurismo é parte fundamental da
narrativa e estética. Segundo Samuel (1994), um tipo de documentário chamado de
“poético realista” se refere à forma como são usadas a iluminação, a composição e a
tonalidade nessas produções, podendo transformar o empírico e o factual em
objetos do desejo. Para o autor, essa abordagem questiona empreendimentos
realistas de qualquer natureza, inclusive os históricos – ao focar o caráter
“compulsivo” do ato de ver, abre-se a questão da natureza da sensação visual. No
quesito formal, uma certa “estética da verdade” nos documentários se deve ao tipo
de captação e montagem das imagens que costumam remeter a imagens amadoras,
televisivas ou de registro.
Nesses termos, um documentário que foca diretamente os temas voyeurismo
e vigilância é “Tearoom”, de William E. Jones, produzido em 1967. O filme se
apropria de imagens de uma câmera de vigilância instalada 1962 pela polícia de
Mansfield, Ohio, em um banheiro público masculino. As imagens exibem o sexo
clandestino de inúmeros homens (Figura 32), “[...] produzindo provas que os
condenaram à prisão por pena mínima de um ano como sodomitas. Alguns desses
homens teriam se suicidado após a condenação” (BRUNO, 2013, p. 103). Nas
palavras dessa autora, tais imagens geram grande incômodo ao se situarem entre o
voyeurismo e a vigilância, a pornografia e o controle policial, o sexo marginal e a
prova jurídica, atuando no que ela denomina como “estética do flagrante”, já
abordada anteriormente.
121

!
Figura 32. “Tearoom”, de William E. Jone. Frame do filme em média-metragem. 1967. Fonte: <http://x-
traonline.org/article/an-invocation-of-ghosts-william-e-joness-killed>. Acesso em 01/03/2017.

No âmbito de uma proposta cinematográfica voyeurista, documental e


poética, Andy Warhol torna-se, sem dúvidas, uma das grandes referências. Artista
visual e cineasta, Warhol é visto como uma das figuras mais importantes da história
da arte mundial e do movimento pop art, como é comumente reconhecido, mas
também é, ao mesmo tempo, um dos principais produtores do cinema underground.
De acordo com Danto (2013, p. 83):

[...] no início da década de 60, Warhol encantou-se com o


florescente, embora um tanto primitivo, movimento do “cinema
underground” de Nova Iorque. Seus primeiros filmes registravam
gente comum realizando atividades básicas da vida – comer, dormir,
cortar o cabelo, fumar, beber e fazer sexo. Esses temas podem ser
vistos como uma continuidade dos objetos de suas antigas pinturas –
latas de sopa, portas contra tempestades, geladeiras, embalagens de
mercado –, o corriqueiro e cotidiano, o que todo mundo faz em todos
os lugares na maior parte do tempo. Tudo era interessante, nada era
mais interessante que qualquer outra coisa.
Andy Warhol era um voyeur por natureza. Ele mesmo dizia que, dentre suas
atividades mais prazerosas, estava a observação de pessoas nas tarefas diárias. A
maioria de seus filmes tem o caráter de registro da banalidade cotidiana, como
apontado por Danto (2013), mas o que mais reforça o caráter voyeurista estava
122

relacionado à duração dessas películas – em sua maioria, eram muito demoradas.


Segundo Rush (2006), Warhol fez mais de 60 filmes entre 1963 e 1968, como os
famosos “Sleep” (1963), que mostrava o ator John Giorno dormindo durante seis
horas, diante de uma câmera parada (Figura 33); “Kiss” (1963), com close-ups
extensos de casais se beijando; e “Eat” (1964), no qual o artista Robert Indiana
come lentamente um cogumelo.
Para Rush (2006), ao retratar a banalidade cotidiana com filmagens de
grande duração, o artista tentava confundir os espectadores com a mistura dos
tempos real e de filmagem. A demora e a monotonia das cenas contribuíam em
grande parte para o sentimento voyeurista transmitido, pois elas não desenrolavam,
permanecendo no mesmo quadro com uma câmera quase que totalmente inerte, tal
qual um voyeur, ao espreitar sua “vítima” de maneira atenciosa, curiosa e fetichista.

!
Figura 33. “Sleep”, de Andy Warhol. Frame do filme em extra-longa-metragem. 1963. Fonte: <http://
www.galateca.ro/en/sleep-1963-proiectat-la-galateca-pe-11-decembrie-h-1700>. Acesso em
01/03/2017.

Steinberg (s.d. apud DANTO, 2013) dizia que Andy Warhol era um voyeur do
tipo sleepwatcher, uma pessoa que se satisfaz (escopicamente) ao observar outro
indivíduo dormindo. Danto (2013) conta que o próprio John Giorno, ator retratado no
123

filme “Sleep” e namorado de Warhol à época, dizia que acordava de um sono


profundo e se deparava com Andy olhando para ele, assistindo-o.
Em outro filme de Warhol explicitamente voyeurista – “Blow Job”, de 1964 – a
câmera enfoca o rosto de um rapaz recebendo sexo oral de alguém que está fora da
tela. “O filme era muito comprido [...] e quase provocou tumulto quando foi exibido
em 1966 na Universidade de Colúmbia, junto com um show da banda de rock de
Warhol, Velvet Underground” (DANTO, 2013, p. 86).
É certo que os filmes de Andy Warhol também traziam forte teor exibicionista,
pois a maioria dos seus atores, representando a si mesmos e em situações banais
e/ou sexuais, tinham conhecimento e consentiam com a filmagem documental do
artista. No entanto, evidencia-se que o teor voyeurista se sobressaía não apenas
pelo fato de ele ser um voyeur declarado, mas por essas produções conseguirem,
com maestria, despertar a pulsão escópica daqueles que os assistem, inclusive nos
dias atuais. Enquanto “Tearoom” enfoca o voyeurismo conjugado com a vigilância,
os documentários de Warhol partem de um exibicionismo para chegar ao
voyeurismo e, em um escopo amplo, eles são grandes exemplares de propostas
documentárias tecnoscópicas.
Há outros tipos de produtos cinematográficos que se valem de uma estética
documental para apresentarem fatos fictícios, tornando-se um híbrido entre
documentário e ficção: o mockumentary e a docuficção. Mockumentary é um falso
documentário realizado para abordar uma ficção, ao passo que transmite ao
espectador a impressão de veracidade. Sua premissa concerne a registros
amadores ou documentais que captaram imagens de um grande evento e que agora
são apresentados ao público. Por esse motivo, tanto os documentários como os
mockumentaries se relacionam com um certo voyeurismo devido às características
estilísticas que remetem a captações caseiras, televisivas, jornalísticas, de eventos
sociais, entre outras. Esses atributos formais são comumente usados em produtos
que mostram a intimidade alheia e, por isso, há um certo desejo escopofílico ao
observá-los, pois se remete a eles a representação do “real”. Tais imagens
costumam ser mal enquadradas, ruidosas e possuem constantes trepidações, som
distorcido, entre outros elementos que geralmente são vistos como prejudiciais à
“boa forma” da imagem cinematográfica. As propriedades citadas cumprem o papel
124

de aumentar a sensação de “veracidade” documental da narrativa, uma vez que as


“marcas do processo de produção” desses filmes estão todas ali, visíveis.
É interessante pensar nos paradoxos de abordagens em relação à
instauração de um “olhar voyeurista” nos mockumentaries e nos filmes fictícios
convencionais. Se alguns autores, como já abordado, trazem que a sensação de
onividência e invisibilidade do espectador cinematográfico é um elemento que
reforça um o voyeurismo para aquele que assiste ao filme, em contraponto, a
estética do mockumentary evidencia a própria técnica de captação, ou seja, revela o
processo cinematográfico, e este torna-se o elemento que alimenta um estado de
observação da intimidade alheia (voyeurista) nessas produções. Isso, hoje, deve-se
principalmente ao fato da captação amadora ser acessível a grande parte da
população, que consequentemente sabe reconhecer os elementos de registro,
principalmente videográficos. São estes elementos que remetem à imagens de
registro e documentárias que, diferentemente daquelas que “pedem” um observador
invisível tradicional, reforçam o voyeurismo nos mockumentaries. São dois tipos de
voyeurismos, mas na contemporaneidade o último é mais evidente – uma vez que o
modo de produção deste serve como atrativo ao grande público, principalmente aos
jovens da “geração YouTube”.
O estilo mockumentary no cinema comercial internacional costuma se
associar com outro estilo narrativo: o found footages. Estes são formados por
“imagens encontradas” que seguem a premissa de que todo o longa-metragem foi
produzido a partir de um registro amador que, por algum motivo, foi perdido ou se
manteve oculto por algum tempo. Sendo assim, quando os registros são
encontrados, eles são montados de forma cinematográfica e apresentados aos
espectadores em geral. Tais filmes pertencem a uma lucrativa tendência do cinema
comercial contemporâneo. O es(x)pectador contemporâneo deseja uma participação
mais ativa, pois emerge na proposta estética de que aquilo que se vê de fato
aconteceu. Assim, o público observa, em primeira mão, imagens de um importante
acontecimento e isso tende a proporcionar uma experiência catártica.
Muitos desses filmes conseguiram grande sucesso comercial, e, alguns,
sucesso de crítica, sendo que a maioria pertence ao gênero terror, com destaque
para “Bruxa de Blair” (Figura 34), de 1999, primeiro grande sucesso comercial desse
gênero/estilo, que ainda engloba outros longas-metragens famosos, como: “Um
125

Assaltante Bem Trapalhão” (1969), “Holocausto Canibal” (1979), “Atividade


Paranormal” (2007), “Cloverfield Monstro” (2008), “REC” (2008),
“Quarentena” (2008), “Contatos de 4º Grau” (2009), “Distrito 9” (2009), “O Último
Exorcismo” (2010), “Apollo 18” (2011), “The Bay” (2012), “Chernobyl” (2012), “V/H/S”
(2012), “Poder Sem Limites” (2012), “Projeto X: Uma Festa Fora de Controle” (2012),
“Europa Report” (2013), “Projeto Almanaque” (2015) e “A Visita” (2015).

!
Figura 34. “The Blair Witch Project”, de Eduardo Sánchez e Daniel Myrick. Frame do filme em longa-
metragem. 1999. Fonte: <http://www.nerdmaldito.com/2016/09/a-mitologia-da-bruxa-de-blair-
em.html>. Acesso em 07/03/2017.

Grande parte dos mockumentaries e found footages é realizada com o intuito


de garantir bom retorno financeiro para os estúdios produtores, por conta de seus
baixos custos de produções e por conseguirem razoáveis desempenhos em
bilheterias – como já dito, essa categoria se insere numa tendência (e num
modismo) atual. No entanto, existem significativas contribuições da nova estética
para a história do cinema de ficção, uma vez que tais filmes conseguiram realizar
parte das pretensões dos cineastas durante os tempos: a câmera subjetiva faz com
que o espectador se sinta na própria cena; hoje, mais ainda que a estética do
“espectador invisível”.
Já na esfera poética surge uma proposta próxima aos mockumentaries, mas
que é nomeada como docuficção (docufiction, em inglês). Esses filmes têm base
126

mais crítica e assumem uma “estética da verdade” não apenas como uma proposta
voyeurista catártica (como os mockumentaries), como também lançam mão de
elementos documentais para provocar os espectadores ao mostrar a realidade “tal
como ela é”, o que faz esse tipo de produção também ser conhecido como “cinema-
verdade” ou “docudrama” – apesar de os dois últimos apresentarem algumas
características próprias que os diferem. Esse tipo de documentário se vale de
aspectos ficcionais adicionados no decorrer dos próprios acontecimentos, quando,
por exemplo, uma personagem desempenha o próprio papel na vida real. Um dos
mais conhecidos exemplos de docuficção é “Tabu”, de 1931, último filme dirigido
pelo conceituado cineasta alemão F. W. Murnau (1888-1931) antes de sua morte.
Além dele, há “O Ouro dos Mares” (1932), “Crianças de Hiroshima” (1952), “Close-
Up” (1990), “O Pão e o Vinho” (1979), “The Company of Strangers” (1990), “Zombie
and the Ghost Train” (1991), entre outros.
Salvas as questões comerciais já discutidas, enquanto o mockumentary utiliza
elementos do documentário para criar a ficção, em processo contrário, a docuficção
emprega elementos ficcionais para tratar crítica e poeticamente sua proposta
documental. Esses estilos, categorias, gêneros e modelos de produção
cinematográficos trazem à tona uma certa “estética do real” ou “estética da verdade”
que, em momentos pontuais da história do cinema, foi retomada para logo após ser
negada, num caminho cíclico que chega aos dias atuais. O cineasta e antropólogo
francês Jean Rouch (1917-2004) criou o termo cinéma vérité (cinema verdade) na
primeira metade do século XX, que ainda é usado na atualidade, para categorizar os
longas-metragens que se valem desta “estética da verdade”. A expressão foi
cunhada por estudos realizados sobre os filmes do cineasta russo Dziga Vertov
(1986-1954), que pioneiramente mesclou ficção e documentação em suas obras
produzidas nas primeiras décadas do século passado. Para Calvert (2004, p. 4),
cinéma vérité:

[...] is sometimes used in film circles to describe a genre or technique


of filmmaking that is intended to convey candid, unmanipulated
realism, or, as the word vérité suggests, the truth. The camera,
sometimes a lightweight, handheld camera, often tracks or follows the
action or individuals in unobtrusive, documentary fashion. The
camera is little more than the proverbial fly on the wall. Vérité
techniques, such as blurred, grainy visuals, purport to convey an
objective window on the world.
127

Hoje, filmes no formato vérité garantem significativo desempenho econômico,


certamente por conta das relações com os demais “produtos vérités”, que trazem
grande carga de voyeurismo em suas propostas – pois o voyeurismo é o principal
elemento responsável por tornar as produções vérités de fato. Tal modelo de estética
traspassou o cinema e se tornou também fundamental para o desempenho
comercial de outros produtos audiovisuais, como a televisão que, de forma análoga,
adotou o termo TV vérité. Esses aspectos serão analisados a seguir.

1.3.2.3 Audiovisual: TV, vídeo e arte computacional

À medida que avançaram as tecnologias e evoluíram a partir das anteriores, a


quantidade de produções voyeuristas potencialmente tecnoscópicas aumentaram
proporcionalmente. Decorreram do cinema mídias extremamente importantes, como
a TV, o vídeo e a computação gráfica, surgidos após o desenvolvimento da imagem
sequencial cinematográfica e que instauraram no século XX a onipresença global
das imagens maquínicas eletrônicas – o primórdio da tecnoscopia contemporânea
de fato.
Essas mídias e linguagens são hoje pertencentes a um grupo denominado
como audiovisual (no qual o cinema também faz parte). Tal nomenclatura surge para
resolver problemas conceituais e de categorização, em face das multimídias
contemporâneas, em que as barreiras entre as mídias se esfacelaram, tornando-se
complicado, principalmente em âmbito artístico, separar e categorizar produções
como cinematográficas, televisivas, videográficas ou computacionais. Assim, esta
seção irá tratar dos meios audiovisuais eletrônico-digitais que decorreram da
imagem seriada do cinema, advindos diretamente da primeira mídia audiovisual
eletrônica: a TV.
A TV foi criada em 1923, mas as primeiras transmissões para o grande
público ocorreram apenas em 1935. Ela influenciou significativamente o modo de
vida e a sociedade em nível global durante todo o século XX, e ainda hoje possui
papel fundamental nos meios de comunicação contemporâneos. McLuhan (1974, p.
206) abordava à sua época os efeitos transformadores da TV na vida das pessoas:
[...] desde o aparecimento da TV, as crianças costumam ler com os
olhos a apenas 15 centímetros, em média, da página –
independentemente das condições de suas vistas. Procuram levar
128

para a página impressa os imperativos da total envolvência sensória


da imagem da TV. Com uma perfeita habilidade psicomimética,
executam as ordens da imagem televisionada. Prestam atenção,
investigam, aquietam-se e envolvem-se em profundidade.

Se, nos anos 1970, as crianças já eram “alfabetizadas audiovisualmente”,


esse tipo de “alfabetização” hoje ao menos é levado em consideração, uma vez que
a mídia televisiva e os demais meios eletrônico-digitais são parte indissociável da
vida cotidiana. Talvez seja por esse motivo que a TV possua tamanha força, pois
parece retratar a vida do dia a dia com total fidelidade. Nas palavras de Kilpp (2008,
p. 27), a televisão é a mídia mais voyeurista de todas e a que mais dissimula o olhar:
“Muitas vezes criticada pelo que nos oferece a ver, ela responde da mesma forma:
queres olhar? Pois bem, veja então isso! Neste olhar escópico televisual subjazem a
todo instante a programação em fluxo”.
Voyeurismo e TV possuem grandes ligações, contando com programas de
cunho voyeurista que já existem há várias décadas e que ainda conseguem
significativa audiência entre os espectadores. Dentre eles há as “pegadinhas”,
“videocassetadas” ou “câmera escondida”, releituras diretas do clássico “Candid
Camera”, programa de TV americano sob o comando de Allen Funt que foi levado ao
ar pela primeira vez em 1948. De acordo com Calvert (2004, p. 41): “It was the
‘candid’ part – the surprise of the unwitting individual caught on camera – that played
so well in the late 1940s and the 1950s on a new medium to an audience that fifty
years later would become fully trained electronic voyeurs”. Nesses programas,
“pessoas comuns” são filmadas por câmeras escondidas em situações humorísticas
provocadas pela própria equipe de TV. O público americano, originalmente, e
espectadores do mundo todo a posteriori foram colocados como voyeuristas e se
divertiram “[...] durante várias décadas com o vexame alheio” (MACHADO, 1996, p.
227). Os apresentadores brasileiros Silvio Santos, Fausto Silva, entre outros utilizam
há tempos o mesmo recurso de câmeras ocultas.
Calvert (2004), em estudo realizado no início dos anos 2000, elencou e
analisou centenas de programas de TV e produtos culturais desse tipo, que são
ainda garantias e receitas de sucesso comercial. Para o autor, a disseminação
desse tipo de conteúdo no cenário cultural dos Estados Unidos criou uma nação de
voyeurs televisivos – chamada por ele de voyeur nation – e assíduos pela dose
diária de “realidade”, o que logo se espalhou pela cultura capitalista global. Para
129

tanto, o autor cunhou a expressão mediated voyeurism – como já tratado


anteriormente.
Ainda em consonância às ideias de Calvert (2004), os formatos de programas
que se valem do voyeurismo mediado podem ser divididos em quatro categorias:
video vérité voyeurism; reconstruction voyeurism; tell-all/show-all voyeurism; e
sexual voyeurism. A primeira categoria, video vérité voyeurism, é derivada do termo
cinéma vérité e se refere à não ficção, em que a vida “real” é captada, de maneira
consensual ou não, através de câmeras de vídeo e microfones ocultos, o que a faz
aproximar o voyeurismo (mediado) à vigilância e, quando consensual, ao
exibicionismo – Baudrillard (1991) já havia utilizado a terminologia TV vérité para
nomear esses tipos de produções. Por sua vez, a reconstruction voyeurism é relativa
aos programas de investigação de casos reais de crimes, em que os
telespectadores são convidados a telefonar para a polícia ou para o programa, para
passarem informações sobre os crimes ou possíveis suspeitos. Já o tell-all/show-all
voyeurism se vale do estilo talk show, no qual entrevistados “abrem as portas” da
intimidade e expõem sua vida e seus segredos para o público (de maneira
exibicionista), na expectativa de que o apresentador, a plateia do programa ou os
telespectadores os ajudem a resolver problemas cotidianos e conjugais. A última
categoria, sexual voyeurism, se tornou mais evidente com a democratização da
internet, em que sites eróticos exibem, também de maneira consensual ou não,
imagens captadas de pessoas se despindo, relações sexuais, flagrantes em público
etc.
Centenas de programas de TV e outros produtos culturais tecnoscópicos se
inserem em pelo menos uma das quatro categorias. Calvert (2004) lista vários deles,
como: “Big Brother”, “Cops”, “Road Rules”, “Real Families”, “Survivor”, “Real TV”,
“Three’s Company”, “Perehvat”, “On Scene: Emergency Response”, “Court TV”,
“Allen Funt’s Candid Camera”, “The Jerry Springer Show”, “America’s Funniest Home
Videos”, “Farmer’s Wife”, “World’s Most Amazing Videos”, “World’s Scariest Police
Chases”, “World’s Wildest Police Videos”, “When Good Pets Go Bad”, “When
Animals Attack”, “When Stunts Go Bad”, “World’s Worst Drivers Caught on Tape”,
“Cheating Spouses Caught on Tape”, “20/20”, “The Real World”, “Real Stories of the
Highway Patrol”, entre outros.
130

Porém, dentre os tipos de produtos listados, os programas de TV (e hoje


também veiculados na internet) do estilo reality show se referem a um formato
televisivo tecnoscópico por excelência, principalmente por conjugar, em um só
produto, voyeurismo, exibicionismo e vigilância. Segundo a definição de Calvert
(2004), o reality show se enquadra em video vérité voyeurism, sendo o produto mais
popular dessa categoria. Esses programas começaram a se tornar um fenômeno da
mídia de massa a partir da segunda metade da década de 1990. Neles, os
telespectadores podem acompanhar o dia a dia de participantes que mostram a
intimidade na tela. Não se trata de construir uma ficção, e sim apresentar a
“verdade” como “verdade” – o “real” de maneira “realística”. É o próprio “mundo real”
apresentado na TV – pelo menos é essa a premissa –, embora seja inegável que se
desconheçam os mecanismos de manipulação e marketing que distorcem os fatos
verídicos. Para Kilpp (2008, p. 8), os reality shows conjugam, de certa maneira, a
sociedade do espetáculo de Debord e a sociedade disciplinar de Foucault:

[...] na verdade, eles são parte de um fenômeno de massas surgido


no rastro do culto (e também do declínio) do estrelato de políticos, de
artistas e de homens públicos em geral, fenômeno que, na atual fase
das mídias, aparece com a crescente exposição de homens e
mulheres comuns, aos quais, até então, se concedia apenas os
famosos “quinze minutos de fama”.

A série de TV “An American Family” (Figura 35), de 1972, é considerada o


primeiro reality show já produzido. Ela trazia uma família real que tivera a
privacidade observada minuciosamente por meses. Machado (1996, p. 227) relata
que esse programa tinha poucas características de um documentário, pois
explicitava, na verdade, o que acontece “[...] quando um grupo de pessoas é
submetido sistematicamente, ininterruptamente, até mesmo na sua intimidade mais
secreta, ao olhar voyeurista de câmeras eletrônicas que o colocam em conexão com
vinte milhões de peeping toms espalhados por todo um país”.
Calvert (2004, p. 42-43) aborda que a série “An American Family” possui uma
importância cultural que transcendeu sua época, marcou e definiu a história dos
estilos vérités da posteridade, mostrando:

[...] the real-life problems of the Louds, a family from Santa Barbara,
California. “Starring” William and Pat Loud, along with their five
children, the show featured son Lance coming out of the closet and
his parents’ apparent refusal to acknowledge that their son was
131

homosexual. The cameras also captured the sad breakup of the Loud
family, including one infamous scene in which Pat told her husband,
William, that she wanted a divorce. It took a camera crew that lived
with the Louds seven months to film enough of this material to fill the
twelve-hour series. William Loud felt his family was misled in the end
result, alleging that the editors focused on the negative aspects of his
family’s life and that they had a preconceived liberal, leftist view. [...]
As Candid Camera and An American Family make clear, voyeurism
on television – be it the contrived voyeurism in which humorous gags
are created or the “vérité” voyeurism in which reality unfolds
unscripted and unceremoniously – is not necessarily a new
phenomenon but one that is today more prevalent, more ambitious,
today more prevalent, more ambitious, and more sensational.

!
Figura 35. “An American Family”, da rede estatal de TV americana PBS. Fotografia de divulgação do
Reality Show. 1972. Fonte: <http://video.pbs.org/video/2045835722/>. Acesso em 05/04/2015.

Na TV brasileira, o programa de reality show mais conhecido até o momento é


o “Big Brother Brasil”, apresentado desde o ano 2000 pela Rede Globo e que faz
parte de uma franquia internacional de origem holandesa (canal Endemol), originada
em 1999, que “pegou emprestado” o nome do conhecido personagem do romance
“1984”, de George Orwell30 . Segundo Kilpp (2008, p. 24):

[...] há olhos e olhares explicitados nos programas televisivos dos


Realities Shows [sic], assim como há, também explícitos, buracos de
fechadura, câmeras de TV e monitores de vídeo, numa aparente
simetria enunciativa entre eles. Estão todos associados ao

30 O livro e o personagem serão apresentados e analisados no Capítulo 3 desta tese.


132

voyeurismo televisivo, sendo uns mais que os outros, devendo ser


distinguidos.

O reality show se tornou o formato televisivo mais popular das últimas três
décadas e, ainda hoje, é abundante em canais de TV abertos e pagos em todo o
mundo, principalmente no ocidente. Mas, para além do reality show e dos programas
do tipo vérité, vários filmes para TV, documentários e séries tratam criticamente de
questões contemporâneas acerca da tecnoscopia. Dentre vários produtos nesse
contexto se destaca a atual série televisiva “Black Mirror”, produzida pela empresa
de conteúdo streaming on demand31 Netflix. Criada em 2011 pelo controverso
roteirista, satirista e comentarista jornalístico britânico Charlie Brooker (1971-), essa
é uma série antológica de ficção científica, na qual cada episódio apresenta uma
diferente história sobre o poder da evolução tecnológica em diversas áreas da
sociedade, tanto no presente quanto num futuro hipotético, muitas vezes distópico.
De maneira crítica e com alta qualidade técnica, os episódios funcionam como filmes
em média-metragem que objetivam à reflexão do espectador sobre a relação
homem-máquina. É interessante dizer que muitos episódios trazem discussões
significativas sobre a instauração presente ou futura da tecnoscopia, em que o
voyeurismo, principalmente, e também o exibicionismo e a vigilância, dados por
meio da mediação maquínica, trazem preocupantes consequências sociais. Nesse
contexto, destacam-se os episódios “The National Anthem”, “The Entire History of
You”, “Shut Up and Dance”, “Nosedive”, “White Christmas”, “White Bear”, “Hated in
the Nation” e “Men Against Fire”.
Desde o início, o broadcasting televisivo se apresentou como um democrático
meio para a exibição de imagens em movimento, antes restritas apenas às salas de
cinema. No entanto, o surgimento da câmera eletrônica de vídeo em 1941 e o
posterior uso popular iniciado na década de 1950 deram ao antes espectador a
possibilidade de se tornar um produtor de imagens sequenciais.
Nesses termos, o vídeo levou as imagens em movimento dos processos
ótico-químicos do cinema para o campo eletrônico. Assim, além de possibilitar novas
formas de experimentações em captação, tratamento e exibição de imagens, ele foi

31 Os sistemas de transmissão de conteúdo via streaming serão detalhados no próximo capítulo desta
tese.
133

o grande responsável pela democratização do acesso das ferramentas de captação


de imagens em movimento para as pessoas comuns.
A palavra vídeo é originária do latim “eu vejo”. Segundo Dubois (2004), vídeo
em latim não é só um verbo, vídeo é o ato do olhar exercido por um sujeito em ação,
implicando, ao mesmo tempo, uma ação em curso (um processo), um agente
operador (um sujeito) e uma adequação temporal ao presente histórico. Dessa
forma, “[...] ‘eu vejo’ é algo que se faz ‘ao vivo’; não é o ‘eu vi’ da foto (passadista),
nem o ‘eu creio ver’ do cinema (ilusionista); e tampouco o ‘eu poderia ver’ da
imagem virtual (utopista)” (idem, p. 72).
Enquanto técnica, o vídeo, que já correspondeu a uma prática marginal e até
clandestina, após sua expansão e consolidação se torna um meio hegemônico e
solidamente implantado no tecido social (MELLO, 2008). Principalmente com a
recente versão digital, a imagem videográfica é encontrada em vários lugares:
videogames, videostreaming, videochats, videochamadas, vídeos de celulares, live
images, videojockeys (VJs), vídeos de segurança, jornalísticos, publicitários, sociais,
institucionais, entre outros tipos que fazem dela uma mídia onipresente na
sociedade.
No que tange ao voyeurismo erótico existem, desde meados da segunda
metade do século XX, vídeos em circuitos fechados que são utilizados em motéis
como recursos para a estimulação erótica. Segundo Machado (1996), os amantes se
colocam no campo de visão da câmera e, enquanto se acariciam, se contemplam na
tela do monitor. O autor frisa que há casais que já não conseguem mais sentir
atração sexual se não puderem se contemplar, ao mesmo tempo, numa tela de TV.
Em alguns casos, as cenas dos amantes são gravadas e utilizadas pelo próprio
estabelecimento para a estimulação de outros indivíduos – surpreende o fato de que
tal gravação é feita muitas vezes com o consentimento do casal.
Hoje, essa questão se potencializa numa miríade de canais e sites da web
que promovem conteúdos sexuais com alcance global. Paralelamente explode a
produção amadora e se ampliam os meios de distribuição, os canais de difusão
exclusiva de vídeos, os sites de disponibilização gratuita de vídeos na internet, como
YouTube, Vimeo, Dailymotion, entre outros que que explicitam cenas da intimidade
alheia.
134

De fato, essas produções ocupam o pódio dos vídeos mais acessados


(visualizados) no momento. O voyeurismo digital contemporâneo dado por meio da
internet é um dos principais focos de análises desta tese, e o vídeo é primordial
nesse contexto. Por esse motivo, a linguagem videográfica na contemporaneidade
será retomada diversas vezes no texto.
No campo das artes visuais contemporâneas, o vídeo é uma das principais
ferramentas adotadas pelos artistas e ocupa lugar privilegiado nas galerias de arte e
nos acervos dos colecionadores. Com a democratização e a evolução técnica das
câmeras e dos sistemas computacionais digitais, ele transcendeu a exibição
tradicional do cinema e da TV (em single-channel, tela única) e se tornou um meio
versátil e, a priori, ilimitado para a experimentação artística, possibilitando a exibição
de imagens em multitelas e conjugadas com arquiteturas internas e externas
(videoinstalação e videomapping) ou mesmo a interatividade em tempo real, dentre
outros diálogos entre vídeo e arte computacional.
Em um amplo escopo de produções videográficas e computacionais que
tratam do voyeurismo tecnoscópico, “Fishtank”, elaborada pelo britânico Richard
Billingham (1970-) em 1998, entre outras que serão elencadas a posteriori, se
destacam como as principais (Figura 36).

!
Figura 36. “Fishtank”, de Richard Billingham. Frame da videoarte. 1998. Fonte: <https://
www.starandshadow.org.uk/on/film/1027>. Acesso em 01/03/2017.
135

Billingham se inspira no formato do reality show como proposição poética


para essa obra. Conforme Martin (2006), o artista gravou em vídeo o dia a dia da
sua família durante três anos e retratou, além do cotidiano dele, o pai alcoólatra, a
corpulenta mãe e o irmão desempregado. Essa produção transmitida pela BBC em
dezembro de 1998 mostrava, a princípio, “[...] uma família desesperada, vivendo
juntos em contato íntimo [...] O público sentiu-se embaraçadamente tocado e atraído
voyeuristicamente” (idem, p. 9).
Em 2001, o brasileiro Lucas Bambozzi (1965-) elaborou “4 Walls32“ (Figura
37), que já propunha uma discussão sobre a privacidade nos primeiros anos de
surgimento da internet doméstica. Na obra, Bambozzi misturou videoinstalação,
performance, internet e CD-ROM, para colocar o espectador como um voyeur dos
primórdios da imagem digital.

!
Figura 37. “4 Walls”, de Lucas Bambozzi. Fotografia da videoinstalação. 2001. Fonte: <http://
www.lucasbambozzi.net/archives/tag/microcinema>. Acesso em 20/04/2017.

De acordo com a Associação Cultural Videobrasil (2017, n.p.):

32 Uma versão interativa da obra pode ser acessada em: <http://www.comum.com/diphusa/meta/>.


136

[...] as imagens deste projeto se propõem como espelhos. São


situações que representam experiências ligadas ao ato de observar e
ser observado: sensação de se sentir um invasor em um espaço
particular. O projeto sugere que o espectador perceba a si mesmo
como um indivíduo inserido numa trama entre domínios públicos e
privados. Na forma de pequenas narrativas audiovisuais, as cenas
mostram situações que supostamente acontecem entre quatro
paredes (sexo, movimentos íntimos, ações repetidas ou
aparentemente sem nexo para um observador casual).
Ambiguamente simples e carregados de sentido, esses movimentos
representam situações ordinárias de um mundo real, sensações
advindas da observação ou do contato com o outro. Propondo uma
situação reversa, uma inversão de papéis em que o público se torna
o invasor, o projeto trata da simulação de sensações específicas, não
exatamente ligadas à representação do voyeurismo ou da perversão,
mas advindas de enfrentamentos que as pessoas geralmente evitam
no contato social. Conectados a um novo tipo de espaço público que
se forma virtualmente na internet, esses retratos em movimento
podem expressar sentimentos compatíveis com a “verdade”
estampada na face e nas ações das pessoas.

O videoartista australiano William Mansfield (1986-) produziu, em 2007, a


videoinstalação “151 Pitt St.” (Figura 38), que apresenta uma espécie de
videoescultura, com quatro projeções complementares direcionadas a um cubo
disposto no centro de uma sala da galeria de arte. As projeções exibem as quatro
fachadas do prédio localizado no endereço 151 Pitt St., na cidade de Sydney,
Austrália, e elas mostram os trabalhadores realizando atividades nos escritórios
desse prédio. Ao miniaturizar um prédio real e o expor na galeria, o artista promove
uma satisfação plena ao poder ver imagens da vida alheia de maneira privilegiada,
pois o es(x)pectador-voyeur se porta como um “gigante onividente” e fetichiza o
prédio como um objeto de adoração.
A videoinstalação “Voyeuristic Mirrorball” (Figura 39) realizada em 2011 pelo
artista e designer holandês Bart Polle (1983-) se vale de um objeto que simula uma
bola de cristal para a projeção nas paredes da galeria de um vídeo com imagens
que remetem ao voyeurismo. Essa bola, disposta no chão da galeria, possui uma
superfície espelhada que reflete a imagem vinda de um projetor instalado no teto. Tal
forma de rebatimento circular da projeção permite que as imagens sejam vistas por
toda a sala onde a bola de cristal está disposta. As imagens distorcidas por conta do
objeto que as reflete trazem um vídeo que mostra closes de zonas erógenas de
corpos masculinos e femininos sendo acariciadas. A distorção contribui para o “jogo
voyeurista”, ao passo que desperta a curiosidade do observador para poder
visualizar a imagem na íntegra.
137

!
Figura 38. “151 Pitt St.”, de William Mansfield. Fotografia da videoinstalação. 2007. Fonte: <http://
www.expialidocious.com.au/projects/151-Pitt-St/>. Acesso em 14/04/2017.

!
Figura 39. “Voyeuristic Mirrorball”, de Bart Polle. Fotografia da videoinstalação. 2011. Fonte: <http://
www.vimeoinfo.com/video/19234863/voyeuristic-mirrorball>. Acesso em 14/04/2017.

Os artistas Eve Sussman (1961-), inglesa, e Simon Lee (1956-), americano,


também se valeram da figura do prédio como elemento simbólico para as propostas
poéticas calcadas no voyeurismo. No vídeo “Seitenflügel” (Figura 40), de 2012, eles
exibem, em um único plano estático, uma das laterais de um prédio localizado em
Berlim, Alemanha – a imagem acompanha as atividades dos moradores do edifício
vistas pelas 24 janelas captadas. Nesse sentido, a película de 28 minutos mostra o
138

que acontece no local em diferentes momentos do dia – manhã, tarde, noite e


madrugada –, a partir de um mosaico formado por fragmentos da banalidade
cotidiana das diferentes vidas dos sujeitos que habitam o local.

!
Figura 40. “Seitenflügel”, de Eve Sussman e Simon Lee. Frame da videoarte. 2012. Fonte: <http://
broadmuseum.msu.edu/exhibitions/global-groove-19732012>. Acesso em 14/04/2017.

Produzia em 2012 pelos artistas italianos Emiliano Ponzi (1978-) e Giacomo


Benelli (1979-), a instalação que se vale da computação gráfica e que possui poética
semelhante às anteriores, denominada como “Sunrise Hotel” (Figura 41), reconstrói
a fachada de um hotel no interior de uma caixa de madeira, que ocupa parte de uma
sala na galeria de arte e que contém alguns buracos para observação, os quais
convidam os espectadores a espiar por eles. Estes, dão a visão da fachada de um
prédio, com um luminoso neon na parte superior que traz o nome do hotel e as
janelas dele. Nove das 28 janelas do edifício mostram simulações de quartos com as
luzes acesas, e cada uma exibe uma ilustração digital através de um pequeno painel
luminoso que traz imagens com flagrantes da privacidade dos “hóspedes” virtuais
desse hotel: uma cena de crime, uma freira rezando, um casal de noivos, uma
139

atividade sadomasoquista, uma mulher nua, uma empregada doméstica que olha
para o observador-voyeur etc. O Hotel Sunrise, que serviu de inspiração para a obra,
existe e está localizado no centro da cidade de Nova Iorque.

!
Figura 41. “Sunrise Hotel”, de Emiliano Ponzi e Giacomo Benelli. Fotografia da videoinstalação. 2012.
Fonte: <https://www.behance.net/gallery/5679679/THE-ART-OF-VOYEURISM>. Acesso em
14/04/2017.

No âmbito dos jogos eletrônicos, o aplicativo para smartphone “S.I.M. – Sara


is Missing” (Figura 42), desenvolvido em 2016 pela empresa Kaigan Games, sediada
na Malásia, promove uma experiência imersiva mais próxima à arte, em detrimento
do foco no entretenimento comum dos games – pois a proposição de um voyeurismo
tecnológico é um dos artifícios pelo qual o jogo pode se aproximar de uma
experiência estética. O aplicativo-game propõe que o es(x)pectador-interator-voyeur
tenha encontrado um telefone celular e, ao acessá-lo, obtenha informações sobre
sua dona (Sara). Com isso, pretende-se que o usuário tente encontrar dados no
smartphone que possam ajudá-lo a devolver o aparelho para Sara; para isso, é
preciso analisar mensagens, e-mails, notas, fotos e vídeos, tentando encontrar
140

pistas. Ao aprofundar nos arquivos, é despertado no interator o desejo voyeurístico


de invadir a privacidade da vida da garota por meio de um aparelho que carrega
informações e imagens de sua intimidade. Mas o voyeurismo dá lugar à tensão em
determinado momento, quando os arquivos levam a crer que Sara pode estar em
perigo. A narrativa do jogo é construída a partir das decisões do usuário, podendo
chegar a diferentes finais.

!
Figura 42. “S.I.M. – Sara is Missing”, desenvolvido por Kaigan Games. Imagem de divulgação do jogo
eletrônico. 2016. Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=jUWSnZxDdqY>. Acesso em 14/04/2017.

Esses são apenas alguns exemplos de produções que lançam mão das
linguagens e técnicas audiovisuais contemporâneas para tratar do voyeurismo na
atualidade. É possível constatar novamente, nesse ponto da leitura, que o
crescimento da quantidade de produções que remetem ao voyeurismo e aos seus
desdobramentos (exibicionismo e vigilância) é diretamente proporcional ao avanço
das tecnologias de captação e exibição de imagens. Machado (2007, p. 14) infere
que “[...] talvez até se possa dizer que um dos papéis mais importantes da arte numa
sociedade tecnocrática seja justamente a recusa sistemática de submeter-se à
lógica dos instrumentos de trabalho”. Com isso, os artistas se apropriam não apenas
de imagens voyeuristas, mas também das próprias tecnologias escópicas para
propor poéticas e tecer reflexões que venham a contribuir para o entendimento
crítico acerca da realidade instaurada e sobre o que está por vir.
141

CAPÍTULO 2. EXIBICIONISMO: COMBUSTÍVEL TECNOSCÓPICO

A finalidade ativa (olhar), é substituída pela finalidade passiva (ser


olhado). [...] A essência do processo é, assim, a mudança do objeto,
ao passo que a finalidade permanece inalterada. [..] a transformação
da atividade em passividade convergem ou coincidem (FREUD,
1996, p. 132).

A contemporaneidade está repleta de produtos e serviços que nutrem um


voyeurismo tecnoscópico em grande escala: fotografias selfies, vídeos em streaming
pré-gravados ou realizados ao vivo pelo próprio autorretratado, reality shows,
serviços de webcams eróticos em tempo real, incontáveis “postagens” sobre “si
mesmos” na web, aplicativos de compartilhamento de localização e de envio de
imagens, entre outros. As imagens geradas por esses produtos e serviços são vistas
intermitentemente pelos sujeitos voyeuristas contemporâneos e produzidas a partir
de uma lógica extremamente exibicionista.
O exibicionismo é o referente oposto do voyeurismo e o combustível do
voyeur tecnoscópico. Antes, o sujeito voyeurista deveria ser um aventureiro: era
necessário desbravar as barreiras da intimidade alheia com seu olhar bisbilhoteiro,
ao procurar fissuras e brechas em janelas, paredes, portas, roupas, entre outros
itens “veladores” que ocultavam o objeto de sua satisfação escópica. Hoje, em
busca da visibilidade, uma grande parcela da população se exibe frente às câmeras
conectadas, satisfazendo voyeurs de plantão com toneladas de megabytes de suas
intimidades.
No entanto, exibicionismo contemporâneo não é apenas oposto ao
voyeurismo, mas também complementar a ele. No voyeurismo “tradicional”, a
atividade deveria ser solitária e oculta, e o voyeur não poderia ser revelado; se ele
fosse descoberto e a pessoa observada, ainda assim, continuasse a se mostrar,
ambos ingressariam em um jogo totalmente exibicionista, pois aquele que se exibe
deve, sempre, se exibir para um observador (se não houver es(x)pectador, não há
exibicionismo). Desse modo, constata-se que o exibicionismo sempre necessitará do
olhar alheio – mesmo que não haja um observador de fato, o sujeito exibicionista
sempre fantasia que ele está em observação.
Por conta das tecnologias de captação de imagem, o exibicionismo pode
nutrir voyeurs solitários e ocultos que observam fotografias e vídeos no anonimato, a
partir de seus computadores ou aparelhos celulares. Cabe lembrar que, muitas
142

vezes, o voyeurismo se “distorce” no ato da interação com as imagens dispostas na


internet, mas, ainda assim, continua a ser um tipo de voyeurismo interativo
(“transformado”), em face da tecnoscopia. Nesse ínterim, pode-se dizer que o sujeito
voyeurista continua a ser um voyeur, mesmo quando participa ativamente do jogo
exibicionista nos dias atuais. Diante dessa complexa questão de terminologias e
categorizações, o conceito tecnoscopia auxilia no entendimento de uma situação
que possui camadas “liquefeitas” e que “escorrem pelos dedos” de quem tenta
analisá-las.
Voltando à analogia com a teoria das cores, no âmbito “tradicional”, o
voyeurismo e o exibicionismo são (ou eram) opostos e se contrastavam em seu
cerne – enquanto este apenas se mostra, aquele apenas observa. Mas, no campo
tecnoscópico contemporâneo, há trocas recíprocas entre ambos os conceitos, ao
ponto de um não poder existir sem o outro, dado que os sujeitos que “veem” também
têm a necessidade constante de “serem vistos”. O voyeur e o exibicionista trocam
seus papéis com frequência e se completam justamente por serem opostos; define-
se, assim, outro vértice do triângulo escópico: o exibicionista.
É possível que o exibicionismo seja o grande precursor da instauração da
tecnoscopia. O voyeurismo continua sendo, de fato, o principal vértice do triângulo,
pois, a partir dele, os demais conceitos (exibicionismo e vigilância) decorrem. Alguns
autores, no entanto, abordam que nas últimas décadas há uma revolução em
trânsito que afetou a subjetividade dos indivíduos em boa parte do mundo, a partir
da busca incessante por visibilidade e fama.
Sibilia (2016), por exemplo, discorre sobre como a intimidade se tornou
pública a partir da segunda metade do século XX, com o desenvolvimento das
tecnologias de comunicação. Para a autora, hoje há um interesse muito maior nos
aspectos íntimos, cotidianos e banais da vida dos sujeitos observados que supera,
inclusive, as ficções do cinema e da literatura. Há maior foco no indivíduo do que em
sua obra, no que a pessoa é em detrimento daquilo que ela faz. Assim, um novo
regime de visibilidade, por vezes ditatorial, está presente na sociedade
contemporânea.
Nos itens a seguir, o exibicionismo será analisado em sua origem epistêmica,
no campo da psicologia e da psicanálise, assim como ocorreu com o voyeurismo.
Mas, diferentemente do capítulo anterior, a análise sobre o termo em sua origem
143

conceitual dar-se-á concomitantemente à abordagem da atuação dele na


contemporaneidade tecnológica. Visto que as primeiras questões tecnoscópicas já
foram postas, a continuidade do entendimento de tal estado de coisas será facilitada
dessa maneira.

2.1 Exibicionismo tecnoscópico: dependência e espetáculo

A necessidade de exibir a vida privada tomou conta de vários aspectos


socioculturais e atingiu a indústria cultural e a comunicação visual como um todo,
num processo tecnoscópico ainda em continuidade e difuso. Sibilia (2016, p. 55) traz
à tona a interessante interrogação: “[...] essas novas formas de expressão e
comunicação que hoje proliferam – blogs, perfis pessoais nas redes de
relacionamentos, selfies e vídeos caseiros – devem ser consideradas vidas ou
obras?” A autora considera uma transformação da realidade em entretenimento e,
para nomear esse aspecto contemporâneo, ela se vale do conceito “lifies” criado por
Neal Gabler em 1998, que seria um:

[...] trocadilho que fusiona as palavras life (vida) e movies (filmes).


[...] Gabler mostra que o entretenimento lateja na medula dos
Estados Unidos. Com a sua influência cultural e econômica
desdobrada em nível global a partir da segunda metade do século
XX, as características peculiares dessa sociedade teriam se
generalizado em todo o planeta (SIBILIA, 2016, p. 316).

A cultura americana exerceu grande influência em todo o mundo,


principalmente no ocidente, e disseminou seu estilo de vida baseado na
espetacularização, o que advém do monopólio econômico-cultural conquistado
principalmente pela indústria do cinema e da música. Espetacularizar a vida dos
ícones americanos foi uma maneira que essa nação conseguiu para conquistar o
posto político-econômico de elite mundial a partir da Segunda Guerra. Essa cultura
se espalhou para a vida das pessoas comuns em todo o planeta; então, não é
nenhum exagero prever que a vida cotidiana é “vivida como o roteiro de um filme”,
um “lifie”.
Hoje, como nunca, a disseminação do lifie se tornou muito mais facilitada e
democrática. Com os produtos advindos da web 2.0, a distribuição do “filme de si
mesmo” em capítulos ilimitados não está relegada apenas às estrelas e celebridades
144

vinculadas aos poderosos estúdios de cinema e à grande mídia, dado que qualquer
um pode ter o “filme de sua vida” exibido.
O reality show e os demais produtos vérités já evidenciavam a
espetacularização da intimidade desde a década de 1970, mas a web 2.0
democratizou a autoexposição e permitiu a quem quiser ter seu próprio reality show,
como ocorreu com o fenômeno erótico da década de 1990, JenniCam, e com a
transmissão da própria intimidade via streaming nas redes sociais, a exemplo dos
Youtubers – tais questões serão melhor analisadas a posteriori. Soma-se a isso uma
série de produções autobiográficas realizadas nas redes sociais ou em outros meios
que Sibilia (2016) e Bauman e Lyon (2013) tratam como produtos “confessionais”,
propondo um híbrido entre relatos reais e fotografias (na maioria, selfies) dos
próprios autores.
Nesse entremeio, Canevacci (2008) analisa um site muito famoso da
atualidade: o SuicideGirls, cujas imagens são enviadas pelas próprias retratadas ou
autorretratadas. Para serem aceitas, elas devem ser sensuais ou eróticas e, além do
exibicionismo do corpo, as mulheres devem se enquadrar em um determinado estilo
transgressivo contemporâneo (Figura 43).

!
Figura 43. Imagem de divulgação do site SuicideGirls. Fonte: <http://suicidegirls.tumblr.com/post/
50878147952/radeo-in-heliotrope>. Acesso em: 18/03/2017.
145

As jovens trazem corpos “[...] cheios de piercing, tatuagens, descolorações,


depilações de matriz mais ou menos extrema. Um extremo estilizado e estetizado
pelo gosto fashion quase vitoriano, com trocas gothic, punk, indie-
styled” (CANEVACCI, p. 69-70). Para esse autor, as “novas mulheres liberais”
emergem de um projeto de revanche adulta, que:

[...] reúne quem sempre odiou os arquipélagos hippies e que, no


fundo, babava por aquelas mulheres “liberadas” sexualmente; ou os
veteranos da transgressão mal digerida há tempos e agora
enquadrada como “liberal”; reacionárias absolutas do tipo “agora eu o
faço me ver” (idem).

O SuicideGirls é apenas um exemplo na infinidade de outras formas de


espetáculos vérités de si mesmos (“lifies”) do tipo do it yourself (DIY: faça você
mesmo). Estes são bastante significativos na instauração da tecnoscopia
contemporânea, sobretudo por disseminar a possibilidade de “ser visto” para todos
os exibicionistas em potencial que procuravam maneiras de fazer isso. Os produtos
culturais evidenciam um escopo muito mais amplo, com raízes em questões
psicossociais que serão detalhadas a seguir.

2.1.1 Necessidade de “ser visto”: parafilias e transtornos

A palavra “eu” é utilizada na “[...] filosofia e na psicologia para designar a


pessoa humana como consciente de si e objeto do pensamento” (ROUDINESCO;
PLON, 1998, p. 210). Freud se referiu às questões do “eu” em diversas fases, como
no momento em que se propôs a refletir sobre o narcisismo, ponto de partida para o
entendimento do exibicionismo sob a ótica da psicanálise e da psicologia33.
No campo da escopofilia, Freud (1996a) abordou a reversão da pulsão do
olhar no seu oposto: a pulsão de se sentir olhado. Na psicanálise freudiana, o “ver” e
o “ser visto” foram analisados como duas faces de uma mesma moeda. Os estudos
de Freud sobre o narcisismo parecem antever em 100 anos o estado de coisas
exibicionista-narcisista tecnoscópico contemporâneo. Segundo o site Globo News
(2014, n.p.), “[...] na época em que o selfie e as redes sociais estão em alta, o livro

33A noção de narcisismo como fator fundamental para a pulsão de “ser visto” na contemporaneidade
será desconstruída a posteriori. Todavia, é importante entendê-lo inicialmente para depois proceder
com essa desconstrução.
146

‘Introdução ao Narcisismo’, um dos textos mais importantes de Sigmund Freud,


completa 100 anos e se mantém atual”.
É interessante retomar mais uma vez o mito do Narciso nesta tese, pois,
neste capítulo em especial, tal mito é ainda mais válido e exemplar, porque os
sujeitos tecnoscópicos parecem se “afogar no espelho (d’água)” de sua própria
imagem, dada a dependência que possuem da tecnoscopia para a legitimação de si
mesmos, a partir de suas práticas exibicionistas-narcisistas. Nas palavras de
Roudinesco e Plon (1998, p. 530):

[...] na tradição grega, o termo narcisismo designa o amor de um


indivíduo por si mesmo. A lenda e o personagem de Narciso foram
celebrizados por Ovídio na terceira parte de suas Metamorfoses.
Filho do deus Céfiso, protetor do rio do mesmo nome, e da ninfa
Liríope, Narciso era de uma beleza ímpar. Atraiu o desejo de mais de
uma ninfa, dentre elas Eco, a quem repeliu. Desesperada, esta
adoeceu e implorou à deusa Nêmesis que a vingasse. Durante uma
caçada, o rapaz fez uma pausa junto a uma fonte de águas claras:
fascinado por seu reflexo, supôs estar vendo um outro ser e,
paralisado, não mais conseguiu desviar os olhos daquele rosto que
era o seu. Apaixonado por si mesmo, Narciso mergulhou os braços
na água para abraçar aquela imagem que não parava de se esquivar.
Torturado por esse desejo impossível, chorou e acabou por perceber
que ele mesmo era o objeto de seu amor. Quis então separar-se de
sua própria pessoa e se feriu até sangrar, antes de se despedir do
espelho fatal e expirar. Em sinal de luto, suas irmãs, as Náiades e as
Díades, cortaram os cabelos. Quando quiseram instalar o corpo de
Narciso numa pira, constataram que havia se transformado numa
flor.

De acordo com esses autores, o termo narcisismo foi utilizado pelos


sexólogos até o fim do século XIX para designar a perversão sexual caracterizada
pelo amor do sujeito a si mesmo. A posteriori, Freud o considerou um fenômeno
libidinal e o tratou essencialmente nas teorias do desenvolvimento sexual do ser
humano. O narcisismo freudiano, então, designa “[...] a conduta em que o indivíduo
trata o próprio corpo como se este fosse o de um objeto sexual, isto é, olha-o, toca
nele e o acaricia com prazer sexual, até atingir plena satisfação mediante esses
atos” (FREUD, 2010, p. 10). Freud (idem) afirma que o narcisismo concerne a um
tipo de atividade autoerótica que atua como “[...] complemento libidinal do egoísmo
do instinto de autoconservação, do qual justificadamente atribuímos uma porção a
cada ser vivo”. Nessa análise, o narcisismo possui um caráter comum a todos os
indivíduos, que varia de maior a menor grau, dependendo de questões sociais, de
gênero e psicopatológicas, sobretudo.
147

No âmbito do DSM-5, o narcisismo patológico não se enquadra como uma


parafilia, assim como o exibicionismo e o voyeurismo são categorizados, sendo visto
como Transtorno da Personalidade Narcisista, constituído de um “[...] padrão difuso
de grandiosidade (em fantasia ou comportamento), necessidade de admiração e
falta de empatia que surge no início da vida adulta e está presente em vários
contextos” (APA, 2014, p. 669).
DSM e Freud balizam o narcisismo no egoísmo. No entanto, o narcisismo em
Freud, como visto, é um traço de personalidade comum a todo ser humano,
enquanto o DSM trata do agravamento crônico dessa personalidade arrogante,
chegando ao ponto de ser categorizado como transtorno. Disso decorre uma
importante inquietação: com a disseminação da superexposição do “eu” na
contemporaneidade e a busca incessante por visibilidade e fama, esse narcisismo
global é normal ou um transtorno generalizado? Pode-se especular que grande parte
da população, em face da necessidade exibicionista de “ser vista” nos meios digitais,
tende ou procura ser importante, poderosa, especial, admirada, excepcional,
vantajosa diante de relações interpessoais, apática, invejosa, arrogante etc. – em
suma, atende-se a praticamente todos os itens descritos como um transtorno
narcisista. Isso leva a outra importante indagação: o transtorno da personalidade
narcisista disseminado em grande escala seria o grande mal que afeta
principalmente os nativos digitais?
Pode-se especular que esse tipo de transtorno narcisista generalizado
também é negligenciado ao diagnóstico clínico na contemporaneidade e incentivado
pela cultura midiática global, dada a necessidade de visibilidade intermitente e de
autopromoção sem pudores, escrúpulos ou modéstia. A sociedade tecnoscópica
pede a autoafirmação constante e ininterrupta, e aquele que não se autoafirmar e
“se mostrar” estará “navegando contra a corrente”, com o risco de “morrer” no mar
do anonimato. Enriquez (2004, p. 49 apud BAUMAN; LYON, 2013, p. 43) relata que,
hoje, “[...] aqueles que prezam por sua invisibilidade tendem a ser rejeitados, postos
de lado ou transformados em suspeitos de um crime. A nudez física, social e
psicológica está na ordem do dia”.

Nos dias de hoje, o que nos assusta não é tanto a possibilidade de


traição ou violação da privacidade, mas o oposto, o fechamento das
saídas. A área da privacidade transforma-se num lugar de
encarceramento, sendo o dono do espaço privado condenado e
148

sentenciado a padecer expiando os próprios erros; forçado a uma


decisão marcada pela ausência de ouvintes ávidos por extrair e
remover os segredos que se ocultam por trás das trincheiras da
privacidade, por exibi-los publicamente e torná-los propriedade
comum de todos, que todos desejam compartilhar. Parece que não
sentimos nenhum prazer em ter segredos, a menos que sejam do
tipo capaz de reforçar nossos egos atraindo a atenção de
pesquisadores e editores de talk shows televisivos, das primeiras
páginas dos tabloides e das capas das revistas atraentes e
superficiais (BAUMAN; LYON, 2013, p. 41).

Conjugado ao narcisismo, o exibicionismo como parafilia agrega valor ao


primeiro no âmbito da tecnoscopia, permitindo que ambos sejam tratados num
mesmo escopo de discussão, com trocas conceituais recíprocas. O DSM-4, de 1994,
apontava o exibicionismo parafílico como uma perversão que se caracterizava pela
exposição dos próprios genitais a um estranho, sendo comum o indivíduo se
masturbar durante a exposição ou enquanto fantasia estar se expondo (APA, 2002)
– constata-se, aqui, um caráter autoerótico que também se relaciona ao narcisismo.
Para Freud (2010), o autoerotismo designa um comportamento sexual de tipo
infantil, em que o sujeito encontra prazer unicamente com seu próprio corpo, sem
recorrer a qualquer objeto externo.
A satisfação narcísico-erótica, no caso exibicionista, necessita do olhar alheio
– no ato de “ser visto”. Expondo sua intimidade, o exibicionista parafílico tem sua
satisfação sexual. Segundo a APA (2002), se o indivíduo age nesse contexto,
geralmente não existe qualquer tentativa de uma atividade sexual adicional com o
estranho.
Da mesma maneira que as outras parafilias antes abordadas, hoje o
exibicionismo é considerado transtorno apenas se o grau de prevalência for crônico
o suficiente para causar prejuízos físicos e sociais à vida do sujeito – e isso
acompanha também as importantes mudanças em face do DSM-4 para o DSM-5,
antes relatadas. No voyeurismo e nas demais parafilias, o DSM-4, por ser
categórico, era mais rígido: todo parafílico já era diagnosticado com um transtorno.
Já no DSM-5, a lógica dimensional o tornou mais flexível, e o indivíduo agora pode
ser um parafílico dentro de uma “normalidade”, sem necessitar de tratamento clínico,
se a parafilia não for prejudicial ao sujeito ou às demais pessoas de seu convívio. É
parafilia, mas não transtorno. No entanto, o exibicionismo enquanto parafilia se
difere, na maioria dos casos, do exibicionismo tecnoscópico aqui tratado. As
pessoas exibicionistas contemporâneas costumam exibir seus corpos (muitos ainda
149

com algum pudor) e a banalidade ou a excepcionalidade de suas vidas, enquanto o


exibicionista parafílico exibe seus órgãos sexuais para conseguir prazer erótico.
Mas, em uma relação simples, os exibicionistas tecnoscópicos se mostram também
por prazer, para satisfazer uma necessidade de “ser visto”, e eles se satisfazem
quando conseguem a quista visibilidade, num processo narcisista de autoafirmação.
A partir desse ponto de vista, a parafilia pode ser transposta do âmbito sexual para
um contexto mais geral.
Mas há também os casos muito comuns que podem ser tratados como
exibicionistas tecnoscópicos parafílicos de per si: são milhares de pessoas que
exibem seus corpos sem pudor, explicitando genitálias em situações solo ou no ato
sexual interpessoal, e as compartilham de maneira exibicionista consentida na
internet. E isso é feito, em parte dos casos, para além de uma necessidade
narcisista, pois algumas delas só conseguem satisfação sexual se estiverem em
observação ou se pensarem que serão observadas. Isso se enquadra no contexto
de fotografias e vídeos selfies que são conjugados com a prática do sexting, o que
será tratado a posteriori neste texto.
O DSM-4 salientava que a parafilia exibicionista geralmente se inicia antes
dos 18 anos. Pelo fato de poucos indivíduos mais velhos serem detidos, sugeriria
que a condição se torna menos severa após os 40 anos de idade (APA, 2002).
Diante da jovialidade dos indivíduos exibicionistas parafílicos, nota-se uma relação
com a autoexploração sexual infantil e adolescente, características inerentes à
maturação sexual, somadas ao culto ao corpo e à legitimação da própria beleza.
Estas, são encontradas no narcisismo como traço de personalidade abordado por
Freud, mas são muito próximas àquelas apresentadas pelos novos exibicionistas
digitais, o que corrobora mais uma vez a relação entre narcisismo e exibicionismo.
Segundo Freud (2010, p. 22):

[...] as primeiras satisfações sexuais autoeróticas são


experimentadas em conexão com funções vitais de autoconservação.
Os instintos sexuais apoiam-se de início na satisfação dos instintos
do Eu, apenas mais tarde tornam-se independentes deles; mas esse
apoio mostra-se ainda no fato de as pessoas encarregadas da
nutrição, cuidado e proteção da criança tornarem-se os primeiros
objetos sexuais, ou seja, a mãe ou quem a substitui. Junto a esse
tipo e essa fonte de escolha de objeto, que podemos chamar de tipo
de apoio, a pesquisa analítica nos deu a conhecer um outro, que não
esperávamos encontrar. De modo especialmente nítido em pessoas
cujo desenvolvimento libidinal sofreu perturbação, como pervertidos
150

e homossexuais, descobrimos que não escolhem seu posterior


objeto de amor segundo o modelo da mãe, mas conforme o de sua
própria pessoa. Claramente buscam a si mesmas como objeto
amoroso, evidenciando o tipo de escolha de objeto que chamaremos
de narcísico. Nessa observação se acha o mais forte motivo que nos
levou à hipótese do narcisismo.

De acordo com a concepção de Freud, existem dois tipos de narcisismo: um


“natural”, diretamente ligado ao instinto de autoconservação original da criança; e
outro de apoio ou “perverso”, que surge a partir da perturbação do modelo comum
de maternidade e, por isso, a pulsão sexual (o objeto de amor) se volta ao próprio
corpo – nesse último caso surgem os narcisistas patológicos e os homossexuais.
Deve-se constatar que, na época de Freud (final do século XIX e início do século
XX), o homossexualismo era analisado no âmbito dos distúrbios psíquicos e das
disfunções sexuais, questão que não será abordada nesta pesquisa, pois o assunto
é amplo o suficiente para necessitar de uma análise mais profunda. Obstante a isso,
é claro que todo ato narcísico tem conotações homoeróticas, visto que o objeto de
satisfação é sempre a própria pessoa (o próprio sexo).
Para Freud, a questão de gênero também influencia no desenvolvimento do
comportamento narcisista após a puberdade, diferenciando-se em homens e
mulheres, algo fácil de ser constatado nas trocas online atuais. Nesse caso, as
mulheres tidas como “mais belas” tendem a se tornar as mais narcisistas –
principalmente na época de seus escritos, dada as convenções sociais do período:

Com a puberdade, a maturação dos órgãos sexuais femininos até


então latentes parece trazer um aumento do narcisismo original, que
não é propício à constituição de um regular amor objetal com
superestimação sexual. Em particular quando se torna bela, produz-
se na mulher uma autossuficiência que para ela compensa a pouca
liberdade que a sociedade lhe impõe na escolha de objeto. A rigor,
tais mulheres amam apenas a si mesmas com intensidade
semelhante à que são amadas pelo homem. Sua necessidade não
reside tanto em amar quanto em serem amadas, e o homem que
lhes agrada é o que preenche tal condição. A importância desse tipo
de mulher para a vida amorosa dos seres humanos é bastante
elevada. Tais mulheres exercem a maior atração sobre os homens,
não apenas por razões estéticas, porque são normalmente as mais
belas, mas também devido a interessantes constelações psicológicas
(FREUD, 2010, p. 23-24).

Outro traço muito comum do narcisista contemporâneo é apontado pelo


DSM-5 como a autoestima destes sujeitos. Mesmo que o narcisista seja
suficientemente egoísta, ele apresenta, de maneira quase paradoxal, certa
151

vulnerabilidade na autoestima, o que torna os “[...] indivíduos com transtorno da


personalidade narcisista muito sensíveis a ‘feridas’ resultantes de crítica ou
derrota” (APA, 2014, p. 671). Essa vulnerabilidade é importante para a discussão,
pois se relaciona diretamente com uma contemporânea forma de dependência
tecnológica (ou melhor dizendo: tecnoscópica). “Embora possam não evidenciar isso
de forma direta, a crítica pode assustá-los, deixando neles sentimentos de
humilhação, degradação, vácuo e vazio. Podem reagir com desdém, fúria ou contra-
ataque desafiador” (idem).
Em face da interação com os serviços digitais, sobretudo com as redes
sociais online, a constante autoafirmação de sujeitos narcísico-exibicionistas pode
causar sofrimento. Ao publicar nas redes um autorretrato (selfie), por exemplo, a
pessoa que o “postou”34 acompanha toda ou parte da interação dos demais
tecnoscopistas ativos – voyeuristas e vigilantes de plantão – com a imagem postada.
Ou seja, a legitimação do ego da pessoa que “se mostra” só ocorre se o feedback de
sua publicação a satisfizer o suficiente. Se não houver interação satisfatória ou se as
interações não forem do gosto do sujeito narcisista-exibicionista, há o sofrimento
dele, afetando sua autoestima.
A espera incessante pela participação alheia parece nutrir um tipo de
dependência tecnoscópica, pois o sujeito mais atua no feedback do que satisfaz seu
desejo de fato (exibicionista ou narcisista). Constata-se que a repercussão positiva
ou negativa dessa prática autoafirmativa sequer é relevante, pois a quantidade de
interações – “visualizações”, “curtidas”, “comentários” e “compartilhamentos”, por
exemplo – sobrepõe a qualidade da participação. O quantitativo é algo buscado por
milhões de internautas que sonham em ser famosos, em detrimento da qualidade do
feedback, o que retoma uma prática há tempos realizada no âmbito do marketing
pessoal das celebridades: “falem mal, mas falem de mim”.
Aqui se insere um problema conceitual importante: os narcisistas e
exibicionistas “tradicionais” são diferentes dos novos tipos tecnoscópicos. Tal como o
voyeurismo, eles parecem ter se transformado e comungam características com
outros contextos diferenciados. Por exemplo, um narcisista “tradicional” que gosta de
se admirar no espelho, a exemplo de Narciso na origem do mito, é diferente daquele
sujeito que vive o consumismo excessivo para alimentar sua autoestima. Em muitos

34 Neologismo referente à postagem, ao ato de publicar um conteúdo nos serviços da web 2.0.
152

casos, as pessoas usam a defesa dessa autoimagem narcísica para mascarar a


insegurança e sua baixa autoestima de fato – ou seja, esse não é um problema de
um ego inflado, como sempre se suspeitou no âmbito das redes sociais, mas de um
ego sempre inseguro. Então, pode-se indagar: As pessoas que mais “se mostram”
na internet são aquelas que têm maiores problemas com sua autoestima? Essa
reflexão fica também para o leitor, mas a reposta positiva não parece ser precipitada.
Hoje, “se mostrar” (se exibir) é muito mais uma autoafirmação no sentido de
ter a aprovação e a legitimação do olhar alheio, do que simplesmente uma questão
de se gostar (narcisista). O novo narcisista quebra também o cânone do narcisismo
“tradicional”, pois precisa provar para o outro regularmente e é dependente da
opinião alheia. No âmbito do DSM, o problema com a autoestima foi dado em face
da não aceitação das críticas negativas, mas, nesse caso, a questão parece ser
muito mais ampla, pois os sujeitos parecem se tornar mais dependentes do que
narcisistas de per si. Isso leva à retomada das discussões relacionadas à
dependência tecnoscópica, iniciadas no primeiro capítulo desta tese.
Claramente, a tecnoscopia se dá no campo da dependência da máquina e
das ferramentas culturais para “ver” e “ser visto”. As pulsões de ver a intimidade
alheia e mostrar a intimidade geram uma dependência que, no exibicionismo
tecnoscópico, parece ser mais agravante, dado que o exibicionista precisa do
voyeurista interativo para se satisfazer. O contrário nem sempre é necessário: o
voyeur necessita de algo para ver, é claro, mas ainda pode buscar por isso sozinho,
enquanto o exibicionista sofre, se não tiver quem o veja. No domínio da dependência
do exibicionista, a tecnoscopia gira e se retroalimenta, diante da interação do
voyeurista tecnoscópico. Mesmo se ele não interagir com a imagem (“curtindo”,
“comentando” e/ou “compartilhando”), a própria “visualização” já foi registrada e
computada para satisfazer o ego narcísico quantitativo do exibicionista, ou seja, de
toda forma, o voyeurista tecnoscópico interage com a imagem digital, mesmo
quando apenas a vê.
A dependência exibicionista tecnoscópica age também para disseminar um
Transtorno de Personalidade Dependente (TDP) que, de acordo com o DSM-5, se
caracteriza pela necessidade difusa e excessiva de ser cuidado, o que leva aos
comportamentos de submissão, apego ao outro e temores pela possível separação.
Esses comportamentos se formam com o intuito de conseguir o cuidado do outro, e
153

eles advêm de uma autopercepção de não ser capaz de funcionar adequadamente


sem a ajuda de outra pessoa (APA, 2014). Para ser diagnosticado com o transtorno,
o indivíduo deve atender a cinco ou mais dos seguintes critérios:

1. tem dificuldades em tomar decisões cotidianas sem uma


quantidade excessiva de conselhos e reasseguramento de outros; 2.
precisa que outros assumam responsabilidade pela maior parte das
principais áreas de sua vida; 3. tem dificuldades em manifestar
desacordo com outros devido a medo de perder apoio ou aprovação
(nota: não incluir os medos reais de retaliação); 4. apresenta
dificuldade em iniciar projetos ou fazer coisas por conta própria
(devido mais a falta de autoconfiança em seu julgamento ou em suas
capacidades do que a falta de motivação ou energia); 5. vai a
extremos para obter carinho e apoio de outros, a ponto de
voluntariar-se para fazer coisas desagradáveis; 6. sente-se
desconfortável ou desamparado quando sozinho devido a temores
exagerados de ser incapaz de cuidar de si mesmo; 7. busca com
urgência outro relacionamento como fonte de cuidado e amparo logo
após o término de um relacionamento íntimo; 8. tem preocupações
irreais com medos de ser abandonado à própria sorte (APA, 2014, p.
675).

Ao comparar os critérios diagnósticos às atividades online, é inegável a


disseminação de características inerentemente dependentes dos usuários. De
maneira espantosa, a tecnoscopia parece incentivar uma codependência
interpessoal em escala global, o que possui pretensões econômico-capitalistas –
isso será discutido no Capítulo 3 e, assim, decorrerá o fechamento do triângulo
tecnoscópico. O mais preocupante, no entanto, é que grande parte das trocas online
contempla quase todos os critérios acima descritos para o Transtorno de
Personalidade Dependente. O feedback dado por “visualizações”, “curtidas”,
“comentários” e “compartilhamentos”, a constante aprovação do outro em demérito
às próprias ideias e investimentos, e a abertura completa das “portas da intimidade”
são alguns exemplos do enquadramento aos critérios do TPD. No entanto, o mais
crônico e preocupante no âmbito desta pesquisa é o atendimento ao critério número
5, no qual o sujeito “[...] vai a extremos para obter carinho e apoio de outros, a ponto
de voluntariar-se para fazer coisas desagradáveis” (APA, 2014, p. 675).
Muito comum na atualidade, uma pessoa recorre a atitudes que contrariam
seus próprios princípios ou as convenções morais, submetendo-se a um tipo de
atividade que pode trazer consequências negativas para a vida dela. Quando uma
pessoa “posta”, por exemplo, uma fotografia sensual, é provável que no futuro, para
conseguir mais interações, ela publique outra fotografia com uma roupa ainda mais
154

decotada; e não satisfeita (e para conseguir ainda maior visibilidade), sua próxima
fotografia mostrará ela seminua ou nua. Isso gera a necessidade ilimitada da
legitimação do ego dependente do olhar do outro que pode, tal qual o Narciso
original, levar a pessoa a se “afogar na própria imagem”. Resultados drásticos se
aglomeram em notícias por todo o mundo, principalmente em relação a suicídios de
adolescentes que não tiveram maturidade psicológica o suficiente para lidar com as
consequências da superexposição, o que será melhor discutido no próximo item
deste capítulo.
Mecler (2015) aponta o “medo” como um dos principais motivadores do TPD.
Para a autora, o medo (na maioria das vezes irreal) da pessoa em ser abandonada e
não conseguir sobreviver sozinha pode levá-la a tentar de tudo para ter alguém ao
lado. Carente e insegura, ela dedica todo o seu tempo e energia para quem
considerar importante em sua vida, situação que se agrava à medida que o número
de indivíduos importantes se multiplica consideravelmente pela quantidade de
“amigos” virtuais que possui.
A referida autora também elenca outras inter-relações entre o dependente e o
narcisista:

[...] o dependente deixa claro seu sentimento de inferioridade em


relação ao outro e considera um privilégio poder receber alguma
atenção, ainda que se ache tão desprovido de qualidades. Por isso,
quer retribuir de todas as formas possíveis. Sua autoestima oscila de
acordo com a recompensa que consegue. Para o narcisista, por
exemplo, conviver com alguém de estilo dependente é a glória. Afinal
de contas, o parceiro irá elogiá-lo, exaltar suas qualidades e,
naturalmente, fingir que não percebe seus visíveis exageros. Os
dependentes, por sua vez, sofrem com as constantes
desqualificações proferidas pelo companheiro (MECLER, 2015, p.
170).

O dependente nutre o ego do narcisista, enquanto o sujeito narcísico


“controla” o indivíduo com dependência como se fosse seu dono. Como já
constatado anteriormente, as pessoas exibicionistas se relacionam mais com os
dependentes, uma vez que se expõem por conta da expectativa do feedback, em
detrimento de uma personalidade narcísica em si. Ainda assim, é inegável que haja
traços do narcisismo aqui discutido nos sujeitos que se expõem no âmbito da
tecnoscopia, mesmo que isso a priori pareça conflituoso.
Nesse ponto da discussão, já é perceptível como os paradoxos conceituais
são inerentes a esta tese. Mesmo diante de uma contradição quase “impossível”, os
155

novos exibicionistas tecnoscópicos conseguem ser, ao mesmo tempo, narcisistas e


dependentes, em que há graus de cada transtorno de acordo com a etapa do
processo em que o sujeito se encontra: ao realizar um selfie, ele é narcisista, mas ao
“postá-lo”, esperando as centenas de potenciais “curtidas”, é dependente. A
dependência tecnoscópica e os respectivos desdobramentos são um dos assuntos
mais discutidos no âmbito da relação homem/tecnologia, principalmente em face do
exagerado uso dos dispositivos móveis, em especial dos smartphones. Para tratar
dessa dependência da utilização quase ininterrupta e “viciante” dos aparelhos
móveis, foi recentemente criado o termo nomofobia que, de acordo com King e Nardi
(2014, p. 4):

[...] se originou na Inglaterra a partir da expressão no-mobile, que


significa sem celular. Essa expressão uniu-se à palavra fobos, do
grego, que significa fobia, medo. [...] O mundo moderno viu a
necessidade de criar uma nomenclatura específica que pudesse
representar os sentimentos e sensações que estavam sendo
observados nos indivíduos relacionados às novas tecnologias.

Tais autores ressaltam que até recentemente não havia um vocábulo que se
referisse a sentimentos e sensações advindos da impossibilidade de comunicação
realizada por meio do telefone celular, do computador ou de outros dispositivos
móveis. Vale ressaltar que a nomofobia ainda não é uma área psicopatológica
oficialmente definida ou um transtorno categorizado pelo DSM. Segundo Belló
(2017, p. 7):

[...] ni en la quinta edición del Manual Diagnóstico y Estadístico de los


Trastornos Mentales (DSM-5) de la APA (APA) ni en la Clasificación
Internacional de Enfermedades CIE-10, no se ha aceptado a la
nomofobia como un trastorno mental. Es un síntoma más dentro de
la adicción al móvil.

Ainda assim, alguns profissionais já tentam propor possíveis tratamentos ou


outras maneiras de contribuir para a minimização dessa dependência e a
consequente fobia resultante do estado de não concretização do desejo dependente.
Os sintomas nomofóbicos são semelhantes às demais fobias e se manifestam nos
pacientes na forma de “[...] angústia, desconforto, insegurança e ansiedade quando
se viam impossibilitados de se conectar à internet ou sem o computador ou sem o
telefone celular” (KING; NARDI, 2014, p. 5).
156

Geralmente, as fobias são caracterizadas como transtornos de ansiedade que


derivam de medos específicos e que comumente têm relação com traumas
ocasionados por alguma experiência anterior: “Um aspecto importante do medo
fóbico é que o indivíduo pode ter consciência da irracionalidade do seu medo, ou
seja, ele sabe muitas vezes que seu medo é exagerado e injustificado” (KING;
NARDI, 2014, p. 7). No caso da nomofobia, o medo de não interagir com o aparelho
(de maneira comunicacional e tecnoscópica, evidentemente) não parece ter a priori
uma relação direta com traumas anteriores.
A ansiedade e o pânico nascem da privação do objeto de dependência.
Então, a nomofobia se relaciona mais com um tipo de estado de abstinência
neurobiológica dada pela falta do “vício” do que pelo trauma. Vício e dependência
possuem relações importantes para a discussão. Segundo Cruz (2014, p. 44):

[...] na revisão para o DSM-5, ocorre também a discussão sobre a


troca do termo dependence pelo termo addiction. Em português os
dois termos são traduzidos como dependência, mas autores de
língua inglesa defendem a troca afirmando que o termo dependence
está associado à ocorrência de tolerância e abstinência (que seriam
fenômenos fisiopatológicos, ou seja, do campo da neurobiologia),
enquanto o termo addiction seria mais adequado para descrever as
modificações comportamentais, como o comportamento de procura
compulsiva pelo uso da droga. O fato de um determinado
comportamento constituir ou não uma dependência envolve uma
discussão conceitual relevante que deve ser levada em conta quando
se considera a questão da nomofobia e da dependência de telefones
celulares. Mesmo no que se refere ao uso de substâncias
psicoativas, o termo dependência não é uma construção estável ou
antiga e sua história pode contribuir para a definição de categorias
para comportamentos contemporâneos, como é o caso do uso do
celular, do computador, da internet e do videogame.

No final da década de 1990 e no começo dos anos 2000, muito se falou sobre
o vício do uso do computador e da internet, principalmente por parte dos jovens. À
medida que a informática se tornou elemento essencial para a vida diária e se
passou a considerar a geração de crianças nativas digitais (millenials), esse aspecto
viciante da tecnologia não era mais colocado em pauta. No entanto, com a
nomofobia, essas questões voltam exponencialmente.
A grande modificação no que se refere ao “vício” das duas eras se relaciona à
própria palavra “vício” em si. Em consonância com Cruz (2014), King e Nardi (2014,
p. 14) inferem que hoje não “[...] se costuma mais usar o termo ‘viciado’, e sim
157

dependente patológico quando nos referimos a pessoas com comportamentos


abusivos relacionados a substâncias ou objetos”.
Do ponto de vista neurobiológico, o córtex cerebral é estimulado em qualquer
dependência, em que se modifica e sofre abstinência se não houver estímulo
regular. Mais precisamente, a região do córtex cerebral que recebe os estímulos é
chamada de “núcleo accumbens” e se responsabiliza pela sensação de prazer.
Quando é constantemente estimulada, ela se torna fisiologicamente maior. O
tamanho se modifica em qualquer tipo de dependência: por exemplo, no obeso
compulsivo, tal região é muito maior do que na maioria das pessoas. Se a estrutura
cresce, ela precisa de substâncias químicas que a nutrem, e isso ocasiona os
sintomas de tolerância e dependência. Se o aparelho celular é retirado de uma
pessoa nomofóbica, ela mostra sintomas semelhantes aos de abstinência dos
usuários de drogas, pois ambas as dependências (tecnológica e narcótica) atuam
bioquimicamente na mesma região: núcleo accumbens.
Por conseguinte, os nomofóbicos são dependentes patológicos de suas
máquinas móveis e, tal como era no “vício tecnológico” do início do século, na
dependência tecnológica atual, os jovens também são as principais “vítimas”. Para
Cruz (2014, p. 47):

[...] entre adolescentes, o uso excessivo pode preencher os


seguintes critérios para diagnóstico de dependência de aparelhos
celulares: uso excessivo (geralmente associado à perda da noção de
tempo ou à negligência de necessidades básicas); abstinência
(sentimentos de raiva, tensão ou depressão quando o telefone ou a
rede não estão disponíveis), [..] tolerância (incluindo a necessidade
de novos modelos, novos aplicativos ou mais horas ao telefone) e
repercussões negativas (incluindo mentir ou fingir que está falando
ao celular, discussões, baixo rendimento, isolamento social e fadiga).

Dentro de uma nomofobia e de uma dependência tecnológica mais geral,


convém refletir sobre uma dependência tecnoscópica de per si, como algo legítimo e
passível de preocupação, uma vez que é muito comum que as dependências como
um todo sejam mascaradas. Esse fator significativo decorre muitas vezes dos
preconceitos existentes entre a dependência psicopatológica e a concepção de vício
(de drogas e substâncias ilícitas). Um obeso compulsivo, por exemplo, não aceita
que é tão dependente quanto alguém que fuma crack; da mesma maneira, uma
mulher que aceita uma relação abusiva não admite que é tão dependente quanto
158

alguém viciado em cocaína. Assim, a tecnoscopia também como um contemporâneo


tipo de dependência deve ser levada em consideração. Belló (2017, p. 11) cita um
recente estudo da empresa norte-americana TechCrunch, com estatísticas que
comprovam a possível dependência de crianças e adolescentes em vários países do
mundo em relação ao uso do aparelho celular:

Aproximadamente la edad en la que se tiene un smartphone en


Estados Unidos está en la media de 10.3 años de edad. Siguiendo
con el mismo estudio cabe comentar que actualmente el 64% de los
menores tienen acceso a internet a través del portátil o tablet,
comparado con el 42% en el año 2012. El mismo estudio apunta a
que el 39% a la edad de 11.4 años tienen una cuenta social en
internet, sin eran menores de 10. Según fuentes INE, en España el
50,9% de los niños tiene su primer móvil a los 11 años (en el 2015
era el 42%). Además uno de cada cuatro niños de 10 años tiene un
smartphone, y el 72,7% a los 12 años. Cuando llegan a los 15, un
93,9% de adolescentes ya lo tienen. El 78% niños catalanes de
edades comprendidas entre 12 y a18 años está en Instagram, lo cuál
se sitúa como su plataforma favorita. Después le sigue Facebook con
un 71% y con un 60% YouTube y Snapchat. En Twitter menos del
20% y en Pinterest un 10%. En Estados Unidos, al menos un 75% de
menores entre 13 y 17 años tienen smartphone, y un 24% admiten
usarlo de forma constante.

É claro que a dependência não é exclusiva de crianças e adolescentes,


apesar de eles serem a população-alvo, inclusive das campanhas de marketing de
muitos produtos e serviços de tecnologia móvel. Os adultos também são parte
fundamental do estado de coisas e apresentam níveis significativos de dependência
das máquinas em rede, todavia mais controlados ou menos visíveis do que nos
nativos digitais. Nessa dependência generalizada, “escancarar” a intimidade aos
olhos do mundo e nutrir a tecnoscopia com o exibicionismo da vida antes privada é
um fator preponderante na expectativa do feedback que contemplará essa
dependência (tecnoscópica).
Diante dos aspectos citados, nota-se que o exibicionismo tecnoscópico
também “transforma” e “distorce” o narcisismo “clássico”. O indivíduo narcísico,
inclusive no senso comum, é independente por definição, se baseia apenas na sua
personalidade e não se importa com os outros ou as opiniões alheias. O “novo
narcisista” não quer apenas contemplar seu corpo de maneira solitária, como
também “materializá-lo” (ou “imaterializá-lo”) em meios tecnológicos e exibi-lo aos
olhos do público. Até o momento da “materialização”, o narcisismo ainda é fiel ao
seu cânone, mas, se a exibição não trouxer o retorno esperado (feedback dos
159

voyeuristas tecnoscópicos), o sujeito exibicionista (não mais narcisista) se frustra em


face dependência da participação alheia (dos voyeuristas interativos).
Muitos autores tendem a relacionar o exibicionismo contemporâneo apenas
com o narcisismo exacerbado, negligenciando a dependência do feedback. Nesse
ponto complexo de discussão, esta tese se propõe a relativizar tais questões, na
tentativa de encontrar novos caminhos de abordagens na proposta tecnoscopia,
como se verá a seguir.

2.1.2 Espetáculo exibicionista e as novas subjetividades

Constata-se que a maior quantidade de conteúdo exibicionista disposto na


internet ainda é produzido e disseminado pelo gênero feminino. A crítica e feminista
britânica Laura Mulvey dizia que a estrutura básica sexual sempre tentou definir o
sujeito masculino como um voyeurista-ativo, e o feminino, como uma pessoa dividida
entre um voyeurismo (em menor grau) e a “situação-de-ser-visto‟ (exibicionista-
passiva) – ou seja, entre a mulher como imagem e o homem como portador do olhar
(AUMONT, 1993).
Em se tratando das imagens contemporâneas, Aumont (1993, p. 126-127)
destaca que:

[...] é o portador do olhar do espectador, que neutraliza o perigo


potencial que a imagem da mulher detém, como espetáculo visando
cristalizar o fluxo da ação para provocar a contemplação erótica.
Para Mulvey, disso resulta, no filme narrativo clássico, uma
contradição fundamental entre o mecanismo sem restrição do
voyeurismo (perversão vinculada à exacerbação da pulsão escópica)
e o mecanismo das identificações. [...] Se a imagem é feita para ser
olhada, para satisfazer (parcialmente) a pulsão escópica deve
proporcionar um prazer de tipo particular.

Na contemporaneidade, a superexposição na rede é frequentemente


vinculada a uma tendência de supersexualização feminina. A figura da mulher como
“imagem a ser vista” já é explorada há tempos pela cultura visual e consumista-
capitalista. No entanto, na atualidade, todas as mulheres têm o direito de “serem
vistas”, não somente as modelos e estrelas do cinema, e estas fazem cumprir esse
direito. É claro que o exibicionismo exacerbado não é exclusivo ao sexo feminino, e
a dependência tecnoscópica atinge a todos, mas as mulheres, como “imagens” que
160

nutrem a escopofilia masculina (e também feminina), são importantes agentes para


o entendimento dessas questões. A legitimação da beleza e da sensualidade
feminina é buscada por olhos diversos – inclusive, ou até principalmente, pelas
próprias mulheres que querem admirar, se inspirar ou denegrir a vida (e a beleza) da
outra.
Agamben (2014, p. 77) afirma que “[...] os outros seres humanos são
importantes e necessários, antes de tudo, porque podem reconhecer-me”. No
entanto, até as mulheres mais belas são tão dependentes quanto aqueles sujeitos
que se esforçam ao máximo para serem belos na rede, pois ambos conjugam da
mesma expectativa do reconhecimento e da legitimação de suas belezas. Nesses
termos, a beleza humana, a dependência do reconhecimento dos outros e o
potencial de nutrir o voyeurismo tecnoscópico alheio são apenas algumas questões
em voga num contexto mais amplo, mas se expor para se sentir belo é uma das
mais significativas correntes no exibicionismo tecnoscópico online.
O entendimento de questões como intimidade e privacidade se transformou (e
continua se transformando) nos últimos anos, proporcionalmente a uma
espetacularização da vida cotidiana na cultura visual. Hoje, vários âmbitos da vida,
inclusive as atividades banais e ordinárias, são dados ao consumo e à invasão dos
olhos do mundo todo, na tentativa de satisfazer o constante desejo de “ser visto”. De
acordo com Sibilia (2016), isso não é apenas uma tendência passageira ou um
modismo ligado ao desenvolvimento tecnológico e cultural, pois se trata de uma
mudança radical na subjetividade humana.
A partir da análise de um ensaio do romancista Jonathan Franzen, Sibilia
(2016, p. 109) diz que se percebe nos primeiros anos do século XXI:

[...] um alargamento desmesurado da privacidade e da intimidade,


que no final do século XX e início do XXI se dedicaram a “invadir
brutalmente o mais público dos espaços”. Esses movimentos
parecem promover a definitiva extinção daquele homem público que
já tinha sido gravemente acuado pela subjetividade burguesa do
século XIX. É nesse sentido que a privacidade também estaria
ameaçada hoje em dia, de acordo com a perspectiva do romancista.
Pois neste “mundo de festas em pijama”, a intimidade perderá
fatalmente seu valor ao deixar de se definir por oposição àquele
outro espaço onde deveria vigorar seu contrário: o não-íntimo, isto é,
o lugar onde acontecem as trocas com os outros e a ação pública.
161

Para a autora, há sinais diversos dessa mutação da subjetividade, em que


antigas noções do que é público e privado, íntimo e pessoal se esfacelam ou se
modificam por completo e gradativamente, “[...] acompanhando as mudanças que
estão ocorrendo em todos os âmbitos, compassadas pelos vertiginosos processos
de globalização, aceleração, digitalização, hiperconexão e espetacularização de
nossos modos de vida” (SIBILIA, 2016, p. 127) – trata-se de uma nova definição dos
egos e das personalidades dos sujeitos.
A superexposição contemporânea do “eu” tem primórdios reconhecidos na
segunda metade do século XX, antes da popularização da informática, pelo menos
desde o surgimento dos primeiros reality shows ou dos programas de talk show
sensacionalistas na TV, ou antes, quando Andy Wahrol constatou que todos
almejavam ter seus “15 minutos de fama” uma vez na vida. De fato, a fama e a
visibilidade são os grandes objetivos da maior parte dos exibicionistas
contemporâneos, a promessa final de reconhecimento. Hoje, qualquer um que
invista um determinado tempo tem pelo menos a possibilidade de adquirir certo
status e, para que isso ocorra, o número de admiradores deve ser igual ou maior ao
de famosos exibicionistas. Ou seja, deve haver tanto exibicionistas que querem se
expor, quanto voyeuristas que querem ver, num processo egoico de
retroalimentação. Isso rompe mais uma vez com a antiga teoria da comunicação
unilateral – de um emissor para vários receptores. Agora, todos que “emitem” sua
intimidade também “recebem” a de outros numa mercantilização de imagens da vida
cotidiana. É claro que existem poucos que conseguem ser os grandes emissores
(famosos), enquanto muitos continuam como “apenas” grandes receptores. Mas
estes últimos têm a esperança de que um dia o jogo se inverterá, e é isso que os
nutre.
Esse jogo de constante interdependência tecnoscópica nem sempre é justo.
Freud (2010, p. 31) cita que:

[...] a dependência do objeto amado tem efeito rebaixador; o


apaixonado é humilde. Alguém que ama perdeu, por assim dizer,
uma parte de seu narcisismo, e apenas sendo amado pode reavê-la.
Em todos esses vínculos o amor-próprio parece guardar relação com
o elemento narcísico da vida amorosa.

A relação entre sujeito amado (elevado) com aquele que ama (rebaixado), ou
seja, entre o exibicionista (superestimado e popular) e o voyeur (humilde e solitário),
162

identifica uma problemática psicossocial contemporânea: o exibicionismo tende a ser


superficial e ilusório – faz-se tudo pela fama, inclusive ficcionalizar e espetacularizar
a própria vida. Foucault (2010, p. 202) já afirmava que “[...] quem está sujeito a um
campo visual, e sabe disso, assume responsabilidade pelas limitações de seu poder;
faz com que elas explorem espontaneamente suas fraquezas”. Para esconder as
fraquezas diante das próprias limitações humanas, os exibicionistas se mascaram
por completo e se reinventam para o olhar do outro. Os indivíduos superexpostos na
contemporaneidade são em verdade personagens inventados, avatares em um jogo
de espelhos.
Sibilia (2016, p. 305) assevera que a internet permite que cada um pode “[...]
criar e manter a sua obra mais preciosa: um ‘eu’ visível de frente e perfil, sem limites
de espaço nem de tempo, um barulhento festival de personalidades alterdirigidas,
sempre em exposição e interconectadas”. O sujeito dependente da tecnoscopia não
“posta” uma imagem ou outro conteúdo na internet de acordo com a realidade dele
ou com aquilo em que ele acredita, e sim pensando no que vai ser “curtido”. Então,
inventam-se personagens e histórias sobre si mesmos dados ao olhar alheio
mediatizado.
É cada vez mais imperativa às personalidades digitais a reciclagem da própria
identidade para atender ao perfil necessário e às tendências do momento, com
vistas a atrair cada vez mais olhares, criando as próprias personalidades fictícias. A
palavra personalidade deriva do grego persona, que “[...] significa originalmente
‘máscara’ e é através da máscara que o indivíduo adquire um papel e uma
identidade social” (AGAMBEN, 2014, p. 76).
Sibilia (2016, p. 314) cita um exemplo sobre a reformulação da própria
persona, ao dizer que existem hoje:

[...] profissionais especializados em oferecer assessoria para quem


deseja se aperfeiçoar nessa tarefa cada vez mais capital. Trata-se
dos consultores de imagem, que até pouco tempo atrás destinavam
seus serviços exclusivamente às empresas, depois ampliar seu
escopo para aconselhar políticos e outras figuras públicas, mas nos
últimos anos começaram a projetar cardápios orientados para os
indivíduos particulares. Agora, portanto, qualquer um pode ser cliente
dessas companhias e consumir tais serviços, especialmente
orientados àqueles que necessitam de ajuda parábola em seu
aspecto e exibir uma aparência adequada a sua personalidade.
163

Modelar a própria identidade e contratar, inclusive, empresas e profissionais


especializados para isso poderia parecer uma ficção científica bizarra e sarcástica à
la Terry Gilliam35, mas se trata de uma das profissões mais requisitadas pelos que
almejam ser Youtubers36. Além disso, há outro exemplo nesse contexto: os recentes
scammers, “[...] homens e mulheres que, para dar golpes, criam perfis falsos em
redes sociais, nos quais se apresentam como profissionais bem-sucedidos, com boa
condição financeira, gosto refinado e aparência impecável” (MECLER, 2015, p. 170).
É claro que a possibilidade de recriar a própria identidade atinge a sociedade de
maneira ampla, para o bem e para mal.
Bruno (2013, p. 80) indaga: será que “[...] passamos de Édipo a Narciso, da
culpa ao medo de não estar à altura de si mesmo, do conflito ao fascínio da
imagem?”. De acordo com a autora, as personagens digitais que hoje exprimem a
identidade do sujeito contemporâneo também mudaram.

Encontramos menos mulheres medianas (a mãe, a doméstica, rainha


do lar e da vida regrada) ou modelos institucionais que se
destacavam pela sua adequação à norma (o bom aluno, o bom
trabalhador, o bom soldado) do que modelos e atrizes mais que belas
e perfeitas, homens de negócio altamente ricos e “inovadores”, que
vivem enfrentando “riscos” e “desafios”, esportistas excepcionais que
“vencem” os limites do próprio corpo (BRUNO, 2013, p. 80).

Esta autora adota o termo extimidade – proposto por Lacan e retomado por
Tisseron – para nomear tal situação. Sibilia (2016, p. 313), de maneiras análoga,
utiliza regularmente extimidade para tratar de toda forma de intimidade publicizada
na contemporaneidade, em que as vidas ficcionalizadas:

[...] são mostradas em público sob a luz da mais resplandecente


visibilidade. Desse modo, efetua-se uma superexposição daqueles
aspectos supostamente privados que, embora sendo banais – ou,
talvez, precisamente por isso –, se tornam fascinantes para a avidez
dos olhares alheios.

35Terry Gilliam (1940-) é um diretor norte-americano conhecido por realizar filmes de ficção científica
com elementos surrealistas e bizarros, principalmente. Em muitos deles, ele aborda questões sociais
de maneira crítica e sarcástica.

36 Youtubers é a nomenclatura pela qual são conhecidas as pessoas que possuem canais no serviço
de streaming de vídeo da empresa Google, o YouTube. A maioria desses canais é realizada na
íntegra (produzida, editada e publicada) pela própria pessoa que os apresentam. Eles possuem
vídeos que são publicados periodicamente e tratam de temas variados. Muitos de seus produtores, os
Youtubers, estão entre as celebridades mais famosas dos dias atuais.
164

Flusser (2007, p. 58), em meados da segunda metade do século XX, já


constatava que o novo tipo de homem era mais um performer do que um sujeito de
ação concreta: um homo ludens, e não mais um homo faber, pois, para o primeiro, a
vida deixou de ser um drama e passou a ser um espetáculo:

Não se trata mais de ações, e sim de sensações. O novo homem não


quer ter ou fazer, ele quer vivenciar. Ele deseja experimentar,
conhecer e, sobretudo, desfrutar. Por não estar interessado nas
coisas, ele não tem problemas. Em lugar de problemas, tem
programas.

A espetacularização da intimidade é um fenômeno recente, mas previsto e


vislumbrado por autores do século passado como Flusser, Sennett, Foucault,
Deleuze e, em especial, Guy Debord. Sibilia (2016, p. 151) aponta que a publicação
do livro “Sociedade do Espectáculo”, de Guy Debord, em 1967, foi um momento
histórico que anunciou as mutações no âmbito da subjetividade: “[...] ‘o que aparece
é bom, e o que é bom aparece’ debochando da lógica empresarial do ibope que em
pouco tempo iria se tornar irrefutável. Nesse monopólio da aparência e da
quantificação dos likes, tudo o que ficar no escuro simplesmente não é”.
Em países como os Estados Unidos, “postar” uma fotografia nu ou seminu
(conhecidas como nudes) é quase um rito de passagem utilizado para entrar na
faculdade, em uma fraternidade ou para pertencer aos grupos de amigos populares.
A exibição da intimidade na forma de espetáculo (extimidade) se tornou menos uma
atividade profana e mais algo comum, que tende a perder progressivamente seu
caráter transgressor. Debord (2003, p. 9) já ponderava que “[...] o espetáculo é ao
mesmo tempo parte da sociedade, a própria sociedade e seu instrumento de
unificação. Enquanto parte da sociedade, o espetáculo concentra todo o olhar e toda
a consciência”.
O espetáculo cotidiano decorre do “motor” capitalista sempre “ativo”. Este,
como todo bom espetáculo, convida a todos a participarem – e é difícil resistir ao
convite. Como já abordado no Capítulo 1, ocorre na contemporaneidade uma
mudança de foco do capitalismo, que agora “coisifica” a intimidade e a vida privada
para “vendê-la” como produto para o consumo de todos. Todos são produtos e
consumidores ao mesmo tempo, e o espetáculo, segundo a concepção
“debordiana”, continua sendo o principal “invólucro” dos produtos capitalistas. Se,
antes, os produtos eram artístico-culturais, agora eles são a própria vida
165

mediatizada, pois o “[...] espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma


relação social entre pessoas, mediatizada por imagens” (DEBORD, 2003, p. 9).

A sociedade que repousa sobre a indústria moderna não é


f o r t u i t a m e n t e o u s u p e r f i c i a l m e n t e e s p e t a c u l a r, e l a é
fundamentalmente espetaculista. No espetáculo da imagem da
economia reinante, o fim não é nada, o desenvolvimento é tudo. O
espetáculo não quer chegar a outra coisa senão a si mesmo
(DEBORD, 2003, p. 12).

Porquanto, as imagens de si mesmos são os meios tecnoscópicos pelos


quais o “eu” – simples, comum e banal – se torna a celebridade e a personalidade
do momento. Em 2006, a revista norte-americana Time, em sua publicação anual
que elege a personalidade do momento, escolheu “você” (o cidadão comum) como o
ícone do ano, a pessoa mais importante no contexto midiático.

[...] ninguém menos que Adolf Hitler foi eleito em 1938, Mahatma
Gandhi em 1930, o Ayatollah Khomeini em 1979, Mikhail Gorbachev
em 1989, George Bush em 2004 e Mark Zuckerberg, criador de
Facebook, em 2010. Mas quem foi a personalidade do ano em 2006,
de acordo com o respeitado veredito da Time? Você! Sim, você, ou
melhor: não apenas você, mas também eu e todos nós. Ou, mais
precisamente ainda, cada um de nós: as pessoas comuns. Um
espelho brilhava na capa da publicação e convidava seus leitores a
se contemplarem, como Narcisos satisfeitos de verem suas
personalidades cintilando no mais alto pódio da mídia (SIBILIA, 2016,
p. 15).

O exibicionismo da intimidade espetacularizada, narcísico-dependente,


encontra uma última relação com as psicoses para se apoiar: o Transtorno de
Personalidade Histriônica. Segundo o DSM-5, a característica essencial desse
transtorno “[...] é a emocionalidade excessiva e difusa e o comportamento de busca
de atenção” (APA, 2014, p. 667). Os sujeitos histriônicos se sentem desvalorizados
(pouco reconhecidos) quando não estão no centro das atenções, “[...] normalmente
cheios de vida e dramáticos, tendem a atrair atenção para si mesmos e podem
inicialmente fazer novas amizades por seu entusiasmo, abertura aparente ou
sedução” (idem). Para ser diagnosticado clinicamente como histriônico, o indivíduo
deve atender a, pelo menos, cinco dos seguintes critérios diagnósticos:

1. Desconforto em situações em que não é o centro das atenções. 2.


A interação com os outros é frequentemente caracterizada por
comportamento sexualmente sedutor inadequado ou provocativo. 3.
166

Exibe mudanças rápidas e expressão superficial das emoções. 4.


Usa reiteradamente a aparência física para atrair a atenção para si.
5. Tem um estilo de discurso que é excessivamente impressionista e
carente de detalhes. 6. Mostra autodramatização, teatralidade e
expressão exagerada das emoções. 7. É sugestionável (i.e.,
facilmente influenciado pelos outros ou pelas circunstâncias). 8.
Considera as relações pessoais mais íntimas do que na realidade
são (APA, 2014, p. 667).

Conforme tais características, evidencia-se que os histriônicos são a


descrição dos exibicionistas espetaculosos das redes tecnoscópicas, uma vez que
vivem sempre à procura dos “holofotes” e criam histórias e personalidades para
garantirem a atenção de todos. Claramente, esse é um transtorno comórbido ao
TPD, possuindo características em comum com os exibicionistas-narcisistas-
dependentes contemporâneos. De acordo com Mecler (2015, p. 135-136) “as redes
sociais são um elixir para alguém com traços histriônicos, pois podem multiplicar por
mil a atenção que acredita merecer para os acontecimentos, alegrias, conquistas e
dramas de sua vida.
Como visto, o exibicionismo tecnoscópico se apropria de vários vieses que
derivam de questões psicossociais, econômicas e culturais. No âmbito da
psicanálise e da psicologia clínica, o exibicionismo dos dias atuais possui meandros
de narcisismo, dependência tecnológica, nomofobia e personalidade histriônica. Em
decorrência disso, atua como um dos principais “motores” do capitalismo
tecnoscópico, permitindo a espetacularização da vida banal e cotidiana. Os meios
tecnoscópicos usados para tanto e suas respectivas características serão abordados
na seção a seguir.

2.2 Selfie, streaming e sexting: três S do exibicionismo tecnoscópico

Em 2006, a Revista Time comemorava “a hora dos amadores”: “Por tomarem


as rédeas da mídia global, por forjarem a nova democracia digital, por trabalharem
de graça e superarem os profissionais em seu próprio jogo, a personalidade do ano
da Time é você” (GROSSMAN, 2006, n.p. apud SIBILIA, 2014, p. 15). Essa eleição
evidenciou a guinada histórica que permitiria que novas formas de subjetividades e
comportamentos surgissem e se sobrepusessem abruptamente às antigas.
167

Noções esfaceladas do que é público ou privado se somam a novas


necessidades de fama e visibilidade. Nos meandros desse estado de coisas surgem
novos conceitos e terminologias, novas profissões, novos produtos e serviços,
outras maneiras de se portar no mundo, decorrentes das novas preocupações e
inseguranças que sempre acompanham o “novo”.
Dentre os meios tecnoscópicos responsáveis pela disseminação de tais
questões, as “mídias exibicionistas tecnoscópicas” foram extremamente importantes
para que os “amadores” (pessoas comuns) pudessem se fazer ver, para o bem e
para o mal – isso faz com que as tecnologias em rede sejam os grandes
disseminadores do exibicionismo tecnoscópico. Nos principais produtos derivados
das mídias tecnoscópicas exibicionistas, destacam-se as fotografias selfies, os
videostreamings e as práticas de sexting. Estes surgiram e se disseminaram no
âmago dos serviços online que derivaram diretamente da web 2.0, sobretudo com os
serviços de chats, blogs e redes sociais.
Na web, todos são produtores e consumidores, ou seja, exibicionistas e
voyeuristas, respectivamente. Para algo ser consumido, deve haver o que consumir,
o que comprova que o exibicionismo é o principal “combustível” a nutrir o
voyeurismo; estes, por sua vez, nutrem a vigilância; e os três, em consequência,
instauram o “capitalismo tecnoscópico contemporâneo”. Bruno (2013, p. 69)
complementa:

Aquele que por ora está na condição de espectador é chamado a


participar ativamente nestas novas modalidades de exposição de si.
Se o “eu” se constitui na imagem e como imagem, é preciso que ele
tome para si seus atributos contemporâneos, ampliando a sua
margem de interatividade. O “eu-imagem” deve ser reativo ao olhar
do outro. Sua autenticidade não mais se esconde por trás de signos
a interpretar, mas se constitui no ato mesmo de se fazer ver pelo
outro.

As ferramentas e os serviços digitais elencados a seguir foram destacados


como os principais meios facilitadores das exibições da intimidade, que dão a
possibilidade de visualização e interação do outro (voyeur tecnoscópico) e estão em
rápido desenvolvimento, assim como a tecnologia da informação em si. Em poucos
anos, tanto os hardwares como seus respectivos aplicativos, sistemas e serviços
poderão ser descontinuados (como foram os flogs e vlogs), se desdobrar em novos
produtos que derivam dos anteriores (como são as redes sociais e os streamings de
168

vídeo), continuar ativos, transcendendo questões de modismos e tendências


passageiras (como se confirmaram os blogs e e-mails), ou permitir o surgimento de
produtos culturais que retomam e potencializam quantitativa e exageradamente
produtos tradicionais (como as fotografias selfies, febre atual que retoma o
autorretrato, e o sexting, que eleva o antigo sexo por telefone ao nível visual e
passível da participação ilimitada de usuários).
Dito isso, é possível que, em um futuro próximo, esta tese pareça
desatualizada, pois há grande possibilidade de novos produtos e serviços surgirem e
arrebatarem rapidamente as multidões. No entanto, os itens a seguir são justificados
pela sua relevância histórica, como elementos potencialmente tecnoscópicos que
auxiliaram na instauração da realidade sociocultural aqui estudada.

2.2.1 R-evoluções do autorretrato

O autorretrato sempre foi considerado uma atividade narcísica em si mesma.


Desde o uso nas pinturas, os artistas buscam frequentemente registrar si próprios no
ato de seus ofícios, muitas vezes se observando através de um espelho. Oscar
Wilde (1854-1900), no célebre romance “O Retrato de Dorian Gray”, de 1890, disse
que “[...] os retratos, quando são pintados com sentimento, são na verdade retratos
do próprio artista, e não do modelo. O modelo é algo acidental, mas o pintor é que
na tela se revela” (WILDE, 2010, p. 33). Mesmo quando a obra não trata-se de um
autorretrato, de fato, o artista sempre se retrata, inserindo na obra algo dele, algo de
seu âmago.
Wilde (2010), no romance citado, usa dessa abordagem para a criação do
retrato ideal, um retrato literalmente mágico que absorve todos malefícios da vida
humana: doença, velhice, tristeza, medo, arrogância, impureza etc. Ele permite a
seu dono – no caso, o senhor Dorian Gray –, usufruir de todas as coisas boas da
vida, enquanto as consequências do eterno carpe diem são assimiladas
exclusivamente pela pintura com o próprio retrato, que se deforma (Figura 44) para
manter seu dono sempre jovem, belo e saudável.
Há algo apropriado de Dorian Gray no autorretrato contemporâneo: os selfies
parecem ter vida própria, contam histórias diferentes das de seus donos, propõem
narrativas particulares e se afastam da realidade proporcionalmente ao estado
169

narcísico-dependente do autorretratado. Mas, em sentido oposto ao retrato de Gray,


o selfie dos dias atuais é espetacularizado e ficcionalizado, ao ponto de se
apresentar como mais jovem, belo e saudável que o próprio sujeito que se fotografa.
Isso ocorre devido a uma soma de esforços entre questões físicas (feições,
maquiagens, roupas, iluminação, enquadramento etc.) e digitais (efeitos,
tratamentos e edições nos vídeos e fotografias).

!
Figura 45. “Retrato de Dorian Gray”, de Ivan Albright. Pintura a óleo sobre tela que fez parte do
cenário do filme “The Picture of Dorian Gray” de Albert Lewin. 1945. Fonte: <https://
remodernreview.wordpress.com/tag/picture-of-dorian-gray/>. Acesso em 15/04/2017.

Antes da análise dos meios, obras e produtos culturais em face da exibição


da intimidade, é importante entender o autorretrato enquanto gênero e mudança no
próprio pensamento sobre a individualidade humana, o que determinou há séculos
novos modos de produção artística e uma nova cultura de encenação da própria
vida.
Com o advento do Renascimento artístico e cultural (séculos XIV a XVI), o
artista pôde ressaltar seu gênio de diversas maneiras, inclusive se autorretratando.
170

E data daquela época o início de uma guinada histórica em face da supervalorização


da individualidade do artista: o artista-autor, em detrimento das obras tidas apenas
como itens laborais confeccionadas para a igreja, a alta sociedade, os governantes
etc. Rebel (2009, p. 6) certifica que, quando o artista se retrata, também tende a
criar uma ficção sobre si mesmo, representando-se como um personagem que será
exposto (exibido) ao público:

[...] serão as aparências da individualidade e da personalidade,


quando nos falam vindas do mundo da arte, mais verdadeiras do que
as imagens humanas que vemos em cartazes, na televisão ou nos
monitores dos computadores? O autorretrato do artista, põe a nu o
próprio artista? Ou serve apenas para representar a imagem
convencional da profissão e estatuto do artista? Há muitas
possibilidades. Os autorretratos são testemunhos em que o ego do
artista como seu modelo motivo se relaciona, simultaneamente com
outras pessoas. Os artistas representam-se a si próprios como
querem ser vistos pelos outros, mas também porque querem
distinguir-se deles.

Há vários casos da ficcionalização sobre si em famosos autorretratos


pictóricos – por exemplo, quando o próprio autor se coloca “na pele” de outra pessoa
(personagem) de maneira explícita. Em 1509, Rafael Sanzio (1483-1520) se
autorretratou como um personagem no afresco “Escola de Atenas”, no Vaticano.
Nesse quadro, o pintor olha para o observador, o que quebra a “quarta-parede”
pictórica e o evidencia como um personagem deslocado da situação em que se
encontra, diferentemente dos demais (Figura 45).
Em outro afresco, “Juízo Final” de 1541, elaborado na Capela Sistina,
também no Vaticano, por Michelangelo Buonarroti (1475-1564), o artista retrata a si
próprio na pele (literalmente) de São Bartolomeu. Na pintura, esse santo católico
que fora esfolado vivo segura a própria pele, que traz as feições do autor da obra.
Há outros exemplos desse aspecto, como “David com a Cabeça de Golias”, de
1609, em que Caravaggio (1571-1610) se representa na cabeça decapitada do
gigante; e “As Meninas” (Figura 46), de Diego Velázquez, no qual o pintor se retrata
no ato de seu fazer artístico, em 1656. Rebel (2009, p. 28) alude que esses tipos de
autorretratos dizem respeito a composições em que “[...] o pintor ‘escondia’ a sua
figura numa pintura de modo a, de um lugar mais ou menos secreto, mas
frequentemente o melhor para tal, olhar diretamente para o observador” – a eles é
dado o nome de retratos in assistenza.
171

!
Figura 45. “Escola de Atenas”, de Rafael Sanzio. Detalhe da obra, pintura a óleo sobre tela. 1509.
Fonte: <http://artemazeh.blogspot.com.br/search/label/Rafael%20Sanzio>. Acesso em 17/04/2017.

!
Figura 46. “As Meninas”, de Diego Velàzquez. Pintura a óleo sobre tela. 1656. Fonte: <http://
abelhadalua.blogspot.com.br/2011/06/as-meninas-de-velazquez.html>. Acesso em: 20/06/2017.
172

Existe, é claro, uma miríade de outros artistas que realizaram importantes


autorretratos em que eles se representavam como “si próprios” – e não como outros
personagens –, destacando-se Leonardo da Vinci, Albert Dürer (1471-1528),
Tintoretto (1518-1594), Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), Rembrandt Van Rijn
(1606-1669), Gustave Courbet (1819-1877), Paul Gauguin (1848-1903), Vincent Van
Gogh (1853-1890), Pablo Picasso (1881-1973), Frida Kahlo (1907-1954), Lucian
Freud (1922-), Francis Bacon (1928-1992) e Andy Warhol. Mas a representação
enquanto outra persona é interessante para estabelecer as devidas relações com a
discussão aqui proposta, lembrando que, mesmo nos casos de autorretratos que
não se enquadram na categoria in assistenza, eles se relacionam com uma certa
“alegoria artística autorreferente” que sempre mostra o que o artista quer que o
público veja.
Diante dos exemplos citados, uma das artistas que mais se destaca devido ao
conjunto de obra autorreferente e autobiográfico é a mexicana Frida Kahlo. Seus
autorretratos pictóricos são densos, arrebatadores e, em sua maioria, pessimistas,
que referenciam a traumas da vida da artista. Outros pintores se autorretraram em
momentos de angústia e sofrimento, como o icônico “Autorretrato com a Orelha
Cortada” (1889), de Vincent van Gogh. No entanto, Frida, diferentemente de van
Gogh e dos demais aqui relacionados, dedicou sua vida artística ao autorretrato, o
grande mote de sua poética. Para Kettenmann (2015, p. 1):

[...] devido a um quase fatal acidente de carro aos 18 anos, uma


saúde precária, um casamento turbulento, um aborto e a ausência de
filhos, ela transformou a sua dor em arte revolucionaria. Em
autorretratos literais ou metafóricos, Kahlo encara o espectador com
um olhar audacioso, rejeitando o seu destino de vítima passiva,
revelando, pelo contrário, expressões da sua experiência numa
linguagem híbrida e surreal sobre a vida: cabelo, raízes, veias,
vinhas, gavinhas e trompas de Falópio.

A pintura “O Hospital Henry Ford” (Figura 47), também conhecida como “A


Cama Voadora”, de 1932, é exemplar desse aspecto, pois se trata de um
autorretrato perturbador que mostra um dos momentos mais traumáticos da vida da
artista: seu aborto.
Esta introdução aos autorretratos amadores contemporâneos que se valeu
desse tipo de pintura enquanto arte se volta a uma reflexão sobre a importância
histórica da imagem enquanto representação do autor. Rebel (2009, p. 25) aduz que
173

hoje em dia, “[...] qualquer um pode facilmente produzir imagens de si próprio com
uma câmara digital. Até um certo ponto qualquer um pode ser inventor e encenador
da sua própria imagem: por outras palavras, um autorretratista”. O autorretrato
democratizou-se, mas ele perde sua “aura” artística, ao passo que se banaliza ao se
tornar um relevante “motor” do capitalismo tecnoscópico. A seguir serão
apresentadas as mídias que possibilitaram essa democratização do autorretrato e,
consequentemente, contribuíram para a instauração do exibicionismo tecnoscópico.
A posteriori, em seção específica, serão retomadas as questões artísticas referentes
aos autorretratos e demais produções exibicionistas ora iniciadas.

!
Figura 47. “O Hospital Henry Ford”, de Frida Kahlo. Pintura a óleo sobre tela. 1932. Fonte: <https://
facaartenaoguerra.wordpress.com/tag/frida/>. Acesso em: 01/07/2017.

2.2.1.1 Selfie

“Se você alguma vez na vida já pegou uma máquina e se propôs tirar o
retrato de alguém, deve saber perfeitamente que a situação não é cômoda nem de
174

um lado nem do outro, nem para o modelo nem para o fotógrafo” (KUBRUSLY, 1983,
p. 46). A partir dessa citação, nota-se que, três décadas mais tarde, vários aspectos
mudaram, e o incômodo não se tornou apenas cômodo, como também comum e
necessário. As “tiranias da visibilidade”, conforme Sibilia (2016), obrigam grande
parte da população a se retratar a todo o momento e consensualmente, para
fotografias e/ou vídeos sociais, perfis de serviços da internet, currículos, máquinas
de checagem de identidade, imagens de vigilância, entre outras formas, numa
espécie de oniexibicionismo tecnoscópico intermitente.
É interessante refletir sobre essa mudança a partir de relatos que datam dos
primórdios da grande democratização do uso das máquinas de captação e exibição
de imagens. Nesse contexto, Kubrusly (1983, p. 46-47) indagava:

[...] quase ninguém se pergunta por que não fica à vontade diante da
objetiva. Pouquíssimos se propõem enfrentar o desafio. A reação
mais comum diante dos primeiros resultados desfavoráveis é se
autorrotular “não fotogênico” e passar a evitar daí por diante a
incômoda posição de modelo por mais que ela seja atraente. Esta
reação diante da câmara tem algo a ver com a da pessoa
surpreendida fazendo caretas no espelho. Nos dois casos há uma
ameaça à intimidade da relação do indivíduo com sua própria
imagem. Relação que nem sempre é cristalina e por isso mesmo, se
torna intrigante. Capaz de fazer aflorar conflitos e sensações que
reprimimos a maior parte do tempo. Posar para uma fotografia é se
expor, em todos os sentidos; expor-se, também, às tentações e
riscos de uma exibição, é desvendar sua imagem a uma plateia
imponderável, através de um documento que – supõe-se – não sabe
mentir. As luzes da cena atraem e atemorizam ao mesmo tempo.

A noção de intimidade e privacidade tinha outras conotações há não muito


tempo. A objetiva da câmera e a ideia de ser captado para sempre nos registros
fotoquímicos (anteriormente) e eletrônico-digitais (agora) sempre pareceu (e ainda
parece) ser um armamento invasor, um “cavalo de Troia” que ameaça a intimidade –
assim como foi o “presente grego”, tal ameaça se mostra também amigável e
desejada. Diante desse desconforto, Kubrusly (1983, p. 47-48) traz a passagem de
uma história verídica, que reforça uma ideia hoje incontestável, em que a lente da
câmera induz ao exibicionismo:

Não é todo dia que um grupo de senhoras – todas respeitabilíssimas,


do mais fino trato e em confortável situação financeira – resolve
trancar-se num aposento, tirar até a última peça de roupa, para se
fotografarem assim, peladinhas, umas as outras. E, no entanto, foi
mais ou menos o que sucedeu com uma turma da tarde que, por um
175

acaso, ficara apenas com alunas. Foi no começo da década de


setenta, na Enfoco, escola de fotografia. Na porta do estúdio fizeram
a proposta: queriam ficar a sós e trancadas. Depois se
arrependeram: algumas nunca mais voltaram; outras, só algum
tempo depois. As fotos, obviamente, foram censuradas. O episódio
se encerrou deixando no ar muitas interrogações. Que impulsos
teriam levado esta turma a uma atitude tão inesperada? Um arroubo
artístico que via no nu um tema irresistível? Mais um pouco e teriam
aulas com modelo nu. Queriam testar uma audácia, que não estavam
certas de ter? Ou cederam ao sabor irresistível das coisas proibidas
com o tempero iconoclasta do desafio aos tabus? E qual seria o
papel mais estimulante: o de fotógrafa ou modelo? Posar para
fotografia, assumindo plenamente o papel de modelo, encerra um
pouco do desafio de um striptease em público. Somos convidados,
sem a privacidade do espelho de casa, a assumir um papel que
muitas vezes não tivemos coragem, sequer, de ensaiar.

Tal qual o “canto da sereia”, a objetiva da câmera fotográfica ou videográfica


atrai o sujeito que, entorpecido pela ideia de se expor diante dos olhos maquínicos,
não vê outra opção senão se mostrar, como fizeram as senhoras da alta sociedade,
personagens da passagem de Kubrusly (1983). Pode-se mais uma vez retomar
McLuhan (1974) e o “efeito narcótico” causado ao homem, em face da sua relação
com as mais novas tecnologias; para assim, novamente, destacar o mito de Narciso,
pois a lente da câmera se relaciona perfeitamente ao espelho d’água que reflete a
imagem do primeiro sujeito narcisista na história.
Bauman e Lyon (2013) afiançam que a paixão por se registrar é um exemplo
importante da regra hegeliana, na qual a liberdade é uma necessidade aprendida e
reconhecida. Enquanto isso, nos tempos atuais, tal regra está em consonância com
a versão atualizada e ajustada do cogito de Descartes: “[...] sou visto (observado,
notado, registrado), logo existo” (idem, p. 138). De fato, isso é verdadeiro, pois o
maior pesadelo de boa parte da população é o anonimato. Com as redes sociais,
não se mostrar é o mesmo que não existir no ciberespaço.
Com o surgimento da câmera fotográfica, o número de autorretratos
aumentou exponencialmente. A pessoa que realiza esse tipo de foto deve ter um
domínio técnico básico do aparato fotográfico, algo muito mais simples do que
dominar a pintura, que leva anos para ser aprendida. Ao contrário do que muitos
pensam, já existiam máquinas fotográficas fabricadas para realizar autorretratos
(hoje chamados de selfies) há décadas – antes mesmo do surgimento dos primeiros
aparelhos celulares com câmera frontal (câmera de selfie), em que dispunham de
modelos especiais que vinham com um pequeno espelho frontal dedicado a facilitar
176

os selfies analógicos. Além delas, foram comuns no mundo todo as cabines


fotográficas instantâneas, que hoje poderiam facilmente ser chamadas de cabines
de selfie.
Nunca, na história, o autorretrato foi tão realizado, disseminado e incentivado
pela cultura global. O termo selfie é derivado da palavra em inglês “self”, que
significa “eu” ou “a própria pessoa”, agregada ao sufixo diminutivo “ie”, que pode ser
traduzido traduzir como “euzinho”. Selfie foi considerada a palavra internacional do
ano de 2013 pelo Oxford English Dictionary. Estes novos autorretratos digitais talvez
sejam o símbolo máximo do exibicionismo tecnoscópico. O sociólogo francês Michel
Maffesoli, em entrevista ao Globo News em 2014, disse que “[...] o selfie é a
expressão contemporânea da iconofilia” e que esta prática “torna visível a força
invisível da tribo” (SAYURI, 2014, n.p.). De maneira mais otimista do que muitos
autores que tratam a exposição exacerbada da intimidade na rede com grande
preocupação, Maffesoli traz uma leitura menos apocalíptica dessas mudanças dos
tempos e integrada ao surgimento de uma nova maneira de organização das tribos
pós-modernas:

Com os avanços tecnológicos, nós estamos observando a


emergência de uma geração “selfie”? Certamente o selfie está no ar.
Entretanto, na minha opinião, essa mise-en-scène de si mesmo não
é, como se costuma dizer, o símbolo de um aprisionamento de si.
Nessa perspectiva, discordo dos teóricos que abordam abusivamente
o narcisismo. Prefiro dizer que os selfies compõem a forma
contemporânea da iconofilia. Assim, podemos indicar um narcisismo
tribal. Isso quer dizer que, ao difundir essas fotografias, nós
pretendemos nos posicionar em relação aos outros da tribo. Se
traçarmos um paralelo com uma imagem religiosa, o selfie tem uma
finalidade sacramental, que torna visível a força invisível do grupo. O
que me liga aos outros da minha tribo? Nós nos definimos sempre
em relação ao outro. Assim, o fenômeno tribal repousa
essencialmente no compartilhamento de um gosto (sexual, musical,
religioso, esportivo, etc.). É preciso dizer que essa “partilha” cresce
exponencialmente com o desenvolvimento tecnológico (SAYURI,
2014, n.p.).

O selfie compartilhado traduz esse relacionismo intermitente, como abordado


por Maffesoli, em detrimento de uma individualidade burguesa que parece se
esfacelar juntamente com o próprio capitalismo, pelo menos na forma como o
capitalismo é ainda entendido hoje. Maffesoli relativiza a difundida discussão dos
perigos psicossociais da publicização da intimidade, ao dizer que as mudanças na
177

própria noção de pudor são diretamente relacionadas às modificações históricas


sociais:
Nas mídias sociais, publicamos “selfies” sempre felizes. Somos tão
felizes? Ou filtramos nossos retratos justamente para esconder
nossas angústias atuais? De fato, as mídias sociais (Facebook,
Instagram, Twitter, etc.) tendem a dar uma figuração feliz de nós
mesmos. Certamente não estamos sempre felizes. Mas há aí um
movimento de pudor: nós tendemos a dar à tribo, ou às diversas
tribos às quais pertencemos, imagens reconfortantes de nós
mesmos. No entanto, historicamente, é preciso lembrar que os
quadros e as esculturas, as imagens próprias a todas as civilizações
destacaram essencialmente essa figuração de felicidade (SAYURI,
2014, n.p.).

Maffesoli nessa citação aborda também sob um novo viés a ficcionalização


das personas online, que aparecem sempre felizes em seus autorretratos. No
entanto, a vista do autor é mais otimista que a da maioria dos autores, pois ele
exalta a “escolha” das imagens autorreferentes como uma maneira de pertencer às
“tribos” ao mostrar uma “melhor imagem de si”. É uma concepção divergente do que
fora aqui analisado, mas é importante apresentá-la para relativizar a discussão.
Mesmo diante da validade dessas novas questões, a dita “geração selfie” surgiu no
âmago da mais rentável indústria capitalista das últimas décadas: a tecnologia da
informação, mais precisamente, a indústria dos telefones móveis, que consolidaram
a indústria da computação e a democratizaram em grande escala – pois, hoje, os
smartphones são utilizados como computadores pessoais portáteis.
Desde que os telefones celulares começaram a trazer câmeras embutidas, no
início dos anos 2000, eles se tornaram em pouco tempo os aparelhos mais utilizados
para o registro fotográfico, em virtude do tamanho reduzido e da facilidade de uso.
Por esse motivo, a realização de selfies com tais aparelhos acompanhou, de certa
forma, a própria história deles, pois a característica portátil desses dispositivos era
convidativa para a produção de selfies diversos que se acumulam aos montes na
internet, com destaque aos selfies íntimos, principalmente sensuais e sexuais – os
smartphones são instrumentos íntimos por definição.
Desde o início, tais aparelhos foram transportados na intimidade das bolsas
das mulheres, onde dividem o mesmo local de batons, maquiagens, joias e itens de
higiene pessoal. Por sua vez, também compartilham a intimidade dos homens, que
os carregam em bolsos antes exclusivos para chaves, carteiras e camisinhas, em
muitos casos. É um item pessoal, íntimo e, hoje, indispensável, que transcendeu seu
178

uso original como telefone e traz quase todas as funções de um computador


pessoal, de uma máquina fotográfica, de um GPS, entre outros aparelhos. É claro
que os notebooks e as câmeras fotográficas portáteis (amadoras) não podem ser
esquecidos nessa breve história do selfie, mas, principalmente na
contemporaneidade, em que o smartphone se conecta intermitentemente à rede
mundial de computadores, esse tipo de fotografia parece ser indissociável a tal
dispositivo. Muitos dos mais novos smartphones são, inclusive, publicizados como
os melhores para a produção de selfies, e isso pode afetar positivamente a venda
deles. Os especialistas argumentam sobre o porquê de os telefones celulares
estimularem a troca de imagens íntimas, sobretudo entre os adolescentes. Para
Reverbel (2012, n.p.):

[...] em primeiro lugar, porque o celular é um dispositivo para uso e


porte pessoal por excelência, o que garante privacidade a seu
proprietário. No caso do computador, dá-se o inverso, e não raro a
máquina é compartilhada por várias pessoas da família. [...] No
celular, é muito fácil tirar uma fotografia e mandá-la em seguida para
um amigo ou pretendente. Já no computador, é preciso salvar a foto
e anexá-la a um e-mail, por exemplo. Esse percurso maior faz com
que o adolescente tenha mais oportunidade de refletir sobre o que
está fazendo.

O selfie digital é de suma importância para a instauração da tecnoscopia. A


exibição de si mesmo antecedeu a popularização do telefone celular, mas foi após
isso que esse tipo de exibição passou a ter o nome de selfie propriamente dito,
termo visto como mais moderno e adequado pela geração hiperconectada
contemporânea que abandonou a clássica e milenar expressão autorretrato.
É importante frisar também que não apenas os smartphones começaram a
trazer “obrigatoriamente” câmeras nos próprios aparelhos. Sibilia (2016, p. 21),
relata que “[...] em poucos anos, aliás, tornou-se impossível conseguir no mercado
um computador sem câmera embutida, o que parece um sintoma bem claro da veloz
naturalização de tais práticas”. Outros aparelhos como TVs, videogames, tablets,
entre outros, também possuem câmeras prontas para captar qualquer momento,
mas a mobilidade do celular o torna um aparelho íntimo por excelência.
Uma das primeiras e mais famosas empreitadas exibicionistas na internet foi
o site de apelo erótico JenniCam – já citado algumas vezes nesta tese. Sua criadora
179

é hoje considerada a primeira mulher a se expor frente a webcams para o mundo


todo ver e, por isso, se tornou a primeira webcelebridade do mundo. Tal site foi:

[...] montado em 1996 pela webdesigner estadunidense Jennifer


Ringley, na época com vinte anos de idade. A jovem causou certo
impacto quando resolveu instalar várias câmeras de vídeo nos
diversos cômodos da sua casa, apontando para todos os recantos, a
fim de que as lentes registrassem e transmitissem pela internet tudo
o que acontecia entre essas quatro paredes e, com maior exatidão e
frequência ainda, tudo o que ali não acontecia. [...] As câmeras nunca
eram desligadas, e a vida de Jennifer parecia transcorrer como se as
lentes não existissem, montando assim um reality-show particular.
JenniCam permaneceu no ar durante sete anos, com todas as suas
filmadoras ligadas o tempo todo; por isso, é considerada uma
experiência precursora das vanity cams ou “câmeras da vaidade” que
em breve se tornariam tão habituais (SIBILIA, 2016, p. 276).

O site JenniCam surgiu na época em que o autorretrato digital começava a se


esboçar como tendência. Na verdade, tratava-se da primeira geração de vídeos
selfies de fato, também conhecidos como lifecasting, termo que designa a
transmissão da própria vida via streaming (questão que será abordada a posteriori).
Esse site traz a primeira tentativa de uma pessoa comum de realizar um reality show
amador em sua própria casa e retratando a si mesmo, em que usa os primórdios das
tecnologias digitais e domésticas de transmissões ao vivo. Vários outros sites,
principalmente eróticos, seguiram com essa tendência que se mantém até a
atualidade.
Como visto, o que contribuiu significativamente para a captação e
disseminação de fotografias e vídeos selfies foi a democratização dos dispositivos
tecnológicos. Aliados a esses hardwares estão os serviços digitais que advêm
principalmente de produtos criados na década de 1990 e que deflagraram a web 2.0,
como os blogs e seus desdobramentos fotográficos (fotologs ou flogs) e
videográficos (videologs ou vlogs), fundamentais para o surgimento das redes
sociais e que serão analisados a seguir.

2.2.1.2 Blog

O blog é um neologismo derivado da junção dos termos em inglês web (rede)


e log (registro), e se refere aos diários digitais disponíveis na rede mundial de
informações. Surgido em 1997, o blog aproveitou os melhores recursos do início da
180

web 2.0, pois já permitia à época rápidas atualizações a partir da postagem de


textos, imagens, vídeos, áudios e links no formato de artigos online. Em pouco
tempo, os blogs ganharam variações em seu formato, surgindo os fotologs ou flogs,
exclusivos para a publicação de fotografias e imagens; os videologs ou vlogs, para a
publicação de vídeos; e, mais recentemente, os nanoblogs ou microblogs, em que é
possível a postagem de textos curtos para leitura e visualização rápidas, a exemplo
do famoso Twitter. Para esta análise, os flogs e vlogs foram extremamente
importantes entre as primeiras disseminações de imagens exibicionistas na rede, ao
final do século XX.
Inicialmente, os blogs foram considerados diários íntimos publicados na
internet. Ainda hoje, “[...] é enorme a diversidade de assuntos tratados nos blogs da
internet, embora boa parte da atividade que eles canalizavam tenha sido absorvida
pelas redes sociais como Facebook ou Twitter” (SIBILIA, 2006, p. 20-21). Uma
característica que acompanha os blogs desde o surgimento é a necessidade da
constante e ininterrupta atualização, o que os tornam uma espécie de canal, em que
todos necessitam “ver” e “saber” de “tudo ao mesmo tempo e agora” – isso leva a
uma tendência que parece bem clara: “[...] os relatos de si tendem a ser cada vez
mais instantâneos, presentes, breves e explícitos” (idem, p. 183).
Tais aspectos afetam a sociedade como um todo, como constata Bruno
(2013, p. 55):

[...] desde a popularização do uso de webcams e das narrativas de si


em blogs na Internet, juntamente com a proliferação de reality shows
na televisão, o tema da exposição do eu e da intimidade em
tecnologias e redes de comunicação tornou-se recorrente tanto na
pesquisa acadêmica quanto na pauta midiática.

As mais famosas redes sociais da atualidade – Facebook, Instagram,


Snapchat e Twitter – nada mais são do que versões atualizadas e híbridas dos
blogs, flogs, vlogs e nanoblogs. O blog afetou a comunicação mundial em vários
níveis, transformando a publicidade e o jornalismo contemporâneos, mas foi a antiga
noção de intimidade que mais se modificou com as novas ferramentas. As pessoas
viram uma oportunidade de tirarem seus diários íntimos (acompanhados de suas
imagens íntimas) da gaveta, para que todos pudessem bisbilhotar de maneira mais
fácil. Sibilia (2016, p. 112) cita relações interessantes entre o blog e os diários de
outrora:
181

[...] nada mais privado, porém, vale lembrar, que um diário íntimo à
moda antiga. Esses prezados objetos eram furtados à curiosidade
alheia, guardados em gavetas e esconderijos secretos, muitas vezes
protegidos por meio de chaves, cadeados ou senhas ocultas.
Chegavam a se converter, inclusive, em atividades seriamente
proibidas e perseguidas por maridos, pais e outras figuras
autoritárias. Enquanto isso, o universo dos computadores e celulares
ligados à internet, essa autêntica rede de intrigas com seus pontos
de fuga e seus inúmeros furos nas nuvens virtuais, não parece um
ambiente propício para a preservação dos segredos. E talvez nem
pretenda sê-lo, pelo menos nesse terreno das confissões
transmidiáticas, apesar dos escândalos que de vez em quando
estouram pelos ambíguos vazamentos de fotos, e-mails ou vídeos
éxtimos.

O diário íntimo tradicional se difundiu como prática cotidiana no século XIX,


ocupando “[...] um lugar importante na narrativa e decifração do eu e de seus
segredos inconfessáveis” (BRUNO, 2013, p. 64). No entanto, em muitos casos era
preciso escondê-los em face das conotações “masturbatórias” que eles possuíam,
pelo menos de acordo com os médicos e moralistas da época (SIBILIA, 2016). A
sexualidade humana como algo íntimo e privado, numa visão social moderna, infere
ao diário a conotação de “guardar” ou “revelar” segredos da intimidade.
A facilidade de produção e disseminação de conteúdos nos blogs e derivados
trouxe o exibicionismo à ordem do dia e nutriu um “rebanho” de voyeurs que cresce
em ritmo constante. Somados às câmeras portáteis dispostas em computadores ou
embutidas em aparelhos celulares e outros dispositivos móveis, eles foram os
precursores de uma transformação ainda em curso. No entanto, os desdobramentos
do blog particularmente iniciaram a chamada “geração selfie”: primeiramente
surgiram os fotoblogs, também chamados de fotologs ou simplesmente flogs, com
plataforma prioritária para fotografias em que os textos eram elementos secundários.
Nesse serviço, as primeiras imagens selfies digitais foram postadas. Lançado cinco
anos após o primeiro blog, em 2002, o serviço se expandiu rapidamente e ganhou
milhares de usuários logo nos primeiros meses de criação, pois acompanhou a
democratização da oferta de câmeras fotográficas digitais amadoras de baixo custo.
Com o passar do tempo, a melhoria da tecnologia da internet e o aumento da
banda de fluxo de dados, os videoblogs, também chamados de videologs ou vlogs,
começaram a se tornar comuns. Surgidos após os flogs, eles precisaram aguardar
alguns anos para se tornar tendência mundial – na verdade, as plataformas de vídeo
inspiradas diretamente nesse formato, com grande destaque para o YouTube,
182

surgido em 2005, possibilitaram a nova revolução da superexposição de si mesmo,


uma tendência que hoje, com a disseminação do streaming, se mostra como o
grande “motor” do exibicionismo tecnoscópico, como será discorrido a seguir. As
palavras flogs e vlogs não são mais usadas nos dias atuais; no entanto, redes
sociais, canais de vídeo, aplicativos, entre outros serviços se apresentam como
redefinições tecnoscópicas aprimoradas e potencializadas de tais ferramentas.

2.2.1.3 Streaming

O site JenniCam, precursor absoluto de uma nova tendência e de uma nova


subjetividade enfocada na autoexposição exacerbada da intimidade, surgiu mesmo
antes dos vlogs e conseguiu, inclusive, uma proeza técnica em sua época: utilizar
várias câmeras de vídeo no interior de uma casa comum, em que todas transmitiam
ao vivo e intermitentemente numa época em que a velocidade do fluxo de dados da
internet era bastante inferior à atual. Isso supera diversas produções exibicionistas
contemporâneas, pois a nova tendência de vanitycams costuma usar apenas uma
câmera – a de selfie do aparelho, em maior escala, ou a webcam embutida na
maioria dos computadores pessoais. Hoje, a nova categoria de vlog ao vivo é
conhecida como streaming de vídeo.
A palavra inglesa streaming (transmissão) se refere ao serviço de envio de
conteúdo de mídia via internet – áudio e/ou vídeo – a um usuário final a partir de um
servidor de dados. Diferentemente do download, no qual um usuário precisa “baixar”
todo o conteúdo para depois ter acesso a ele, o streaming permite que o usuário
assista ou ouça o conteúdo ao mesmo tempo em que ele é acessado no provedor.
Isso facilita o acesso às mídias, elimina parte do problema de espaço físico de
memória (HD) para guardar o conteúdo, minimiza a pirataria, possibilita a
transmissão de conteúdo em tempo real (ao vivo) etc.
Sem dúvidas, o YouTube é o mais importante serviço de streaming de vídeos
desde os primórdios da internet. Fundado em 2005, como dito anteriormente, ele
aproveitou repercussão positiva dos vlogs à época; tanto que, em 2006, foi
comprado pela empresa Google por uma quantia bilionária. Em 2008 inaugurou a
era dos streamings ao vivo com o serviço YouTube Live, e hoje, outros sites e redes
183

sociais como o Facebook, o Ustream e o Periscope possuem também essa opção,


tida como uma grande tendência atual e em expansão.
As maiores webcelebridades atuais são os Youtubers, que produzem vídeos
que são a sensação midiática do momento. Muitos conseguem grande sucesso
financeiro e são adorados por crianças e adolescentes – estes, também possuem
seus próprios canais e sonham em ser Youtubers famosos. Sibilia (2016) relata que
essa novíssima profissão se tornou o novo sonho infantil: as crianças não querem
mais se tornar jogadores de futebol ou bombeiros, e sim famosos digitais. De acordo
com Prima Vikinga, uma famosa Youtuber, “[...] ser Youtuber não é algo impossível,
qualquer pessoa é capaz, [...] a receita é bem simples: basta pegar uma câmera, ser
você mesmo e fazer o que gosta” (idem, p. 213).
A expressão “ser você mesmo” define como essa transmissão de conteúdos
exibicionistas, grande tendência do consumo contemporâneo, instaura um
tecnoscopia global. Os vídeos selfies se disseminaram nos últimos anos e hoje
ocupam uma considerável parte das atividades nos sites de streaming. Em boa parte
deles, em especial os exibidos pelo Facebook, usuários apenas se apresentam
frente às câmeras, alguns deles sequer dizem algo. A imagem capta os rostos e
corpos dos autorretratados, que se mostram em suas atividades diárias ou apenas
“se mostram”, sem nenhum tipo de tentativa de falar sobre algo significativo sobre
qualquer assunto – o importante é se exibir e, em muitos casos, com grande
sensualidade.
As pessoas que ali se exibem parecem contemplar suas imagens em um
espelho compartilhado. Elas pedem que o Magic Mirror (Espelho Mágico) seja o
legitimador de suas belezas, assim como no famoso conto publicado pelos irmãos
Grimm no século XIX, “Snow White and the Seven Dwarfs” (“Branca de Neve e os
Sete Anões”). Em alguns vídeos selfies em streaming, os autorretratados pedem a
participação dos usuários observadores (voyeurs interativos), a partir de frases
exclamativas como: “Façam perguntas!”, “Cv (conversem) comigo!”, “Vamos
dançar!”, “Vamos curtir!” etc. – essa conclamação dos voyeuristas digitais de plantão
visa nutrir a citada dependência tecnoscópica, sendo comum encontrar expressões
como “Tédio...” e “Nada pra fazer...”, como se o exibicionismo fosse a única opção
de tarefa produtiva para aqueles que “nada têm de melhor para fazer”. É
interessante pensar que paradoxalmente ainda há pessoas que indaguem isso nos
184

dias atuais, em face de um ambiente em que todos parecem estar em débito com o
tempo, por não conseguirem cumprir todas as tarefas necessárias do dia a dia.
É claro que grande parte dos exibicionistas digitais de hoje são adolescentes,
carentes por atenção e afeição, que geralmente ficam sozinhos a maior parte do
tempo em face dos compromissos e do trabalho dos pais. Com certeza, eles sempre
devem estar em débito com as atividades escolares, pois um dos grandes
problemas da educação escolar tradicional é a falta de interesse deles em cumprir a
atividade extraclasse. Quando dizem que não têm “nada para fazer”, eles querem
dizer, na verdade, que não têm atividades prazerosas para executar, e o
exibicionismo é um tipo de atividade afetiva em grupo – estar conectado e se
mostrar supre parte dessa necessidade de pertencimento a uma “tribo”, de acordo
com a citação anterior de Maffesoli.
Assim como acontece com qualquer grupo, sempre há pessoas que se
destacam, atraindo a maior parte da atenção para si e fazendo de tudo para
conseguir a visibilidade almejada. Para isso, tudo é válido, inclusive atender aos
pedidos mais “ousados” e sem pudores dos voyeuristas interativos: tirar a roupa, se
masturbar em frente às câmeras, se ferir e se humilhar. Tudo para responder à ânsia
daqueles que se sentem empoderados pelo olhar escopofílico e fetichizado de
“possuir” a completa intimidade da pessoa observada.
Em vídeos e fotografias selfies, mesmo naqueles mais pudicos, o
enquadramento costuma ser médio ou em primeiro plano (da cintura ou do busto
para cima) e em plongé (na diagonal superior), tipo de quadro usado para enquadrar
o torso ou o busto além do rosto – com certeza, elas são as partes mais importantes
para o exibicionista. Nessas imagens, boa parte dos homens aparece sem camisa, e
as mulheres trazem roupas com grandes decotes nos seios, quando não os
mostram por completo, o que gerou a expressão adolescente contemporânea “pagar
peitinho”.
Quando alguém transmite um vídeo nos dias atuais, ele/ela acredita ser o
foco das atenções, já que a transmissão é unilateral na maioria dos casos dos
streamings ao vivo. O feedback diz respeito ao número de usuários que interagem
com o vídeo, seja apenas como es(x)pectador, ou através de “comentários”,
“compartilhamentos” e/ou “curtidas”. A pessoa que se exibe, em muitos casos, não
acompanha as informações tempo real, assim, ela tem a sensação do monólogo, do
185

controle, de ser o centro das atenções. Desta maneira, ela supre a necessidade de
popularidade dada pela dependência da interação alheia. Em vários momentos, o
exibicionismo extrapola os limites socialmente convencionados do pudor e da moral,
como já citados e que serão melhor discutidos no item a seguir.

2.2.2 Eros e Tânatos: sexo e morte

Diante da necessidade tecnoscópica global, em que muitos estão à mostra,


deve haver “algo a mais a se mostrar”, para que o sujeito se destaque em meio à
multidão de exibicionistas. Irônica e complementarmente, há outro tipo de imagem
contemporânea que se destaca tanto quanto a sensualidade e a sexualidade: a
morte. A dicotomia psicanalítica das pulsões sexuais (de vida) e as pulsões de
morte, Eros e Tânatos, continuam tão válidas na sociedade tecnoscópica quanto na
época em que Freud iniciou seus estudos sobre isso, no fim do século XIX e início
do século XX.
São inúmeros os vídeos e fotografias que enfocam cenas chocantes de
acidentes, desastres, brigas, assassinatos, torturas, estupros, entre outros – ou
apenas corpos sem vida ou mutilados. Essas imagens são captadas por câmeras
amadoras e mostram um outro tipo de intimidade: aquela que era reservada aos
entes queridos ou aos profissionais competentes (policiais, médicos, enfermeiros,
coveiros, agentes funerários etc.). Ambos os tipos de imagens, sexuais e trágicas,
são as que mais atraem a atenção dos voyeuristas tecnoscópicos. Pelo destaque
que elas possuem, os sujeitos hoje também querem, assim como os repórteres
sensacionalistas, mostrar as desgraças alheias em primeira mão. Bruno (2013, p.
97-98) relata que:

[...] ainda estão vivas na memória imagens como as do atentado à


bomba no metrô de Londres (2005), das “investigações” da Dona
Vitória, moradora de Copacabana, sobre o tráfico de drogas sob as
janelas do seu apartamento (2005), da morte de Saddam Hussein
(2006) e de Muammar Kadafi (2011), das torturas a que os soldados
americanos submetiam os prisioneiros iraquianos na prisão de Abu
Ghraib, em Bagdá (2004), da morte de Ian Tomilson durante as
manifestações do G20 em Londres (2009), das manifestações
políticas em 2011 na chamada primavera árabe, nos acampamentos
na Espanha, nos protestos em Londres, nas ocupações nos Estados
Unidos, entre outras.
186

São inúmeros os exemplos recentes de fotos e vídeos com essa


característica. Sibilia (2016, p. 316) apresenta um caso real ocorrido em 2007, cujas
imagens ainda circulam na internet, dando fama post mortem ao assassino, um
garoto de 19 anos que:

[...] matou uma dezena de pessoas com uma arma de fogo num
centro comercial da região central dos Estados Unidos. No bilhete
que deixou antes de cometer suicídio, o adolescente confessava
seus motivos e sua intenção: morrer ‘com estilo’ para poder, enfim,
‘ser famoso’”.

Recentemente, no Brasil, vários vídeos e fotografias que captaram cenas


trágicas “viralizaram” na internet de maneira extremamente rápida e, assim como
fazem os “vazamentos” de imagens sexuais de celebridades, também conseguiram
milhares de visualizações. Em um desses casos, houve a divulgação de vídeos e
fotografias realizadas no necrotério durante a preparação do corpo do músico
Cristiano Araújo, que morreu em um acidente de carro em 2015. Um legista trabalha
no corpo do cantor, que está nu e aberto, enquanto uma assistente capta o vídeo e
as fotografias. Em determinado momento, a assistente se mostra e posa, fazendo
um selfie com o corpo em segundo plano.
Em outro caso ainda mais explícito, no dia de Ano-Novo de 2017 houve uma
rebelião seguida de massacre no presídio Anísio Jobim localizado em Manaus,
Amazonas, onde 56 presidiários foram assassinados. Portando smartphones, os
próprios assassinos registraram a matança em vídeo e fotografias, publicando-os na
internet. As imagens “viralizaram” em pouco tempo, inclusive durante o próprio
massacre. Após esse fato, outros presídios brasileiros sofreram com rebeliões e
mortes, e em todas houve registros e disseminação de imagens.
Particularmente, o Brasil tem uma tendência a explorar imagens eróticas e
trágicas há décadas, advinda da mídia sensacionalista e que se estabeleceu na
internet, inundando a rede com um tipo de sensacionalismo amador. Um episódio da
série documental britânica “The Greatest Shows on Earth” (“Os Grandes Programas
do Mundo”), produzida pelo Channel 4 em 2012, investigou a cultura brasileira
contemporânea e concluiu que o apreço do cidadão desse país por cenas eróticas e
trágicas, que fica evidente na mídia nacional de uma maneira geral, se deve às
características psicossociais do povo (hedonistas adoradores de experiências
efêmeras e pouco preocupados com o futuro), de acordo com o próprio
187

documentário. Ademais, devido à necessidade que o brasileiro tem de aproveitar o


momento presente em face do medo da morte certa, ele tende a dar preferência ao
prazer (sexo), temendo o fim próximo (morte) – por isso, o interesse pelos dois
temas opostos e complementares.
É interessante também abordar a questão a nível mundial, tomando como
objeto os filmes de terror realizados em quase toda a história do cinema. Outro
documentário, “S&Man” (lê-se “Sandman”), de 2006 (Figura 48) e dirigido pelo
cineasta J. T. Petty (1977-), também aborda a relação entre sexo e morte nas
produções desse gênero, em que constata que grande parte deles é voyeurista por
natureza37.

!
Figura 48. “S&Man”, de J. T. Petty. Frame de filme em longa-metragem. 2006. Fonte: <http://
horrornews.net/wp-content/uploads/2010/10/SMan-Sandman-2006-movie-4.jpg>. Acesso em:
15/07/2017.

37 Preferiu-se abordar tal assunto neste tópico por conta de uma metodologia mais didática ao
discorrer sobre a morte, assunto que não foi analisado no capítulo que tratou do voyeurismo. A
ficcionalização de cenas íntimas nas produções de terror e a posterior entrega à observação dos
voyeurs es(x)petadores também possuem forte ligação com uma tendência exibicionista da tragédia
alheia ou pessoal.
188

O assassino nesses filmes costuma espreitar a vítima sem abordá-la num


primeiro momento, principalmente em situações íntimas (trocando de roupa,
tomando banho ou no ato sexual) – após isso, ela está apta a ser morta. Muitas
películas com esse atributo possuem cenas de sexo quase tão explícitas quanto as
de violência física, mas, na verdade, elas tendem a ser proporcionais: quanto mais
sexo, mais sangue. Gêneros recentes que se apropriam desses caráter e estética
mais amadores, como o mockumentary (já tratado por esta pesquisa) e o snuff são
grandes exemplos desse tipo de produção.
Por definição, os filmes snuffs trazem cenas de mortes “reais” a priori. Elas
são ficcionais na maioria dos casos, mas elaboram uma mise-en-scène para passar
a sensação de realismo, de que a cena vista de fato ocorreu. Alguns filmes bastante
difundidos no mercado de VHS na década de 1990 eram compostos por vídeos
compilados de mortes reais, de fato. Com exceção destes, os demais são
elaborações com aspecto amador que dão a impressão de voyeurismo ao
espetador, que crê que assiste a uma cena real, a exemplo, novamente, dos
mockumentaries. Vale dizer que quase todos os filmes snuffs apresentam cenas
eróticas que variam do soft ao explícito.
Vários filmes tratam desse assunto, com destaque para “Snuff – Vítimas do
Prazer”, produzido por Cláudio Cunha em 1977; “Cannibal Holocaust” (“Holocausto
Canibal”), de 1980, por Ruggero Deodato38; “Strange Days (“Estranhos Prazeres”),
de 1995, por Kathryn Bigelow; “8mm (“8 Milímetros”), de 1999, por Joel Schumacher;
“Hostel” (“O Albergue”), de 2005, por Eli Roth; e o exemplo mais polêmico dos
últimos anos, “A Serbian Film” (“Um Filme Sérvio”), de 2010, por Srđan Spasojević.
Tais filmes, em sua maioria, se referem ao fato de que películas snuffs são
comumente produzidas e vendidas em mercados negros pelo mundo. De fato, há
notícias sobre a veracidade da produção de snuffs reais, mas a forma com que eles
são abordados nesses filmes trata de mitos urbanos ou boatos (pelo menos ainda)
não comprovados.
Esses filmes exploram duas constantes da intimidade humana e
consequentemente conseguem atrair o público, tornando-se produtos com grande
rentabilidade financeira. Somam-se a isso os demais filmes de terror que, mesmo

38 Foi noticiado na época que o diretor do filme ficou detido até provar que os atores do filme estavam
vivos.
189

sem um voyeurismo/exibicionismo snuff, sempre se valem de uma carga de


sexualidade mista com assassinato, como os grandes sucessos dos anos 1980 –
“Friday the 13th” (“Sexta-feira 13”), “Halloween”, “The Texas Chain Saw
Massacre” (“O Massacre da Serra Elétrica”) – e as centenas de variações desses
longas-metragens, produzidas ainda nos dias atuais. Para Calvert (2004, p. 44), o
voyeurismo sempre andou lado a lado com o terror cinematográfico, desde os
primeiros filmes do gênero, com:

[...] a series of voyeuristic shots, either tracking or stationary, taken


from assorted angles and points in narrative space, and placed
behind a window, doorway, or other framing device to create the
keyhole effect of surveillance by an unseen or partially seen other.
The monster or murderer is off-screen, watching from a distance.

Isso leva a crer que sexo e morte são temas íntimos por definição e, logo,
despertam grande interesse nos observadores devido ao “gosto pelo proibido” e pelo
que é ainda “velado” (noções, em suma, voyeuristas), mas que agora devem ser
explicitados (de maneira exibicionista) para a satisfação de todos. Outra questão
atual e preocupante concerne aos literalmente violentos “jogos” de internet que se
disseminam por todo o mundo e levam os usuários a participar de experiências
humilhantes, a se autoflagelar e até ao suicídio.
Nos últimos anos, tornaram-se comuns os “jogos” de sufocamento online, em
que os participantes, em sua maioria, adolescentes, induziam os próprios
sufocamentos ou inalavam substâncias químicas em frente à webcam até
desmaiarem – em alguns casos, chegaram ao óbito. Um exemplo mais recente é o
polêmico “jogo” chamado de “Blue Whale” (“Baleia Azul”), o qual solicita que o
jogador cumpra missões diariamente durante 50 dias, nas madrugadas, sobretudo.
Esse “jogo” propõe desafios macabros, como se fotografar assistindo a filmes de
terror, se automutilar, ficar doente e até cometer suicídio. Também praticado em
grande parte por adolescentes, esse “jogo” é acusado como o responsável por
dezenas de suicídios no mundo todo, incluindo no Brasil. Especialistas afirmam que
os jovens que se submetem a esses tipos de atividades masoquistas podem ter
tendências depressivas ou outros transtornos psíquicos.
Em face da tecnoscopia exacerbada, pode-se concluir que o que leva os
jovens a ter tais atitudes é a “necessidade de ser visto”: sempre há um público, e a
experiência nunca é individualista. As imagens são “postadas” e “compartilhadas”
190

pelo menos no grupo de jogadores; logo, o que induz à participação não são
simplesmente as questões psicológicas pessoais (que, de fato, também
influenciam), nem mesmo os desafios do “jogo” – mas sim a possibilidade de serem
os “protagonistas do espetáculo tecnoscopista”, não mais os coadjuvantes e,
tampouco, meros espectadores. Para isso, vale mostrar toda sua vida ou se privar
dela.
Ainda há decorrências perigosas e abordadas de maneira sensacionalista que
também relacionam o exibicionismo à morte. Uma notícia divulgada em 2015, por
exemplo, afirmava que selfies matam mais do que ataques de tubarões. O número
de acidentes relacionados à falta de atenção por conta da realização de fotografias e
vídeos selfies aumenta a cada dia, o que torna essa notícia cômica e aparentemente
irreal, mas, ironicamente, é um fato a ser considerado. O site Extra (2014b) citou
que, em abril de 2014, uma americana de 32 anos bateu o carro e morreu na
Carolina do Norte, depois de postar um selfie no Facebook: “De acordo com o jornal
britânico Daily Mirror, a última mensagem da mulher na rede social foi publicada às
8h33min e, um minuto depois, o serviço de emergência 911 recebeu a primeira
chamada de socorro”. Apenas dois meses depois, em junho de 2014, o mesmo site
lançou a notícia de que uma estudante de 16 anos faleceu em Taranto, sul da Itália,
após cair de uma altura de 20 metros enquanto tirava um selfie à borda de um
penhasco (EXTRA, 2014a).
Sibilia (2016) aborda que tais notícias reafirmam o mito de Narciso na
contemporaneidade, pois, assim como o personagem mitológico, essas pessoas se
afogam no reflexo da própria imagem. Tal mito acompanhou esta discussão, pois a
sabedoria grega soube visionar o certo futuro da subjetividade humana.
Entorpecidos de “si mesmos”, não há outro caminho senão o afogamento na
vaidade. Isso pode parecer didático e moralista, mas, de fato, o exibicionista-
narcisista-dependente contemporâneo construiu armadilhas na busca pela fama. A
relativamente longa introdução a esta seção é necessária para o entendimento das
questões discutidas nos itens a seguir, atinentes às decorrências do exibicionismo
tecnoscópico a partir da sexualidade e da tragicidade em rede: sexting, leaks e
cyberbullying.
191

2.2.2.1 Sexting

A publicização da intimidade transfere para a máquina boa parte das relações


interpessoais e, consequentemente, o próprio sexo (agora virtual). Há vários
serviços exclusivos para contratação de amantes online (uma espécie de
“prostituição virtual”), trocas de imagens conjugais e videochats em grupo (“orgia
virtual” à distância), além das tradicionais videochamadas que permitem o sexo
entre casais que estão fisicamente distantes ou que dão preferência à relação
eletronicamente mediada em detrimento da relação física tradicional (uma evolução
do antigo “disque-sexo”).
O sexo virtual, também chamado de cybersex, e a pornografia digital são
fatores predominantes da vida online desde a popularização da internet. Isso leva
mais uma vez a inferir que as questões sexuais acompanham a inventividade
humana, inclusive na criação das mais diferentes tecnologias e na produção
artístico-cultural desde a origem da espécie. Como já abordado, algumas das
primeiras imagens escultóricas e pictóricas pré-históricas têm relação direta com
questões sexuais e, seguindo toda a história da produção imagética, a sexualidade
era representada de maneira regular, inclusive nos períodos mais teocentristas. As
primeiras fotografias e os primeiros filmes do cinema também registraram cenas
sexuais e, com certeza, esse é o motivo pelo qual o voyeurismo e o exibicionismo
sempre estiveram aliados às artes e tecnologias das mais diferentes épocas – o
voyeurismo do autor e o exibicionismo do modelo se davam pela necessidade de
“sublimar” o sexo para o mundo da arte ou da técnica.
Na contemporaneidade, não é diferente: casais que se veem regularmente
costumam utilizar as tecnologias de captação, exibição e transmissão de imagens
(máquinas tecnoscópicas) para “apimentarem” o jogo erótico ou, em casos não
raros, somente assim se consegue a excitação desejada. O cybersex também se
encontra em determinado limbo epistemológico, mesmo sendo uma prática originada
há quase três décadas. Pereira e Cardoso (2014, p. 249) revelam que:

[...] alguns autores entendem cybersex como toda e qualquer


atividade online que tenha conteúdo sexual, indo desde visualização
de pornografia até busca de informações sobre saúde sexual. Para
outros, cybersex refere-se a interações e conversas com cunho
sexual cujo objetivo é obter gratificação e satisfação de desejos. Na
busca de gratificação e satisfação sexual, muitos indivíduos usam a
192

internet para facilitar a localização de pessoas com mesmos


interesses e fantasias sexuais para relações tanto off quanto online.
Sexo é uma categoria da maioria dos serviços de bate-papo virtuais.

Esse tipo de sexo mediado não deixa de ser pleno e satisfatório, mesmo
considerando a distância e a “frieza” das máquinas mediadoras: “Embora haja
ausência de contato físico direto, outros elementos importantes para o erotismo
estão presentes: o sensorial, refletido nas respostas físicas e fisiológicas dos corpos;
e o imaginário” (PEREIRA; CARDOSO, 2014, p. 249). Dentre uma grande
quantidade de apps 39 que permitem esse tipo de relação – consequentemente, e se
houver interesse recíproco, encontros in loco entre casais –, destacam-se Grindr,
Tinder, Bender, Scruff e Badoo.
Para Norbiato (2013, p. 74), a grande vantagem desses apps para a busca
por parceiros sexuais vai além da gratuidade e da ‘‘portabilidade’’ via celular ou
tablet, pois permitem a localização geográfica de possíveis parceiros “reais”, o que
torna a seleção deles muito mais simples: “Esteja onde estiver, o localizador GPS do
celular é ativado e aponta potenciais parceiros em diferentes raios, dependendo do
aplicativo utilizado e da seleção do usuário”.
Recentemente, um aplicativo integrado ao Facebook causou certa polêmica
pela explicidade de sua proposta: o Bang with Friends. Nele, o usuário seleciona em
sua rede de amigos do Facebook aqueles que gostaria de levar para a cama e,
quando o amigo em questão usa o aplicativo e o escolhe, ambos são informados e
combinam o encontro. Ou seja, os melindres e as preliminares do jogo da sedução
são eliminados, dado que a vontade mútua da relação sexual já foi demonstrada;
assim, o sexo pode ocorrer sem o “ritual” básico do primeiro contato interpessoal e
sem atender às “tradicionais regras da conquista amorosa”.
Para além dos aplicativos que se propõem a concretizar o encontro físico e in
loco para a relação sexual, atuando como facilitadores do primeiro contato, há
práticas contemporâneas direcionadas para um tipo de sexo virtual à distância, via
internet – em alguns casos, os amantes nunca chegam a se encontrar de fato –,
estes são nomeados hoje como sexting. O termo traz “[...] um neologismo formado
pela mistura das palavras ‘sex’ e ‘texting’ (o ato de mandar mensagens de texto pelo

39 A palavra app é um neologismo em inglês que apresenta a abreviação da palavra application e se


refere aos programas para smartphones e tablets também conhecidos como aplicativos. Por conta da
popularização do termo app, os programas de computadores pessoais anteriormente chamados de
software são agora também chamados de app.
193

celular)” (BUSCATO et al., 2014, n.p.). Assim como outras tendências e modismos
exibicionistas tecnoscópicos – o selfie e o streaming ao vivo recém citados, por
exemplo –, o sexting é mais comum entre os adolescentes. Nessa prática, “[...] fotos
que revelam o corpo e vídeos do momento a dois são capturados por câmeras cada
vez mais poderosas e enviados ao parceiro ou pretendente, como parte do jogo de
sedução. Ou como prova de confiança” (idem).

A popularização do sexting sugere uma mudança de comportamento.


Em parte, ela é causada pela onipresença da tecnologia. Os jovens
têm nas mãos, em tempo integral, um dispositivo que permite fazer
registros e compartilhá-los imediatamente: o celular. [...] Eles fogem
das redes sociais, cujo conteúdo fica explícito para centenas de
amigos e para os pais. A maior rede social do mundo, o Facebook, já
sentiu os efeitos dessa mudança demográfica. No começo do mês,
executivos da empresa admitiram estar perdendo usuários jovens.
Os aplicativos de bate-papo para onde os jovens migram, porém, dão
a eles uma falsa sensação de segurança. De grupo em grupo, as
imagens íntimas se espalham pela rede e se tornam dolorosamente
públicas. Não é por acaso que os últimos escândalos de sexting
começaram pelo WhatsApp (idem).

Pode-se dizer que o sexting ofereceu, a priori, um tipo de retorno ao texto,


frisando assim a parte texting do termo. Enquanto os selfies e as demais imagens
íntimas explodiram em redes sociais e outros sites com enfoque mais imagéticos
como Facebook, YouTube, Instagram e o descontinuado Orkut, o sexting recorreu
aos aplicativos de chat, com grande destaque ao mundialmente famoso e quase
onipresente WhatsApp.
O WhatsApp Messenger é um aplicativo de mensagens instantâneas e
chamadas de voz para telefones celulares que foi criado em 2009 nos Estados
Unidos. Em 2014, ele foi comprado pelo Facebook por uma quantia bilionária e se
tornou um dos softwares mais populares de todos os tempos. Sua base se apropria
no serviço de chat (termo utilizado para nomear serviços de trocas de mensagens
instantâneas), oferecendo outras funcionalidades agregadas, como o
compartilhamento de fotografias, vídeos e áudios com extrema facilidade. Ele é bem
parecido com outros serviços, como Skype, Facebook Messenger, Microsoft MSN,
Google Hangouts entre outros, o que torna a extrema popularidade do WhatsApp um
tanto misteriosa.
Os serviços de chat na internet são anteriores à própria web 2.0. Softwares
como MiRC e ICQ datam dos anos 1990, sendo pioneiros na troca de mensagens
194

instantâneas por terem apresentado, à época, os primeiros vislumbres do que


poderia vir a ser as redes sociais, permitindo a criação de grupos e o
compartilhamento de arquivos.
A maioria das imagens sextings compartilhadas pelos amantes digitais se
refere a selfies fotográficos e/ou videográficos trocados no ato do jogo erótico e
acompanhados ou não por textos também de teor erótico. Seria uma versão em
imagens e textos do ultrapassado sexo por telefone, que agora incorpora a imagem
real do parceiro e, muitas vezes, em tempo real. O sexting perde gradualmente o
caráter textual ou, melhor dizendo, o próprio texto no sexting é transformado em
imagem, pois, no lugar de dizer o quanto o parceiro está excitado à distância, é
melhor mostrar visualmente isso. Às vezes, a distância nem mesmo existe: os
parceiros estão a poucos quilômetros ou a metros um do outro. Mas o sexting pode
parecer muito mais excitante, pois se acrescentam os “olhos da máquina” na
relação, em uma espécie de “ménage à trois digital”. Desse modo, ele parece
retomar o alarde do site JenniCam, levando os sucessores contemporâneos desse
site (do século passado) à espetacularização da própria sexualidade, ao
compartilharem a própria nudez.
A adoção do WhatsApp como o principal software para o compartilhamento
de sextings se deve à ilusão de segurança transmitida por ele. Mas isso ocorre não
por conta da falta de segurança do app – a priori e, salvo algumas falhas, ele
cumpre sua função de manter as mensagens seguras e privadas entre os usuários40.
A ilusão é observada, na maioria das vezes, na confiança dada ao parceiro sexual
que “vaza” as imagens realizadas na intimidade ao final da relação, seja ela “longa”
ou “instantânea”. Uma vez na rede, não há controle sobre o material produzido;
então, uma imagem íntima compartilhada e “vazada” se perde na miríade de cópias,
downloads e incorporações em diversos sites (em sua maioria, pornográficos),
sendo impossível apagá-la, e ali pode permanecer, teoricamente, para sempre.
Nesse contexto, um novo tipo de aplicativo de trocas de conteúdo direcionado
às imagens surgiu para aumentar a segurança (ilusória) do compartilhamento de
arquivos: o Snapchat. Isso dá a clara impressão de que ele tenha sido produzido
exclusivamente para o sexting, o que não é declarado pela empresa que o criou,

40 Será discutida a questão da privacidade desses serviços posteriormente, no capítulo relacionado à


vigilância.
195

mas ainda é usado fundamentalmente para isso. Cada mensagem enviada é


chamada de snap; ao recebê-la, a pessoa pode visualizá-la por um tempo
determinado, de um a 10 segundos. Após esse tempo, a imagem, o vídeo ou o texto
é automaticamente excluído do dispositivo do destinatário e dos servidores da
empresa (ou, pelo menos, é dito que isso ocorre de fato). Mesmo diante da suposta
segurança, basta um print screen, recurso simples e disponível na maioria dos
smartphones, para que a imagem seja do parceiro que a recebeu. Com o Snapchat,
ficou famosa principalmente entre os adolescentes a expressão “manda nudes”,
solicitação de selfies nas quais o autorretratado está nu ou seminu, também
conhecido como nude selfie.
Pereira e Cardoso (2014, p. 251-252) ressaltam que um dos perigos do
sexting se deve ao uso de maneira inconsequente pelos adolescentes, em que
recentes estatísticas evidenciam que:

[...] a maioria dos adolescentes não vê problema no comportamento


mesmo sob o risco de ter suas mensagens e fotos compartilhadas
com terceiros. Entre os motivos para o sexting encontram-se pressão
dos pares; tédio; e a crença de que tal comportamento é divertido e
engraçado. Um estudo com jovens adultos (média de idade: 20,8
anos) demonstrou que homens são mais propensos a serem
recipientes de sexting do que mulheres. [...] Os resultados
encontrados também sugerem que o sexting entre jovens adultos é
um comportamento recíproco, ou seja, funciona como um
aprofundamento das relações já estabelecidas. Outro estudo
relacionou sexting com abuso de substâncias e comportamento de
risco, encontrando como resultado que quase 60% da amostra que
praticava sexting fazia uso de álcool e 41% fazia uso de alguma
droga ilícita. Além disso, eles também eram mais propensos a se
engajar em comportamentos sexuais de risco, tais como sexo sem
proteção (56,6%); sexo após consumo excessivo de álcool (33,9%) e
sexo após uso de drogas (18,6%). […] cerca de 5% dos “sexters”
teve diagnóstico de alguma doença sexualmente transmissível nos
últimos meses (idem, p. 251-252).

Soma-se a essas questões alguns fatores em específico que tornam a prática


do sexting preocupante na atualidade, ao ponto de ser considerada um problema
social que necessita de intervenção imediata. Esses aspectos dizem respeito a
constantes “vazamentos” das imagens realizadas e a maneiras como os retratados
e/ou autorretratados, principalmente adolescentes, lidam com isso após a
“viralização” e o decorrente cyberbullying generalizado, como será discorrido nos
itens a seguir.
196

2.2.2.2 Leak

Os “vazamentos” de informações digitais, conhecidos pela tradução em inglês


leaks, são muito comuns na atualidade. Eles ocorrem em diversos setores sociais,
sendo também famosos os casos de informações sigilosas de empresas e governos
“vazadas” na rede e que passaram a ser conhecidas por todos. Nesse âmbito, o site
Wikileaks é um dos pioneiros e mais conhecidos na atualidade ao proporcionar o
“vazamento” de dados e o anonimato de quem faz isso. Julian Assange41 (1971-),
criador do Wikileaks, é hoje considerado um “profeta” e um “mártir” da democracia
digital e da mudança dos tempos, principalmente por incentivar e construir uma
plataforma para o leak de informações confidenciais – isso será analisado em
detalhes no Capítulo 3 desta tese.
No que tange às imagens íntimas, a maior parte dos “vazamentos” é realizada
pelo próprio parceiro sexual, como já relatado, e outra parte advém de invasões de
hackers que roubam informações e conteúdos pessoais armazenados em
dispositivos ou servidores e, logo após, os disponibiliza na internet ou ameaça fazer
isso mediante tentativas de extorsão. Esses leaks de nude selfies ou de demais
imagens íntimas e eróticas se torna preocupante por conta da quantidade de
adolescentes que têm suas imagens “vazadas”, e isso traz repercussões muitas
vezes negativas e até trágicas para os envolvidos. Ainda em 2009, no início de tais
práticas, uma pesquisa realizada no Brasil “[...] apontou que 12,1% das 2.525
crianças e adolescentes ouvidos já haviam praticado o sexting usando algum
dispositivo eletrônico” (REVERBEL, 2012, n.p.), enquanto Buscato et al. (2014, n.p.)
arrazoam que “[...] o sexting seria inofensivo não fosse por uma fatalidade
estatística: muitas dessas imagens acabam divulgadas publicamente e viram motivo
para linchamento moral”. Percebe-se que vários adolescentes não têm maturidade
psicossocial para lidar com as consequências da superexposição seguida de
bullying generalizado. Por isso, são cada vez mais comuns os casos de suicídios
decorrentes dos “vazamentos”.

41 Julian Assange é um jornalista, escritor e ciberativista australiano. Ficou famoso pela criação do
site WikiLeaks em 2006, um portal de denúncias e vazamento de informações em que usuários
podem publicar anonimamente dados considerados confidenciais. Em 2010, um mês depois da
divulgação de documentos secretos do exército americano sobre a guerra do Afeganistão, a justiça
da Suécia expediu dois mandados de prisão contra Assange, um deles por estupro e outro por
agressão sexual. Em 2012, ele recebeu asilo político na embaixada do Equador em Londres, onde
vive até o momento.
197

Histórias ocorridas nos últimos anos são exemplares desse aspecto. Algumas
delas serão elencadas na citação a seguir, de acordo com matérias publicadas em
duas importantes mídias do Brasil, para demonstrar que esse é um problema social
ainda sem uma solução eficaz:

I. As estudantes Giana Laura, de 16 anos, e Júlia Rebeca, de 17


anos, nunca se conheceram. Separadas pela extensão geográfica do
país – Giana em Veranópolis, Rio Grande do Sul, e Júlia em
Parnaíba, litoral do Piauí –, suas histórias se cruzaram nas
manchetes da imprensa, por causa de um desfecho trágico. Com
apenas quatro dias de diferença, as duas jovens se mataram, pela
mesmíssima razão. Elas haviam descoberto que imagens íntimas
delas, compartilhadas com pessoas em quem confiavam, se
multiplicavam pela internet. Envergonhadas e desesperadas,
totalmente inexperientes, decidiram fugir de uma situação que lhes
parecia intolerável. Ao escolher o suicídio, tornaram-se vítimas, mais
um par de vítimas, de um perigo assustadoramente próximo da nova
geração: a exposição excessiva na internet, e suas terríveis
consequências. As circunstâncias em que as imagens foram
divulgadas ainda estão sob investigação. A polícia de Parnaíba apura
como um vídeo de poucos segundos, em que Júlia aparece numa
relação sexual com uma jovem e um rapaz, se difundiu num
aplicativo de bate-papo usado em celulares, o WhatsApp. “É provável
que ela mesma tenha compartilhado com alguns amigos num grupo
do aplicativo”, afirma o delegado Rodrigo Moreira Rodrigues, da
Delegacia Regional da Polícia Civil de Parnaíba. Em Veranópolis, a
polícia suspeita que um amigo de 17 anos de Giana enviou a alguns
colegas uma imagem da garota com os seios desnudos, capturada
por webcam numa conversa entre eles, há seis meses. [...] Algumas
vítimas não suportam a humilhação e fazem o que fizeram Júlia e
Giana. Quem resiste à brutal exposição e à torrente de piadas
descreve a experiência como devastadora (BUSCATO et al., 2014,
n.p.).

II. “Ele tirou minha vida, não tenho mais vida. Não consigo sair, não
consigo estudar, trabalhar”, disse ao programa Fantástico, da TV
Globo, uma jovem de 19 anos de Goiânia conhecida como Fran. Ela
acusa um ex-parceiro (ele nega) de ter divulgado no WhatsApp
vídeos e fotos em que ela se expõe nua para ele, fazendo gestos
alusivos a sexo. As imagens se espalharam pela internet e
começaram a ser imitadas de forma jocosa até por pessoas famosas,
sempre associadas ao nome da jovem. Fran disse que teve de deixar
o emprego como vendedora de loja, afastou-se da faculdade e
mudou de aparência, na tentativa de não ser mais reconhecida nas
ruas (idem).

III. Nos Estados Unidos, Jesse Logan, de 18 anos, se suicidou, em


2008, depois que seu ex-namorado divulgou fotos nuas feitas por ela.
No ano seguinte, Hope Witsell, de apenas 13 anos, tomou a mesma
decisão quando fotos dela seminua foram divulgadas em sua escola,
e ela virou alvo de bullying (idem).
198

IV. A paulista G.N., de 28 anos, não pôde contar nem com o apoio da
família quando o ex-namorado publicou fotos dela nua num perfil
falso no Orkut, em 2006. “Eu passava o dia inteiro procurando
minhas fotos e meus perfis falsos na internet”, diz G.N. As imagens
haviam sido enviadas por ela durante o relacionamento à distância
com um primo que morava na Itália e pedia provas de amor.
Terminado o namoro, ele ainda mandou as fotos aos pais de G.N.
pelo correio. Ela diz que eles não apoiaram sequer que ela
denunciasse a violência e a culparam pelo vazamento das fotos. O
problema nunca foi resolvido. Até hoje, G.N. esconde o rosto em
redes sociais, para evitar ser identificada. Usa pseudônimo no crachá
da empresa (ibidem).

V. [...] a carioca M., hoje com 22 anos [...] tinha 15 anos quando
vídeos seus com conteúdo sexual foram parar na internet. M. foi
vítima do ciúme da namorada de um ex-parceiro. A garota descobriu
os vídeos íntimos que M. mandara a ele durante o relacionamento e
a chantageou. M. não cedeu à pressão, e o vídeo foi parar nas mãos
dos colegas de escola. Até hoje, sete anos depois, pode ser
encontrado na internet, com direito à identificação, com nome e o
bairro onde ela morava. M. chegou a registrar queixa na polícia. A
denúncia não avançou porque ela não conseguiu provar que a garota
era a responsável pelo vazamento. M. teve de se conformar em viver
escondida sob um codinome. “Sinto falta de poder falar meu nome.
Ele era lindo”, diz (ibidem).

VI. Bruna, 13, não acreditou quando sua foto de lingerie, que havia
dado a um garoto, passou a circular no grupo de WhatsApp “Ousadia
e Putaria”, que reúne dezenas de rapazes de sua cidade. “Agora
todos riem de mim”, escreveu a menina, que cortou os pulsos e está
internada no hospital. Bruna não foi a única a ter suas fotos com
trajes íntimos divulgadas. Luísa, 13, foi ofendida nos corredores da
escola. Já Carla, 17, hostilizada pela vizinhança, foi à polícia. Mas,
surpresa: o estagiário da delegacia fazia parte do grupo, e o boletim
de ocorrência foi parar no “Ousadia”. [...] O delegado, Paulo Peixoto,
nega que a polícia tenha agido com preconceito e culpa o estagiário.
“Foi demitido no dia seguinte”. Cerca de 40 suspeitos, entre adultos e
adolescentes, serão ouvidos. Eles podem ser acusados de crime
contra o direito à privacidade. No caso das fotos envolvendo
menores, a punição é maior. [...] “Eu tinha um namorado que
passava confiança. Ele mandou uma foto e pediu uma também.
Mandei uma de calcinha e sutiã. Agora todos riem de mim. Meu pai
disse que não sou um exemplo de filha”, disse Bruna, 13 [...]
(SPERB, 2015, n.p.).

VII. As garotas, da pequena cidade gaúcha de Encantado, com cerca


de 20 mil habitantes, tiveram fotos e vídeos íntimos espalhados por
meio do aplicativo de celular no último mês. Mesmo com o caso na
polícia, o grupo no WhatsApp continuou ativo. Para muita gente da
cidade, elas não eram as vítimas. Estavam pagando o preço por não
terem se valorizado, escreveu no Facebook o dono do jornal da
cidade, ao dizer que elas mereciam uma “boa cinta de couro de
búfalo com uma fivela de metal fundido”. Antes, o seu jornal, o
“Antena”, já havia falado sobre o caso de algumas meninas da
cidade que resolveram se “soltar para as câmeras” (idem).
199

A quantidade de suicídios de jovens garotas é um sinal do descontrole dessa


situação, em que a tragicidade do superexibicionismo parece um tanto ilusória
quando as notícias de “vazamento” surgem. Com certeza, aqueles que têm
conteúdos eróticos compartilhados pensam na falta de sorte dos que tiveram suas
imagens “vazadas” e creem que tal fato não pode afetá-los. No momento, a única
forma aparente de evitar esse problema é não produzir tal tipo de conteúdo. Uma
vez que a internet é um terreno sem controle absoluto, em que qualquer imagem
comprometedora tem o potencial de se espalhar e se replicar exponencialmente, a
maneira de evitar as consequências negativas disto é evitar a captura de imagens
íntimas – muitas delas são deliberadamente “viralizadas” pelo agressor que tem
como objetivo ferir moralmente a pessoa retratada. Ele pode ter convivido com
vítima e, em muitos casos, é o ex-parceiro que, com o rompimento da relação,
decide se vingar ridicularizando-a ao espalhar as imagens antes pertencentes
somente ao casal – esse fenômeno é inclusive conhecido como revenge porn
(pornografia de vingança). Em parte dessas situações, o agressor não conhece a
vítima, o que torna o ato um tipo de bullying realizado apenas para nutrir o
sentimento de poder sobre ela, uma espécie de fetichismo virtual sádico com o
objetivo de causar danos, tendo nenhum tipo de recompensa material ou afetiva em
vista. Talvez, os agressores que se divertem ao espalhar as imagens dessa pessoa
considerem o ato como virtual demais, como se fosse uma espécie de game online.
Nos casos citados e em outros noticiados nos dias atuais, geralmente o ex ou
o atual parceiro sexual transmite as imagens para pessoas de sua confiança, talvez
numa maneira de legitimar a sexualidade frente aos amigos, e elas se espalham de
modo descontrolado ou chegam à posse de um indivíduo que quer satisfazer um
desejo sádico ao “viralizar” as imagens.
Os danos à pessoa retratada não ocorrem simplesmente pelo aumento da
exposição de sua intimidade, sendo que muitas pessoas (sobretudo garotas) já
costumavam se expor sensualmente nas redes. O que antes era um espetáculo
sensual e uma autoafirmação da própria beleza se transforma em uma humilhação
pública, constituindo uma interessante indagação: Se as imagens fossem
compartilhadas pelo próprio retratado, a humilhação dada por essa ação também
ocorreria da mesma maneira?
200

Ironicamente, há uma barreira que delineia os meios com os quais a


intimidade deva ser publicizada em massa. Uma mesma imagem, dependendo da
abordagem de compartilhamento, pode ter um tom de narcisismo e autoexposição
consentida, visando à popularidade; ou a ideia de humilhação e constrangimento,
sob a forma de um vazamento íntimo não consentido. Com exceção dos casos dos
adolescentes, pois muitos de fato são inconsequentes e ingênuos, vários adultos
sabem trabalhar muito bem no limite entre a exibição da intimidade e a polêmica do
vazamento, tendo como objetivos a visibilidade e a fama. Retoma-se aqui o exemplo
precursor do JenniCam e, principalmente, os polêmicos vídeos íntimos de sexo das
atrizes e modelos Pamela Anderson em 1995, Paris Hilton em 2004 e Kim
Kardashian em 2007, que se valeram da polêmica da controvérsia para emplacarem
na mídia mundial: a primeira reconquistou a fama perdida, e as duas últimas
passaram de socialites pouco conhecidas para celebridades mundiais.
São inúmeros os casos de celebridades que alçaram à fama por conta do
“vazamento” de imagens íntimas – se ele realmente não foi consentido, está aí uma
boa pergunta. O fato é que tais celebridades souberam usar o escândalo a seu
favor, o que não é uma coisa exatamente nova, pois isso já ocorre desde os anos
1950, ao menos, mas elas souberam atrair os olhares voyeuristas sexuais em
âmbito mundial e usaram a tecnoscopia em proveito próprio. Com a exceção desses
casos que usaram os leaks de sextings para conseguirem fama, polêmicas sobre
“vazamentos” não consentidos de fotografias e vídeos de celebridades se acumulam
na internet, nutrindo milhares de sites do estilo “nude celebs”. Um exemplo recente
com grande repercussão na mídia – e o maior em quantidade de imagens “vazadas”
até os dias atuais – ocorreu em 2014, quando:

[...] fotos íntimas de cerca de 100 celebridades – entre atrizes,


cantoras e modelos – foram divulgadas em um fórum anônimo na
internet. As vítimas incluem a atriz e ganhadora do Oscar Jennifer
Lawrence, a cantora Ariana Grande e a modelo Kate Upton. As fotos,
especula-se, foram obtidas a partir de um serviço online da Apple no
qual elas armazenavam seus arquivos (CISCATI, 2014, n.p.).

No Brasil, exemplo semelhante de “hackeamento” e publicização de imagens


íntimas de uma celebridade teve como consequência a sanção de uma lei para
tentar evitar futuros problemas:

201

No início de 2012, a atriz Carolina Dieckmann foi mais uma das


vítimas depois que hackers invadiram sua conta de e-mail e tiveram
acesso a diversas fotos íntimas. Como ela não cedeu às ameaças e
às chantagens de extorsão para que as imagens não fossem
divulgadas, suas fotos rodaram as redes sociais, e-mails e sites do
Brasil e de vários países. Após o episódio, Carolina denunciou o caso
à Polícia Federal e às autoridades competentes em crimes
cibernéticos, que conseguiram rastrear e prender os hackers, no
interior de São Paulo. A partir de então, tivemos um pequeno avanço
na garantia da segurança dos dados pessoais que ainda não estava
previsto no Código Penal: foi sancionada a Lei n. 12.737/2012,
apelidada com o nome da atriz, que criminaliza a invasão de
computadores e dispositivos informáticos sem o consentimento do
titular, entre outras providências (SILVA, 2015, p. 148).

Obstante aos “vazamentos” de imagens íntimas das celebridades, os casos


ocorridos com pessoas “banais” são danosos em sua maioria. Essas imagens
passam a ser utilizadas por pessoas próximas ou estranhas aos retratados (do
convívio físico ou digital) ou hackeadas, ambos casos com o fim de extorsão ou
humilhação. Esse tipo de humilhação virtual generalizada é conhecido hoje como
cyberbullying e será discutido a seguir.

2.2.2.3 Cyberbullying

A palavra bullying é um neologismo em inglês derivado do verbo to bully, que


significa oprimir, ameaçar ou amedrontar. Esse termo começou a ser utilizado com
grande frequência após 1999, especificamente depois do massacre ocorrido em
uma escola de nível médio na cidade de Columbine, nos Estados Unidos, onde dois
adolescentes mataram 12 alunos e um professor. A partir disso, vários estudiosos
relacionaram o fato aos maus-tratos sofridos pelos assassinos, apontando-os como
definidores para a atitude violenta da dupla. O termo bullying foi (e ainda é)
amplamente utilizado para referenciar agressões regulares e repetitivas que várias
crianças e adolescentes sofrem, principalmente no ambiente escolar.
Recentemente, a prática de bullying foi potencializada devido à possibilidade
de rápida “viralização” de imagens e comentários depreciativos na internet, e essa
prática de bullying virtual é hoje conhecida como cyberbullying. A intensidade dada
pela disseminação quantitativa do cyberbullying é o maior fator influenciador nos
danos colaterais às vítimas: quando a repercussão é pequena, a situação
geralmente é controlada e superada; já no momento em que o bullying virtual é
202

grande e massivo, os efeitos psicossociais na vítima podem ser trágicos. Silva


(2015, p. 140-141) relata que, no bullying tradicional:

[...] as formas de maus tratos eram diversas; no entanto, todas


ocorriam no mundo real. Dessa forma, quase sempre era possível às
vítimas conhecer e, especialmente, reconhecer seus agressores. No
caso do cyberbullying, a natureza vil de seus idealizadores e/ou
executores ganha uma “blindagem” poderosa pela garantia de
anonimato que eles adquirem. Sem nenhum tipo de constrangimento,
os bullies cibernéticos (ou virtuais) se valem de apelidos (nicknames
ou simplesmente nicks) ou perfis falsos com o nome de outras
pessoas conhecidas ou de personagens famosos de filmes, novelas,
seriados. [...] A conjunção dos diversos tipos de bullying aumenta em
muito a possibilidade de a vítima sofrer uma exclusão social intensa
e traumática.

Para Silva (2015), as comunidades e os blogs são usados há certo tempo


para promover ataques vexatórios, excluir ou humilhar os agredidos. Na linguagem
da internet, a palavra “trollar” (referente digital a zoar, chatear, tirar o sarro etc.)
designa tipos de brincadeiras, mas muitas “trollagens” são prejudiciais ao agredido,
pois ultrapassam os limites da simples brincadeira e causam constrangimento à
vítima. Soma-se ao cyberbullying a prática do voyeurismo stalker42 que, quando
realizada nos meios digitais, é conhecida como cyberstalker e refere-se às
constantes “perseguições” dos usuários a outros indivíduos.
O cyberstalker pode ser também inofensivo, é claro. Na verdade, ele é uma
prática comum principalmente nas redes sociais que permitem e incentivam os
usuários a “seguirem” seus “amigos” online. No entanto, ele pode ser usado como
um tipo de “perseguição” depreciativa, no qual “perseguidor” se motiva apenas por
denegrir a pessoa seguida.
De fato, há certa intenção sádica em toda prática de cyberbullying, com
destaque àquelas em que o bullie (pessoa que pratica o bullying) é também um
stalker. De acordo com Roudinesco e Plon (1998), o sadismo é um termo criado em
1886 em referência ao nome do célebre escritor francês Donatien Alphonse François
(1740-1814), também conhecido como Marquês de Sade, que designa um tipo de
perversão sexual caracterizada por agressões físicas e morais, flagelações e
humilhações infligidas ao parceiro.

42 Discutido no Capítulo 1.
203

O DSM-5 também trata do sadismo como transtorno parafílico, chamado de


Transtorno do Sadismo Sexual. Segundo a APA (2014), ele é uma parafilia
diagnosticada quando, por um período de pelo menos seis meses, a excitação
sexual resulta quase que exclusivamente do sofrimento físico ou psicológico de
outrem. Ocorre ainda no momento em que o indivíduo se vale de impulsos sexuais
sádicos e os usa na relação com alguém que não consentiu com o fato ou, então,
quando impulsos e fantasias sexuais causam sofrimento no funcionamento social,
profissional ou em outras áreas da vida do sujeito. Essa parafilia é comórbida a
outras já abordadas – voyeurismo, fetichismo, exibicionismo, entre outras –, o que
reforça ainda a relação indissociável das práticas de cyberbullying e sexting com a
tecnoscopia proposta. Vale ressaltar que, em 1905, Freud criou o termo
sadomasoquismo, unindo os transtornos de infligir dor ao de sentir dor. De acordo
com o psicanalista, “[...] o sádico é sempre e ao mesmo tempo um masoquista, o
que não impede que o lado ativo ou o lado passivo da perversão possa predominar
e caracterizar a atividade sexual que prevalece” (FREUD, 1996a, p. 94).
O DSM-5 também aborda que “[...] o uso intenso de pornografia envolvendo o
ato de infligir dor e sofrimento é, por vezes, uma característica associada ao
transtorno do sadismo sexual” (APA, 2014, p. 698). Assim, os cyberbullies
demostram prazer ao perpetuar o sofrimento dos outros, como já inferido, talvez
porque essa pessoa esteja “distante demais” ou, quando não está – no caso de
colegas de escola ou ex-parceiros sexuais –, a atividade em si pareça virtual o
suficiente para ser considerada fictícia. Por isso, o ato de infligir dor pode equivaler a
assistir um vídeo pornográfico sadista, que transmite a ideia de algo “real”, mas o
espectador sabe (ou pensa) que não o é. Tudo na internet parece ser virtual o
suficiente para se deslocar do mundo “real”. O choque ocorre quando a atividade
tecnoscópica atinge e muda a vida da pessoa que acreditava na virtualização da
intimidade e pensava que tudo aquilo que está online nunca teria repercussões
sérias.
Além do “vazamento” de imagens íntimas de determinada pessoa e do
decorrente cyberbullying generalizado, há outro agravante: grande parte delas
passam a alimentar sites de pornografia e pedofilia. De acordo com Silva (2015, p.
152), isso ocorre principalmente pela:
204

[...] inexistência de padrões legais e éticos para a utilização dos


recursos tecnológicos de informação e comunicação; a falta de
empatia, de sensibilidade e de responsabilidade nas relações
interpessoais; a certeza do anonimato, da impunidade dos
agressores e do silêncio acuado das vítimas.

Nesse contexto, outra parafilia se destaca: a pedofilia. Hoje, uma diversidade


de sites pornográficos e eróticos trazem grande quantidade de fotografias e vídeos
de adolescentes em contexto sensual ou mesmo erótico – nuas, seminuas, em
poses sensuais, atividades sexuais, entre outras –, haja vista o número de garotas
que tiveram fotografias e vídeos “vazados”. Mesmo quando não se trata de imagens
“reais” advindas de “vazamentos”, há aquelas produzidas pelos próprios sites que,
em sua maioria, contratam mulheres adultas para se passarem por adolescentes e,
assim, nutrir o desejo escópico-pedofílico do observador. A pedofilia é também uma
parafilia, chamada de Transtorno Pedofílico pelo DSM-5.
Obstante ao tratamento clínico do transtorno pedofílico, que indica a
ocorrência da atividade quando há relação ou intenção de realizá-la com menores
de 13 anos de idade, indivíduos adultos que mantêm relações sexuais com pessoas
com menores de 18 anos podem ser autuados legalmente no Brasil e detidos por
aliciamento de menores, de acordo com o artigo 218 do Código Penal Brasileiro.
Nesse ínterim existem, então, dois tipos de pedofilias: o Transtorno Pedofílico
(parafilia), que se aplica àqueles que têm atração por crianças pré-puberes
(menores de 13 anos); e a pedofilia legalmente classificada, que abarca os que se
relacionam com adolescentes e crianças menores de 18 anos.
Há uma infinidade de sites que se apropriam de imagens pedofílicas “reais”
de fato, “vazadas” sem o consentimento do sujeito ou até mesmo retiradas das
redes sociais da pessoa ali retratada. Existem milhares fotografias e vídeos
espalhados pela internet, que podem ser buscados por tags 43 como: “novinhas”,
“9vinhas”, “teens”, “teenie”, “ninfas”, “ninfetas”, entre outras. Essas tags são,
inclusive, apropriadas pela mídia, pelo mainstream e citadas em músicas pop,
programas de TV e no cinema. Em virtude da disseminação popular e do uso
aceitável de tais termos para se referir a uma adolescente, por exemplo, estariam
essas imagens de cunho pedofílico inseridas, talvez, em um tipo de pedofilia hoje

43 Uma tag é o correspondente em inglês para etiqueta. No âmbito da informática, trata-se de uma
palavra-chave ou um termo referente a uma informação, que permite que ela seja encontrada nos
sistemas de busca da web 2.0.
205

aceitável? Essa é uma questão complexa e novamente aberta para a reflexão do


leitor.
O próprio DSM-5, conforme uma nova lógica dimensional e menos categórica,
permite alguns tipos de aberturas quanto ao diagnóstico do transtorno. Se os
indivíduos:

[...] relatam ausência de sentimentos de culpa, vergonha ou


ansiedade em relação a esses impulsos, não apresentam limitação
funcional por seus impulsos parafílicos (conforme autorrelato,
avaliação objetiva ou ambos), e seu autorrelato e sua história legal
registrada indicam que jamais colocaram em prática esses impulsos,
essas pessoas, então, apresentam orientação sexual pedofílica, mas
não transtorno pedofílico (APA, 2014, p. 699).

Esse tratamento mais “aberto” da pedofilia no âmbito do DSM-5 parece,


também, tentar atender ao estado de coisas tecnoscópico, em que se constata um
tipo de voyeurismo inerentemente pedofílico, no que tange à observação e ao culto
do corpo juvenil em imagens diversas, sejam elas divulgadas e incentivadas pela
mídia ou aquelas produzidas numa atividade exibicionista. É claro que existem
casos de pedofilia considerados “sérios”, principalmente nas inúmeras imagens que
enfocam crianças ou adolescentes e foram de fato captadas por pedófilos, como os
milhares de vídeos e fotografias criminosos disponíveis na deepweb e na darknet44.
Então, qual o limite entre as atividades criminosas e legais? Como saber se
determinada imagem foi apropriada de uma rede social e realizada
consensualmente por um adolescente exibicionista ou foi produzida por um pedófilo
que aliciou o jovem? Nesse último caso, os dois fatos seriam criminosos ou apenas
o último? Um voyeur que observa imagens sensuais de adolescentes em suas redes
sociais ou em sites pornográficos sofreria de um transtorno parafílico? Ele seria,
então, um criminoso ou nenhum dos dois? Isso também se encontra em um grande
“limbo” epistêmico e legal. Sendo crime, transtorno ou nenhum deles, há um
incentivo massivo pelo consumo dessas imagens, e a tendência é de que a
produção e o consumo delas continuem aumentando gradativamente.
Na cultura asiática, em que algumas convenções sociais e pudores são
diferenciados dos ocidentais, principalmente pela baixa influência de um tipo de

44 Deepweb e darknet referem-se a conteúdos não indexados nos buscadores convencionais da web
(como o Google) e que são acessados por meio de navegadores e serviços específicos que garantem
o anonimato dos usuários que ali navegam. Por conta disso, impossibilitam o rastreamento de tais
indivíduos, em que as plataformas são utilizadas também para atividades criminosas.
206

“moral” judaico-cristã, um certo “olhar” pedofílico e fetichista há tempos faz parte da


cultura popular de diversos países orientais como Japão, Coreia do Sul, Tailândia,
Indonésia, Filipinas, entre outros, onde muitos produtos culturais e midiáticos são
baseados nesse tipo de pedofilia aceitável. Muitos, inclusive, representam mulheres
sensuais em uniformes colegiais e mostram relações sexuais entre homens adultos
(e até idosos) com garotas adolescentes. Nas famosas histórias em quadrinhos de
algumas dessas nações (mangás) e nos desenhos animados (animes), as narrativas
trazem cenas com vários níveis de apelo sexual, chegando à pornografia explícita.
Em sua maioria, enfocam garotas adolescentes supersensualizadas e fetichizadas e
estão entre os gêneros mais famosos desse tipo de produção, conhecidos como
ecchi, harém e hentai.
Retomando uma discussão anterior e partindo para a conclusão desse item,
constata-se que não apenas as mulheres são vitimadas no âmbito cyberbullying +
sexting + leaking, dado que a prática está generalizada ao ponto de todos serem
alvos em potencial. Elas são as principais vítimas por conta de questões puritanas
ainda em voga, diante de uma sociedade ainda presa a antigos tabus – sob os quais
o gênero feminino deveria ser em suma pudico, enquanto aos homens é relegado o
prazer da libertinagem. Tal questão está em discussão por meio de debates e
movimentos feministas acirrados na atualidade, que visam à igualdade entre os
gêneros e a quebra desses tabus sexuais tradicionalistas, a exemplo do “Free the
Nipple”45, e grupos de manifestações feministas como o “Femen” 46. Poderia essa
visão feminista contemporânea ser um fator responsável pelas mulheres não
temerem, a priori e teoricamente, as consequências de sua superexposição? Ou, de
modo paradoxal, o exibicionismo exacerbado da intimidade e da sexualidade
feminina afeta negativamente parte do movimento feminista global? Essas
indagações são novamente deixadas para a reflexão do leitor.
No entanto, aqueles homens que não se enquadram no perfil machista
tradicionalista também correm os mesmos riscos de bullying generalizado tal qual o

45 “Free the Nipple” (“Liberte o Mamilo”) é um movimento de igualdade de gênero originário do filme
homônimo da cineasta Lina Esco (1985-), de 2014. Luta-se pelo direito igualitário entre mulheres e
homens, pois a ambos deveriam ser concedidos liberdade e proteção de maneira idêntica e nos
termos da lei, incluindo poder mostrar os mamilos em público.

46 “Femen” é um grupo feminista da Ucrânia, fundado em 2008 pela ativista Anna Hutsol (1984-). O
grupo realiza protestos com mulheres de topless, tecendo críticas sobre turismo sexual, racismo,
homofobia, sexismo e outras questões.
207

sexo feminino, principalmente os que se situam no contexto das minorias étnicas,


sexuais e econômicas. Em alguns casos, eles também recorrem ao suicídio, como
relatado a seguir:

O estudante de educação física Thiago Arruda, de dezenove anos,


foi alvo de ataques, calúnias e injúrias pela web. Thiago foi difamado
por uma comunidade no Orkut (rede social hoje extinta) cujo único
propósito era fazer fofocas e intrigas sobre os moradores da cidade.
O rapaz foi chamado de “homossexual e pedófilo” e recebeu
mensagens que diziam que “pessoas como ele deveriam morrer” e
que “não poderiam conviver com a humanidade”. [...] Thiago foi
encontrado morto, dentro de um carro na garagem de sua casa. Ele
colocou uma mangueira no cano de escapamento, entrou no veículo,
fechou os vidros, ligou o motor e morreu asfixiado ao inalar monóxido
de carbono. Alguns membros da comunidade foram identificados,
mas ninguém foi preso. A comunidade permaneceu no ar ainda por
alguns anos, difamando e hostilizando os moradores da região
(SILVA, 2015, p. 156-157).

O cyberbullying no Brasil é considerado crime e, para tratá-lo, cabe “[...] ação


penal privada (por exemplo, para processar criminalmente o agressor que pratique
crimes contra a honra, como calúnia, difamação e injúria) e ação penal pública (para
processar criminalmente o agressor que pratique o crime de ameaça, por
exemplo)” (SILVA, 2015, p. 163). Mesmo diante da criminalização do sujeito que
pratica o cyberbullying, as leis atuais não abarcam toda a complexidade do assunto,
e isso não é exclusivo da legislação brasileira. No Brasil, assim como em outros
países, projetos de leis foram implementados ou estão em tramitação com o objetivo
de criar pressupostos legais para punir de maneira eficaz os agressores virtuais que
disponibilizam e espalham imagens e informações de outrem sem o consentimento
dos envolvidos. Ademais, essas iniciativas tentam criar formas preventivas para inibir
os bullies antes mesmo de sua ação.
Buscato et al. (2014, n.p.) concluem que “[...] no fundo, a maneira mais
segura de lidar com o risco de exposição na internet é evitar se expor em imagens
potencialmente constrangedoras”. Isso está em consonância com a abordagem de
Sibilia (2016, p. 314-315), pois:

[...] ao permitirem que qualquer um seja visto, lido, ouvido, avaliado e


julgado por um público composto potencialmente por milhões de
pessoas […] a vergonha passa a desempenhar um papel cada vez
mais temível numa sociedade assombrada pela constante ameaça
do bullying generalizado.
208

A produção de selfies e sextings, juntamente com os casos de leaks e


cyberbulling, comprovam como a necessidade de “ver” e “ser visto” trazem
repercussões tão diversas a pessoas de realidades distintas. Essas repercussões
podem variar dos benefícios dados à popularidade da pessoa exposta às
consequências extremamente negativas e até trágicas para a vida do retratado. Em
suma, tanto a primeira como a segunda face dessa moeda, mesmo que opostas,
são hoje ostentadas pela multidão de voyeurs de plantão, sempre ávidos por novas
imagens para a satisfação da própria escopofilia. A arte, como já abordado, oferece
ferramentas eficazes para o tratamento crítico desse estado de coisas tecnoscópico,
como será descrito na seção subsequente.

2.3 Arte exibicionista tecnoscópica

No período renascentista (séculos XIV a XVII) houve a retomada do


antropocentrismo greco-romano, também chamado de humanismo, que deflagraria a
posteriori o iluminismo do século XVIII. Segundo o pensamento antropocentrista, o
homem é a figura mais importante do universo em detrimento dos dogmas
teocentristas cristãos medievais que enfocavam a submissão completa do homem
perante Deus. Mas é sabido que o teocentrismo se tratava de uma ideologia política
na qual os papas e os reis tinham a “permissão divina” para governar como
representantes de Deus na Terra.
Ressaltar o homem comum como a maior obra de Deus, e não apenas como
uma criatura submissa a Ele, criou novos aspectos ideológicos e culturais que
retomavam preceitos dos antigos gregos e romanos (séculos X a.C. a V d.C.,
aproximadamente). Mas o homem moderno se tornou uma figura ainda mais
narcísica que seus ascendentes da antiguidade, pois o ideal humanista se fundiu ao
ideal de liberdade modernista, culminando com o surgimento do livre comércio e do
capitalismo. Isso evidencia a relação indissociável do narcisismo, como traço
exibicionista, com o próprio capitalismo, a exemplo dos demais vértices
tecnoscópicos atuais.
Nas artes da antiguidade greco-romana havia uma idealização das
características humanas, que culminava com a representação de divindades em
formas de homens: deuses, semideuses, ninfas, heróis mitológicos etc. Até as
209

“figuras não divinas” representadas nas obras de arte da época se referiam a


personalidades emblemáticas como imperadores, reis, atletas olímpicos, filósofos,
cientistas, entre outros.
São poucas as produções artísticas da antiguidade que tratavam do homem
comum de per si. Ainda que o termo narcisismo derive do personagem mitológico
grego Narciso, há raros autorretratos conhecidos do período. Como já visto, no
decorrer da história da arte, o autorretrato se tornou um dos subgêneros (derivado
do retrato) mais utilizados na pintura, mas nunca fora tão disseminado como nos
dias atuais e, por isso, é essencial o entendimento dele no campo da cultura e da
arte contemporânea.
O exibicionismo tecnoscópico, de forma análoga aos antecessores
antropocentristas, também traz a supervalorização da individualidade humana. Mas,
nesse caso, trata-se de outro tipo de individualidade, que se faz na construção de
novas personalidades para aquele que se autorretrata e transcende; assim, o dito
narcisismo e se instaura perante a codependência homem-máquina.
Novas celebridades do mundo virtual alçam fama se exibindo de maneira
deliberada. Enquanto algumas fizeram isso se valendo de uma retórica
(questionável) do “vazamento” não consentido de imagens íntimas e, assim,
chegaram à grande fama (vide as já citadas Pamela Anderson, Paris Hilton e Kim
Kardashian), outras conseguiram os mais altos pódios do mainstream justamente
por mostrarem sua intimidade sem pudor. O caso no Brasil mais conhecido é o da
ex-prostituta Bruna Surfistinha, que ficou famosa por publicar os detalhes de seus
encontros sexuais em seu blog pessoal que foi editado em livro e este, a posteriori,
adaptado para o cinema, a TV e o teatro. Sobre o sucesso do best-seller, Sibilia
(2016, p. 258) relata que:

[...] o enorme êxito do produto, porém, decorreu dessa


superexposição da personalidade e da vida privada da protagonista,
que obviamente é também a narradora e pelo menos a coautora.
Apesar de utilizar alguns recursos dos velhos diários íntimos, esse
livro se distancia claramente daquele paradigma da interioridade para
criar e vender uma personagem espetacularizada. Um eu
supostamente real que foi lançado para performar na visibilidade
total, sem pretensão alguma de atingir uma realidade mais
fundamental do que aquela que se mostra em primeiríssimo plano.
210

Sibilia (2016) salienta que hoje há uma veneração maior do autor em


detrimento ao produto cultural ou à obra de arte criada por ele. Para essa teórica,
Andy Warhol é um dos grandes exemplos da guinada histórica, pois foi um artista
que soube se vender tão bem quanto comercializar suas obras. É interessante
refletir sobre Warhol neste ponto da discussão, porque ele conseguiu ser
exibicionista e voyeurista – talvez ele seja o primeiro grande autor da tecnoscopia
por isso. Na sua época, o artista criticou a indústria cultural que já prometia
visibilidades a todos, mesmo inserido nela (a qual ele ironicamente venerava). Ele se
apropriou das mais recentes tecnologias do período – silk screen, spray, computação
gráfica, fotografia em cores, cinema, vídeo etc. – para questionar, em tom irônico e
de bajulação, a comunicação social e o mainstream em voga. É claro que, após
Warhol, uma legião de seguidores se instaurou.
A obra de arte contemporânea não se vende por si só; logo, o artista precisa
ser vendido junto com ela ou no lugar dela. A mudança radical ocorrida no terreno da
subjetividade, a partir do século XX, atingiu todos os patamares da cultura,
chegando à figura do artista criador, que não pode se dar ao luxo de continuar
produzindo na reclusão de estúdio: “Porque uma vez concluída essa metamorfose
que converte o autor (público) em personagem (privado), a obra é o que menos
interessa” (SIBILIA, 2016, p. 242).
Uma constante que comprova essa tendência é a grande quantidade de
filmes sobre as vidas de grandes personalidades, que, na maioria dos casos,
destacam unicamente suas excentricidades, angústias, problemas pessoais e
amorosos, entre outros aspectos sociopsicológicos das vidas deles, deixando suas
conquistas relegadas ao papel de simples coadjuvantes na narrativa. Tais tipos de
cinebiografias são também chamadas de biopics (“bio” de biography, biografia, e
“pics” de movie pictures, filmes), que foram transpostos às séries de TV e outras
mídias, e se apresentam como uma tendência cultural economicamente viável nos
últimos anos. Basta analisar, por exemplo, as últimas edições de grandes
premiações do cinema e da TV mundiais, como o Oscar e o Globo de Ouro, para
constatar o grande número de biopics concorrentes aos principais prêmios e várias
que foram premiadas de fato.
Como já tratado, nem todos os produtos da cultura consumista capitalista
podem ser considerados arte de per si. Vários deles se inserem na tendência
211

comercial vigente e, neste momento da reflexão, já se pode constatar que tal


tendência é estritamente tecnoscópica. No entanto, importantes artistas se valem
dessas questões para, de forma análoga ao que Warhol fez, criticar o exibicionismo,
à medida que eles mesmos se exibem.
Escancarar a intimidade pode ser uma maneira de ativar o olhar alheio sobre
a barreira atual que separa o público do privado ou para mostrar que ela não existe
mais. Nesse âmbito, serão elencadas e analisadas a seguir algumas obras
significativas que se inserem num escopo amplo e em constante crescimento. Tais
artistas também se valeram de “imagens maquínicas”, e quase todas elas foram
realizadas sob a forma de autorretratos fotográficos (os primeiros em análise) e
filmográficos ou videográficos (analisados a posteriori). É importante dizer que as
obras não serão apresentadas de forma cronológica, mas de acordo com suas
particularidades e similaridades que definem uma sucessão interessante para a
análise individual, assim como para as relações existentes entre elas próprias.

2.3.1 “Eu” em imagem: exibicionismo fotográfico

É esperado que a posterior análise de obras fotográficas exibicionistas


comece com Andy Warhol. O artista americano realizou uma grande quantidade de
autorretratos ao longo de sua carreira, pois conseguiu magistralmente discutir a
necessidade exacerbada de “ver” e “ser visto” (em obras voyeuristas, como tratado
no Capítulo 1, e exibicionistas), tendência que começava a se esboçar no início da
segunda metade do século XX e que comprova seu pioneirismo tecnoscópico. Na
verdade, os autorretratos eram colaborativos, pois Warhol frequentemente
trabalhava em conjunto com outros artistas. Numa miríade de autorretratos, pode-se
destacar “Self-Portrait in Drag” (Figura 49), de 1981, para o qual o artista se travestiu
várias vezes como diferentes mulheres ou drag-queens e registrou sua performance
com fotografias instantâneas em polaroide.
Esse trabalho de Warhol tem inspiração em fotografias realizadas por dois
artistas antecessores e muito importantes para a tecnoscopia: os franceses Marcel
Duchamp e Man Ray. Nos vários retratos de “Rrose Sélavy” (Figura 50), a partir de
1921, Duchamp também se travestiu como seu alter ego feminino e fora captado
pelas lentes de Man Ray.
212

!
Figura 49. “Self-Portrait in Drag”, de Andy Warhol. Série fotográfica. 1981. Fonte: <http://
www.complex.com/style/2015/05/collection-of-rare-andy-warhol-selfies-are-featured-in-sothebys-
contemporary-art-day-auction>. Acesso em: 20/05/2017.

!
Figura 50. “Rrose Sélavy”, de Marcel Duchamp e Man Ray. Fotografia. 1923. Fonte: <https://
www.fragrantica.com/news/Rrose-Sélavy-by-Maria-Candida-Gentile-8017.html>. Acesso em:
21/05/2017.
213

Ambas as obras não são autorretratos stricto sensu, pois não foram captados
pela própria pessoa em si, como muitos outros a seguir. Mas não é incorreto dizer
que tratam de autorretratos, dado que a concepção e o gênio criador do “artista-
modelo” são partes fundamentais da poética da obra. Outra questão que aproxima
tais criações da tecnoscopia contemporânea é a desconstrução da representação do
artista autorretratado. Nas duas obras, os autores se travestem e explicitam uma
personalidade criada para a ocasião, assim como as personas selfies atuais. Mas,
longe de serem simplesmente personagens encenados, tal como fazem os atores,
eles mostraram outros vieses das próprias personalidades, pois continuam sendo os
próprios artistas, mesmo travestidos.
Cindy Sherman (1954-) é outra referência no autorretrato poético
contemporâneo, que questiona o papel e a representação das mulheres na
sociedade, na mídia e na arte atual – desconstruindo arquétipos femininos, tabus e
convenções. Ela é produtora, realizadora e protagonista de todas as suas obras, nas
quais se responsabiliza por todo o processo de produção: idealização do
personagem, confecção do figurino, maquiagem, escolha das locações, iluminação,
performance em si e registro fotográfico. Em centenas de autorretratos realizados ao
longo de 40 anos, a artista também se transvestiu e, nesses casos, se inspirou em
personagens da cultura popular de revistas, programas de TV, filmes, internet,
famosas pinturas e fotografias da história da arte etc., mostrando retratos distorcidos
de si mesma, muitas vezes grotescos e bizarros. Em uma das suas primeiras séries
fotográficas, “Untitled Film Stills” (Figura 51), produzida entre 1977 e 1980, a artista
se guiou por imagens-clichês de filmes comerciais, principalmente de filmes B, para
mostrar como a mulher era vista e estereotipada pelo cinema de seu tempo.

!
Figura 51. “Untitled Film Stills”, de Cindy Sherman. Série fotográfica. 1977-1980. Fonte: <http://
www.christies.com/features/cindy-shermans-untitled-film-stills-4973-3.aspx>. Acesso em: 23/04/2017.
214

Outra artista pioneira no uso de imagens fotográficas autobiográficas é a


fotógrafa americana Nan Goldin (1953-) que também realizou, nas últimas quatro
décadas, uma série de autorretratos diante do espelho, que exibem cenas íntimas e
provocantes. Em uma de suas obras fotográficas mais conhecidas “Nan One Month
after Being Battered” (Figura 52), de 1984, a artista exibe imagens do próprio rosto
com hematomas provocados pelas agressões de seu marido. Sibilia (2016, p. 60)
assevera que a artista foi uma das primeiras a expor, no espaço público, imagens
que hoje são habituais na mídia e na arte global, e:

[...] quando era jovem, costumava escrever diários a fim de “reter sua
própria versão das coisas”. Isso aconteceu até o momento em que
ela descobriu as potências da câmera, uma ferramenta que lhe
ofereceria a inédita possibilidade de se “manter viva, sã e centrada”,
já que essa inscrição fotográfica de sua memória voluntária lhe
permitia “confiar na própria experiência” à medida que as coisas iam
acontecendo.

Figura 52. “Nan One Month after Being Battered”, de Nan Goldin. Fotografia. 1984. Fonte: <https://
ericatarina.wordpress.com/tag/nan-goldin/>. Acesso em 18/03/2017.

Sophie Calle, que também fora analisada no Capítulo 1, é retomada aqui


como uma das artistas contemporâneas mais emblemáticas no âmbito da
tecnoscopia (inclusive no viés vigilante, como será visto a posteriori) – o
exibicionismo e o autorretrato são temáticas recorrentes em suas obras. Na maioria
215

dos trabalhos, ela segue a poética de correlação “foto-texto”, exibida em galerias de


arte e publicada em livros. Vários de seus famosos autorretratos foram divulgados
no livro “Des Histoires Vraies” (“Histórias Reais”), de 2002 (Figura 53), primeira obra
bibliográfica da autora publicada no Brasil. No livro, ela relata as próprias
experiências mas não revela o que seria verdade ou ficção nas histórias contadas.
São textos curtos que complementam fotografias e ambos explicitam as aventuras
pessoais de Calle em seus relacionamentos, na infância e no recente cotidiano dela.

!
Figura 53. “Des Histoires Vraies”, de Sophie Calle. Livro de artista, série fotográfica e textos. 2002.
Fonte: <http://www.lepetitmariole.com/agenda/sophie-calle-au-theatre-liberte/>. Acesso em:
21/04/2017.

Em outra obra com poética semelhante, “Prenez Soin de Vous” (“Cuide de


Você”), de 2007 (Figura 54), Sophie Calle partiu de um acontecimento bem íntimo: a
ruptura de um relacionamento que fora consumado a partir de um e-mail enviado à
artista por seu ex-namorado, denominado pela artista como “X”. A partir disso,
Sophie Calle:

[...] cria mais um dos seus dispositivos a um só tempo artístico e


terapêutico. Este é, ainda, especialmente feminino e vinga com
humor o abandono chamando 107 mulheres para interpretar a carta,
segundo seus talentos ou profissões: tradutora, filóloga, psiquiatra,
216

atiradora, atriz, criminologista, bailarina, juíza, musicista, cabalista,


diplomata, vidente, mãe, muitas outras, e mesmo uma papagaia. [...]
Tomar ao pé da letra o cuidado de si é, no dispositivo de Calle, fazer
circular a palavra, coletivizar a hermenêutica arrancando-a do retorno
sobre si para dotá-la de um outro movimento, voltado para fora e
para muitos, para outrem. Ao ponto que, ao final, a letra original
implode por excesso de interpretação. No fim da exposição, mesmo
antes, pouco importa o que escreveu X, pouco importa X; as versões,
traduções, traições, reações, revisões, dissecações do seu texto
interessam tão mais que sua forma e conteúdo originais (BRUNO,
2013, p. 81-82).

!
Figura 54. “Prenez Soin de Vous”, de Sophie Calle. Série fotográfica e textos. 2007. Fonte: <http://
www.saic.edu/vap/current/sophie-calle.html>. Acesso em: 18/03/2017.

Sendo assim, Sophie Calle coloca mais uma vez em cheque questões sobre o
público e o privado, ao publicizar sua privacidade e convidar o público – as 107
mulheres convocadas a responder a carta e o próprio es(x)pectador – para interagir
num jogo íntimo. É interessante notar que as três artistas – Sophie Calle, Cindy
Sherman e Nan Goldin – nasceram em datas bem próximas, entre 1953 e 1954, e
começaram a produzir obras autobiográficas nos 1970. As poéticas análogas
permitem refletir sobre o início da necessidade de mostrar a si mesmo na arte,
sobretudo para autoafirmar uma identidade feminina numa época em que as
mulheres começaram a se impor diante das desigualdades de gênero. O
exibicionismo, nesse entremeio, foi uma ferramenta fundamental para possibilitar a
217

desconstrução da mulher enquanto objeto idealizado, com o início de uma nova fase
de legitimação de obras de mulheres artistas que se autorretraram para criticar o
status quo. Soma-se a elas a artista da linguagem da performance Marina
Abramović, que será analisada no próximo item dedicado ao audiovisual. Pode-se
dizer que elas são as sucessoras contemporâneas de Frida Kahlo, pois possuem um
grande conjunto de obra autorrepresentativa que busca exprimir a individualidades
das próprias artistas, evitando tabus e clichês sexistas e culturais vigentes.
Outro artista também já citado nas discussões sobre a arte voyeurista
contemporânea é o americano Roy Stuart que captou, em sua obra categorizada
como erótica, uma série de imagens que remetem ao exibicionismo sexual feminino.
Mais do que isso, ele desconstrói clichês pornográficos que costumam representar a
mulher apenas como um “objeto” sexualizado para o “consumo” (masturbação)
masculina, para mostrar que o exibicionismo do corpo e das genitálias femininas
pode ser instrumento de dominação, que submete os homens ao “poder” e ao
“prazer” da mulher. Em uma série de fotografias que abordam esse mote, pode-se
destacar a série “Dominus Miss Acordia” (Figura 55), de 2000, na qual dois homens
são submetidos a uma dominatrix despida de armas de tortura, em que usa seu
sexo para isso.

!
Figura 55. “Dominus Miss Acordia”, de Roy Stuart. Série fotográfica. 2000. Fonte: HANSEN, Dian.
Roy Stuart Volume II. Hohenzollernring: Taschen, 2008.
218

O americano Jeff Koons (1955-) é um dos principais artistas do último século


e considerado por muitos o herdeiro poético de Andy Warhol. Ele construiu a carreira
a partir temas do cotidiano e objetos apropriados da cultura popular massiva e
consumista. Sua arte é repleta de cores vibrantes e materiais que remetem
explicitamente ao consumo capitalista, tais como vidro, plástico, borracha e metal.
Dentre uma vasta produção, destaca-se a série “Made in Heaven” (“Feito no Céu”)
(Figura 56), realizada entre 1989 e 1991, a qual combinou fotografia, esculturas e
outros objetos para representar cenas de sexo explícito, o que causou grande
polêmica no mundo da arte e na mídia em geral.

!
Figura 56. “Made in Heaven”, de Jeff Koons. Série fotográfica, esculturas e objetos. 1889-1991.
Fonte: <http://deste.gr/exhibition/jeff-koons-a-millennium-celebration/>. Acesso em 03/06/2017.

A série “Made in Heaven” de Koons apresenta várias imagens da relação


sexual entre o próprio artista e sua esposa – à época, Ilona Staller (1951-) –, atriz
pornográfica húngara mundialmente conhecida como Cicciolina. Eles se casaram
em 1991, o que foi divulgado em todo o planeta. Segundo Holzwarth (2010), o mundo
artístico ficou obcecado pelo fato, pois todos se perguntavam se a relação seria
“real” ou apenas um golpe de mídia por parte do casal, atrás de publicidade, como é
bastante comum nos dias atuais. Em um sentido mais poético, seria esse casamento
219

parte da proposta artística de Koons? Holzwarth (2010, p. 39) revela que “[...] Koons
sabia que tinha encontrado a musa dos seus sonhos em Cicciolina. Uma espécie de
ready-made ambulante”; logo, o artista tinha total consciência da apropriação de
duas figuras midiáticas (ele mesmo e sua esposa), e a sublimação destes para o
terreno da arte, a partir da superexposição de suas intimidades. Isso não era
novidade para Ilona, de fato, mas assim o era para Koons, pois foi a primeira vez
que o artista se autorretatou em plena atividade sexual. As imagens remetem ao
pecado original bíblico, o que justifica o nome da obra. A produção já apontava
várias questões recorrentes na atualidade, como a maneira cada vez mais explícita
de exibir uma intimidade matrimonial, valendo-se do meio fotográfico para isso.
Avançando para o contexto de um exibicionismo online e mais focado nas
questões dos últimos anos, o projeto “24 Hrs in Photos” (“24 Horas em Fotos”),
elaborado pelo artista de holandês Erik Kessels (1966-) em 2011, foi realizado a
partir do download de 250 mil fotos postadas no período de 24 horas no sistema de
compartilhamento de fotografias Flickr, sendo impressas a posteriori (Figura 57).

!
Figura 57. “24 Hrs In Photos”, de Erik Kessels. Instalação. 2011. Fonte: <http://kesselskramer.com/
exhibitions/24-hrs-of-photos>. Acesso em 19/01/2017.
220

A pretensão de Erik Kessels era dar uma amostra física da gigantesca escala
numérica de fotografias enviadas diariamente ao site, em que foram empilhadas e
amontadas de modo aleatório, criando grandes montes de papel que foram exibidos
em galerias de artes e outros locais, incluindo igrejas, o que pode trazer
questionamentos sobre a “aura” e a “sacralidade” da imagem fotográfica digital nos
dias atuais.
O artista brasileiro Felipe Cama (1970-) possui vários trabalhos baseados na
cultura digital e na intermitente conectividade, em que aborda aspectos de um
exibicionismo tecnoscópico. Em “Autorretratos Estatísticos”, de 2012, ele se vale de
seu estado de humor, exames médicos, informações corriqueiras do dia a dia, entre
outros, e transforma os dados em gráficos que são pintados ou impressos,
culminando em “[...] um resultado visual geométrico e, por vezes, construtivista, num
jogo poético sobre o que define uma pessoa” (NORBIATO; ALZUGARAY, 2014, p.
56). Em outro trabalho, numa série de pinturas chamada de “Notícias de Lugar
Nenhum – Made in China” (Figura 58), de 2010, o artista se apropria de diversas
fotografias que pessoas fizeram de frente à Cidade Proibida da China – uma dessas
imagens, inclusive, traz um selfie dele próprio.

!
Figura 58. “Notícias de Lugar Nenhum - Made in China”, de Felipe Cama. Série de pinturas a óleo
sobre tela. 2010. Fonte: <http://www.conhecendomuseus.com.br/museus/museu-de-arte-
contemporanea-mac-usp/>. Acesso em 18/03/2017.

Posteriormente, as fotografias foram transpostas para a linguagem pictórica


que, por sua vez, foi feita por uma fábrica de pintura chinesa. Segundo o artista: “[...]
encomendei as pinturas, 40 no total, paguei no cartão de crédito e em 20 dias elas
chegaram. Sem internet, isso não seria possível” (NORBIATO; ALZUGARAY, 2014).
221

Nas duas produções, Cama se vale de uma linguagem tradicional para abordar
poeticamente questões tecnoscópicas contemporâneas. Apesar de ser constituída
por pinturas, a fotografia é determinante na obra “Lugar Nenhum – Made in China” e,
de certa forma, está implícita nos autorretratos computacionais a partir dos gráficos
gerados e posteriormente pintados em “Autorretratos Estatísticos”.
Os artistas italianos Alessandro Ludovico (1969-) e Paolo Cirio (1979-)
elaboraram em 2011 a instalação/site “Face to Facebook” (“Rostos para o
Facebook”), a partir da extração de um milhão de perfis dessa rede social para
alimentar um site de encontros virtuais 47 criado pelos artistas para a obra. Os artistas
utilizaram um software de reconhecimento de padrões faciais, com o objetivo de
encontrar combinações entre usuários diversos e, assim, propor a formação de
casais de acordo com a similaridade facial deles (Figura 59).

!
Figura 59. “Face to Facebook”, de Alessandro Ludovico e Paolo Cirio. Série fotográfica. 2011. Fonte:
<http://www.face-to-facebook.net/face-to-facebook.php>. Acesso em 18/03/2017.

Em 2014, o artista americano Jeff Hamilton (1970-), conhecido como XVALA,


propôs uma exposição chamada “No Delete” (“Não Apague”) na galeria de arte
contemporânea Cory Allen, em St. Petersburg, Flórida, Estados Unidos. Lá ele
exibiria produções realizadas a partir da apropriação de selfies e outras fotografias

47 Link para o site: <http://www.face-to-facebook.net>.


222

íntimas de celebridades, algumas delas advindas do polêmico vazamento ocorrido


no mesmo ano, em que fotos íntimas de 100 celebridades foram divulgadas na
internet, em virtude de um ataque hacker aos servidores da Apple48. O artista usaria
fotos da atriz Jennifer Lawrence (Figura 60), da modelo Kate Upton, entre outras
celebridades, sem o consentimento delas.

!
Figura 60. “No Delete”, de Jeff Hamilton. Série fotográfica. 2014. Fonte: <http://goo.gl/y59Afq>.
Acesso em 23/09/2014.

Elas seriam impressas em grandes telas e sem alterações, e a produção


integraria uma proposta poética recorrente do artista, em que “[...] recompila há sete
anos imagens de celebridades em poses pouco favoráveis como crítica a uma
sociedade onde ‘as pessoas querem saber tudo de todo mundo’” (POP & ARTE,
2014). Após a divulgação da proposta, as celebridades atingidas pelo escândalo a
consideraram uma violação da privacidade e recorreram na justiça para que a
exposição fosse cancelada – e foram atendidas. Em pronunciamento após o
ocorrido, XVALA relatou que ele queria justamente levantar a discussão sobre os

48 Esse caso foi detalhado anteriormente na seção 2.2.2.2 desta tese.


223

limites entre o público e o privado na atualidade e, mesmo com o cancelamento da


mostra, ele conseguiu o sucesso almejado.
O artista americano Pablo Garcia, também já mencionado no âmbito do
voyeurismo, se vale de fotografias selfies e do acessório conhecido como “selfie
stick” (“pau de selfie”) para criar uma produção irônica que vincula o autorretrato
digital com questões sobre mortalidade, vaidade e narcisismo. Em “Memento
Mori” (Figura 61), de 2015, ele produziu uma imagem com perspectiva distorcida e,
quando ela é vista de determinado ângulo, tem-se a impressão de que há uma
caveira nela. Quando esta, então, é afixada no selfie stick e observada do ponto de
vista da câmera do celular, que por sua vez está na extremidade do “pau de selfie”,
ela se integra à fotografia selfie como uma espécie de um emoji49 que questiona a
vaidade e o narcisismo humano, em face da efemeridade da vida e da
inevitabilidade da morte, algo advindo do gênero artístico das vânitas50.

!
Figura 61. “Memento Mori”, de Pablo Garcia. Série fotográfica. 2015. Fonte: <http://pablogarcia.org/
projects/memento-mori-selfie-stick/>. Acesso em 21/04/2017.

Esses são apenas alguns exemplos significativos que permitem uma ampla
reflexão com as questões teóricas ora abordadas. Concomitantemente às produções
fotográficas ou que se valeram de fotografias, o audiovisual tem grande contribuição
para o entendimento do exibicionismo tecnoscópico, como será discorrido a seguir.

49 Emojis, também conhecidos como emoticons, são imagens na forma de ícones e símbolos usadas
em mensagens digitais e textos diversos na internet. Eles mostram expressões faciais, objetos,
lugares, animais, tipos de clima etc.

50 Vânitas é um subgênero da arte derivado da natureza-morta, que faz referência à vaidade


mundana e à efemeridade da vida. As pinturas desse gênero representam composições diversas e,
na maioria dos casos, retratam apenas objetos, frutos e plantas ao lado de caveiras humanas.
224

2.3.2 “Eu mesmo” em movimento: audiovisual

O exibicionismo é uma tendência tão forte na cultura contemporânea que


afetou várias manifestações culturais, a exemplo do cinema. Nos últimos anos houve
uma nova tendência no âmbito da produção de documentários: os filmes narrados
em primeira pessoa pelo cineasta que os realizou. Nessas obras, os diretores se
convertem “[...] em protagonistas do relato filmado, e o tema sobre o qual a lente se
debruça costuma ser algum assunto pessoal, referido a questões que gravitam no
âmbito íntimo do autor-narrador e personagem” (SIBILIA, 2016, p. 263).
Várias produções recentes se destacam nesse novo gênero de documentário,
em especial o filme “Tarnation”, de 2003 e de autoria do diretor americano Jonathan
Caouette (1972-). Conforme Sibilia (2016, p. 263), o longa-metragem apresenta o
drama existencial do seu diretor, “[...] contado através de uma alucinada colagem
audiovisual de fotografias, fragmentos filmados em super-8, mensagens de
secretária eletrônica, confissões registradas em vídeo e material de arquivo sobre a
cultura midiática dos anos 1980” (Figura 61).

!
Figura 61. “Tarnation”, de Jonathan Caouette. Frame de filme em longa-metragem. 2003. Fonte:
<https://i.ytimg.com/vi/sV2AsTHrkWg/maxresdefault.jpg>. Acesso em 03/07/2017.
225

No âmbito do registro audiovisual de si mesmo com enfoque crítico e poético,


destaca-se a sérvia Marina Abramović (1946-), uma das pioneiras da linguagem da
performance e que trabalha nesse contexto há quatro décadas. No entanto, a
maioria de suas obras é registrada em meios audiovisuais (filmes e vídeos), o que
confere a elas um caráter mais videográfico – e, em alguns casos, cinematográfico –
do que performático em si, pois a performance se esgota no tempo de sua
realização, “ao vivo”, enquanto o registro dela transpassa o momento do
acontecimento e se instaura na linguagem audiovisual. As “performances filmadas”
de Marina Abramović são, em grande parte, autobiográficas, e colocam questões
sobre o corpo feminino, seus limites e a quebra de tabus e convenções,
principalmente no âmbito sexual.
Em uma polêmica performance do início de sua carreira, “Rhythm 0” (Figura
62), de 1974, a artista ficou por seis horas exposta ao público e imóvel em uma
galeria de arte de Nápoles, Itália, deixando os espectadores fazerem o que
quisessem com ela. Numa mesa próxima havia 72 itens que poderiam ser usados
pelo es(x)pectador-interator, incluindo vários objetos cortantes, um machado, uma
pistola e uma bala de revólver. A artista terminou a performance nua e com cortes
em seu corpo, e uma pessoa do público chegou a apontar a arma carregada para o
pescoço dela. Nessa e em outras propostas, Abramović se exibe para o público e o
estimula à participação, fazendo com que se transcenda o comum voyeurismo do
observador de arte para que este participe da obra ao relacionar-se com o objeto
artístico de fato: a artista. Assim, ela transpõe sua intimidade para a forma mais
pública possível, uma vez que permite a participação in loco e ao vivo do interator.
Nesse sentido, é possível questionar se toda a performance, enquanto
linguagem artística, seria exibicionista de per si. Para não correr o risco de
generalizar tais relações, foi citada a videoperformance de Abramović para situar
essa importante linguagem artística visual no âmbito tecnoscópico e, principalmente,
para apontar as trocas comuns entre a performance e as linguagens audiovisuais.
Vale destacar o nome de outra pioneira da performance também primordial para o
entendimento do exibicionismo: a austríaca Valie Export (1940-). Em uma das suas
performances mais famosas, “Genitalpanik” (Figura 63), de 1969, a artista veste uma
roupa de couro e segura uma arma (metralhadora). Todavia, a calça de Export
226

possui uma fenda que exibe toda a sua vagina. A própria Marina Abramović fez uma
releitura dessa performance em 2006, 37 anos depois de a original ter acontecido.

!
Figura 62. “Rhythm 0”, de Marina Abramović. Performance captada em filme e vídeo. 1974. Fonte:
<https://lydiagledhill.wordpress.com/artist-influences-3/>. Acesso em 21/04/2017.

!
Figura 63. “Genitalpanik”, de Valie Export. Performance captada em filme. 1969. Fonte: <https://
alchetron.com/Valie-Export-530427-W>. Acesso em 21/04/2017.
227

Outro artista pioneiro da “performance filmada” é o holandês Bas Jan Ader


(1942-1975). Em 1971 foi produzido um filme em 16mm chamado de “I’m Too Sad To
Tell You”51 (Figura 64), em que o artista chora diante da câmera por três minutos e
34 segundos. É, pois, um trabalho precursor para a época, que já trazia o
exibicionismo de uma condição emocional humana – a tristeza, sem dúvida um dos
aspectos mais íntimos da privacidade. Hoje, há uma explicitação midiática da
felicidade, sobretudo em fotografias e vídeos selfies, mas é sabido que ninguém é
feliz 24 horas por dia; logo, a alegria generalizada na internet decorre dos
personagens criados (avatares) felizes de usuários sem muita felicidade. A tristeza
talvez seja algo ainda velado da intimidade, pois, na sociedade do espetáculo, exibir
a felicidade é potencialmente mais eficaz do que exibir a tristeza para a obtenção de
altos números de visibilidade quistos pelos exibicionistas tecnoscópicos.

!
Figura 64. “I’m Too Sad To Tell You”, de Bas Jan Ader. Performance captada em filme. 1971. Fonte:
<https://mubi.com/films/im-too-sad-to-tell-you>. Acesso em 21/04/2017.

Em 2007, um projeto homônimo à obra de Ader e realizado na internet


transpôs o exibicionismo das tristeza para os dias atuais, em que:

[...] põe em obra um exibicionismo colaborativo montando arquivos


de autorretratos em formato 2.0, os quais por sua vez se

51 Link para o filme: <https://www.youtube.com/watch?v=43t4WcIYVeE>.


228

assemelham aos inúmeros retratos dos personagens nas redes


sociais e afins, ou às sequências de autorretratos nos fotologs de
adolescentes. A especificidade do “I’m Too Sad To Tell You” consiste
em focalizar o choro como matéria do autorretrato, o que permite vir
à tona uma série de tensões entre o descontrole do choro e o
controle do ato fotográfico, a espontaneidade e a performance, a
autenticidade e o artifício (BRUNO, 2013, p. 68).

Com uma proposta próxima à anterior, mas, dessa vez, em âmbito sexual e
sem uma pretensão, pelo menos a princípio, artística de per si, o site Beautiful
Agony52 (Figura 65) também traz como temática o exibicionismo da intimidade, em
que conta com a alimentação virtual de vídeos selfies enviados pelos próprios
usuários. A plataforma é composta por vídeos nos quais as pessoas captam os
próprios orgasmos, a maioria com close no rosto, seguidos ou precedidos de
confissões e relatos pessoais.

!
Figura 65. Frame de vídeo disponibilizado pelos próprios usuários no site Beautiful Agony. Fonte:
<http://www.sickchirpse.com/tag/jul-rc/>. Acesso em 18/03/2017.

Andrea Fraser (1965-) realizou performances que tecem críticas ao sistema


de comercialização e exibição de obras de arte contemporâneo. Em uma de suas
videoperformances, “Untitled” (Figura 66), de 2003, a artista grava um encontro
sexual entre ela e um colecionador de arte que teria pagado US$ 20 mil para tal. De
acordo com a artista, a obra de arte era o próprio sexo, e foi isso que o colecionador

52 Link para o site: <http://www.beautifulagony.com/public/main.php>.


229

pagou. Ela questiona criticamente a “prostituição” do sistema de arte e se vale de


um exibicionismo videográfico para isso, pois o sextape resultante da gravação da
relação sexual foi convertido em cinco DVDs que foram vendidos para outros
colecionadores-voyeuristas.

!
Figura 66. “Untitled”, de Andrea Fraser. Performance captada em vídeo. 2003. Fonte: <https://
twitter.com/kunst_is_dead/status/771785842603991040>. Acesso em 14/04/2017.

“Untitled” (Figura 67) também é o nome do vídeo produzido em 2013 pela


artista britânica Eva Goldwyn Simpkins (1983-), que, projetado no chão da galeria de
arte, mostra a visão fixa e superior de uma mulher nua (a própria artista) deitada em
uma banheira. O vídeo capta a banheira completa e é projetado de forma a simular o
tamanho real do objeto. Ela se exibe em um momento de intimidade para colocar o
observador na posição de um voyeur que, por sua vez, observa do alto a imagem
toda, pois a banheira está nos seus pés. Segundo a própria artista

[...] by removing the bath from it’s original setting, and projecting the
video in a corridor space, I wanted people to question the limitations
of public and private. While the movement is mundane, the conflict
occurs in the spatial element of the work: by projecting vertically,
reinforcing the camera angle, the bath is juxtaposed onto the floor,
230

and purity and dirt are in direct contact. Through physically looking
down on a female nude who washes without any awareness of being
observed, the audience is made to feel like a voyeur, inspiring further
political connotations, through an awareness of the male gaze
(SIMPKINS, 2013, n.p.).

!
Figura 67. “Untitled”, de Eva Goldwyn Simpkins. Videoinstalação. 2013. Fonte: <http://
www.evagoldwynsimpkins.co.uk>. Acesso em 14/04/2017.

O uruguaio Martin Sastre (1976-) utiliza, em seus vídeos, elementos que


remetem a registros amadores, falsos trailers de cinema, falsos documentários,
reportagens e reality shows para criticar a indústria cultural e a globalização. Na obra
“The E! True Hollywood Story” (Figura 68), de 2000, Sastre se autointitula artista
celebridade e produz um falso documentário dedicado a ele mesmo nos moldes de
um famoso programa americano.
A obra “Listening Post”53 (Figura 69), de 2001, é uma instalação audiovisual e,
diferentemente das anteriores, trabalha com um tipo de exibicionismo não imagético.
Ela foi realizada pelos americanos Mark Hansen (1965-) e Ben Rubín (1969-), que
reproduziram em texto e áudio várias conversas apropriadas de salas de bate-papo
e fóruns online que, então, são mostradas em diversas pequenas telas paralelas.
Vistas a certa distância, elas criam um belo mosaico luminoso, pois cada uma exibe
apenas uma palavra por vez. O áudio, que reproduz de maneira sonora os textos
apropriados, é superposto para dar a impressão de uma sala para o bate-papo
“real”. Os autores foram precursores na apropriação de conteúdos da internet nos
primeiros anos da web 2.0, ao revelarem a intimidade das informações trocadas em
salas de chat na internet para o grande público.

53 Link para o vídeo: <https://vimeo.com/3885443>.


231

!
Figura 68. “The E! True Hollywood Story”, de Martin Sastre. Videoarte. 2000. Fonte: <http://musac.es/
FOTOS/OBRAS/12081738081107890195up1copycopiatn.jpg>. Acesso em 25/09/2014.

!
Figura 69. “Listening Post”, de Mark Hansen e Ben Rubín. Videoinstalação. 2001. Fonte: <http://
www.ooekulturquartier.at/presse/cyberarts-04/>. Acesso em 18/03/2017.
232

O vídeo “Mass Ornament”54 (Figura 70), de 2009 e de autoria da americana


Natalie Boochkin (1962-), se apropriou de diversas imagens “postadas” no YouTube
que traziam pessoas dançando em frente às suas câmeras. A artista montou as
cenas a partir da superposição dos vídeos lado a lado, realizando uma espécie de
assemblagem guiada por uma música anacrônica ao conteúdo e que cria a própria
coreografia kitsch e em panorama. Vale destacar que o ato de dançar em frente à
webcam ou às câmeras dos celulares é uma tendência que data de quase duas
décadas e que ainda continua em evidência na atualidade, sendo uma das maneiras
mais comuns dos usuários, em sua maioria mulheres, de se exibirem frente às
câmeras.
Ao assistir aos milhares de vídeos desse tipo espalhados pela internet, nota-
se que a exibição do corpo (sensualmente) em movimento é o fator principal que se
destaca em detrimento à dança de per si, pois não está em jogo o talento
coreográfico do dançarino. Isso é evidenciado na escolha das músicas para esse
ato: em sua maioria, preveem movimentos sensualizados do dançarino, o que
enfatiza movimentações de partes erógenas de seus corpos: quadris
(principalmente), coxas, peito (masculino) e seios (feminino). Vale destacar que
muitos vídeos que possuem esse tipo de exibicionismo coreográfico são sensuais ou
eróticos, uma vez que há mulheres e homens fazendo stripteases defronte às
câmeras, o que leva a crer que boa parte desse conteúdo fora uma vez íntima e,
posteriormente, “vazado”.
Outra obra com poética semelhante à anterior é “My Way 2” (Figura 71), de
autoria da videoartista e cineasta Amie Siegel (1974-), também realizada em 2009.
Para o vídeo, ela também se apropriou de imagens do YouTube e as compilou em
um videoclipe, em que as mulheres cantam “Gotta Go My Own Way”, do filme “High
School Musical 2”, numa tela, e os homens cantam “My Way”, de Frank Sinatra, em
outra.

54 Link para o vídeo: <https://vimeo.com/5403546>


233

!
Figura 70. “Mass Ornament”, de Natalie Boochkin. Videoarte. 2009. Fonte: <http://bagger-
ce.blogspot.com.br/2011/07/mass-ornament-2009-natalie-bookchin.html>. Acesso em 18/03/2017.

! !
Figura 71. “My Way 2”, de Amie Siegel. Videoinstalação. 2009. Fonte: <http://amiesiegel.net/detail/
my_way>. Acesso em 21/04/2017.

Para finalizar, em “Hello World! or: How I Learned to Stop Listening and Love
the Noise” (Figura 72), de 2008, o americano Christopher Baker (1973-) produziu
uma videoinstalação composta por milhares de diários em vídeo, com depoimentos
em primeira pessoa para a câmera (selfies) realizados por usuários do mundo todo e
apropriados para essa produção.
234

!
Figura 72. “Hello World! or: How I Learned to Stop Listening and Love the Noise”, de Christopher
Baker. Videoinstalação. 2008. Fonte: <http://www.saatchigallery.com/artists/artpages/
christopher_baker_hello_world1.htm>. Acesso em 18/03/2017.

Nesses termos, o exibicionismo como tendência cultural global se apresenta


como o principal “combustível” da tecnoscopia. Nela, os sujeitos se submetem a
explicitações de suas intimidades sequer cogitáveis há algumas décadas. As obras
aqui elencadas tentaram, cada uma segundo seus princípios críticos e poéticos,
refletir sobre tal questão ou evidenciá-la ao máximo, permitindo que o es(x)pectador
possa analisar sua atitude cotidiana, muitas vezes automatizada, em virtude da
banalização da vida íntima e da necessidade de se tornar uma figura pública.
O exibicionismo consensual leva as pessoas a participarem de “jogos”
comerciais e governamentais que, em grande parte, são implícitos e camuflados em
promessas de fama e visibilidade. Estes, para além das questões voyeuristas-
exibicionistas, usam da tecnoscopia para servir a fins políticos e econômicos
voltados ao controle de grandes populações e à manutenção se um status quo. A
seguir, isso será explicitado no último vértice do triângulo escópico – sejam bem-
vindos à vigilância tecnoscópica!
235

CAPÍTULO 3. VIGILÂNCIA: VÉRTICE DERRADEIRO DA TECNOSCOPIA

Eles sabem mais sobre você do que você mesmo. […] Vocês sabem
que busca fizeram dois anos, três dias e quatro horas atrás? Vocês
não sabem, mas o Google sim (ASSANGE, 2013, p. 85).

Segundo o Dicionário Oxford (2016), a etimologia da palavra vigilância vem


do latim vigilantĭa e descreve o “hábito de velar, de estar acordado”. Essa expressão
traz, como um de seus significados, o “estado de quem permanece alerta, de quem
age com precaução para não correr risco; cuidado”.
A vigilância (global) se tornou a espinha dorsal do capitalismo
contemporâneo. É impossível imaginar o funcionamento desse sistema em nível
mundial sem uma ferramenta de controle, e a vigilância tecnológica já faz esse
trabalho há certo tempo. “Orwell há mais de 50 anos já declarava que ‘quem controla
o presente controla o passado, e quem controla o passado controla o
futuro’” (ASSANGE, 2013, p. 153) – essa constante é, nos dias atuais,
proporcionada por um complexo mecanismo, mas que funciona de maneira
relativamente simples.
Bruno (2013, p. 23) lembra que as “[...] práticas de vigilância que num
passado recente estariam restritas a grupos específicos e justificadas por razões
particulares são incorporadas no cotidiano da vida urbana, da rotina familiar, das
relações sociais, das formas de entretenimento”. Nesse contexto estão em jogo
estratégias poderosas de controle e manipulação de dados, que tendem a usar
sistemas de entretenimento e ferramentas comerciais (tecnoscópicas – voyeuristas e
exibicionistas) somadas a uma retórica de segurança e contraterrorismo que a
potencializam e a tornam, de fato, onipresentes, transformando empresas e
governos em voyeurs-vigilantes, tal qual o profético Big Brother de George Orwell.
Por conta deste controle dado pelas máquinas tecnológicas, Agamben (2014,
p. 84) aborda que o homem contemporâneo caminha para uma vida cada vez mais
“nua”, no que tange à homogeneização das culturas e da informatização dos dados
pessoais. Assim, o homem, despido das características socioculturais que carrega,
tende a se tornar um número ou um código:

[...] a redução do homem à vida nua é hoje a tal ponto um fato


consumado que ela está agora na base da identidade que o Estado
reconhece perante seus cidadãos. Assim como o deportado de
236

Auschwitz não tinha mais nome nem nacionalidade e era a partir de


então somente o número que havia sido tatuado em seu braço, do
mesmo modo o cidadão contemporâneo, perdido na massa anônima
e equiparado a um criminoso em potencial, não é definido senão
pelos dados biométricos e, em última instância, por uma espécie de
fado antigo tornado ainda mais opaco e incompreensível: o seu DNA
(AGAMBEN, 2014, p. 84).

A vigilância tecnoscópica atua justamente na separação, catalogação e no


controle dos “indivíduos numéricos”. Ela se dá através do olho da máquina, que
transforma a todos em imagens maquínicas numéricas, e é a máquina que
comprova a existência de fato do sujeito. “Eu existo se a Máquina me reconhece ou,
pelo menos, me vê; estou vivo se a Máquina, que não conhece sono e vigília, mas
que está eternamente acordada, garante que estou vivo” (AGAMBEN, 2014, p. 85).
Poder-se-ia constatar que a relação entre vigilância e tecnoscopia ocorre por
conta do “olho maquínico” que vê e controla a todos? Não apenas isso. Grande
parte do sucesso e da eficácia da vigilância contemporânea se deve aos modos em
que ela magistralmente se vale do voyeurismo e do exibicionismo mediados pelas
tecnologias em rede. Ela se apropria de tais elementos do triângulo escópico, os
fortalece e os devolve aos cidadãos que, “gentilmente”, oferecem “de bom grado”
seus dados (e, é claro, suas imagens) pessoais (econômicos, sociais, culturais,
psicológicos, sexuais etc.). A vigilância capta esse acervo e o armazena no grande
banco de informações da “máquina capitalista contemporânea” que serve a
empresas e Estados.
Essas informações são usadas, é claro, da maneira como os detentores delas
quiserem. É como se as pessoas se despissem em público consensualmente todos
os dias e, então, entregassem suas peças de roupas uma a uma para os serviços e
as plataformas técnicas que tanto os seduzem, em um striptease interminável que,
por sua vez, nutre o ego do “nu” exibicionista, a escopofilia dos outros também “nus”
voyeuristas e faz a “grande máquina” empresarial-estatal dos vigilantes-voyeuristas
funcionar. A diferença é que os vigilantes-voyeuristas são os únicos “vestidos”, ou
seja, não são exibicionistas. Enquanto todos os demais estão “nus”, eles estão
velados com dezenas de camadas de “roupas impermeáveis” sem um decote sequer
para enxergar a intimidade dos mecanismos de funcionamento da “grande
máquina” (ou pelo menos estavam até Snowden).
237

A “máquina” seduz servos que prazerosamente retribuem o “amor” em um


processo de retroalimentação interminável, tal qual era a “religiosidade simbiótica”
entre os homens e os deuses profanos da antiguidade. Eles abrem mão das
relações entre as espécies (como já tratado várias vezes) e dão à máquina o papel
de mediadora ou construtora de quase todas as relações interpessoais:

[...] a isso se acrescenta o prazer, ágil e quase insolente, de sermos


reconhecidos por uma máquina, sem o peso das implicações afetivas
que são inseparáveis do reconhecimento operado por outro ser
humano. Quanto mais o cidadão metropolitano perdeu a intimidade
com os outros, quanto mais se tornou incapaz de olhar seus
semelhantes nos olhos, tanto mais consoladora é a intimidade virtual
com o dispositivo, que aprendeu a perscrutar muito profundamente a
sua retina; quanto mais perdeu toda identidade e todo pertencimento
real, tanto mais gratificante é ser reconhecido pela “Grande
Máquina”, nas suas variantes infinitas e minuciosas (AGAMBEN,
2014, p. 85).

A vigilância tecnoscópica se instaura como vértice derradeiro da tecnoscopia,


o elemento final que fecha a tríade escópica e une os três conceitos (voyeurismo,
exibicionismo e vigilância). Ela se vale do voyeurismo e do exibicionismo
contemporâneo para o seu sucesso, ao passo que, reciprocamente, permite que
eles possuam força na atualidade, pois ela é o braço burocrático desse tripé,
enquanto os demais atuam no âmbito das artes, da cultura, da comunicação e do
entretenimento.
Neste capítulo serão analisados conceitos formadores da vigilância moderna
e contemporânea, com destaque ao panóptico e aos seus desdobramentos que,
aliados aos outros vértices tecnoscópicos, ganham novos sentidos e novas
terminologias derivadas. A partir disso, será discorrido sobre a atuação e as
questões sociais, psíquicas e políticas que definem a própria sociedade. Por fim,
serão elencadas e analisadas obras de arte e produtos culturais significativos nesse
contexto, com destaque àqueles engajados e que se propõem como uma arte
ativista contemporânea.

3.1 Panóptico

A palavra panóptico tem origem na língua grega e significa “lugar de onde


tudo se vê”. Esse foi o nome dado pelo jurista britânico Jeremy Bentham
238

(1748-1832) ao modelo de arquitetura criado por ele (Figura 73), com o objetivo de
permitir uma constante vigilância, a partir da distribuição de celas que cercam uma
torre central em um edifício circular. Esse tipo de arquitetura foi uma ferramenta de
observação e controle em diversas instituições, como prisões, manicômios,
hospitais, fábricas e escolas, mas seu maior uso se deu no sistema carcerário. A
partir do século XX, a estrutura panóptica foi de extrema importância para estudos
relativos aos modelos de vigilância pública, curiosamente muito mais utilizado nesse
âmbito epistemológico do que propriamente no contexto arquitetural.

!
Figura 73. Fotografia de presídio projetado de acordo com sistema panóptico de Jeremy Bentham.
Fonte: <http://educaoenovastics.blogspot.com/2010/09>. Acesso em 04/04/2011.

Roudinesco e Plon (1998) citam que o prefixo pan dá à palavra ligada a ele
dois possíveis sentidos: 1. Não há nada fora do que é designado pelo termo ligado;
e/ou 2. A ideia de algo universal. Os modelos de vigilância modernos e
contemporâneos que se valem do panóptico como metáfora ou princípio de
funcionalidade atendem, de certo modo, aos dois sentidos citados: a vigilância quer
239

captar tudo, em tempo real, em que nada pode ficar fora e, por isso, deve ser global
(universal).
De certa forma, a potencialidade universal da vigilância foi conquistada na
contemporaneidade com a tecnoscopia, ultrapassando exponencialmente os desejos
mais otimistas de Jeremy Bentham sobre o panóptico que, enquanto “arquitetura
imaterial”, se apresenta como a “morada” contemporânea do capitalismo e da
globalização. Essa estrutura ganhou força justamente quando transcendeu essa
“materialidade arquitetural” e passou não apenas ao mundo das ideias, mas também
ao imaterial mundo do espectro eletromagnético e da transmissão binária de dados
em rede.
Os itens a seguir detalharão separadamente o panóptico enquanto sistema
arquitetônico e conceito, assim como sua materialização (ou imaterialização) nos
sistemas eletrônicos que viriam a deflagrar a vigilância tecnoscópica, encerrando-se
o triângulo de forças escópico.

3.1.1 Bentham, Foucault e Orwell

Jeremy Bentham descreveu os respectivos usos do panóptico a partir de


diversas cartas escritas a amigos, estudiosos e empresários de sua época. Esses
textos, e outros descobertos a posteriori, foram compilados e publicados após a
morte do autor. O próprio Bentham (1994, p. 20-22) detalha sua criação com
entusiasmo:

O edifício é circular. Os apartamentos dos prisioneiros ocupam a


circunferência. Você pode chamá-los, se quiser, de celas. Essas
celas são separadas entre si e os prisioneiros, dessa forma,
impedidos de qualquer comunicação entre eles, por partições, na
forma de raios que saem da circunferência em direção ao centro,
estendendo-se por tantos pés quantos forem necessários para se
obter uma cela maior. O apartamento do inspetor ocupa o centro;
você pode chamá-lo, se quiser, de alojamento do inspetor. Será
conveniente, na maioria dos casos, se não em todos, ter-se uma
área ou um espaço vazio em toda volta, entre esse centro e essa
circunferência. Você pode chamá-lo, se quiser, de área intermediária
ou anular. Cerca do equivalente da largura de uma cela será
suficiente para uma passagem que vai do exterior do edifício ao
alojamento. Cada cela tem, na circunferência que dá para o exterior,
uma janela, suficientemente larga não apenas para iluminar a cela,
mas para, através dela, permitir luz suficiente para a parte
correspondente do alojamento. A circunferência interior da cela é
formada por uma grade de ferro suficientemente fina para não
240

subtrair qualquer parte da cela da visão do inspetor. Uma parte


suficientemente grande dessa grade abre-se, na forma de uma porta,
para admitir o prisioneiro em sua primeira entrada; e para permitir a
entrada, a qualquer momento, do inspetor ou qualquer de seus
assistentes. Para impedir que cada prisioneiro veja os outros, as
partições devem se estender por alguns pés além da grade, até a
área intermediária: eu chamo essas partes protetoras de partições
prolongadas. Pensa-se que a luz, vindo dessa maneira através das
celas e, assim, passando pela área intermediária, será suficiente
para o alojamento do inspetor. Mas para esse propósito, ambas as
janelas nas celas e aquelas que lhes correspondem no alojamento
deverão ser tão largas quanto o permita a resistência do edifício e o
que se possa considerar como uma necessária atenção à economia.
As janelas do alojamento devem ter venezianas tão altas quanto
possa alcançar os olhos dos prisioneiros – por quaisquer meios que
possam utilizar – em suas celas. [...] Para poupar o esforço
problemático de voz que poderia, de outro modo, ser necessário, e
para impedir que um prisioneiro saiba que o inspetor está ocupado, à
distância, com outro prisioneiro, um pequeno tubo de metal deve ir
de uma cela ao alojamento do inspetor, passando através da área,
indo, assim, até o lado da janela correspondente do alojamento. Por
meio desse implemento, o menor murmúrio de um pode ser ouvido
pelo outro, especialmente se ele for orientado a aplicar seu ouvido ao
tubo.

O estudo de Michel Foucault acerca do panóptico, realizado na década de


1970 no célebre livro “Vigiar e Punir”, é referência para o entendimento de questões
relativas à vigilância ainda nos dias atuais. Foucault (2010) valeu-se do panóptico de
Bentham para tratar a contemporaneidade que ele próprio nomeou como “sociedade
disciplinar”. Para Bauman e Lyon (2013, p. 91), a visão de Jeremy Bentham “[...] de
uma vigilância universal acabou elevada por Michel Foucault e seus incontáveis
discípulos e seguidores à categoria de padrão universal de poder e dominação – e,
em última instância, de toda ordem social”. Por esse motivo, o nome de Foucault
seguido do termo panóptico é suscitado em quase todos os debates referentes à
vigilância por todo o mundo.
Foucault (2010, p. 191) considera o panóptico “[...] uma máquina de dissociar
o par ver – ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na
torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto”. De imediato aparecem todas as
questões relativas à tecnoscopia discutidas anteriormente, em que há uma clara
relação o voyeurismo e o exibicionismo. O vigia do panóptico se comporta como um
voyeur que “tudo vê”, mas não é visto, e os vigiados se comportam como aqueles
exibicionistas que sabem (ou pensam saber) que estão em observação contínua. No
caso dos enclausurados pelo panóptico, eles tendem à autorregulação, temendo as
consequências de seus atos, uma vez que o efeito mais importante do panóptico
241

seria fazer com que os detentos “[...] por uma simples ideia de arquitetura se
sentissem vigiados, mesmo quando não houvesse vigia algum na torre central e
mesmo quando eles não estivessem sendo diretamente observados” (BENTHAM,
1994, p. 158).
A onipresença e a onividência do olhar são efetivas apenas na aparência, pois
os detentos jamais podem decidir se há ou não alguém na torre central (BRUNO,
2013). Ciente desse feito, Bentham (1994, p. 30-31) comemora:

Regozijo-me com o fato de que há, agora, pouca dúvida de que o


plano possui as vantagens fundamentais que venho atribuindo a ele:
quero dizer, a aparente onipresença do inspetor (se os teólogos me
permitirem a expressão), combinada com a extrema facilidade de sua
real presença.

Foucault (2010) salienta que Jeremy Bentham, no ato da criação dos


sistemas panópticos, se maravilhava pelo fato de as novas instituições panópticas
serem significativamente mais “leves” do que os antigos sistemas de coerção, pois
não havia mais grades, correntes e fechaduras pesadas. Esse sistema anteviu a
vigilância eletrônica em dois séculos e, até há poucas décadas atrás, seu conceito
fundamental ainda era aplicado na maioria dos aparatos técnicos de vigília. Em
analogia aos sistemas de vigilância modernos, os sujeitos, acostumados a serem
controlados e vigiados de maneira constante por sistemas ocultos ou expostos, se
regulam por conta própria, crendo que o vigia estará sempre ali, incansavelmente
presente. No entanto, por conta dos sistemas informáticos em rede (que instauram a
tecnoscopia), hoje o panóptico se encontra em constante atualização55.
Os sujeitos no panóptico, assim como na atualidade, são submetidos a um
campo de visibilidade e sabem disso. Permitem que as limitações e o controle atuem
sobre si mesmos, inscrevendo “[...] em si a relação de poder na qual ele
desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua própria
sujeição” (FOUCAULT, 2010, p. 192). O panóptico gera um “[...] sentimento de
onisciência invisível, capaz de produzir um novo modo de obter poder sobre a
mente” (HEMMENT, 2010, p. 50), relacionando-se a um tipo de “olho que tudo
vê” (“olho de Deus”).

55 Esses “upgrades panoptistas” serão melhor descritos e analisados na próxima seção desta tese.
242

Por sua vez, Bauman e Lyon (2013, p. 16) dizem que o modelo panóptico
obteve sucesso por permitir a imobilização dos prisioneiros e promover o movimento
dos observadores: “Era um plano, um diagrama, o desenho de um arquiteto. Mais
que isso, significava ‘arquitetura moral’, uma receita para refazer o mundo”. O uso
da palavra diagrama é interessante para o melhor entendimento do funcionamento
do panóptico. Para Deleuze (1986, p. 61 apud BRUNO, p. 27):

[...] um diagrama excede um modo de exercício do poder, sendo


antes a exposição das relações de forças que constituem o poder
[...]. é profundamente instável ou fluente, misturando
incessantemente matérias e funções de maneira a constituir
mutações. [...] todo diagrama é intersocial e está em devir. Ele não
funciona nunca para representar um mundo preexistente, produz um
novo tipo de realidade, um novo modelo de verdade.

O panóptico de fato se comporta mais como um diagrama do que como um


sistema arquitetural fechado em si, em que encarna a sociedade disciplinar
explicitada por Foucault – dominada pelo poder centralizador da figura do vigia
(perfeita metáfora para governos e sistemas econômicos). Esse tipo de sociedade
foi também chamado por Bauman de “modernidade sólida”, que depois se
esfacelaria na liquidez das relações pouco palpáveis que o autor nomeou como
“contemporaneidade líquida”. Ele diz que o panóptico moderno era uma versão com
tijolos e argamassa do próprio espírito iluminista (BAUMAN; LYON, 2013).
De certa maneira, o panóptico já antevia o desenvolvimento das tecnologias
de visão iminentes: o desenvolvimento de lentes diversas, como as utilizadas no
dispositivo de vigilância secular conhecido como olho mágico, além, é claro, das
objetivas usados na fotografia e no cinema, entre outros dispositivos. Bentham fez,
sob a forma de construção arquitetônica, o primeiro modelo (diagrama) de
“supercâmera” de vigilância da história. O panóptico clássico chegou ao seu ápice
encarnado sob a forma das câmeras eletrônicas de vigilância que foram
onipresentes do século XX e, à época, cumpriu os desejos de seu criador. Diversos
autores das últimas décadas do século passado abordavam a vigilância eletrônica
com certo entusiasmo crítico e preocupação, pois a novidade remetia à instauração
de uma “realidade orwelliana”.
O adjetivo “orwelliano” deriva do sobrenome do escritor inglês George Orwell
(1903-1950), outro autor referência para os estudos sobre a vigilância. Em 1949, ele
publicou o célebre romance “Nineteen Eighty-Four” (“1984”), que apresenta uma
243

realidade distópica assolada por uma interminável disputa bélica entre três
“superestados”: Oceania, Eurásia e Lestásia. Os protagonistas do livro habitam a
Oceania, um estado totalitarista e governado por “Big Brother” (“Grande Irmão”), um
tirano que pode observar a todos, sempre que quiser, por meio de dispositivos
instalados em diversos locais e residências, chamados de “teletelas” (Figura 74). O
“Big Brother” encarnava em si mesmo a potência divina – ele era um ser onipotente,
onividente e onipresente.

!
Figura 74. “Nineteen Eighty-Four”, de Michael Radford. Frame de filme em longa-metragem
(mostrando o personagem “Big Brother” em uma teletela). 1984. Fonte: <http://
www.olhardireto.com.br/conceito/noticias/exibir.asp?id=6972>. Acesso em 07/06/2016.

Tal livro foi adaptado em duas ocasiões para o cinema: em 1956, sob a
direção do inglês Michael Anderson (1920-), e no próprio ano de 1984, com direção
do indiano Michael Radford (1946-). Além dos longas-metragens, tanto o livro quanto
o autor se tornaram referência para várias obras e discussões acerca de distopias,
autoritarismo e, é claro, vigilância global, em que passou a ser comum empregar o
adjetivo “orwelliano” para tratar desses temas. Bambozzi, Bastos e Minelli (2010)
afirmam que, mais de 50 anos depois da publicação do livro, a metáfora do “Big
Brother” ainda predomina na cultura popular para descrever quaisquer sociedades
de vigilância.
244

Assim como os personagens de “1984”, que sabiam que eram visíveis aos
olhos do “Big Brother” por meio das “teletelas” onipresentes, a autorregulação
panoptista concretiza o ideal cristão de fazer seus fiéis crerem que estão sempre
visíveis aos olhos de Deus: onipotente, onividente e onipresente. E as incontáveis
câmeras de vigilância espalhadas pelo globo remetem ao modelo “orwelliano” de
controle social, ao passo que os novos sistemas tecnoscópicos da
contemporaneidade se fazem ainda mais potentes e eficazes do que as câmeras
“bigbrotheranas”, ultrapassando, em certa medida, tanto o modelo “orwelliano” de
per si como o secular sistema panóptico enquanto diagrama e modelo de vigilância
perfeitos.

3.1.2 Vigilância panoptista eletrônica

Deleuze, nos anos 1990, atualizou o discurso de Foucault ao propor uma


sociedade de controle, que transcende a disciplina panoptista e se prepara para a
vigilância dada por meios máquinicos, aproximando-se do que Bauman tratou como
“sociedade líquida”. Quando Deleuze delineou a sociedade de controle, o que
postulava-se como a encarnação tecnológica do panóptico de Bentham era, sem
dúvidas, a videovigilância.
As primeiras câmeras de vídeo surgiram na década de 1960, mas o uso de
câmeras eletrônicas como ferramentas de vigilância se popularizou na década de
1980. Machado (1996) relata que as câmeras de vigilância se distribuíram como
uma rede sobre a paisagem social, ocupando todos os espaços para submetê-los ao
poder de invasão branca, à penetração invisível e indolor. Essa invisibilidade foi
conquistada à medida que as câmeras se tornaram presentes em diversos setores
sociais e no cotidiano das pessoas (principalmente nas metrópoles urbanas), em
que a presença (ou ausência) deixou de ser notada. Assim como os vigiados na
panóptico, os sujeitos aprenderam a se autorregular, por estarem sempre à mira de
“onipresentes olhos eletrônicos”. Nem todos os ambientes com câmeras de
vigilância trazem a conhecida frase “‘Sorria, você está sendo filmado!” – mas, hoje,
mesmo quando isso ocorre, as pessoas pouco se importam.
Bruno (2013, p. 110) aponta que é “[...] possível que a primeira câmera de
vigilância em espaço público tenha sido uma câmera obscura projetada em Glasgow
245

em 1824 para vigiar a população passante”. É interessante notar que o ser humano
sempre buscou algum tipo de mediação para poder olhar sem ser visto, como na
câmera supracitada que antecede a invenção da própria fotografia. As primeiras
formas de paranoia advindas de um constante sentimento de insegurança podem ter
sido suscitadas pela invenção do panóptico no século XVIII, pois a ele seguiram
várias invenções óptico-técnicas que atuavam como sistemas de vigilância/
segurança: câmera obscura, binóculos e telescópios domésticos e o famoso
dispositivo de segurança doméstica olho mágico. Sobre este, Beiguelman (2013, p.
113) descreve que:

[...] nasceu em data indefinida, muito embora há quem diga que


tenha sido inventado em 1932, por George Winninghan, personagem
enigmático sobre quem não se encontram muitas informações. Em
francês, o dispositivo é chamado de judas, aproximando a cultura da
vigilância do território da traição. A primeira patente de que se tem
conhecimento é de 1928, solicitada por William Frankel, em 1926,
cidadão do estado de Nova Iorque. Diretamente relacionado à
segurança doméstica, o olho mágico nunca teve mãe, mas inúmeros
pais, que fizeram diversos pedidos de registro em um dos mais
policialescos momentos da história, entre os anos 1930 e 1940.
Essas décadas, eternizadas pelos mortíferos regimes totalitários
nazistas e fascistas, valeram-se da popularização da cultura do
medo, fundamental para a consolidação do estado geral de
prevenção.

Diversas cidades do mundo, incluindo as de pequeno porte, contam com


sistemas de videovigilância destinados à segurança pública há mais de quatro
décadas. Dispostas em regiões de alto índice de criminalidade, as câmeras de
segurança costumam contar com recursos que permitem a geração de imagens em
alta definição, com área de captação que pode ultrapassar o raio de um quilômetro
de distância, além de girarem em 360° sobre seu eixo, o que permite que os
operadores (vigilantes em cabines de controles) possam ter uma visão completa da
cena vigiada. Esses “olhos tecnológicos” estão em residências, ruas, aeroportos,
supermercados, shoppings, lojas, condomínios, estacionamentos, empresas,
indústrias etc. Mesmo os mais simples estabelecimentos comerciais e/ou religiosos
contam com sistemas de segurança em vídeo. Somam-se a eles os sistemas de
controle de trânsito, fronteiras e portões eletrônicos, entre outros dispositivos que
permitiram a instauração do panóptico eletrônico no século XX (BRUNO, 2009).
246

Bauman e Lyon (2013) reconhecem a existência de panoptismos


contemporâneos mais robustos que o panóptico clássico e que transcendem o
cânone “benthaniano” em uma série de novos comportamentos. As transformações
do panóptico serão elencadas e analisadas nas seções a seguir, mas, neste ponto,
importa a compreensão do exato momento dessas mutações – do panóptico
clássico para os novos panópticos contemporâneos. Nota-se facilmente que tal fato
ocorreu de maneira concomitante ao desenvolvimento dos dispositivos digitais
conectados em rede.
Antes do avanço da informática, as câmeras de videovigilância ainda
mantinham a essência e a filosofia do panóptico de Bentham, em que apenas
haviam atualizado o dispositivo – de arquitetônico para eletrônico. Por esse motivo,
as câmeras eletrônicas foram apresentadas neste item e separadas dos dispositivos
digitais que serão analisados a seguir, pois o ápice do sucesso do diagrama clássico
do panóptico e a aplicação mais eficaz da disciplina coerciva apontada por Foucault
se deram na onipresença dos dispositivos de vigilância unilaterais (um vigia-câmera
e muitos vigiados): câmeras de vídeo, controles de trânsito, portões eletrônicos,
entre outros.
Em suma, esses sistemas necessitavam da figura de um “vigia na torre” – um
guarda na sala de controle, um policial rodoviário, um funcionário administrativo nos
recursos humanos de uma empresa, entre outros – e serviam a uma figura maior: ao
governo, a uma empresa etc. Mesmo quando as câmeras são usadas para a
vigilância residencial de “pessoas comuns”, em muitos casos havia (e ainda há)
organizações de segurança que operam como mediadoras do processo de vigília e
prestam assistência aos residentes, o que tornou a vigilância doméstica uma
atividade lucrativa.
Não é coincidência que o panóptico foi criado e se desenvolveu
concomitantemente ao capitalismo ocidental – podendo estar, inclusive, em queda
com o próprio capitalismo. Mesmo que autores ainda apontem uma predominância
de modelos panoptistas na atualidade, muitos deles reconhecem sua mutação que
originou sucessores indissociáveis às tecnologias digitais que potencialmente podem
concretizar um estado de vigilância global e total muito mais eficaz do que aquele
sonhado por Bentham, Foucault e Orwell. Esse novo estado se dá a partir de
dispositivos bilaterais ou mesmo “polilaterais”, em que não existe mais um único
247

emissor da mensagem e sim inúmeros emissores e receptores, que trocam de papel


a todo o momento e criam uma teia de informações, na qual todos são conclamados
a serem vigias e vigiados ao mesmo tempo.
Assoun (1999, p. 36) diz que “o olhar [...] não é somente perceber, mas
‘prestar atenção’, ‘considerar’: a etimologia nos lembra a derivação de ‘guardar’, no
sentido de velar, de estar em guarda: o olhar me protege do mundo”. Ao relembrar
os três parâmetros descritos no primeiro capítulo desta tese e que apontam a
ocorrência de um olhar voyeurista (curiosidade, atenção e fetichismo), nota-se que o
segundo dos três itens (atenção) é também um dos princípios básicos do olhar
vigilante.
O vigia da torre do panóptico precisa ser atencioso o bastante para não deixar
passar nenhum detalhe na observação de seus vigiados. Mesmo quando a presença
do vigia é apenas retórica, a câmera deve sempre estar focada em um local
específico e cobrir uma área específica. Segundo o Dicionário Oxford (2016), a
vigilância traz como um de seus significados a “[...] capacidade de concentração
sobre um campo definido de objetos durante períodos de tempo relativamente
longos”. Essas questões evidenciam a relação recíproca entre vigilância e
voyeurismo. O vigia sempre terá ao menos uma característica olhar voyeurista, a
partir do momento em que o vigiado será observado com atenção suficiente para
torná-lo um objeto de análise (de desejo). Da mesma forma, todo voyeur é também
um tipo de vigilante, uma vez que foca sua atenção e varre todo o campo visual
possível até satisfazer sua escopofilia.
São estabelecidas, assim, outras duas novas conexões no triângulo
tecnoscópico, mas essas são primárias (antigas) e estão no cerne do “olhar”
humano – pois todo voyeurismo foi sempre acompanhado da vigilância. No âmbito
da tecnoscopia, os novos tipos de panoptismos (digitais em rede) definem as
derradeiras conexões tecnoscópicas, tanto a partir dos três parâmetros do
voyeurismo (curiosidade, atenção e fetichismo) no voyeurismo interativo
contemporâneo, quanto do exibicionismo digital, como será melhor explicitado nas
seções posteriores.
Um recente exemplo de um “panoptismo eletrônico clássico” que se
transmuta em voyeurismo no âmbito sexual, ocorreu na cidade de Araraquara, São
248

Paulo, Brasil, em dezembro de 2013. Apesar da obviedade da ocorrência de casos


assim, eles são ignorados por boa parte da população:

Doze guardas municipais de Araraquara (273 km de São Paulo)


serão afastados da função de monitoramento por câmeras após uma
denúncia mostrar que o serviço era utilizado para “espiar” mulheres
em closes íntimos e casais namorando. A denúncia foi feita nesta
quarta-feira pela vereadora Gabriela Palombo, na Câmara. Ela
classificou as imagens como provas de um “grande desvio de
finalidade”. O vídeo chegou a ela, conforme a vereadora, por meio de
uma pessoa com acesso à central de monitoramento. Os vídeos
mostram imagens da principal rua de comércio da cidade, a Nove de
Julho, num horário de grande movimento. A câmera abandona o
plano aberto nas lojas e carros que transitam pela via e passa a focar
uma moça de blusa rosa decotada e short jeans. A filmagem segue o
percurso que a mulher faz até uma loja, para, e depois continua a
acompanhar o deslocamento, agora com ela sendo filmada de
costas. O operador da câmera, em diversos momentos, busca closes
do decote e das nádegas da mulher. Outro vídeo mostra um casal de
jovens vestindo uniforme escolar sentado na praça Pedro de Toledo,
perto de duas faculdades de Araraquara. A câmera, na maior parte
do vídeo que foi divulgado, foca as pernas da jovem, que está
deitada no colo do rapaz (FOLHA DE SÃO PAULO, 2014, n.p.).

Os guardas e o capitão dessa unidade do sistema de segurança público de


Araraquara foram afastados e processados – alguns foram exonerados de suas
funções. O que importa para esta discussão, de fato, é que esse é um exemplo
básico no qual sistemas de vigilância podem facilmente servir a propósitos
voyeuristas sexuais exclusivos. Mesmo que todo ato vigilante traga um olhar
voyeurista e seja difícil desvincular ambos, há ao menos uma distinção relativamente
clara entre eles: o voyeurismo costuma trazer uma finalidade informal (corriqueira,
banal, sexual etc.), ou seja, do comportamento humano; enquanto a vigilância traz
um fim prático ou um labor – uma atividade sistematizada. Em outras palavras, o
voyeurismo apresenta algo advindo das pulsões humanas, ao passo que a vigilância
é uma tarefa a ser desempenhada.
A dualidade da palavra “espião” – nesse caso representada pelo uso dos
verbos “espiar” e “espionar”, tidos comumente como sinônimos – pode auxiliar na
compreensão desse aspecto. “Espiar” traz consigo o simples ato de observar
secretamente, procurar e descobrir; já “espionar” denota o sentido de investigação,
de alguém que exerce a atividade de investigador, como um detetive ou um agente
secreto. Logo, compreende-se que, enquanto o primeiro se ocupa do voyeurismo, da
249

satisfação da pulsão escópica, o segundo pertence à vigilância, ao ato de vigiar e


controlar.
É evidente que situações como essas são potencialmente comuns no terreno
da “espionagem” (governamental, de segurança nacional e pública, empresarial e
doméstica). E o contrário se torna tão certo como extremamente importante para
esta pesquisa: o uso de situações voyeurísticas e exibicionistas para fins vigilantes –
e essa última é a principal característica da vigilância contemporânea, que faz o
modelo tradicional do panóptico ser atualizado por novos modelos pós-panoptistas,
como será discorrido a seguir.

3.2 Pós-panópticos tecnoscópicos

Ao tentarem compreender a vigilância “líquida” e “multifacetada” dos dias


atuais, Bauman e Lyon (2013, p. 22) indagam: “[...] em que aspectos devemos
continuar seguindo Foucault e em que seu relato precisa ser atualizado, ampliado
ou, no que nos interessa, repelido?”. Eles demonstram a preocupação de que o
diagrama do panóptico em face de uma sociedade de vigilância, como Foucault
abordou há quatro décadas, não seja suficiente para dar conta desse estado de
coisas. Para tais autores:

[...] tal como os caramujos transportam suas casas, os empregados


do admirável novo mundo líquido moderno precisam crescer e
transportar sobre os próprios corpos seus panópticos pessoais. Aos
empregados e a todas as outras variedades de subordinados foi
atribuída a responsabilidade plena e incondicional de mantê-los em
bom estado e garantir seu funcionamento ininterrupto (deixar seu
celular ou iPhone em casa para dar um passeio, suspendendo a
condição de permanentemente à disposição de um superior, é um
caso de falha grave). Tentados pelo encanto dos mercados de
consumo e assustados com a possibilidade de que a nova liberdade
em relação aos chefes se desvaneça, juntamente com as ofertas de
emprego, os subordinados estão tão preparados para o papel de
autovigilantes que se tornam redundantes em relação às torres de
vigilância do esquema de Bentham e Foucault (BAUMAN; LYON,
2013, p. 69).

No âmbito da relação funcionário-empresa, essa é uma das diversas


situações de “autovigília” comuns nos dias atuais. Pode-se dizer que ela maximiza o
efeito de autorregulação do panóptico de Bentham, elevando-o à perfeição, pois os
250

novos panópticos eletrônicos ficam nos próprios bolsos. A tecnoscopia leva essa
situação para além e praticamente todos os setores da vida cotidiana, pois, hoje,
ninguém é forçado a carregar o telefone celular constantemente como exigência do
trabalho, a exemplo dos bips usados pela geração pré-aparelho celular.
Esses novos panópticos se constituem no ciberespaço, isto é, no espaço
tecnoscópico. A diferença entre eles e o panoptismo “clássico” reside justamente na
instauração da tecnoscopia plena, em que a lógica voyeurista/exibicionista
tecnológica atua como amplificadora do diagrama do panóptico. Mesmo que as
câmeras de vigilância unilaterais tenham maximizado o panóptico, hoje há uma
diversidade de novas e potentes câmeras: webcams, handycams, câmeras de
aparelhos celulares e tablets, microcâmeras espiãs, câmeras 360°, Google Street
View, drones, câmeras infravermelho e ultrassônicas, câmeras inteligentes, câmeras
com sensores para jogos, câmeras de tecnologias vestíveis, entre outras. Isso sem
considerar os dispositivos dotados de tecnologias de rastreamento e geolocalização
(GPS, RFID etc.) e de biometria e identificação (hoje disponíveis em aparelhos
celulares e notebooks, permitindo compras online por identificação biométrica, o
aumento da segurança, entre outras “vantagens”). Estes também incorporam um
“olhar onividente”, apesar de não possuírem câmeras de vídeo propriamente ditas.
Vale ressaltar que os dispositivos listados são exponencialmente mais onipresentes
do que as incontáveis câmeras dos circuitos de videovigilância do século XX.
Em inglês, a tradução de vigilância é surveillance. Bruno (2013, p. 138)
aborda a relação interessante entre essa expressão e a palavra surveying, que se
refere ao ato de produzir mapas: “[...] ‘survey’ em português tem o sentido de
‘relatório’, ‘enquete’, ‘exame’... Trata-se, mais precisamente, de uma forma de ‘olhar
atenciosamente para algo’ ou de ‘examinar dados de áreas’ ou ‘construir mapas’”.
Como projeto arquitetônico, o panóptico se mostra eficaz também quando visto na
forma de um mapa (Figura 75), realizado pelo próprio Bentham como um “croqui
vigilante ideal”, pois esboça um elemento centralizador (a torre) e seus diversos
observados (nas celas).
McLuhan (1972, p. 25) assevera que o mapa oferecera no século XVI uma
nova visão de periferias de poder e riqueza:

Colombo fora cartógrafo antes de ser navegante; e a descoberta de


que era possível continuar a navegar num curso em linha reta, como
251

se o espaço fosse uniforme e contínuo, constitui capital mudança no


modo de ver do homem na Renascença.

Em geral, os mapas sempre foram ferramentas de conhecimento, controle e


vigilância, pois definiam bordas, fronteiras e a área de ocupação de cada nação ou
subterritório, constituindo dispositivos indispensáveis na arte da guerra. Vale lembrar
que a relação entre vigilância e indústria bélica é intrínseca e será ressaltada
posteriormente. É interessante comparar o modelo de mapas das eras “panóptica” e
“pós-panóptica”: o croqui panóptico de Bentham se assemelha a modelos de mapas
“bidimensionais” utilizados nos séculos XVIII, XIX e XX (Figura 76).
Hoje, o mapa torna-se “tridimensional”, cibernético e em “escala um para um”,
constituindo um modelo ainda não tratado pela Geografia contemporânea. Assange
(2013, p. 92) cita que a citada “escala um para um” advém de uma provável
referência ao conto intitulado “Do Rigor na Ciência”, do escritor argentino Jorge Luis
Borges (1899-1986), no qual ele imagina um mapa tão minucioso que teria
exatamente o mesmo tamanho do território. As ferramentas de controle e vigilância
onipresentes na paisagem urbana – e até mesmo nas não urbanas – mapeiam
minuciosamente o globo e deixam essa utopia (ou “distopia pós-orwelliana”) muita
próxima à realidade. Pode-se, inclusive, especular que há hoje um mapa ainda
maior que o mundo “real”, devido à quantidade de metadados56 que os usuários
online produzem diariamente.
Mais do que enxergar o visível, os metadados revelam o invisível. Eles trazem
um montante de informações que esboçam o percurso de uma pessoa no dia a dia,
por quanto tempo ela dorme, caminha, conversa por telefone ou pela internet,
quantos amigos possui, gostos e prazeres pessoais, vida cultural, financeira e
amorosa, e até preferências sexuais. Ou seja, os metadados exibem o “espírito” –
informações invisíveis produzidas a todo instante pelo usuário comum –, mais do
que unicamente o “corpo” do usuário – este exibido por meio de perfis públicos,
fotos, vídeos etc.

56Metadados são informações ocultas que acompanham outros dados e mostram informações sobre
arquivos digitais diversos, como tamanho, data e horário de criação e de modificação,
posicionamento geográfico, autor, permissões de acesso, histórico de edições, informações técnicas
específicas – dependendo do tipo de arquivo, entre outras. Eles podem ser decodificados e exibidos
por um dispositivo digital – alguns pelo próprio sistema operacional e outros somente com softwares
específicos.
252

!
Figura 75. Símbolo/croqui do sistema arquitetônico panóptico, idealizado por Jeremy Betham. Fonte:
<http://ict4accountability.wordpress.com/tag/monitoring/>. Acesso em 07/01/2012.

Figura 76. Mapa mundi do século XVIII, segundo a projeção cartográfica planisfério azimutal. Fonte:
<https://www.flickr.com/photos/mapasartisticos/6167814043>. Acesso em 19/03/2017.
253

Se a lógica exibicionista tecnoscópica já explicitava o corpo humano sem


pudores, a lógica vigilante pós-panoptista e tecnoscópica é ainda mais invasiva do
que o voyeurismo tecnológico que se alimenta do exibicionismo digital. Surpreende-
se que, nos atuais escândalos de vigilância, os governos envolvidos argumentaram
hipocritamente que a vigilância global ocorria “apenas” no mapeamento e na coleta
de metadados. Mais extraordinário ainda é observar que a maioria da população
consentiu, pois disse: “Que bom! Ainda bem que são só os metadados. Assim está
tudo certo!”. Tais indivíduos se sentiram aliviados ao pensarem que os vigilantes não
tinham acesso ao conteúdo de suas práticas online (textos de conversas em chats,
imagens compartilhadas etc.) e acreditavam que o acesso unicamente aos
metadados não violava por completo a privacidade 57. Nesse caso, os vigias
governamentais e empresariais acessariam “apenas” o horário em que as conversas
foram feitas, com quem, com que frequência, quantas imagens foram
compartilhadas e até a quantidade de caracteres digitados por segundo e por
usuário.
Ter acesso também ao invisível (ao “espírito”) pode ser mais potente e
perigoso do que acessar apenas o visível, como se o vigia do panóptico possuísse
lentes de raios-X para visualizar o interior (biológico) dos observados ou teriam
“olhos de divindades” (como os de Hórus) que permitissem acesso ao “espírito” (ou à
“alma”) dos sujeitos. Além de um simples vigia na torre, ele seria uma espécie de
padre ou psicanalista, com o qual os vigiados se confessariam aberta e diariamente
– isso explicita ainda uma suposta “sociedade confessional”. De acordo com Sibilia
(2016, p. 52):

[...] ao longo das últimas duas décadas, a rede mundial de


computadores tem dado à luz um amplo leque de práticas que
poderíamos denominar “confessionais”, pois permitem a qualquer um
dar um testemunho público e cotidiano de quem se é. Milhões de
usuários de todo o planeta – gente considerada comum, como eu ou
você – têm se apropriado das diversas ferramentas disponíveis
online, que não cessam de se expandirem, e as utilizam para expor
publicamente aquilo que algum tempo atrás teria sido protegido por
fazer parte da intimidade.

57 Hoje, sabe-se que isso não é verdade, pois as ferramentas contemporâneas de vigilância têm
acesso a todos os dados de usuários de fato (não “apenas” aos metadados), de acordo com
parcerias entre governos e empresas específicas.
254

Bauman e Lyon (2013, p. 9), consideram que o inspetor do panóptico


contemporâneo “[...] pode escapulir, fugindo para domínios inalcançáveis. O
engajamento mútuo acabou. Mobilidade e nomadismo são agora valorizados (a
menos que você seja pobre ou sem-teto)”. Se todas as pessoas conectadas em rede
continuam visíveis a todo o momento, pois querem se exibir intermitentemente, onde
quer que estejam, o vigia da torre não é mais necessário – o próprio sujeito vigiado
faz o papel do vigia (e bem melhor que seu antecessor). É claro que a vigilância
atual tem uma dívida conceitual com Bentham e Foucault, mas Bauman e Lyon
(2013, p. 62) inferem que é necessário ter certo distanciamento desses modelos
tradicionais nas análises e reflexões sobre a contemporaneidade. Segundo os
autores:

[...] para alguns que têm se dedicado ao estudo da vigilância há


algum tempo, a simples menção do panóptico provoca gemidos de
exasperação. Para eles, um número grande demais de pessoas
esperou muito do panóptico, e, como resultado disso, o diagrama era
renovadamente mencionado a cada oportunidade concebível, bem,
para explicar a vigilância. Então, deparamos com panópticos
eletrônicos e superpanópticos, da mesma forma que com suas
variações, o sinóptico ou o polióptico. “Chega”, adverte Kevin
Haggerty, “vamos derrubar as muralhas!”. Há limites históricos, assim
como lógicos, à utilização das imagens do panóptico hoje.

De fato, a tentativa de distinção entre os diversos modelos de pós-panópticos


– superpanóptico, banóptico, sinóptico, oligóptico, polióptico, palinóptico, entre
outros – se torna uma tarefa conceitual complexa. Como Bauman e Lyon (2013)
alertaram, alguns estudiosos dos dias atuais sequer mencionam o panóptico em
suas pesquisas, por acharem o diagrama incompatível com a vigilância
contemporânea. Bruno (2013, p. 17) também concorda com essa questão, mas, ao
mesmo tempo, faz uma ressalva:

De um lado, é preciso abrir mão, ao menos em parte, de grandes e


acabados modelos de compreensão da vigilância, sob pena de
perdermos de vista as singularidades dos processos, dispositivos e
práticas que estão em curso. De outro, descrever estas
singularidades é tão necessário quanto arriscado, uma vez que
sempre seremos de algum modo ultrapassados pelo fluxo dos
acontecimentos e dinâmicas que desejamos apreender.

Mesmo que a dinâmica dos acontecimentos contemporâneos torne quase


impossível definir um modelo de pós-panóptico ideal para situar a vigilância na
255

contemporaneidade, serão analisados a seguir dois desses novos modelos


propostos: o banóptico e o sinóptico. A escolha por eles em detrimento dos demais
se deu justamente por se relacionarem a questões tecnoscópicas e atenderem a um
leque de discussão de forma simples e didática, o que muitos não fazem.
É importante ressaltar que os demais modelos têm grandes similaridades com
eles, o que leva à constatação de que as categorizações dos novos panoptismos
ainda estão, em sua maioria, num processo embrionário de discussão – o que não
permite, neste momento, que sejam definidos como parâmetros fechados e novos
cânones a serem seguidos. Assim, o mais importante a se considerar é que eles
apontem caminhos epistemológicos e conceituais para o entendimento da vigilância
no âmbito da tecnoscopia que, como conceito e modelo de análise, tenta dar conta
das dificuldades epistemológicas que surgem ao analisar a vigilância a partir de um
único molde.

3.2.1 Banóptico: espionagem, guerra e a cultura da insegurança

Didier Bigo (2008) propôs o termo banóptico ao final da primeira década do


século XXI para indicar o modo com o qual algumas tecnologias que elaboram perfis
a partir de dados são usadas para determinar quem será colocado sob vigilância e,
se necessário, punido por isso. Esse tipo de vigilância decorre diretamente das
questões sobre segurança pública, industrial e governamental; logo, ele:

[...] emerge de uma análise teórica completa a respeito de como


surge uma nova “insegurança global” a partir das atividades
crescentemente combinadas dos “gerentes da inquietação”
internacionais, como policiais, agentes de fronteira e companhias
aéreas. Burocracias transnacionais de vigilância e controle, tanto
empresariais quanto políticas, agora trabalham a distância para
monitorar e controlar, pela vigilância, os movimentos da população
(BAUMAN; LYON, 2013, p. 71).

De acordo com Bigo (2008), o novo conceito combina a ideia inicial de “ban”,
de Jean-Luc Nancy (e desenvolvida posteriormente por Giorgio Agamben), com
“óptico”, em referência ao panóptico tratado por Foucault. Etimologicamente, o
prefixo ban tem origem grega, significa banimento e, aliado a óptico, referencia um
tipo de visão que tem o objetivo de excluir. Para Bauman e Lyon (2013), banóptico é
256

um termo feliz, ainda que aparente mais um trocadilho do que uma lógica semântica,
pois, semanticamente, define a exclusão de quem é visto e, nesse caso, o sujeito
excluído deveria se perder de vista. Na prática, a vigilância continua a ver esse
sujeito (teoricamente) para sempre, uma vez que garante a exclusão econômica,
política ou social da pessoa excluída, mesmo tendo ela sempre em vista
(controlada). Então, enquanto o panóptico colocava todos à vista para controlá-los, o
banóptico faz isso para selecionar e excluir, tentando evitar problemas futuros.
O banóptico é uma das “faces” da vigilância contemporânea mais explícita,
em que a maioria das pessoas reconhece como vigilância de per si. Essa nova face
da vigilância contemporânea foi, sem dúvida, a mais abordada nas últimas décadas
por pesquisas, congressos, manifestações, documentários, reportagens, filmes,
obras de arte, entre outros que teceram preocupações, debates e reflexões acerca
de uma vigilância global com fins governamentais e, em grande parte, bélicos.
Como vigilância implícita e camuflada nos serviços voyeuristas e
exibicionistas tecnoscópicos (que será abordada na próxima seção), o sinóptico é
hoje ainda mais eficaz e preocupante que o banóptico. Enquanto a vigilância
panóptica “clássica” é tão corriqueira na atualidade que já foi incorporada pelo
urbanismo contemporâneo, a vigilância banóptica se apropria da retórica do
contraterrorismo e da insegurança global para ser a que mais suscita indagações de
movimentos ativistas no mundo todo, sobretudo por estar diretamente relacionada a
questões bélicas e ao controle “capitalista-imperialista”, por parte das grandes
potências econômicas. O banóptico e o citado sinóptico possuem similaridades,
além de serem “upgrades digitais” do panóptico de Bentham. Dando continuidade ao
mesmo método adotado por esta pesquisa, a discussão a seguir tentará não focar
na diferenciação de tais conceitos, mas abordar suas atuações, recíprocas ou não,
no âmbito da tecnoscopia contemporânea.
O banóptico “[...] mostra quem é bem-vindo ou não, criando categorias de
pessoas excluídas não apenas de determinado estado-nação, mas de um conjunto
bastante amorfo e não unificado de potências globais” (BAUMAN; LYON, 2013, p.
71). Tais autores traçam relações entre esse tipo de sistema de vigilância e o conto
do autor Philip K. Dick (1928-1982), “Minority Report” (em português, “Relatório
Minoritário”), pois o banóptico opera no âmbito de uma vigilância preditiva e
preventiva. Tal obra foi publicada em 1956 e adaptada pelo cinema em 2002, com
257

direção de Steven Spielberg (1946-). O enredo apresenta uma ficção científica


futurista, em que uma equipe da polícia de Washington, Estados Unidos, chamada
de divisão “pré-crime”, evita crimes antes mesmo que eles aconteçam, com a ajuda
de indivíduos capazes de “ver” o futuro, os “precogs”. No entanto, às vezes há
divergências nas “visões” realizadas entre os três precogs e, por isso, são
necessários os relatórios minoritários para averiguar a precisão das “precognições”.
As discrepâncias nas visões são o mote norteador do enredo desse conto, servindo
de pressupostos críticos para a reflexão acerca do banóptico contemporâneo,
mesmo que o conto tenha mais de 50 anos.
Assim como “1984”, de Orwell, o conto prevê (ironicamente) um estado de
coisas que viria a se instaurar meio século mais tarde. Em determinada passagem
do texto, a autenticidade da “precognição” é questionada em um diálogo entre os
personagens Anderson e Witwer:

Você já deve ter notado o inconveniente legal básico da metodologia


do pré-crime. Estamos prendendo indivíduos que não infringiram lei
alguma. Mas com certeza vão infringir – Witwer afirmou com
convicção. Felizmente não infringem... Porque os capturamos
primeiro, antes que possam cometer um ato de violência. Portanto, a
execução do crime em si é absolutamente metafísica. Afirmamos que
são condenáveis. Eles, por outro lado, afirmam eternamente que são
inocentes. E, em certo sentido, são inocentes [...] Em nossa
sociedade, não temos qualquer crime grave – prosseguiu Anderton,
mas temos, sim, um campo de detenção cheio de supostos
criminosos (DICK, 2015, p. 138).

De maneira análoga, o banóptico pressupõe que todos são criminosos até


que se prove (na verdade, se veja) o contrário. Erros ocasionais são comuns, vide a
quantidade de inocentes feridos e mortos em ataques mal-sucedidos de drones, por
exemplo, ou até em casos de ataques “bem-sucedidos”, nos quais inocentes foram
mortos no processo – estes são chamados de “efeitos colaterais” (tais questões
serão melhor discutidas a posteriori). O banóptico também se fortaleceu por conta
da evolução técnica dos sistemas biométricos nas últimas décadas, sobretudo os
scanners de impressões digitais, retina, reconhecimento de voz e padronagem e
identificação facial. De acordo com Agamben (2014, p. 77):

[...] as técnicas antropométricas haviam sido pensadas para os


delinquentes e permaneceram por muito tempo como privilégio
exclusivo deles. Ainda em 1943, o Congresso dos Estados Unidos
rechaça o Citizen Identification Act, que visava instituir para todos os
258

cidadãos carteiras de identidade com suas impressões digitais. Mas


para a lei que deseja que aquilo que foi inventado para os
criminosos, para os estrangeiros e para os judeus seja cedo ou tarde,
sem falta, aplicado a todos os seres humanos enquanto tais, as
técnicas que haviam sido elaboradas para os reincidentes foram
estendidas ao longo do século XX a todos os cidadãos.

Em um contexto geral, o banóptico atualiza o panóptico ao investir esforços


numa filosofia inversa a ele, pois o primeiro se ocupa de “manter a distância”, em
vez de “manter dentro”, no caso do panóptico. Aquele prega a exclusão como
ferramenta de controle, com o intuito de manter a segurança, enquanto o panóptico
clássico se valia do encarceramento para a observação, como ferramenta disciplinar.
Bauman e Lyon (2013, p. 72) traçam três características principais do banóptico:

[...] o poder excepcional em sociedades liberais (estados de


emergência que se tornam rotineiros), traçar perfis (excluir certos
grupos, categorias de pessoas excluídas de forma proativa em
função de seu potencial comportamento futuro) e normalizar grupos
não excluídos (segundo a crença no livre movimento de bens,
capital, informações e pessoas).

Ademais, o panóptico transmite a ideia de vigilância ininterrupta, enquanto o


banóptico transmite o sentimento de exclusão. Mas, ainda assim, ambos conseguem
um controle eficaz, mesmo com ferramentas e filosofias diversas, pois, ao excluir, o
banóptico tende a normalizar os não excluídos, conforme abordado por Bauman e
Lyon (2013) anteriormente. Dessa maneira, ele forçosamente define uma classe
padronizada de sujeitos inclusos, ao mesmo tempo em que controla os indivíduos
rejeitados a partir de uma política de segregação. Nesse ínterim, Assange (2013, p.
54) diz que

[...] já está bem claro que a censura, em termos gerais, é um


subproduto da vigilância, seja na forma da autocensura ou na de
uma censura técnica, e acho que um jeito importante de transmitir
isso às pessoas comuns é evitando termos técnicos. Por exemplo, se
construirmos estradas do mesmo jeito que construímos a internet,
todas as estradas precisariam ter câmeras de vigilância e microfones
que ninguém além da polícia poderia acessar – a não ser alguém
que conseguisse se passar por um policial.

Além da censura e da obscuridade nas técnicas empregadas, como relatou


Assange (2013), a vigilância preventiva contemporânea é um dos grandes artifícios
do banóptico, pois lança mão de uma infinidade de serviços presentes no dia a dia
259

da população global com vistas a mapear, identificar e excluir. As próprias câmeras


de vigilância, panópticas por natureza, “evoluíram” nesse percurso, posto que “[...]
têm deixado de ser apenas máquinas de visão, monitoramento e registro para se
tornarem também capazes de ‘analisar’ automaticamente o que se passa no seu
campo perceptivo, de modo a prever e impedir eventos indesejados” (BRUNO, 2013,
p. 42).
Hoje, o que parecia ser ficção científica à la “Minority Report” faz parte do
cotidiano. Em decorrência do grande número de dados gerados pelos dispositivos
de vigilância, a avalanche de informações torna quase impossíveis o
acompanhamento e a análise de vigias “humanos”. Mesmo uma grande equipe é
incapaz de verificar as várias horas de vídeos captados por sistemas de vigilância ou
os dados captados por outros tipos de serviços técnicos de vigília. O novo vigilante é
a máquina, que filtra e pré-organiza os dados, dando aos vigias “humanos” apenas o
produto dessa atividade excludente (banóptica). Por conseguinte, o “olho maquínico”
celebra a tecnoscopia de per si, pois, nesse caso, a tecnologia não é apenas o meio
ou o incentivador da atividade tecnoscópica – ela participa ativamente do jogo
escópico.
Bigo (2008) expõe que esse modelo fortalece o desenvolvimento da
informática e da biometria para operar em um plano de insegurança transnacional.
Assim como em “Minority Report”, a sensação de insegurança se dá a partir do
pressuposto de que todos são criminosos – é claro que, dependendo da localidade,
alguns grupos são mais evidenciados pelo banóptico do que outros. Um dos maiores
usos de tais sistemas preditivos se refere à vigilância bélica, principalmente por meio
do uso de drones em territórios hostis. Bruno (2013, p. 94) discorre que “[...] termos
como prevemptive surveillance (vigilância preventiva) e activity forecasting (previsão
de atividades) se tornam correntes no vocabulário científico, comercial e securitário
da videovigilância”. Outro exemplo de software atrelado à videovigilância é o projeto
“Mind’s Eye” (“Olho da Mente”), da Agência do Departamento de Defesa dos
Estados Unidos (DARPA):

O software “Mind’s Eye” irá comparar o movimento no vídeo a ações


que ele já foi treinado para reconhecer (como andar, pular e parar) e
identificar padrões de ações (como pegar e carregar objetos). O
software examina esses padrões para inferir o que a pessoa no vídeo
está fazendo. Ele também faz previsões sobre o que é provável
acontecer a seguir e pode adivinhar atividades que podem estar
260

obscurecidas ou ocorrer fora do campo visual da câmera (BRUNO,


2013, p. 94).

Fica claro como essas questões são inerentes à segurança pública e,


pensando no contexto político do início do século XXI, elas se desenvolveram
concomitantemente à retórica do contraterrorismo, da guerra ao terror, das
crescentes manifestações e ocupações em diversos países e do aumento
exponencial da criminalidade no mundo todo. Em suma, o banóptico digital surge em
face de uma cultura de insegurança global esboçada após 11 de setembro de 2001 e
a decorrente instituição do “Ato Patriota” americano.
Segundo Assange (2013), o “Patriotic Act” foi uma lei norte-americana
promulgada em 2001 pelo presidente George W. Bush, em resposta aos ataques de
11 de setembro. A palavra patriotic traz um acrônimo que significa Providing
Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism (Proporcionar as
Ferramentas Apropriadas Necessárias para Interceptar e Obstruir o Terrorismo). Tal
dispositivo legislativo permitiu que a National Security Agency (NSA, Agência de
Segurança Nacional dos Estados Unidos) transgredisse a lei de 1978 conhecida
como Foreign Intelligence Surveillance Act (FISA, Lei de Vigilância para a Coleta de
Inteligência Estrangeira), que impedia que órgãos norte-americanos espionassem os
cidadãos do próprio país sem um mandado judicial.
Depois do “11 de setembro”, uma espionagem sem precedentes na história foi
aprovada pelo Congresso Americano a partir do “Ato Patriota”, permitindo a
vigilância de cidadãos americanos sem mandado judicial, envolvendo a cooperação
de empresas privadas para tal. Isso foi mantido em sigilo até 2005, quando foi
exposto pelo The New York Times e se tornou um escândalo global, principalmente
pelo fato de a vigilância ser direcionada a todos os países do mundo, e não apenas
aos Estados Unidos, com a premissa (banóptica) do contraterrorismo e de uma
vigilância preditiva que visava prevenir futuros atos terroristas.
Nessa realidade:

[...] de um lado, estamos mais protegidos da insegurança que


qualquer geração anterior; de outro, porém, nenhuma geração
anterior, pré-eletrônica, vivenciou os sentimentos de insegurança
como experiência de todos os dias (e de todas as noites) (BAUMAN;
LYON, 2013, p. 118).
261

Para Streker (2013, p. 49), há um sentimento constante de paranoia presente


na atualidade, devido à ameaça e ao risco sempre eminentes que assolam todas as
nações do globo:

Paranoia é um dos mais antigos conceitos na história da descrição


de estados mentais. Na tragédia grega, serviu para descrever o amor
apaixonado de Édipo por Jocasta e também o estado de Orestes
depois que assassinou sua mãe, Clitemnestra. O conceito mudou ao
longo do tempo e ficou mais popular no século 19, quando passou a
ser entendido como um estado mental caracterizado por mania de
perseguição.

A palavra paranoia tem sua etimologia no grego para, que significa contra, e
noss, relacionado a espírito. O DSM-5 se refere a ela no âmbito do Transtorno de
Personalidade Paranoide, com um comportamento a partir da “[...] desconfiança e
suspeita difusa dos outros, de modo que suas motivações são interpretadas como
malévolas” (APA, 2014, p. 649). Assim como as demais parafilias e transtornos
citados nesta tese, a paranoia parece também transcender as questões clínicas da
psicologia e da psicanálise para se instaurar no contexto social, sobretudo porque há
de fato um estado paranoico global que se difere do cânone psicanalítico do termo,
pois a paranoia contemporânea não é algo infundado. O medo do “terror” e da
criminalidade é recorrente nas ocasiões em que, de fato, nenhum mal ocorrerá. Mas
as chances de acontecer são reais e, por isso, a paranoia tecnoscópica é diferente
das categorias diagnósticas básicas do DSM-5.
Mekler (2015) relaciona a paranoia contemporânea à música “Every Breath
You Take”, composta em 1983 pela banda de rock inglesa “The Police”. Para a
autora, em tradução livre, a letra da música fala sobre “[...] indivíduos que a cada
respiração, a cada movimento, a cada passo, ‘estão observando você’. [...] Na ficção
ou na vida real, o paranoide vive em estado de observação, vigilância e
controle” (idem, p. 86). Nesse entremeio, Streker (2013) relata que há
verdadeiramente uma “paranoia cibersocial” generalizada que transcende, inclusive,
questões de segurança pública e medo do “terror” antes citadas. Na
contemporaneidade, informações podem facilmente viralizar nas redes sociais e,
então, provocar uma paranoia massiva digital e compulsiva.
Além disso, Mecler (2015) cita que até o recente fenômeno conhecido como
revenge porn, explicitamente tecnoscopista, é motivado por “paranoias cibersociais”,
pois a maioria dos “vazamentos” e “viralizações” de fotografias ou vídeos pode ser
262

feita após desconfianças de traições dadas pela perseguição (stalker) do ex-parceiro


sexual nas redes sociais, por exemplo. Nessas perseguições paranoides
tecnoscópicas, até um selfie mal interpretado pode ser motivo para a “destruição” da
vida virtual (e potencialmente da vida real) da outra pessoa.
Já nas esferas corporativa, governamental e de segurança pública, a paranoia
é claramente uma parte fundamental do banóptico, pois ele opera a partir da
“desconfiança”. Bruno (2013) cita o exemplo de uma jovem de 16 anos, residente
nos EUA e filha de imigrantes muçulmanos, que foi convidada a se retirar do país
por ter sido enquadrada como “menina-bomba em potencial”, a partir de um perfil
elaborado pelo Federal Bureau of Investigation (FBI, Departamento Federal de
Investigação). Esse perfil foi realizado a partir do monitoramento da atividade online
da jovem, que participava de um grupo de chat presidido por um clérigo islâmico de
Londres, que sofreu acusações de encorajamento a atos terroristas. Segundo Bruno
(idem, p. 45), salienta-se “[...] o quanto as tendências e inclinações projetadas no
perfil acabaram por condenar o presente ao futuro antecipado, sufocando inúmeras
outras possibilidades certamente presentes na vida e nas escolhas de uma
adolescente”.
Mais uma vez, a relação com o conto “Minority Report” de Dick é manifesta.
Assim como o departamento de “pré-crime” do conto, o banóptico contemporâneo
não se arrisca a aguardar que o crime aconteça; ele precisa agir antes. Desta forma,
disciplina e segurança têm uma conexão e, segundo Bauman e Lyon (2013, p. 10),
isso foi algo que Michel Foucault não conseguiu reconhecer, uma vez que o autor:

[...] insistia em afirmar que eram duas coisas distintas, embora suas
conexões (eletrônicas) já estivessem evidentes. A segurança
transformou-se num empreendimento orientado para o futuro – agora
nitidamente descrito no filme e no romance intitulados Minority
Report (2002) – e funciona por meio da vigilância, tentando monitorar
o que vai acontecer pelo emprego de técnicas digitais e raciocínio
estatístico.

O vigia da torre panóptica abandonou o encarceramento arquitetural e se


tornou um flâneur paranoico, que vaga pela cidade apontando culpados por todos os
cantos. Estes, por sua vez, são julgados antes dos crimes, pois o banóptico prefere
“prevenir do que remediar”. Hoje, os “[...] processos de estereotipia e medidas de
exclusão estão à espera dos grupos desafortunados o bastante para serem
rotulados de ‘indesejados’” (BAUMAN. LYON, 2013, p. 10). Considera-se que o
263

flâneur paranoico não é nada mais do que um voyeur maximizado pela tecnoscopia
que observa com o intuito de condenar. A exclusão banóptica cria também uma
espécie de exílio digital, na qual os exilados não são, necessariamente, obrigados a
se mudar de país – eles podem se exilar em sua terra natal, a partir do sentimento
de exclusão –, pois eles sofrem um considerável montante de preconceitos diários
(em sua maioria mediados pela tecnologia) que os forçam a serem reclusos ou a
evitar estar em determinados locais ou a usar determinados serviços. Alguns
autores, nesse âmbito, chegam a mencionar um suposto “apartheid digital”
contemporâneo.
É evidente que as maiores pretensões banópticas dizem respeito a questões
políticas e econômicas que partem de todas as retóricas de insegurança citadas,
mas que na verdade servem a outros propósitos: controle financeiro, manutenção do
status quo econômico das potências mundiais, erradicação das ameaças ao atual
sistema político-capitalista etc. Um major das Forças Armadas Americanas disse que
o “[...] domínio da batalha contemporânea começa com a capacidade de a pessoa
ver, visualizar, observar ou encontrar” (BAUMAN; LYON, 2013, p. 127).
Assange (2013, p. 62) aponta uma preocupante militarização do ciberespaço,
no sentido de uma ocupação militar:

Quando nos comunicamos por internet ou telefonia celular, que agora


está imbuída na internet, nossas comunicações são interceptadas
por organizações militares de inteligência. É como ter um tanque de
guerra dentro do quarto. É como ter um soldado entre você e a sua
mulher enquanto vocês estão trocando mensagens de texto. Todos
nós vivemos sob uma lei marcial no que diz respeito às nossas
comunicações, só não conseguimos enxergar os tanques – mas eles
estão lá. Nesse sentido, a internet, que deveria ser um espaço civil,
se transformou em um espaço militarizado. Mas ela é um espaço
nosso, porque todos nós a utilizamos para nos comunicar uns com
os outros, com nossa família, com o núcleo mais íntimo de nossa
vida privada. Então, na prática, nossa vida privada entrou em uma
zona militarizada. É como ter um soldado embaixo da cama. É uma
militarização da vida civil.

De fato, as recentes tecnologias que mais explicitam o “olhar punitivo”


banóptico e tecnoscópico contemporâneo são os drones. Drone é uma palavra
inglesa que significa “zangão” (o macho da abelha), em tradução literal para o
português. Eles são aeronaves não tripuladas e controladas remotamente que
revolucionaram o cenário bélico, inserindo-se cada vez mais na vida cotidiana.
264

Como máquinas de guerra, os drones levam a vigilância banóptica ao ápice,


pois permitem intervir ao mesmo tempo em que vigiam, dando a seus operadores a
possibilidade de abater alvos em tempo real durante o ato da vigilância em si. Para
Bauman e Lyon (2013, p. 103), a pesquisa e o desenvolvimento financiados pelos
militares com a finalidade de:

[...] “execução a distância” constitui a unidade avançada do exército


de vigilância, fornecendo a maior parte das inovações tecnológicas
depois adaptadas às necessidades de outras variedades, as de
“segurança” paramilitar – e também a usos claramente comerciais e
de marketing.

Já é sabido que grandes desenvolvimentos tecnológicos na história ocorreram


inicialmente no contexto militar, para depois ocuparem outros setores da sociedade.
Um dos maiores exemplos é o próprio computador criado por Alan Turing
(1912-1954) durante a Segunda Guerra Mundial. No caso dos drones, não é
diferente: enquanto se celebra a democratização dessa tecnologia no contexto
urbano – filmagens e fotografias aéreas, jornalismo, entregas de produtos,
atividades de lazer, esportivas e artísticas, além da própria manutenção da
segurança pública, é claro –, como “máquinas de matar”, elas são os itens mais
valiosos da indústria bélica atual, pois permitem sucesso e eficácia com baixo custo,
além de transporem grandes “pesadelos logísticos” da guerra, principalmente
questões geográficas e de recursos humanos.
Hoje, ainda são necessárias várias horas para a análise das imagens geradas
pelos drones, mas, em um futuro próximo, certamente isso não será necessário,
dado o desenvolvimento das ferramentas inteligentes de visão artificial que terão, de
maneira ainda mais eficaz, a tarefa banóptica de triagem e seleção de imagens para
a análise humana.
Somado a isso, segundo Bauman e Lyon (2013), o mundo está na iminência
da substituição da limitada visão “em túnel” dos sensores dos drones atuais por uma
“visão de Górgona”, capaz de abarcar uma cidade toda de uma só vez. Assange
(2013, p. 189), conclama que “[...] estamos quase diante do Estado de vigilância
transnacional e de guerras intermináveis de drones”.
A guerra se tornou eletrônico-visual há tempos e, mesmo antes das
tecnologias digitais em rede, as batalhas já eram travadas a partir de telas e
monitores. As imagens verdes e monocromáticas transmitidas pela TV nos anos
265

1990 durante a Guerra do Golfo já demonstravam um aspecto contemporâneo dos


conflitos que eram resolvidos imageticamente. Os alvos eram pontos disformes em
uma tela escura, escolhidos e abatidos de acordo com as informações captadas
sobre eles – os drones possuem forma semelhante.

Quando, em fevereiro de 2011, 23 afegãos convidados para uma


cerimônia de casamento foram mortos, os operadores responsáveis
por apertar os botões puderam pôr a culpa nas telas transformadas
em “atrações irresistíveis”: eles haviam se perdido só de ficar com os
olhos grudados nelas. Havia crianças entre as vítimas das bombas,
mas os operadores “não se concentraram nelas, em meio a um
turbilhão de dados” – “como um viciado em internet que perde a pista
de um e-mail importante diante de uma pilha crescente” (BAUMAN;
LYON, 2013, p. 100-101).

Diante disso, a guerra tecnoscópica traz meandros de espetáculo,


principalmente ao se assemelhar aos videogames, dado que muitos operadores de
drones hoje, na maioria jovens entre 18 e 25 anos, nasceram no ápice da geração
dos jogos eletrônicos, e alguns são, inclusive, nativos digitais; logo, estes perdem
qualquer vínculo afetivo e sensível com o conflito em si. Como as atrocidades não
são vivenciadas e tampouco “bem” vistas, as vítimas são meros pontos num mapa, e
os inocentes são “efeitos colaterais” de uma partida de “batalha naval” digital (na
verdade, “efeito colateral” é de fato o termo técnico usado pelo exército quando se
abate erroneamente um inocente).
Os operadores de drones, tais como vigias nas salas de controle de imagens
e de análise de dados do banóptico, deliciam-se com uma certa “escopofilia sádica”,
porque seus vigiados também se convertem em objetos fetichizados, por haver
“poder” sobre eles. Antes, a sensação de possuir a pessoa observada advinha de
uma mirada atenciosa, curiosa e fetichista, e mediante a impotência do observado,
que é visto sem poder ver. Agora, o “poder” se manifesta a partir do momento em
que o vigilante-espião decide quem é bom ou mau, quem pode ficar livre ou ser
preso e quem vive ou morre. A onividência tantas vezes relatada soma-se a uma
onipotência digna da ficção científica ainda onipresente nos sistemas sinópticos
(voyeuristas e exibicionistas) de comunicação e entretenimento – eis a tecnoscopia
divina e plena: onividente, onipotente e onipresente.
Para além dos drones, uma iminente guerra mundial cibernética se esboça há
algumas décadas, principalmente quando os governos de diversas potências
mundiais começaram a recrutar hackers para o serviço militar. O ciberespaço como
266

local depositário de informações que transcende, em tamanho, o próprio mundo real


é (como descrito anteriormente, em um possível mapa digital ainda maior que a
escala “um para um”) o terreno visado pela indústria bélica contemporânea. Desse
modo, a cibersegurança é aliada à cibervigilância banóptica.
Para Deleuze e Guattari (1997, p. 93), a guerra dos dias atuais é
inerentemente ligada ao capitalismo, pois gera capital mediante a demanda de
recursos de que necessita, ao passo que promove a dominação ou o esgotamento
econômico das nações “derrotadas”, com o:

[...] investimento do capital constante em material, indústria e


economia de guerra, e do investimento do capital variável em
população física e moral (que faz a guerra e ao mesmo tempo a
padece). Com efeito, a guerra total não só é uma guerra de
aniquilamento, mas surge quando o aniquilamento toma por “centro”
já não apenas o exército inimigo, nem o Estado inimigo, mas a
população inteira e sua economia. Que esse duplo investimento só
possa fazer-se nas condições prévias da guerra limitada mostra o
caráter irresistível da tendência capitalista em desenvolver a guerra
total.

Mesmo na guerra (ou principalmente nela), a tecnoscopia também atua como


motor do capitalismo contemporâneo. Para além da guerra de per si, mas no
contexto das “lutas de poder”, a vigilância banóptica é fundamental em todos e
quaisquer conflitos políticos pelo mundo. Um recente e importante exemplo disso é a
crise política enfrentada pelo Brasil desde 2014, a partir das inúmeras investigações
da Polícia Federal que, em sua maioria, foram realizadas via quebra de sigilo
telefônico, bancário e de dados digitais – ferramentas de espionagem banópticas por
excelência. Estas, somadas às inúmeras delações, foram responsáveis pela prisão
de políticos e empresários brasileiros, além de ter repercutido no próprio
impeachment da presidente Dilma Rousseff (1947-) em 2016. A constante vigilância
sobre os desdobramentos dessas operações ainda é noticiada diariamente e ocupa
grande parte da atenção da mídia nacional desde então.
“Ver” significa “ter poder” para controlar; e, para “ver”, o banóptico e o
panóptico tentam obrigar as pessoas a se “mostrarem”. No entanto, a necessidade
de constante obrigação cai por terra na atualidade, pois hoje isso se dá mais no
âmbito de um convencimento ou incentivo à “autoexibição”, ao “abrir as portas” de
seus lares. No caso do panóptico, o vigiado era convencido de que estava sempre
em vigilância e, por isso, se autorregulava. Enquanto isso, no banóptico, o vigiado se
267

obriga a deixar o vigia entrar em sua casa, pois sente muito medo das ameaças do
mundo e precisa de ajuda para combatê-las, ao passo que deve sempre convencer
o vigia de que ele próprio não é uma ameaça. E, no sinóptico, tratado a seguir, os
sujeitos abrem consensualmente as portas de suas casas em troca de conectividade
e visibilidade.

3.2.2 Sinóptico: Snowden e mídias sociais

Em junho de 2013, o ex-consultor da NSA, Edward Snowden (1983-),


divulgou milhares de documentos sigilosos do governo americano. De acordo com
eles, a partir da instituição do “Patriotic Act” em 2001, o governo dos Estados Unidos
iniciou uma vigilância intensiva sobre praticamente todas as comunicações
eletrônicas dos cidadãos americanos e estrangeiros, incluindo as comunicações dos
governantes de outros países.
A cineasta Laura Poitras (1964-) foi a primeira pessoa a quem Snowden
contatou para contar sua história. Ela gravou e compilou a confissão dele no
documentário “Citizenfour”, lançado em 2014 e que perturbou o mundo com a
quantidade de informações desconhecidas e que impactavam a todos, levando o
Oscar de melhor documentário daquele ano. Partes desse filme foram divulgadas
mesmo antes do lançamento, em 2013, ocasião em que o planeta conheceu a
estratégia de vigilância global do governo americano. O escândalo revelou que
diversos países, incluindo o Brasil, são vulneráveis em relação ao controle dos
aparatos e sistemas de comunicação mundiais realizado pelos governos das
grandes potências econômicas. Essa notícia chocou, inclusive, a presidência do
Brasil na ocasião, quando soube que comunicações e e-mails eram também
rastreados indiscriminadamente por outra nação. Assange (2013, p. 25) alerta que:

[...] o mundo deve se conscientizar da ameaça da vigilância para a


América Latina e para o antigo Terceiro Mundo. A vigilância não
constitui um problema apenas para a democracia e para a
governança, mas também representa um problema geopolítico. A
vigilância de uma população inteira por uma potência estrangeira
naturalmente ameaça a soberania. Intervenção após intervenção nas
questões da democracia latino-americana nos ensinaram a ser
realistas. Sabemos que as antigas potências colonialistas usarão
qualquer vantagem que tiverem para suprimir a independência latino-
americana.
268

Para esse autor, um aspecto que agrava o monitoramento das informações de


diversos países do mundo, incluindo a América Latina, se refere ao fato de que os
dados sempre passam pelo território dos Estados Unidos, pois são levados por
cabos transatlânticos de fibra óptica que atravessam aquele território e, por isso, a
interceptação das informações se torna mais fácil. Nas palavras de Coronato,
Barifouse e Rocha (2014, n.p.), entre os principais alvos “[...] da vigilância eletrônica
em massa estão países como China, Irã e Paquistão, onde os interesses políticos ou
comerciais americanos são óbvios. A lista também inclui nações como Alemanha,
Japão e Brasil”. Segundo eles, em apenas um mês, o governo americano consegue
coletar 97 bilhões de pedaços de informações entre registros de telefonemas, e-
mails, mensagens instantâneas, atualizações em redes sociais, imagens publicadas
online, entre outros. Oficialmente, esse governo afirma que coleta e analisa os
dados unicamente para buscar indícios de ameaças ao país (a retórica do
contraterrorismo) mas, como apontam os referidos autores, estão claros os outros
objetivos econômico-políticos envolvidos.
Em declaração oficial após o escândalo, representantes do governo dos
Estados Unidos frisaram que a vigilância se volta à “guerra ao terror” e à
manutenção da segurança naquele país. O que deveria ser unicamente uma
questão de vigilância banóptica está muito além dela, e a coleta de informações
nessa nova forma de vigilância ocorre de duas maneiras. A primeira delas:

[...] se chama Upstream – cujo sentido é buscar informação “rio


acima” ou “direto na fonte”. Ela envolve retirar dados diretamente das
redes de cabos e outros componentes da infraestrutura da internet.
Para isso, a NSA usa parcerias estratégicas com ao menos 80
empresas que operam satélites e redes de telecomunicações. Não
há limites para o alcance da espionagem. Tome-se uma única
empresa do grupo, a Global Crossing, operadora de cabos de fibra
óptica terrestres e submarinos e provedora de serviços de
telecomunicações em 60 países. A empresa interliga nada menos
que 690 cidades no mundo todo – entre elas, São Paulo, Rio de
Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Brasília, Porto Alegre, Salvador,
Recife, Fortaleza, Santos, Campinas, Sorocaba e Londrina. Em
junho, o jornal britânico The Guardian mostrou que outra empresa do
grupo, a operadora de telefonia Verizon, uma das maiores dos
Estados Unidos, fornece regularmente dados à NSA. De acordo com
uma das versões correntes sobre o funcionamento do sistema
Upstream, um cabo de fibra óptica liga o centro de operações da
Verizon diretamente a uma base militar em Quantico, na Virgínia.
Ainda segundo uma das versões, outra companhia de telefonia, a
AT&T, tem um espaço reservado numa estação em San Francisco
para espiões trabalharem. Lá, a NSA pode armazenar as ligações
269

nacionais e internacionais que deseje (CORONATO; BARIFOUSE;


ROCHA, 2014, n.p.).

No entanto, a segunda forma de vigilância é a mais preocupante, e o


responsável por isso é um “supersistema” de vigilância criado pela NSA e chamado
de PRISM:

PRISM é o codinome do programa ultrassecreto de vigilância que a


Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos mantém desde
2007 para obter informações sobre alvos específicos e vigiar a
comunicação em tempo real, ou seja, ao vivo, enquanto acontece. O
PRISM seria capaz de fornecer à agência e-mails, conversas em
áudio e vídeo, vídeos, fotos, conversas usando tecnologia de voz
sobre IP (Internet Protocol), arquivos transferidos, informações sobre
logins e outros dados de redes sociais, além de registros de ligações
telefônicas (STREKER, 2013, p. 49).

O PRISM funciona a partir da cooperação entre a NSA e as grandes


empresas de serviços digitais – Google, Microsoft, Yahoo, Facebook, PalTalk, AOL,
Skype, YouTube e Apple –, que operam praticamente no mundo todo e dão hoje uma
face tangível e mais poderosa à figura do “Big Brother” de Orwell. O presidente dos
Estados Unidos na ocasião, Barack Obama, declarou que “[...] não é possível ter
100% de segurança e, ao mesmo tempo, ter 100% de privacidade e nenhuma
inconveniência” (CORONATO; BARIFOUSE; ROCHA, 2014, n.p.). Mas, segundo
Snowden (2014 apud GEDIMAN, 2017, p. 5):

[...] disturbingly, the amount of US communication ingested by NSA is


still increasing. Publicly, we complain that things are going dark, but in
fact, our accesses are improving. The truth is that the NSA has never
in its history collected more than it does now. I know the location of
most domestic interception points and that the largest
telecommunication companies in the US are betraying the trust of
their customers, which I can prove. We are building the greatest
weapon of oppression in the history of man.

Ele aborda a vigilância global como uma grande “arma de opressão”. De fato,
a coleta de informações via cabos e o PRISM podem ser consideradas banópticas,
pois advêm da insegurança global e opera na exclusão e vigília de alvos vistos como
ameaçadores e também no controle dos indivíduos “incluídos”. No entanto, esse tipo
de vigilância ultrapassa o próprio banóptico, usando-o como retórica na maioria das
vezes. O “supersistema” PRISM, em especial, revela um recente e poderoso novo
tipo de panoptismo digital, uma vigilância tecnoscópica que utiliza “genialmente” os
270

outros dois vértices do triângulo escópico, o voyeurismo e o exibicionismo, para se


instaurar em âmbito global: o sinóptico. Mathiesen (1997, 219) propôs o termo
sinóptico ao final da década de 1990, no início da revolução da web 2.0, para tratar
de um novo tipo de vigilância em curso no qual muitos vigiam poucos, valendo-se
dos sistemas digitais para isso:

[...] is composed of the Greek word syn which stands for ‘together’ or
‘at the same time’, and opticon, which, again, has to do with the
visual. It may be used to represent the situation where a large
number focuses on something in common which is condensed. In
other words, it may stand for the opposite of the situation where the
few see the many. In a two-way and significant double sense of the
word, we thus live in a viewer society. As I have said, the panoptical
and the synoptical structures show several conspicuous parallels in
development, and they together, precisely together, serve decisive
control functions in modem society.

Como visto, Mathiesen (1997) uniu a palavra grega syn (juntos) com o termo
óptico sempre utilizado nos sistemas de vigílias pós-panópticos. Essa “vigilância em
conjunto” é dada à medida que uma série de empresas e governos com interesses
diversos podem se concentrar especificamente no cidadão comum. Para Bruno
(2013, p. 46), sinóptico é “um modelo invertido do panóptico (onde poucos vigiam
muitos) que renova a face política, estética e tecnológica do antigo espetáculo das
sociedades de soberania. Como sabemos, as sociedades disciplinares invertem o
foco de visibilidade no exercício do poder”.
De acordo com Lyon (2015), pelo menos três dimensões da vigilância global
se evidenciaram após 2013: 1. Os governos realizam uma vigilância de massa com
os próprios cidadãos, ferindo a democracia básica; 2. As empresas compartilham
bancos de dados com o governo, visando benefício mútuo, pois aquelas procuram
contratos governamentais, e estes, acesso a dados; 3. Os cidadãos comuns, em
grande parte de suas atividades online, sem necessariamente estarem cientes disso,
disponibilizam informações para a NSA e outras agências diariamente.
Ao utilizar as tecnologias em rede contemporâneas, a privacidade está à
mercê de um grupo heterogêneo de indivíduos com objetivos vigilantes corporativos:
equipe técnica e de gestão dos programas, empresas de tecnologia que gerenciam
o software e seus parceiros comerciais que “compram” informações dos usuários
para alimentar o banco de dados de marketing direcionado, além dos próprios
governos. Em contrapartida, enquanto o sujeito comum está em evidência, os jogos
271

e esquemas governamentais e empresariais ficam cada vez mais nublados, como


frisa Lyon (2015, p. 12): “[...] organizations today make our lives more and more
transparent, while at the same time their own activities become more difficult to
uncover”.
Os sistemas interativo-digitais, sobretudo dos dispositivos móveis
contemporâneos, estão repletos de ferramentas de rastreamento. Uma das questões
mais curiosas aqui é que muitas delas estão explícitas no uso cotidiano do próprio
app, mas o público em geral parece não se preocupar com o fato de estar sob
constante vigília.
Percebe-se que os novos dispositivos tecnológicos móveis como
smartphones, tablets e GPSs ocultam uma condição de opressão e controle
disfarçada de liberdade. Mesmo diante da mobilidade das “mídias locativas” 58, a
cultura móvel requer “[...] disponibilidade 24 horas por dia, sete dias por semana,
365 dias por ano ali mesmo, no telefone ou endereço IP. [...] Além das tecnologias
GPS geração 2000, que permitem que o indivíduo móvel seja rastreado” (LICHTY,
2010, p. 42). Ou seja, mesmo em movimento, o sujeito estará sempre preso ao seu
dispositivo, passível de rastreamento e localização. Para Hemment (2010), o
controle se deslocou dos instrumentos tradicionais de poder do Estado e se tornou
intrínseco à sociedade de consumo.
Na cultura móvel e sem fio, Bambozzi, Bastos e Minelli (2010) apontam que, a
partir do momento em que as redes ganharam capilaridade, elas se tornaram
potencialmente mais distribuídas e tiveram o alcance multiplicado. Isso implica em
formas alternativas de produzir e circular textos, imagens e sons, coexistindo com
métodos de vigilância cada vez mais intrusivos e invasivos:

Um dos principais debates, nesse âmbito, diz respeito ao surgimento


de formas de rastreamento e vigilância cada vez mais sofisticadas.
Em vez de tecnologias antipáticas, como as câmeras de circuito
interno e os radares dos anos 1980, o rastreamento de informações
se dá, atualmente, por meio de aparelhos “amigáveis‟, ou em
processos prosaicos, como na assinatura de um determinado serviço
online ou na compra de um livro ou CD com etiqueta RFID
(BAMBOZZI; BASTOS; MINELLI, 2010, p. 30).

58 Conforme Hemment (2010), o termo mídias locativas é novo e pode ser contestado energicamente.
Para ele, uma interpretação mais solta se dá em dois sentidos: em relação ao “conjunto de
dispositivos e aparelhos disponíveis”, que permitem a mobilidade da informação; e ao ”movimento
tecnológico, social e artístico” conhecido por esse nome.
272

Mark Zuckerberg, criador da rede social Facebook, declarou em uma recente


entrevista que “[...] atualmente a norma social vigente na rede é a da publicidade e
não a da privacidade” (BRUNO, 2013, p. 128) – o que está claro nos dias atuais. Na
vigilância sinóptica, a preocupação com a privacidade não é mais um compromisso
ético, moral e social como foi outrora; hoje, a norma é “ver” e “ser visto” da melhor
forma possível. Por isso, o sinóptico fecha derradeiramente o triângulo tecnoscópico,
pois, mais explicitamente que os outros modelos de vigilância, este é
intrinsecamente dependente do voyeurismo e do exibicionismo tecnológicos em
rede.
O Wall Street Journal, em 2010, revelou que sites da internet se valem de
diversos rastreadores para coletar dados dos usuários. No âmbito de um
“rastreamento sinóptico” intermitente, há dois tipos de ações que instauraram essa
esfera da vigilância. O primeiro seria mais explícito, num contexto exibicionista
tecnoscópico, em que as informações divulgadas pelos próprios usuários da web
nutrem os sistemas de vigilância. Mas há uma forma implícita e mais potente, na
qual a vigilância ocorre muitas vezes sem o conhecimento e o consentimento do
usuário – este deixa vestígios quando navega pela a internet, os quais são
capturados por ferramentas de rastreamento, sendo as mais conhecidas os cookies
e beacons59 .
Com os cookies e beacons, o rastreamento digital acontece ininterruptamente
e se vale de tecnologias simples, cotidianas e legais (ao contrário do “supersoftware”
PRISM), nas quais se destacam a dataveillance (vigilância de dados), o data mining
(mineração de dados) e o profiling (perfilagem), “[...] que monitoram e classificam
tais dados, construindo saberes que sustentam uma vigilância proativa sobre
indivíduos e populações” (BRUNO, 2013, p. 127).
Tal questão é agravada com as atuais tecnologias “na nuvem”, que permitem
o compartilhamento de dados entre vários dispositivos de maneira mais fácil e
rápida, além de salvar ou realizar backups em servidores remotos (computadores de
grandes empresas como Apple, Microsoft, Adobe, Amazon, entre outros). Isso facilita
a gestão das informações pelo usuário, uma vez que torna possível o acesso a elas

59 Cookies e web beacons são as duas tecnologias de rastreamento mais comumente usadas na
internet atualmente. Os cookies são arquivos armazenados no navegador web enquanto se navega
pela rede mundial, que contêm os metadados da navegação e podem ser visualizados a posteriori.
Por sua vez, os web beacons são objetos invisíveis e inclusos em uma página da web que permitem
o rastreamento do que o usuário faz em tempo real.
273

onde a pessoa estiver, além de liberar espaço digital em HD (disco rígido). Em


contrapartida, “[...] no lugar de o usuário ter o controle total sobre seus dados,
alguém detém esse controle” (ASSANGE, 2013, p. 120). Mais uma vez, explicita-se
aqui o sinóptico contemporâneo, que se faz presente mesmo sem o uso dos
“supersoftwares” da NSA. Na verdade, o sinóptico atual faz com que a vigilância
esteja mais ampla do que nunca, no entanto, o rastreamento online sempre
aconteceu, desde o princípio da internet, fazendo com que os discursos sobre
liberdade e privacidade na rede sejam simples retóricas infundadas.
Mas, para a maioria da população de hoje, tal fato parece não importar,
mesmo após o escândalo revelado por Snowden. O cidadão comum se acha pouco
importante para merecer uma vigilância direcionada a ele; todavia, mal sabe que a
vigilância perfeita não é individual, mas massiva. Nesse ponto, ele contribui para o
sucesso do sinóptico, inclusive por não se importar em “abrir as portas” de sua
privacidade “sem importância”.
Bauman e Lyon (2013) afirmam que o sinóptico é uma espécie de “panóptico
faça você mesmo”, a partir de uma lógica exibicionista em que dados e imagens
pessoais são compartilhados para todos os voyeurs-vigilantes de plantão. No
panóptico, a vigília se dá no âmbito arquitetônico, pois até mesmo a videovigilância
necessita da arquitetura para dispor suas câmeras. Já o banóptico é mais intrusivo,
pois dispõe de diversas ferramentas eletrônicas para conseguir as informações de
que necessita: drones, escutas, sistemas biométricos, GPSs, interceptação de
dados, hacks etc. Enquanto isso, na lógica sinóptica, os próprios usuários entregam
informações e alimentam sistemas digitais por conta própria, fornecendo aos
serviços da internet dados pessoais, fotos, vídeos, áudios e localização, em troca da
promessa de intermitente conectividade e visibilidade.
A lógica sinóptica foi desenvolvida por Mathiesen (1997) antes do boom da
web 2.0. Ele previu um tipo de vigilância que estava em ascensão, num mundo que
caminhava para a instauração de um ciberespaço indissociável do mundo real. O
sinóptico encontrou, nas mídias sociais e nos demais sistemas laissez-faire da
democrática web 2.0, o local ideal para atuação, onde usuários foram seduzidos
pela promessa de serem codesenvolvedores, o bastante para abdicarem de sua
privacidade.
274

Nesses termos, a web 2.0 foi a ferramenta ideal para incentivar o


exibicionismo em rede, pois agora era fácil “demarcar o território online” e começar a
“existir digitalmente”, criando um duplo cibernético das vidas humanas no
ciberespaço, visto como de per si exibicionista. As vigilâncias banópticas e
sinópticas necessitam de tal exibicionismo e da codependência tecnoscópica dada
pela web 2.0, o que alimenta os bancos para a coleta de dados vigilantes.
Nesse ponto da discussão, conclama-se o fechamento derradeiro do triângulo
tecnoscópico. Como já abordado, o voyeurismo interativo depende do exibicionismo
em rede e vice-versa. O olhar vigilante sempre traz uma carga de voyeurismo,
principalmente nos dias atuais, em que a linha que separa ambos é muito tênue;
porém, na realidade sinóptica contemporânea, a vigilância é quase refém do
exibicionismo: é a partir deste que aquela consegue atuar de modo eficaz,
instaurando um estado de vigilância total. Ou seja, o exibicionismo em rede,
principalmente nas recentes mídias sociais, é o combustível motor do sinóptico e do
banóptico, mas a diferença reside no fato de o banóptico também operar por outros
meios que não precisam 100% do exibicionismo digital, enquanto o sinóptico se faz
presente se houver o exibicionismo.
Certamente, no entanto, o sinóptico é muito mais eficaz do que o banóptico. O
exibicionismo digital promete visibilidade, fama e eterna conectividade, e,
voluntariamente – ou melhor, “ignorantemente” –, os usuários cedem a chave de
suas casas, a visão de suas janelas, o acesso a seus “espíritos”. A vigilância
sinóptica corporativa se aproveita dessa “abertura das portas” consensual e espreita
da melhor forma possível: corporações e governos espiam o usuário o tempo todo e
conseguem o controle político-econômico mundial ao se apropriarem da vida comum
e banal.
O escândalo do caso Snowden mostrou isso perfeitamente. Hoje, poucos
acreditam que os provedores de serviços na internet cumprem as políticas de
privacidade, principalmente quando se trata de redes sociais que funcionam
prioritariamente a partir dos dados íntimos dos usuários. Ainda assim, apenas
aqueles mais ativistas operam contra a maré da visibilidade e desligam seus
aparelhos tecnoscópicos.
A necessidade de “ver” e “ser visto” é importante demais para ser sacrificada.
Quando revelado que Google, Microsoft, Yahoo, Facebook, PalTalk, AOL, Skype,
275

YouTube e Apple eram colaboradores do governo americano e entregavam todos os


dados a ele, sem nenhum mandato judicial, o escândalo apenas constatou a
desconfiança de autores e ativistas que tratavam sobre a vigilância totalitária. Já
eram especulados casos em que a política de privacidade desses serviços falhava
ao “vender” informações dos usuários para empresas comerciais, a fim de elaborar
campanhas relacionadas ao marketing, como o atual marketing direcionado ao big
data. Big data é uma ferramenta muito importante para este final de discussão. Em
síntese, ele diz respeito aos complexos conjuntos de dados de usuários que são
armazenados nos bancos dos grandes servidores. O desafio dos programadores
encarregados de entender o big data concerne à criação de programas e sistemas
capazes de analisar os conjuntos de dados para criar correlações e padrões com
benefício a diversos setores que tenham interesse em seu uso, principalmente no
que se refere ao já dito marketing direcionado. Alguns autores, como Lyon (2015, p.
45), chegam a tratar de uma nova vigilância big data – sinóptica por natureza:

That is, some uses of big data may actually make some people more
vulnerable, and “big data surveillance” is just one such area. In
practice, big data has a close association with Big Brother – or rather
his twenty-first century digital descendants. The question before us is
how far big data intensifies certain surveillance trends associated with
information technologies and networks and is thus concerned with
emerging configurations of power and influence that are revealed,
especially post-Snowden.

O big data é um dos grandes responsáveis pela instauração do sinóptico e


pelo fechamento da aqui proposta tecnoscopia. Descritos por Snowden, os
“supersoftwares” são inerentemente avançadas ferramentas de análise big data, a
exemplo do PRISM e do Upstream, programas de recolhimento que alimentam um
banco de dados da NSA (e criam um “hiper big data”) a partir das informações das
empresas parceiras. Outros softwares também delatados por Snowden, como o
XKeyscore e o Tempora, permitem acesso extremamente prático e rápido às
informações de qualquer pessoa no mundo – e eles já atuam no âmbito da análise e
padronização de dados. De posse disso, basta um vigilante procurar por uma
pessoa em específico em qualquer lugar do mundo para ter acesso rápido a um
compilado de e-mails, conversas em chats, fotos, vídeos, senhas, extrato bancário,
cartões de crédito, histórico de buscas e compras online, entre outros, além de
milhares de metadados que descrevem toda a vida digital-social da pessoa no
276

tempo em que ela esteve conectada, em que há, inclusive, a descrição de todo o
percurso da pessoa durante o dia, caso ela utilize sistemas de GPS no telefone
celular. Ainda esboçam perfis pessoais, padrões de comportamento e expectativas
preditivas psicossociais que aproximam esse tipo de vigilância do já tratado
banóptico. O perigo maior do sinóptico tecnoscópico se refere ao fato de os perfis
pessoais poderem dizer mais sobre o sujeito do que aquilo que ele próprio pensa
saber sobre si.
Em suma, a única forma de conter a vigilância totalitária contemporânea seria
não utilizar os dispositivos eletrônicos. Para minimizar o problema, uma saída
paliativa seria a diminuição da quantidade de informações publicadas na internet, ou
seja, minimizar o ímpeto exibicionista. É fato que isso está longe de acontecer: o
exibicionismo nutre o voyeurismo, e o voyeurismo tecnoscópico dá a sensação de
onividência e onipresença, tornando difícil para uma pessoa comum abandonar
aquilo que dá a ela o status de Deus.
Ao mesmo tempo em que um sujeito vê o outro, ele é visto por mais pessoas
do que aquelas que ele acredita que estão o vendo, como fora mencionado no início
da tese. Esta afirmativa deve ser retomada aqui, pois o estado de “ser visto ao
passo que se vê” ganha uma nova amplitude epistêmica, quando analisada após o
entendimento de todo o triângulo tecnoscópico.
Espera-se que o leitor, neste ponto, esteja apto a tecer as próprias
considerações sobre essa tríade tão complexa, ampla e ainda em expansão. Parte
dos importantes tratamentos críticos e ativistas acerca do caráter vigilante da
tecnoscopia na contemporaneidade é tomada no âmbito artístico e cultural, como
será analisado a seguir.

3.3 Imagens de vigília e arte engajada

Diante das poéticas artísticas relatadas até o momento no campo do


tratamento crítico de questões referentes aos dois outros vértices da tecnoscopia, as
produções sobre a recente vigilância global se destacam em quantidade e
apresentam um viés mais engajado e político do que as obras anteriores – isso se
deve, claramente, às características da própria vigilância, em comparação com o
voyeurismo e o exibicionismo. Enquanto os últimos se inserem em contextos mais
277

subjetivos e psicossociais, a primeira possui um caráter mais político de per si, além
de suscitar uma ameaça constante às noções de liberdade e democracia tão
importantes para os artistas. Nesse caso, poéticas visuais engajadas,
conceitualmente críticas e ativistas são comuns no âmbito de uma “arte-vigilante”
que, na verdade, possui como um dos principais objetivos poéticos ativar o olhar dos
vigiados e fazê-los refletir sobre contemporaneidade e futuro.
É claro que algumas obras são menos engajadas do que outras e, dentre
estas, algumas ainda possuem alto comprometimento estético. Mas, na maioria, vê-
se uma exaltação da crítica social-política em detrimento das características formais
próprias das artes visuais. Pareyson (2001, p. 39), há quase duas décadas, relatava
que:

[...] há uma arte que quer ser empenhada, militante, engagé, que
quer enfrentar os problemas vitais de seu tempo, que quer difundir
uma determinada concepção religiosa, política, social; e há uma arte
que quer ser pura forma, decoração, arabesco, que só visa à poesia
pura e à arte pela arte.

Tal dicotomia entre as artes militantes e aquelas com princípio e finalidade


puramente formais ainda está presente na atualidade. Na verdade, as poéticas
visuais significativas do ponto de vista artístico de per si propõem um misto entre os
dois âmbitos. No que tange às poéticas tecnoscópicas que se aproximam mais dos
vieses voyeuristas e exibicionistas da tecnoscopia, isso é mais claro, pois, em
ambos os casos, a estética e as questões imagéticas são importantes para a própria
crítica a que se propõe – estão em evidência o “ver” e o “ser visto” nas imagens que
devem ser voyeuristas e exibicionistas para criticarem esses aspectos.
Pareyson (2001, p. 41) critica as artes sumariamente militantes e engajadas,
uma vez que tendem a se perder em sua própria crítica em detrimento da arte em si:

Poesia de evasão e arte militante, de fato, só se incluem na arte se


participam desta sua natureza dupla, pela qual o puro jogo e o voo
da fantasia não são nunca tão destacados de forma a não arrastar
consigo todo um mundo espiritual e um posicionamento concreto em
face da vida, e o propósito militante não é bem-sucedido no seu
intento a menos que seja seguido por uma via puramente artística.

Várias poéticas contemporâneas ativistas se perdem do próprio ativismo, uma


vez que são produtos culturais panfletários que fariam mais sentido se fossem
278

levados e exibidos em manifestações do que em galerias de arte. No entanto,


diversos artistas contemporâneos conseguiram “militar” sem perder as
características próprias da criação artística – alguns deles serão analisados a
posteriori. A escolha pelos artistas elencados neste capítulo se tornou ainda mais
difícil do que nos capítulos anteriores, pois, como dito no início deste item, é grande
a quantidade de obras que propõem discussões sobre vigilância, e esse número
aumenta a cada dia. Qual a explicação para isso?
Esse é um problema social do tempo presente, e arte é um espelho do seu
tempo. Nota-se que o voyeurismo e o exibicionismo também são questões sociais
que merecem tratamento, e isso ocorre de fato, como visto. Assim, a vigilância é o
grande mote de crítica, sobretudo em face dos últimos escândalos, e os artistas que
dela tratam tendem a tratar também, intuitivo ou deliberadamente, dos dois outros
vértices tecnoscópicos.
Nas produções artísticas e nos demais produtos culturais que abordaram do
voyeurismo e do exibicionismo nos capítulos anteriores, os dois vértices nunca
vinham sozinhos. Mesmo seguindo uma ordem didática de escrita que apresentou
cada um deles separadamente, há meandros de exibicionismo nas produções
voyeuristas e vice-versa. Inclusive, há determinadas características de vigilância na
maioria delas, principalmente nas mais recentes, que emergem de uma cultura
tecnoscópica em que os três conceitos são quase indissociáveis. Sendo assim, na
maioria das poéticas realizadas tendo a vigilância como tema principal, questões
sobre voyeurismo e exibicionismo são evidentes. São raras, senão inexistentes, as
produções contemporâneas que tratam da vigilância e que não tenham relação
nenhuma com o voyeurismo e o exibicionismo.
Esta tese tentou seguir uma escala sequencial: no Capítulo 1, algumas obras
tratavam de um “voyeurismo puro”, enquanto outras já ressaltavam questões
exibicionistas (antecipando a discussão posterior), sobretudo as que abordavam o
voyeurismo interativo. No Capítulo 2, todas as obras exibicionistas podem se
relacionar diretamente com o voyeurismo, mesmo que se refira apenas à pessoa (ao
artista) que se exibe. No entanto, no Capítulo 3, todas são tecnoscopistas por
completo. Isso não se trata apenas de escolha metodológica, pois, mesmo que a
ordem dos capítulos se invertesse, tal situação continuaria, o que reforça a ideia de
que a vigilância é o item que fecha a tecnoscopia.
279

A seguir serão elencadas algumas significativas obras. No entanto, a


distribuição terá diferenças com relação aos capítulos anteriores. Acredita-se que,
pelo fato de os produtos culturais que enfoquem a vigilância possuírem, em sua
maioria, um caráter mais engajado, deu-se preferência àqueles próprios das artes
visuais e a determinadas produções cinematográficas, em detrimento daquelas que
tenham um caráter mais comercial e de entretenimento.
Em contraposição aos capítulos anteriores, este não separará as obras de
acordo com suas linguagens de produção: antecedentes, fotografia e audiovisual.
Acredita-se ser mais interessante apresentá-las em dois grupos: As primeiras serão
as propostas poéticas “menos engajadas”, que trazem reflexões sobre a vigilância
tecnoscópica em um campo mais amplo e tecnoscópico. No item posterior serão
analisadas as poéticas feitas como ativistas de per si (inclusive algumas realizadas
por artistas-ativistas), ou seja, se embasam numa crítica social e na potencialidade
de estimular a transformação política global.

3.3.1 Arte e vigilância

A vigilância como temática nas produções artísticas é algo relativamente


recente, relacionada ao período da democratização das primeiras câmeras de vídeo
nos anos 1960, e que ganhou grande força com a proliferação das câmeras de
segurança na década de 1980. No entanto, a pintura “Os Sete Pecados
Capitais” (Figura 77), de 1480, elaborada pelo artista do renascimento holandês
Hieronymus Bosch (1450-1516), já tentava representar imageticamente a
intermitente vigilância divina através do “olho punitivo” de um Deus onipotente,
onipresente e onisciente, sempre vigiando seus servos pecaminosos.
Assim como outras obras de Bosch, esta objetiva transmitir os dogmas
cristãos de maneira didática e impactante. Nesse caso, a mensagem é clara: Jesus
Cristo, ao centro da grande circunferência, vigia os seres que ocupam sete
partições, cada qual voltada a um dos pecados capitais: gula, avareza, luxúria, ira,
inveja, preguiça e soberba. O grande círculo central remete a um olho, no qual Cristo
ocupa o lugar da pupila, e os pecadores, da íris. Logo abaixo de Cristo há uma frase
em latim que diz: “Cuidado, cuidado, Deus vê!”. Nos quatro cantos do painel há
pequenos círculos que trazem cenas com a representação da morte, do juízo final,
280

do inferno e da glória, pois o destino de cada um será selado de acordo com o


pecado cometido no círculo central. Em outra comparação, a obra apresenta
coincidentes relações com o croqui do diagrama do panóptico de Jeremy Bentham
(apresentado na introdução do item 3.2 desta tese). Assim, Deus (Jesus Cristo)
estaria no lugar do vigia na torre central, e os pecadores em diferentes celas,
dedicadas ao seu pecado mortal. Não há indícios de que Bentham tenha buscado
inspirações nessa obra para seu panóptico, mas convém analisar como ambos os
produtos de épocas distintas e que tratam da vigilância possuem referências ao olho
– o dispositivo vigilante original de per si.

!
Figura 77. “Os Sete Pecados Capitais”, de Hieronymus Bosch. Pintura a óleo sobre tela. 1480. Fonte:
<http://khristianos.blogspot.com.br/2015/11/os-sete-pecados-capitais.html>. Acesso em 21/04/2015.

São raras as obras pictóricas anteriores ao século XX, até mesmo em outras
linguagens, que se refiram explicitamente a um tipo de vigilância. Em sua maioria, as
possíveis representações de vigília são carregadas de uma carga maior de
voyeurismo, as quais já foram elencadas e analisadas nesta tese. No âmbito das
“imagens maquínicas”, as poéticas e os produtos culturais que se relacionam de
281

modo direto à vigilância se valem, sobretudo, da linguagem audiovisual, mas há


significativas produções fotográficas e algumas até pictóricas, a partir de um viés
híbrido entre pintura e “imagens maquínicas”.
No audiovisual, o cinema permitiu reflexões contemporâneas sobre a temática
da vigilância, principalmente dela no âmbito da tecnoscopia. O filme mais importante
nesse contexto é o já apresentado “Citizenfour” (Figura 78), de 2014, com direção de
Laura Poitras, sendo o primeiro registro das revelações de Edward Snowden,
conforme a análise no item 3.2.2.

!
Figura 78. “Citizenfour”, de Laura Poitras. Cartaz do filme em longa-metragem. 2014. Fonte: <http://
www.tvi24.iol.pt/cinema/cinebox/filme-sobre-edward-snowden-estreia-em-portugal>. Acesso em
15/07/2017.

Esse documentário possui grande relevância para a vigilância de per si,


sobretudo em um âmbito mais engajado, pois, a partir dele, se desdobrou uma
guinada histórica relativa ao conhecimento da “máquina sinóptica” e a constatação
para esta pesquisa de que a tecnoscopia rege um sistema de poder mundial. As
obras mais engajadas e ativistas serão analisadas no próximo item, mas se pode
282

citar o “Citizenfour” aqui apenas a título de introdução às produções que tratam da


vigilância. Ainda sobre Snowden, o cineasta americano Oliver Stone (1946-),
conhecido por produções de crítica política, dirigiu o filme “Snowden” (no Brasil,
“Snowden: Herói ou Traidor”), lançado em 2016 e que conta a história desse delator,
apresentando como se deu a gravação do documentário de Laura Poitras.
Outros filmes também já citados e que são primordiais para o entendimento
da vigilância contemporânea concernem às versões cinematográficas do profético
livro de George Orwell “1984”, dirigidas por Michael Anderson em 1956 e Michael
Radford em 1984; e “Minority Report”, sob a direção de Steven Spielberg em 2002 e
baseado em um também profético conto banóptico homônimo de Philip K. Dick.
Além destes, outros longas-metragens possuem tratamentos críticos sobre a
vigilância, como: “Die tausend Augen des Dr. Mabuse” (“Os Mil Olhos do Dr.
Mabuse”), de 1960; “The Conversation” (“A Conversação”), de 1974; “Blade
Runner” (“O Caçador de Androides”), de 1982; “Brazil”, de 1985; “Sliver” (“Invasão de
Privacidade”), de 1993; “Enemy of the State” (“Inimigo do Estado”), de 1998;
“Gattaca”, de 1997; “Time Code”, de 2000; “Caché”, de 2005; “Das Leben der
Anderen” (“A Vida dos Outros”), de 2006; “Eagle Eye” (“Controle Absoluto”), de 2008;
“Closed Circuit” (“Circuito Fechado”), de 2013; “Eye In The Sky” (“Decisão de
Risco”), de 2016; e “The Circle” (“O Círculo”), de 2017, entre outros.
Toma-se a liberdade de apenas citar tais filmes, sob o risco de o
detalhamento deles sobrecarregar o presente item. Todos são importantes do ponto
de vista da discussão das diferentes formas de vigilância, inclusive os mais antigos,
que já apontavam para um futuro incerto. Constata-se, porquanto, que a maioria dos
filmes listados datam dos últimos 20 anos, o que comprova que a vigilância no
cinema é uma tendência temática ainda em evidência.
Nas artes visuais, desde o uso das primeiras ferramentas audiovisuais para a
produção poética, a vigilância se apresentava como temática para a abordagem
crítica. Bruce Nauman (1941-) é um dos pioneiros da videoarte mundial e, em 1968,
apresentou a instalação “Video Corridor” (Figura 79), para a qual criou um recinto
claustrofóbico formado por duas paredes em túnel, com monitores nas extremidades
que transmitiam imagens feitas ao vivo, em closed circuit (circuito fechado), do
deslocamento do observador no local. Nesse trabalho, quanto mais próximo o
observador chega do monitor, mais distante está da câmera que capta sua imagem.
283

O resultado coloca a questão da visibilidade de si mesmo num sistema fechado de


vídeo, tecnologia que se esboçava à época como o futuro das técnicas de vigilância
(RUSH, 2006).

!
Figura 79. “Video Corridor”, de Bruce Nauman. Videoinstalação. 1968. Fonte: <http://
www.ilmuromag.it/wp-content/uploads/2013/05/tumblr_li9auz0LTp1qfaen4o1_500.jpg>. Acesso em
07/03/2015.

O videoartista Peter Campus (1937-) também foi um dos primeiros a trabalhar


com “sistemas de circuito fechado” em vídeo. Em suas primeiras produções, não há
“[...] imagem prévia (pré-gravada), apenas um circuito, autêntica armadilha
perceptiva, fazendo girar como um pião o ‘real’ (o aqui-agora, o Sujeito) e seu duplo
em imagem” (DUBOIS, 2004, p. 100).
Na obra “Men” (Figura 80), de 1975, Campus coloca o e(x)spectador como
ator, ao entrar no campo da câmera, em uma posição difícil de ser captado, e poder
ver sua própria imagem ao mesmo tempo, pois ela, com o campo de visão restrito, é
disposta muito perto da tela, de modo que se o espectador que quiser entrar no
campo deve quase se colar ao muro. Nessa obra, o voyeurismo se frustra, dado que
o sujeito percebe logo que o único bom lugar para o olhar é de fato do outro lado da
284

sala, fora do campo da câmera e da projeção, à distância. “Só o ‘outro’ tem o direito
de olhar para o ator que não pode mais ser espectador” (DUBOIS, 2004, p. 100).

!
Figura 80. “Men”, de Perter Campus. Videoinstalação. 1975. Fonte: <http://www.jeudepaume.org/
imagesZoom/PeterCampus_06.jpg>. Acesso em 19/03/2017.

Em 1982, o artista tcheco radicado em Berlim, Michael Klier (1943-), realizou


a obra videográfica “Der Riese”, para a qual ele conseguiu acesso às salas de
controle de sistemas de vigilância espalhadas pela Alemanha (Figura 81) e editou
uma colagem de cenas aleatórias obtidas pelos “olhos mecânicos espiões”, de modo
a configurar, nas palavras do próprio realizador, “o momento em que o ordinário e o
banal do funcionamento desses sistemas transfiguram-se em imagens assombrosas
de um pesadelo” (KLIER; MICHAEL, 1987, p. 29 apud MACHADO, 1996, p. 221).
Para a produção, o artista utilizou:

[...] registros do dispositivo de controle de trânsito de Hamburgo, do


sistema de vigilância de uma empresa de carros blindados para o
transporte de numerário em Frankfurt, ou de uma loja de
departamentos em Berlim, ou ainda de um peep show na mesma
localidade, além do aparato de segurança de uma parada militar no
lado oriental da cidade, tudo isso é alinhavado com outras imagens,
mais emblemáticas ou de função coercitiva menos evidente, como
aquelas sintetizadas numa máquina de retrato falado da polícia de
Dusseldorf, num simulador de pilotagem de tanque de guerra em
Ulm, ou obtidas de uma câmera oculta numa sessão de psiquiatria
285

legista e até mesmo de dispositivos de penetração em nosso mundo


interior, como os gráficos de eletroencefalograma (MACHADO, 1996,
p. 221).

!
Figura 81. “Der Riese”, de Michael Klier. Frame de filme em longa-metragem. 1983. Fonte: <http://
www.tvspielfilm.de/kino/filmarchiv/film/der-riese,1327770,ApplicationMovie.html>. Acesso em
17/10/2015.

Sophie Calle, também possui trabalhos na temática da vigilância – fechando


assim sua atuação no âmbito da tecnoscopia aqui proposta, lembrando que seus
trabalhos com o voyeurismo e o exibicionismo já foram analisados. Em “La
Filature” (Figura 82), de 1981, a artista pede que a mãe dela contrate um detetive
particular para segui-la 24 horas por dia durante um mês, sem saber quando a
perseguição estaria acontecendo. A partir desse pedido, a artista toma posse do
material produzido pelo detetive, composto por uma série de documentos,
fotografias e anotações de todos os seus passos, que a flagram em muitas ocasiões
que não imaginava que estava sendo fotografada. A artista se apropria da figura
contemporânea e romantizada do detetive, para falar novamente sobre as questões
do que é público e privado – aqui, ela vigia a si mesma numa atividade que também
perpassa questões voyeuristas e exibicionistas, mas com maior peso nas questões
sobre vigilância.
286

!
Figura 82. “La Filature”, de Sophie Calle. Série fotográfica e textos. 1981. Fonte: <http://www.revue-
textimage.com/02_varia/photos/ulmeanu/ulmeanu_04.jpg>. Acesso em 25/09/2014.

No dia 1º de janeiro de 1984, o videoartista sul-coreano Nam June Paik


(1932-2006), também em referência ao livro “1984”, apresentou “Good Morning, Mr.
Orwell“ (Figura 83). Foi a primeira obra de videoarte transmitida ao vivo
internacionalmente via satélite, para um público de cerca de 25 milhões de pessoas
nos EUA, na França, na Alemanha, no Canadá e na Coreia. Com 38 minutos de
duração, o vídeo consistia em um espetáculo que combinava elementos televisivos
populares com obras de vanguarda numa troca internacional de cultura
protagonizada por figuras como John Cage, Robert Rauschenberg, Salvador Dalí,
Laurie Anderson, Joseph Beuys, Peter Gabriel, Oingo Boingo, Philip Glass, Merce
Cunningham, entre outros. Esse vídeo:

[...] [com partes gravadas e ao vivo] era um misto de imagens, sons e


cores distorcidas, sobrepostas e manipuladas que deixavam o
espectador inquieto. Contudo as personalidades e referências
presentes na obra deram-lhe uma certa credibilidade e valor aos
olhos da audiência. Considerado por muitos como o pai da videoarte,
o artista pretendia com esta peça demonstrar que o Big Brother
previsto por Orwell ainda não havia chegado e que a TV tinha um
potencial para ultrapassar barreiras, estabelecendo uma conexão
bilateral entre cantos opostos da terra que resultava numa harmonia
multitemporal, multiespacial e multicultural (LIMA, 2011, n.p.).
287

Também em referência a Orwell, o alemão Dieter Froese (1948-2016), no ano


de 1987, em sua obra “Not a Model for a Big Brother’s Spy Cube” (Figura 84),
combina circuito fechado de televisão com um vídeo pré-gravado em dois canais. Os
espectadores eram registrados quando entravam na sala de instalação, cujos corpos
eram projetados em monitores enquanto observavam outros sendo entrevistados
sobre atividades políticas.

!
Figura 83. “Good Morning, Mr. Orwell”, de Nam June Paik. Videoarte. 1984. Fonte: <http://
sridc.wordpress.com/2007/11/29/good-morning-mr-orwell-1984-de-nam-june-paik/>. Acesso em
03/05/2011.

!
Figura 84. “Not a Model for a Big Brother’s Spy Cube”, de Dieter Froese. Videoinstalação. 1987.
Fonte: <http://static.flickr.com/29/97538503_fce7b4e865.jpg>. Acesso em 19/03/2017.
288

Em “Threshold to the Kingdom”, do ano 2000, o artista Mark Wallinger (1959-)


filmou a porta de chegadas internacionais de um aeroporto. Em intervalos regulares,
pessoas ou grupos de indivíduos passavam por ali, vindos de um “vazio
celeste” (Figura 85). Com a perspectiva concentrada e a diminuição do ritmo da
realidade, uma cena familiar ganha um metanível simbólico sobre o qual é debatido
o ciclo da vida (MARTIN, 2006).

!
Figura 85. “Threshold to the Kingdom”, de Mark Wallinger. Videoarte. 2000. Fonte: <http://
theartblog.org/2009/07/threshold-to-the-kingdom-mark-wallinger-at-pafa/>. Acesso em 15/05/2011.

A artista brasileira Elaine Tedesco (1963-) trabalha com propostas poéticas


relacionadas às tensões da vida urbana na sociedade contemporânea, tais como
insônia, isolamento, vigilância e decadência. Em uma de suas séries mais
conhecidas, “Guaritas” (Figura 86), de 2005, construções de guaritas mínimas e
precárias são deixadas no espaço urbano e, logo após, fotografadas. Outras vezes,
apenas as fotografias realizadas são projetadas pela cidade e então, são
fotografadas novamente (uma fotografia da fotografia projetada), e o resultado desse
processo é apresentado no espaço expositivo. A guarita, símbolo contemporâneo da
289

constante vigilância, é explorada de forma a ressaltar sua onipresença, ou melhor, a


onipresença da vigilância na contemporaneidade.

!
Figura 86. “Guaritas”, de Elaine Tedesco. Intervenção urbana e série fotográfica. 2005. Fonte: <http://
www.bolsadearte.com.br/site/pt/acervo.asp?codConteudo=401>. Acesso em 19/03/2017.

Enquanto isso, a também brasileira Regina Parra (1981-), na obra “Mise-En-


Scène” (Figura 87), de 2009, fotografou a tela dos monitores de câmeras de
vigilância que haviam flagrado a própria artista em suas atividades diárias. A partir
disso, ela reproduziu as fotografias com fiéis pinturas, tratando criticamente da
própria vigilância como também dos “suportes” onde ela é feita.

!
Figura 87. “Mise-En-Scène”, de Regina Parra. Pintura a óleo sobre tela. 2009. Fonte: <http://
reginaparra.blogspot.com.br/p/mise-en-scene_21.html>. Acesso em 29/09/2014.
290

Hoje, as atividades de vigília perpassam uma série de dispositivos para


captação – câmeras integradas a telefones, dispositivos GPS, relógios, drones etc. –
e visualização – salas de controles, TVs, computadores, smartphones, tablets, entre
outros. Regina Parra reflete sobre o suporte ao levar a imagem de vigilância do
monitor de segurança (suporte 1) para a câmera fotográfica amadora (suporte 2),
culminando em uma das mais tradicionais linguagens e suportes das artes visuais: a
pintura em tela (suporte 3).
Com poética semelhante à obra de Regina Parra, a artista americana Sherry
Karver (1955-) realiza obras mistas com pinturas, fotografias e textos que
representam imagens referentes a um tipo de captação amadora ou de câmera de
vigilância. A maioria das obras desta artista capta grandes grupos de pessoas em
um ângulo alto (enquadramento plongée), que transitam em locais aparentemente
turísticos: museus, parques, ruas com arquitetura europeia etc. A pintura da artista
tenta simular uma captação de câmera eletrônica, ao variar o foco e apresentar uma
espécie de baixa resolução da imagem. Somam-se a isso textos sobrepostos às
silhuetas de alguns “personagens” de suas composições, o que parece ressaltar
ainda mais o caráter informático e binário do seu trabalho híbrido, como pode ser
visto na produção “Twenty to One” (Figura 88), de 2015.

!
Figura 88. “Twenty to One”, de Sherry Karver. Pintura a óleo sobre tela. 2015. Fonte: <https://
www.artsy.net/artwork/sherry-karver-twenty-to-one>. Acesso em 21/04/2017.
291

"Webcam House II” (Figura 89) é um trabalho de 2013 elaborado por Pablo
Garcia, artista já citado anteriormente no primeiro capítulo, que exibe o projeto
arquitetônico de uma casa criado por ele com softwares de arquitetura e engenharia.
Nesse projeto, ele propõe a distribuição de várias webcams no interior da casa,
divididas em dois grupos com quantidades iguais de dispositivos, em que cada
família ficaria com um grupo de câmeras. A proposta do artista é que a casa ao ser
habitada por duas famílias, por questões de economia dada a crise econômica
norte-americana da última década, traria câmeras que fariam o “controle” de
vigilância das partes da casa que foram pré-divididas entre elas – devendo cada
uma habitar apenas os pontos cegos das câmeras da outra família. Segundo o
próprio artista, a casa se divide da seguinte maneira:

They share entry and circulation, but have private quarters. The
Joneses, keeping their consumption conspicuous, divide their house
into zones visible to neighbors through windows, and “blind spots”—
places in their house invisible to prying eyes. The Smiths live in the
Jones’ blind spots, satisfying neighborhood expectations,
telecommuting and living a sustainable lifestyle. The Joneses,
meanwhile, live in the Smith blind spots, just outside their webcam
cameras, giving the Smiths a suburban equivalent online (GARCIA,
2017a).

!
Figura 89. “Webcam House II”, de Pablo Garcia. Croqui (plano) impresso ou projetado. 2013. Fonte:
<http://pablogarcia.org/projects/webcam-house-ii/>. Acesso em 14/04/2017.
292

A egípcia Heba Amin (1980-) possui um interessante trabalho fotográfico que


remete à vigilância contemporânea. Na série “The Earth is an Imperfect Ellipsoid”, de
2016, a artista captou imagens em preto e branco de alguns países africanos, como
Marrocos e Senegal, e as apresentou com enquadramento arredondado (máscara
circular preta ao redor da imagem), que remete a imagens advindas de dispositivos
de vigilância à distância, por conta do formato do quadro e por outras questões
formais, como foco impreciso, baixa resolução e composição que traz elementos de
amadorismo. Outro item que auxilia na relação com imagens feitas por dispositivos
de vigília é o título das fotografias, referente à localização de altitude e longitude
seguida do nome do local de onde foram captadas, como é o caso da produção “14°
43’ 19.9” N, 17° 29’ 41.8” W Dakar, Senegal” (Figura 90).

!
Figura 90. “14° 43' 19.9" N, 17° 29' 41.8" W Dakar, Senegal”, de Heba Amin. Fotografia. 2016. Fonte:
<https://www.artsy.net/artwork/heba-y-amin-14-degrees-43-19-dot-9-n-17-degrees-29-41-dot-8-w-
dakar-senegal>. Acesso em 21/04/2017.

Esses trabalhos são alguns entre vários exemplos de produções visuais que
se “debruçam” crítica e esteticamente sobre a vigilância contemporânea. As obras
293

listadas e analisadas a seguir são ainda mais críticas que estas – por serem
engajadas e militantes –, podendo ser enquadradas como poéticas ativistas de fato.
Para além da arte enquanto fim em si mesma, a maioria dos autores das obras que
serão apresentadas pretendem promover transformações sociais e, por isso, o
próximo subitem é dedicado exclusivamente a eles.

3.3.2 Arte-ativismo

O brasileiro Eduardo Kac (1962-) é um artista pioneiro em novos


desdobramentos da arte e tecnologia contemporânea, sobremaneira no segmento
da holografia, videotexto, bio-art e arte transgênica. Grande parte de suas obras
geram polêmicas o suficiente para suscitar questões em todo o mundo,
principalmente sobre a “bioética” contemporânea. A “biovigilância” foi alvo de uma de
suas principais obras e, de fato, a primeira que o colocou em evidência mundial. Em
“Time Capsule” (Figura 91), de 1997, Kac implantou em seu próprio tornozelo
esquerdo um microchip usado para identificar animais domésticos perdidos que, ao
ser escaneado, traz informações pessoais sobre o artista.

!
Figura 91. "Time Capsule”, de Eduardo Kac. Bio-art. 1997. Fonte: <http://www.saic.edu/150/nothing-
new>. Acesso em 23/04/2017.
294

Na época, Eduardo Kac disse que era o primeiro humano do mundo a ter um
chip implantado no corpo, algo feito por ele mesmo e sob a supervisão de um
médico, numa performance artística acompanhada por diversas pessoas in loco e
registrada por uma série de fotógrafos e cinegrafistas, sobretudo do jornalismo
mundial. Sua obra sempre traz questionamentos sobre ética e tecnologia e, nesse
caso, ele foi o pioneiro ao abordar um tema ainda pouco discutido na época, pois os
debates acerca de uma vigilância global, fora os realizados na ficção científica
literária e do cinema, ainda eram muito incipientes. O artista anteviu a questão da
vigilância intermitente dada pelo rastreio e pela geolocalização a partir do uso de
sistemas GPS e de radiofrequência, abrindo caminho para as críticas à vigilância
tecnológica que seguiram em debate por vários artistas-ativistas em todo o planeta.
Hasan Elahi (1972-) é um artista de Bangladesh que possui grande repertório
de poéticas sobre a vigilância contemporânea. Diferentemente de outros arte-
ativistas que questionam criticamente as ferramentas pelas quais a vigilância se faz,
ele as assume justamente para atacá-la, em que lança mão dos outros eixos da
tecnoscopia (voyeurismo e exibicionismo) para desarmar a vigilância. Em “Tracking
Transience” (Figura 92), de 2005, o artista realizou uma videoinstalação a partir de
27 telas colocadas lado a lado, formando um grande painel, que exibiam milhares de
imagens captadas por ele diariamente sobre sua própria vida. Após esta instalação,
Elahi continua a exibir imagens de sua vida, sua localização, entre outras
informações, intermitentemente na internet60.
A ideia dessa obra surgiu em resposta a uma falsa suspeita do FBI que o
acusou de terrorismo em 2002. Segundo Bruno (2013, p. 133-134), após essa
suspeita, o artista disponibiliza continuamente na internet toda a sua vida por meio
de “[...] fotos, GPS e streaming. ‘A melhor maneira de proteger a sua vida privada é
torná-la pública’, diz ironicamente Elahi, driblando a vontade de tudo ver, pelo
excesso mesmo de visibilidade”. Bruno (idem) aborda que a tática de “combater” a
vigilância a partir da “abertura de portas” da privacidade é interessante, pois:

[...] visibilidade nestes casos não seria uma armadilha capturada pelo
olhar do outro, mas uma contravigilância exercida pela construção
ativa da sua própria imagem. No lugar do desejo de objetividade e
transparência implicados no olhar vigilante, essas táticas mostram o

60Link para a obra “Tracking Transience”, de Hasan Elahi, continuamente em atualização na internet:
<http://elahi.umd.edu/track/>.
295

quanto há de ficção, performance e encenação nas práticas do ver e


do ser visto.

!
Figura 92. “Tracking Transience”, de Hasan Elahi. Videoinstalação. 2005. Fonte: <http://
surveillance01.org/index.php/programartists/>. Acesso em 23/04/2017.

O artista holandês Constant Dullaart (1979-) realizou em 2014 o trabalho


“Google Terms of Service 2014” (Figura 93), para criticar como as grandes
plataformas da web, a exemplo do Google, não cumprem seus termos de serviços,
principalmente no que tange à divulgação dos dados dos usuários que deveriam
estar protegidos nos servidores da empresa – de acordo com o que consta nos
termos de serviços. Claramente em resposta aos escândalos da vigilância global
expostos por Snowden em 2013, Dullaart aponta de maneira irônica as falhas de
segurança ou a hipocrisia e ilegalidade de tais plataformas, ao exibir a barra de
buscas do Google deformada e em movimento. As linhas da barra tornam-se lábios
para simular uma boca que lê os termos de serviços na íntegra para o usuário-
observador.
Nesse contexto, o italiano Fidia Falchetti (1977-) traz também crítica à
vigilância implícita nas redes sociais da internet ao customizar câmeras de vigilância
urbanas com cores, ícones e logomarcas das principais redes sociais, na série
296

“Social Security Cameras61“ (Figura 94), realizada de 2014 a 2017. Além da


customização, ele modifica algumas imagens associadas aos logotipos das
empresas para criticá-las com bastante ironia: sinal de negativo com a mão no
Facebook, o símbolo do Snapchat com semblante triste, olhos vigilantes nas letras
“Os” do Google, entre outros.

!
Figura 93. “Google Terms of Service 2014”, de Constant Dullaart. Web-art. 2014. Fonte: <http://
constantdullaart.com>. Acesso em 23/04/2017.

!
Figura 94. “Social Security Cameras”, de Fidia Falchetti. Instalação objetual. 2014-2017. Fonte:
<http://www.fidiafalaschetti.com/project/social-camera-projects>. Acesso em 23/04/2017.

61 Link para todos os trabalhos da série: <http://www.fidiafalaschetti.com/project/social-camera-


projects>.
297

A artista austríaca Manu Luksch (1970-) realiza uma série de trabalhos


ativistas que abordam a vigilância global. Uma das suas produções mais importantes
é o filme “Faceless” (Figura 95), de 2002, em que se apropria apenas de imagens de
câmeras de vigilância públicas da cidade de Londres e as monta na forma de um
média-metragem de ficção científica, narrado pela famosa atriz Tilda Swinton.

!
Figura 95. “Faceless”, de Manu Luksch. Filme em média-metragem. 2002. Fonte: <http://
www.ambienttv.net/content/?q=downloads_resources>. Acesso em 10/04/2017.

Na obra:

[...] os rostos de todas as pessoas flagradas pelos circuitos fechados


foram apagados em consideração ao seu direito à privacidade,
exceto o da artista. O produto final é uma ficção científica narrada por
Tilda Swinton. Conta a história de uma cidade, onde uma reforma no
calendário aboliu o passado e o futuro e todos os habitantes não têm
rosto. Subitamente, uma mulher, interpretada por Luksch, recupera
sua face e dá nova atmosfera ao lugar (BEIGUELMAN; ALZUGARAY,
2013, p. 73).

O que torna esse filme-vídeo ativista diferente de outras poéticas que se


apropriam de imagens de câmeras de vigilância é o caráter crítico da narrativa que
levanta questões sobre como a vigilância intermitente pode despersonalizar os
sujeitos e negar o passado ou o direito a um futuro, ao transformá-los em objetos de
rostos borrados interpretados por números (imagens numéricas binárias), e não por
pessoas (atores humanos). Essa produção crítica se enquadra na proposta de um
298

manifesto criado pela artista e chamado de “Manifesto for CCTV Filmakers 62“, que
propõe o uso de imagens de arquivo de câmeras de vigilância (CCTV63) para a
realização de filmes.
Também com foco poético e crítico nas câmeras de vigilância, o grupo
americano Surveillance Camera Players, surgido em 1996, realiza performances em
frente às câmeras de vigilância em diversos espaços públicos, com vistas a “ativar” o
olhar dos transeuntes para objetos onipresentes na paisagem urbana
contemporânea e que se tornaram “invisíveis”, dada a indiferença dos sujeitos com
relação aos elementos de vigília. Em 2008, o grupo realizou a performance
“1984” (Figura 96), outra obra novamente em referência ao romance de Orwell. Nela,
os artistas exibiram cartazes e desenhos em relação direta com ao livro.

!
Figura 96. “1984”, do grupo Surveillance Camera Players. Performance captada em vídeo. 2008.
Fonte: <http://db.10plus1.jp/backnumber/article/articleid/420/>. Acesso em 13/04/2017.

62 Link para o manifesto na íntegra: <http://www.ambienttv.net/content/?q=dpamanifesto>.


63 CCTV é a sigla para Closed-Circuit Television (Circuito Interno de Televisão ou Circuito Fechado).
299

O coletivo suíço !Mediengruppe Bitnik 64 iniciou os trabalhos em 2006 a partir


de propostas poéticas críticas e irônicas que se situam entre a arte e a atividade de
hacker. Várias produções do grupo são dedicadas ao questionamento da vigilância
global. Entre eles, destaca-se “Surveillance Chess” (Figura 97), de 2012, em que os
hackers-artistas-ativistas invadiram o sistema de câmeras de vigilância de Londres
um pouco antes do início dos Jogos Olímpicos e substituíram as imagens das telas
de monitoramento por convites para jogar xadrez. Em outra proposta relacionada,
“Delivery for Mr. Assange”, o grupo enviou um pacote via correios para a embaixada
do Equador na Inglaterra, onde Julian Assange está refugiado. Essa caixa continha
um orifício em que uma câmera de vídeo gravava todo o itinerário e postava as
imagens em tempo real na internet, chegando a flagrar o próprio Assange abrindo a
caixa.

!
Figura 97. “Surveillance Chess”, do grupo !Mediengruppe Bitnik. Hacker-art. 2006. Fonte: <http://
www.sikart.ch/kuenstlerinnen.aspx?id=12437082>. Acesso em 30/04/2017.

Em maio de 2008, os artistas americanos Robin Hewlett (1960-) e Ben Kinsley


(1982-) realizaram a performance “Street With a View” (Figura 98), ao saberem que
o carro do Google Street View iria fotografar a cidade de Pittsburgh. Eles chamaram
os moradores locais para participarem de performance irônica que recebeu o carro
do Google com um cortejo e uma banda, que o acompanhou por várias ruas da
cidade. Tais imagens foram captadas e fazem parte do mapeamento fotográfico da
cidade de Pittsburgh na internet. Dessa maneira, os moradores da cidade deixam de
ser “[...] possíveis figurantes desavisados e fortuitamente flagrados pela câmera da

64 Link (“inusitado”) para a página web do grupo: <https://


wwwwwwwwwwwwwwwwwwwwww.bitnik.org>.
300

Google para encenarem uma ficção do espaço urbano, uma arte de rua improvisada
que também brinca com o espetáculo e com a vigilância participativa” (BRUNO,
2013, p. 116).

!
Figura 98. “Street With a View”, de Robin Hewlett and Ben Kinsley. Performance captada por
fotografia em 360º e exibida via web. 2008. Fonte: <https://www.slideshare.net/ubik/beyond-
augmented-reality-ubiquitous-media-experiences>. Acesso em 23/04/2017.

Por sua vez, o chinês Wang Guofeng (1967-) tece críticas sobre os conflitos
políticos mundiais, em que a vigilância tecnoscópica é um dos elementos
fundamentais para “instigar” e também para “resolver” tais conflitos – claro que, em
ambas as situações, isso sempre ocorre de maneira tendenciosa. Guofeng trabalha
com simples apropriações de imagens, como é o caso da obra “Who is he? What did
he say” (Figura 99), impressão digital sobre papel com uma fotografia desfocada de
Edward Snowden, com o título da obra impresso em inglês ao centro e sobreposto à
imagem, e o mesmo título em chinês na margem esquerda inferior. A produção foi
realizada em 2013, no mesmo ano do escândalo da vigilância global norte-
americana divulgado por Snowden.
301

!
Figura 99. “Who is he? What did he say”, de Wang Guofeng. Impressão digital sobre papel. 2013.
Fonte: <https://www.artsy.net/artwork/wang-guofeng-who-is-he-what-did-he-say>. Acesso em
10/04/2017.

O fotógrafo e videoartista americano Tomas Van Houtryve (1975-) realizou em


2015 uma série de fotografias e vídeos com drones, nomeada como “Blue Sky Days”
(Figura 100), em diversos locais dos Estados Unidos, com enfoque em reuniões que
se tornaram os principais alvos (diretos ou indiretos) dos ataques de drones
estrangeiros, como casamentos, funerais, cultos e orações em grupo ou atividades
físicas coletivas. Ele também captou imagens de prisões, campos de petróleo,
parques industriais e da fronteira entre Estados Unidos e México, referentes aos
alvos bélicos dos drones norte-americanos. O nome da série faz menção a um caso
de ataque de drone específico, conforme relatado pelo artista:

[...] in October 2012, a drone strike in northeast Pakistan killed a 67-


year-old woman picking okra outside her house. At a briefing held in
2013 in Washington, DC, the woman’s 13-year-old grandson, Zubair
Rehman, spoke to a group of five lawmakers. “I no longer love blue
skies,” said Rehman, who was injured by shrapnel in the attack. “In
fact, I now prefer gray skies. The drones do not fly when the skies are
gray” (HOUTRYVE, 2017, n.p.).
302

!
Figura 100. “Blue Sky Days”, de Tomas Van Houtryve. Série fotográfica. 2015. Fonte: <http://
www.anastasia-photo.com/tomas-van-houtryve-blue-sky-days/>. Acesso em 26/04/2017.

Outra obra ativista que critica o uso de drones em atividades bélicas, “Under
the Shadow of the Drone” (Figura 101), feita em 2013 pelo artista britânico James
Bridle (1980-), é uma intervenção urbana que tenta dar visibilidade aos veículos
remotos cada vez mais presentes no cotidiano, mas que poucos conhecem o
potencial destrutivo deles, principalmente nas guerras travadas entre o ocidente e o
Oriente Médio. Nessa proposta, Bridle pinta no chão linhas que exibem uma
representação bidimensional (apenas os contornos) de drones de guerras, sendo
dispostas em vários locais pelo globo, com vistas a ativar o olhar dos sujeitos
transeuntes para a “sombra” de uma máquina de guerra quase invisível, mas letal.
Em outro trabalho anterior a esse e com poética correlata – “Dronestragram”, de
2012 –, o artista publica em suas redes sociais imagens do Google Maps que
mostram os mesmos pontos onde houve ataques de drones. De acordo com o
próprio artista:

[...] ambos os trabalhos se referem às influências das tecnologias de


rede, em escala civil e militar. Estou interessado particularmente na
legibilidade desses sistemas: o quanto podemos vê-los, lê-los e
compreendê-los de forma crítica ou consensual. Parte desses
trabalhos é dirigir as técnicas de vigilância sobre quem vigia
(BEIGUELMAN; ALZUGARAY, 2013, p. 71).
303

!
Figura 101. “Under the Shadow of the Drone”, de James Bridle. Intervenção urbana com registro
fotográfico. 2013. Fonte: <http://designandviolence.moma.org/drone-shadow-james-bridle/>. Acesso
em 27/04/2017.

O israelense Omer Fast (1972-) é hoje um dos principais videoartistas em


atividade. Em um dos seus trabalhos ativistas, o vídeo “5000 Feet Is the
Best” (Figura 102), de 2001, ele entrevista um operador de drone que, sem se
identificar, falou sobre diversos acidentes nos quais o dispositivo disparou contra
civis inocentes:

Em uma das cenas mais famosas, uma família americana típica,


saindo de férias, encontra um grupo de pessoas que está
implantando na estrada um explosivo doméstico (os famosos e
perfuradores IEDs – Improvised Explosive Devices). A família entra
na mira do drone e todos morrem. O narrador, em off, pontua a
sequência que se desenvolveu quase que em câmera lenta: “Ver as
coisas de cima não apenas as achata, como as deixa mais nítidas,
tornando as relações mais claras” (BEIGUELMAN; ALZUGARAY,
2013, p. 72).

Por sua vez, o artista norte-americano Josh Begley (1984-) trabalha com o
desenvolvimento de aplicativos e web-art para tecer críticas atinentes a questões
sociais e políticas dos Estados Unidos. Em uma produção/aplicativo que também
critica o uso de drones como máquinas de guerra – “Metadata+” (Figura 103), de
2013 –, o artista desenvolveu um app para smartphone que notifica o usuário toda
vez que ocorre um ataque americano com drones. A notificação exibe na tela do
304

celular o local onde o ataque ocorreu e informações sobre as pessoas que foram
mortas ou feridas.

!
Figura 102. “5000 Feet Is the Best”, de Omer Fast. Videoarte. 2001. Fonte: <http://www.bbc.co.uk/
programmes/p0287rwj/p0287qtk>. Acesso em 30/04/2017.

!
Figura 103. “Metadata+”, de Josh Begley. App para smartphone. 2013. Fonte: <http://
metadata.joshbegley.com>. Acesso em 30/04/2017.
305

A artista americana Heather Dewey-Hagborg (1982-) trabalha com a temática


da vigilância genética. Em “Stranger Visions” (Figura 104), de 2012, ela recolhe
materiais diversos em locais públicos, como saliva, cabelos, guardanapos usados e
pontas de cigarros, para mapear o código genético encontrado nesses materiais;
então, um software identifica os traços pessoais dos “donos” desses itens e cria uma
reprodução tridimensional dos rostos de tais indivíduos, que são impressas em
impressoras 3D, no formato de bustos escultóricos.

!
Figura 104. “Stranger Visions”, de Heather Dewey-Hagborg. Bio-art e impressão 3D. 2012. Fonte:
<http://deweyhagborg.com/projects/stranger-visions>. Acesso em 27/04/2017.

Ao serem expostos, os bustos são afixados em paredes da galeria e, abaixo


de cada um deles, uma caixa traz informações textuais e fotografias sobre o local
onde o material foi encontrado, além do próprio material em si e os dados “pessoais”
sobre o dono daquele genoma. Esse trabalho levanta questões preocupantes sobre
a privacidade no âmbito de uma sociedade em que as tecnologias biométricas são
cada vez mais frequentes. A chamada “biovigilância” pode se tornar a próxima
preocupação no que concerne às tecnoscopias invasivas, pois ela representa a nova
investida de governos e empresas para a manutenção e potencialização do controle
sobre os cidadãos. A respeito disso, Gediman (2017, p. 5) relata que:
306

[...] in 2009, the government implemented the HITECH Act (“The


Health Information Technology for Economic and Clinical Health Act”)
to incentivize the adoption and utilization of health information
technology. Since then, the federal government has given more than
thirty billion dollars to those who have adopted electronic health
records. Over the span of these same years, nearly 160 million
Americans have had their electronic health records breached. More
than 90% of health care organizations have had one or more data
breaches, and 40% of these organizations have had more than five
data breaches in the last two years.

Este item sobre arte-ativismo iniciou e encerrou com obras que foram
produzidas com 15 anos de diferença entre elas e que abordaram uma vigilância
invasiva que atua no interior do próprio corpo humano – “biovigilância”. Como
Gediman (2017) citou, hoje são cada vez mais comuns as violações de dados
médicos pessoais nos sistemas antropométricos e essa possivelmente será a
próxima tendência da vigilância mundial. Após a visão do “corpo externo” (imagens
tecnoscópicas) e do “espírito cultural” do usuário (metadados e gerações de perfis
via big data), resta o acesso ao interior do corpo e a todo seu funcionamento
biológico. Não seria uma especulação à la ficção científica considerar que o
mapeamento do cérebro e dos pensamentos humanos seja também uma das
próximas investidas dos vigilantes tecnoscópicos.
São várias as poéticas que se preocupam com as questões em voga e as
vindouras. Infelizmente, esta tese não pode detalhá-las melhor ou até mesmo listar
outras. A escolha por esse formato metodológico, que abordou a tecnoscopia
teoricamente e a partir de eixos conceituais didaticamente definidos para depois
elencar e analisar sucintamente algumas produções artísticas, apresenta-se como
válida na escolha de tratamento de aspectos tão amplos, complexos e ainda em
discussão, por serem muito contemporâneos.
No capítulo final, a seguir, serão elencadas outras sete produções artísticas –
no entanto, estas correspondem ao acervo poético autoral do artista-pesquisador
que elaborou esta tese. Elas foram produzidas no âmbito dos estudos sobre
voyeurismo, exibicionismo e vigilância. As primeiras são anteriores à própria criação
do termo tecnoscopia, mas, ainda assim, se inserem na crítica aqui abordada e
contribuem para o tratamento dela no campo poético visual – conquanto as últimas
foram produzidas concomitantemente a esta pesquisa.
307

CAPÍTULO 4. TECNOSCOPIAS: PRODUÇÕES AUTORAIS

Uma obra crítica ou filosófica, que não se mantém de alguma


maneira numa relação essencial com a criação, está condenada a
girar no vazio, assim como uma obra de arte ou de poesia, que não
contém em si uma exigência crítica, está destinada ao esquecimento
(AGAMBEN, 2014, p. 15).

Rey (2002, p. 26) considera que é importante, dentre os métodos de pesquisa


em artes visuais, haver um trânsito entre experiência poética, ou seja, a prática de
produção artísticas e a reflexão teórica e conceitual sobre questões que a nutrem, à
medida que a própria prática contribui na análise e na construção de conhecimento
teórico:

A pesquisa em artes visuais implica um trânsito ininterrupto entre


prática e teoria. Os conceitos extraídos dos procedimentos práticos
são investigados pelo viés da teoria e novamente testados em
experimentações práticas, da mesma forma que passamos, sem
cessar, do exterior para o interior, e vice-versa, ao deslizarmos a
superfície de uma fita de moebius.

De fato, esse tipo de metodologia apenas é válido quando uma pesquisa é


desenvolvida por um artista-pesquisador, ou seja, quando o próprio autor da
investigação (teórica, acadêmica, crítica etc.) também é produtor de arte. Esta tese
não se insere num método de estudo em que a produção artística é fundamental
para a escrita, ou vice-versa; mas, como o autor é também um artista com um
acervo significativo sobre o tema abordado, considera-se oportuno relatar o conjunto
de trabalhos artísticos, mesmo diante de uma dificuldade de análise relacionada ao
afastamento necessário que o artista-pesquisador deve ter ao investigar a própria
obra. Esse cuidado foi tomado para que as obras a seguir, assim como as demais
elencadas na tese, possam exemplificar no âmbito poético todas ou a maioria das
questões tratadas no campo teórico, mostrando que o trânsito entre produção e
teoria é significativo para a área artística.
Diferentemente das obras apresentadas antes, essas terão um nível maior de
detalhamento, devido ao conhecimento do processo que o autor possui. Serão
salientados de forma sucinta o processo de produção, as exibições públicas, o
feedback dos espectadores e os principais desdobramentos das propostas a seguir
– além dos vínculos entre a estética, a temática e o aspecto conceitual das
308

produções com as análises tecnoscópicas já realizadas nesse contexto. De maneira


análoga às demais obras antes citadas, considera-se que nem todas as poéticas
autorais tratam de modo qualitativamente igualitário os três vértices escópicos em
um mesmo trabalho. Algumas aludem mais ao voyeurismo, apesar de possuírem
questões atinentes à vigilância, enquanto outras são exibicionistas, ainda que o
voyeurismo seja claramente reconhecido, mas todas, sem exceção, se valem da
tecnoscopia, mesmo que se exalte um vértice em detrimento do outro.
Os trabalhos serão apresentados em ordem cronológica de produção. Notar-
se-á que os primeiros enfocam mais o voyeurismo e a vigilância, enquanto os
últimos tratam do exibicionismo. As primeiras produções se inserem no âmbito do
Mestrado em Artes da UFU, realizado pelo autor desta tese no período de 2010 a
2012, o que resultou na produção de quatro videoartes. Este, se tratava
especificamente de uma pesquisa em arte na linha de “Práticas e Processos em
Artes Visuais”, sob orientação da Profa. Dra. Beatriz Rauscher. Com o título
“Poéticas do Olhar: escopofilia e panoptismo em uma produção videográfica”, a
dissertação enfocou no voyeurismo (escopofilia) e na vigilância (panoptismo) e,
como já relatado na introdução desta tese, ainda não havia uma pesquisa madura
que abordasse o exibicionismo como um elemento importante na ocasião, dado que,
no mestrado, ele foi considerado apenas um desdobramento natural do voyeurismo.
Vale ressaltar que, à época, foram produzidos os vídeos: “Olho Mágico | TCP#01”,
“Telescópio | TCP#02”, “Janela | TCP#03” e “À Espreita | TCP#04”.
O conceito de tecnoscopia foi criado apenas neste estudo de doutorado e,
após isso, foram produzidas mais três poéticas visuais. No entanto, foi importante
retomar as quatro produções anteriores, mesmo que não abordem de fato todo o
triângulo escópico. Elas trazem significativas contribuições para esta pesquisa, além
de serem produções importantes para a carreira do autor.
Tomou-se a liberdade de enumerar sequencialmente as produções de acordo
com a data de realização. Além disso, as sete poéticas foram nomeadas como
“tecnoscopias”, na tentava de criar um acervo tecnoscópico facilmente identificável
como de autoria do escritor desta tese, contendo os trabalhos até então produzidos
e os que podem vir após a conclusão do doutorado. Para isso, aos nomes das
produções se segue a sigla TCP, em alusão a uma espécie de abreviatura referente
à tecnoscopia, e também acompanhada do número sequencial de produção. Essa
309

sigla também foi adotada como um elemento que se relacionaria ao “Transmission


Control Protocol” (“Protocolo de Controle de Transmissão”), que geralmente
acompanha o protocolo IP (“Internet Protocol”). Assim, o TCP/IP diz respeito a
caminhos e formas pelos quais os dados são levados dos servidores informáticos
aos computadores do mundo todo e vice-versa. Em uma brincadeira simbólico-
conceitual, o TCP, em face da tecnoscopia poética, poderia definir maneiras em que
a tecnoscopia e a arte podem se retroalimentar; e como as produções artísticas
chegam aos es(x)pectadores, valendo-se das mesmas tecnologias que instauram a
tecnoscopia de per si.
Após o início do doutorado, em 2013, as obras criadas desde então foram
pensadas a partir de um ponto de vista tecnoscópico “total” e, com isso, o
exibicionismo passou a fazer parte integral e indissociável das demais questões nas
novas produções. Assim, realizaram-se dois trabalhos em videoarte – “Le Voyeur
{Paris Hôtel} | TCP#05” e “Magic Mirror on the Web | TCP#06”. Neste ponto, a
sétima e última produção merece destaque especial, por conta de uma série de
especificidades que a tornam a principal poética no próprio estudo de doutorado –
trata-se do filme em longa-metragem “#ninfabebê | TCP#07”.
As demais seis produções foram realizadas no âmbito da videoarte: as quatro
primeiras integradas ao mestrado e as duas seguintes após o início do doutorado. A
partir disso, o autor, que também possui relativa experiência com a linguagem
cinematográfica, pensou em realizar um produto que pudesse se comunicar melhor
com o principal público-alvo da recente tecnoscopia – os adolescentes e jovens, que
abdicam de sua privacidade para, de maneira inconsequente, conseguir o maior
número de visibilidade possível ao explicitar sua intimidade. Esse é o trabalho mais
exibicionista tecnoscópico entre todos os sete e o que possui melhores chances de
chegar a um público mais heterogêneo, pois, infelizmente, as galerias de arte ainda
são restritas a um público seleto, e as demais videoartes foram confeccionadas
prioritariamente para serem exibidas em galerias.
Mesmo sendo uma produção realizada nos moldes cinematográficos de um
longa-metragem, “#ninfabebê” possui características experimentais que o
relacionam com a videoarte e o cinema de curta-metragem, em se tratando do fator
experimental. Isso se deve ao baixo orçamento e à proposta estético-conceitual do
310

longa que simula uma captação amadora realizada com um smartphone a partir da
apropriação dos estilos mockumentary/found footage.
As sete produções autorais tecnoscópicas serão elencadas e analisadas uma
a uma – a seguir –, de acordo com a numeração (TCP) que se refere à data de
produção.

4.1 Olho Mágico (Peephole) | TCP#01 (Tecnoscopia 01)

A videoarte “Olho Mágico | TCP#01” (“Peephole”), realizada em 2010, foi a


primeira produção que tratou do voyeurismo como tema e a responsável no âmbito
poético por trazer questões que suscitaram o uso dos conceitos de exibicionismo e
vigilância que, a posteriori, culminariam com a tecnoscopia. A partir desse trabalho, a
decorrente produção artística do autor desta tese se concretizou, e, por tal motivo,
este vídeo hoje também é nomeado como “Tecnoscopia #01”. Como já abordado, as
demais produções autorais aqui elencadas levam o “sobrenome” tecnoscopia (sob a
sigla TCP), acompanhada do número que define a ordem cronológica de produção.
“Olho Mágico | TCP#01” é uma videoarte em single-channel. A primeira
versão65 do vídeo possuía 55 minutos e 57 segundos de duração, foi produzida na
cidade de Uberaba, Minas Gerais, Brasil e exibe uma janela circular que mostra a
real visão a partir do olho mágico da porta do apartamento onde o artista-
pesquisador residia quando foi feita a captação. Ele parte de um pseudo-plano-
sequência do interior do prédio, em que é mostrado um fragmento da rotina dos
moradores daquele local.
O ponto de partida do trabalho foi o “lugar de morar”, mais especificamente,
um apartamento. Nesse local, as janelas gradeadas delimitam o acesso ao exterior.
A semiclausura, dada com o propósito de manter a segurança, produz o
cerceamento das experiências mundanas e cria uma insaciável busca voyeurista
pelas brechas para o mundo exterior. No apartamento há a procura pelos “escapes
para o olhar”: a janela do quarto, a janela da sala, os pequenos vitrôs do banheiro e
da área de serviço. Enquanto eles dão passagens para o que há próximo, as
máquinas tecnoscópicas (computador, smartphone e TV) proporcionam tal aspecto
para o que está distante. Essas janelas permitem instaurar uma espécie de

65 Link para esta versão do vídeo: <https://vimeo.com/102860071>


311

panóptico pessoal, no qual o vigilante-voyeur se contenta com a banalidade


cotidiana quista por ele, mas não vivenciada, por meio de vários dispositivos que
possibilitaram ver essas cenas da vida dos outros: janelas, olho mágico, telescópio,
câmeras fotográficas e de vídeo, além das potentes “janelas” eletrônicas
tecnoscópicas. Nesse ponto se instaura um jogo inerentemente voyeurista e
relativamente vigilante.
Nesses termos, “Olho Mágico | TCP#01” visa colocar o observador na posição
de um voyeur, diante da visão de um dispositivo que oferece uma experiência
escopofílica privilegiada: permite ver sem ser visto. O olho mágico, essa pequena
janela ainda disposta em considerável parte das residências modernas, proporciona
uma visão quase “mágica” de acontecimentos bem próximos visualmente, mas com
a impressão de estarem distantes devido à lente grande-angular do dispositivo.
Trata-se de uma pequenina abertura, um dispositivo para manter a segurança do lar,
que oferece ao observador uma experiência que pode se aproximar da “bola de
cristal” (“mágica”): a capacidade de tudo poder observar sem ser observado.
Diferentemente dos contemporâneos sistemas de videossegurança, o olho mágico
acentua a experiência do voyeur, pois ele está perto o bastante para poder sentir e
ouvir os sons que advêm do ambiente externo, e a porta oferece proteção contra a
possível descoberta daquele que espia. Encontra-se, assim, mais próximo do
prosaico buraco da fechadura do que dos sofisticados porteiros eletrônicos.
O vídeo se inicia de uma cena documental, pois se trata da real visão a partir
do olho mágico da porta do apartamento. Os transeuntes que fazem parte do vídeo
não sabem que foram gravados, e o enquadramento arredondado, somado à nítida
distorção na perspectiva da imagem, deriva da própria lente do dispositivo real – não
foram utilizados efeitos de pós-produção de vídeo. A imagem é determinada por uma
composição geométrica, com jogo de linhas paralelas e simetricamente distribuídas,
formadas por grades e corrimãos do interior do prédio (Figura 105).
A gravação ocorreu ininterruptamente ao longo de três horas. O material bruto
foi editado de forma simples, cortando apenas os momentos em que não havia o
fluxo dos moradores por um longo período de tempo. No resultado final, o vídeo
apresenta um falso plano-sequência do interior do prédio e do ponto de vista do olho
mágico. Na edição sonora foi utilizada a música “Noturno”, de Frédéric Chopin
(1810-1849), de modo a compor uma espécie de trilha sonora incidental que remete
312

a uma música ambiente presente no momento da gravação. Ela conferiu ao vídeo


um estado de narratividade maior, uma vez que parece ritmar o caminhar dos
transeuntes.

!
Figura 105. “Olho Mágico | TCP#01”, de Aldo Pedrosa. Frame da videoarte. 2010.

O “Olho Mágico | TCP#01” se transformou em decorrência de suas várias


exibições, pois cada novo espaço trouxe à proposta uma nova forma de se mostrar.
A maneira de se oferecer ao público dependeu, consideravelmente, de aspectos
evocados pelo espaço, como também de questões colocadas pelo entorno
(culturais, geopolíticas etc.). A primeira experiência de exibição se deu por meio de
um arranjo objetual, com a utilização de uma porta e de um orifício que simulava um
olho mágico de per si. Ela ocorreu na exposição “Do Local ao Lugar”, na Galeria
Lourdes Saraiva, situada na cidade de Uberlândia, Minas Gerais, Brasil, em agosto e
setembro de 2010. Nessa exposição, o vídeo foi exibido em um aparelho de DVD
conectado a uma pequena tela de sete polegadas que, por sua vez, foi instalada na
parte traseira de um painel que simulava uma porta real, com maçaneta e outros
313

detalhes (Figura 106). Confeccionou-se o painel para ser colocado “em pé”, com
pequenos suportes que permitem fixá-lo e deixá-lo equilibrado, e na parte traseira foi
colocado um pequeno suporte para fixar a tela que exibiu o vídeo – o orifício pelo
qual ele é visto simula um olho mágico real para que o observador possa ter a
impressão referente à visão de um verdadeiro olho mágico.

!
Figura 106. “Olho Mágico | TCP#01”, de Aldo Pedrosa. Fotografia da exibição na exposição “Do Local
ao Lugar”. 2010.

Com a simulação de uma porta, o trabalho exige uma atitude do espectador


que o remeterá às próprias experiências voyeurísticas realizadas quando ele está
sozinho. Ao observar o vídeo de maneira solitária, já que o orifício pressupõe a
visualização individual, o es(x)pectador será levado do espaço da arte para um outro
local: a porta do apartamento onde se posicionou, outrora, o “artista-voyeur” que
produziu as imagens.
Na exposição “Do Local ao Lugar”, o trabalho buscou uma experiência mais
individualista e intimista, remetendo a outro dispositivo importante para a história das
imagens técnicas em movimento: o cinetoscópio de Thomas Edison (descrito no item
314

1.3.2.2 nesta tese). No vídeo “Olho Mágico | TCP#01”, a arquitetura sempre estática
do interior do prédio permite que o olhar se direcione aos transeuntes que sobem e
descem as escadas, sem se perder na cena. O cinetoscópio, assim como a
visualização do “Olho Mágico | TCP#01” através do pequeno orifício, “alimenta o
olho, mas com alimento claramente designado, objetivado, delimitado; ele satisfaz o
olhar” (AUMONT, 2004, p. 43). Além do cinetoscópio, esse tipo de visualização se
relaciona com a consagrada obra de Marcel Duchamp, “Étant Donnés” (também já
descrita no item 1.3) – todas pedem a observação individual (Figura 107), e um só
espectador de cada vez irá olhar pelo orifício.

!
Figura 107. “Étant Donnés”, de Marcel Duchamp. Instalação. 1946-66. Fonte: <http://
petulantrumblings.com/?p=8889>. Acesso em 05/01/2012.

O resultado da primeira experiência de apresentação se mostrou interessante,


à medida que permitiu acompanhar a recepção dos observadores. Foi possível
reelaborar e redefinir alguns elementos ou maneiras de apresentação da proposta,
para que o vídeo adquirisse outras versões e potenciais formas diferenciadas de
exibição. Em uma das reelaborações, subverteu-se a condição documental (de
315

registro) da produção ao inserir efeitos digitais no vídeo, que permitiram sobrepor


imagens em camadas transparentes66. Essa nova proposta foi exibida no IV
Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual em Goiânia, Goiás, Brasil,
em 2011. Para este evento, o vídeo foi compactado em seis minutos – sem perder
nenhuma imagem dos 56 minutos anteriores – utilizando, para isso, camadas
sobrepostas em diferentes níveis de opacidade que conferiram ao vídeo um aspecto
de simultaneidade (Figura 108).

!
Figura 108. “Olho Mágico | TCP#01 | Versão_02”, de Aldo Pedrosa. Frame da videoarte com o efeito
de sobreposição de imagens. 2011.

Ao trabalhar a simultaneidade de diferentes tempos e a multiplicidade de


imagens sobrepostas, a produção busca remeter ao estado psíquico do voyeur, que
deseja reter as imagens vistas de uma só vez, para não perder nenhum detalhe
daquilo que nutre sua pulsão escópica. Essa multiplicidade e simultaneidade de
pessoas e coisas que se fundem são, por sua vez, também inerentes à visão do
vigilante. Em contrapartida, os seres ali captados voyeuristicamente vivem cada qual

66 Link para esta versão do vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=c_ocuKU-YoY>


316

sua individualidade, mas todos se unem em uma multidão. Foucault (2010, p. 190),
no âmbito da vigilância, afirma que, para o vigilante, a multidão é uma:

[...] massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que


se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de
individualidades separadas. Do ponto de vista do guardião, é
substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável; do
ponto de vista dos detentos, por uma solidão sequestrada e olhada.

Esse formato de vídeo compacto tornou-se interessante para se enquadrar


nos padrões de festivais e mostras de cinema, na categoria de curta-metragem
experimental. Assim, o trabalho também foi selecionado para participar da exibição
oficial da II Mostra SESI de Cinema de Uberaba. Nas duas experiências, o vídeo foi
reelaborado, “encurtado” e oferecido para visualização de forma diferente da
anterior: tela grande e em uma sala escura. Ele subverte, em certa medida, sua
apresentação de antes para se oferecer como “cinema de exposição” e se “expor
como cinema”. Segundo Dubois (2008, p. 8), o termo cinema de exposição foi
cunhado pelo francês Jean-Christophe Royoux, designando os procedimentos de
artistas-cineastas que “[...] ora utilizam diretamente o material fílmico em sua obra,
ora inventam formas de apresentação que fazem pensar ou se inspiram em efeitos
ou em formas cinematográficas”.
Afirma-se que “Olho Mágico | TCP#01” apresenta características mestiças
que remetem ao cinema (enquadramento, focalização, profundidade de campo, trilha
sonora) e ao “vídeo de galeria” ou videoarte (aspectos desconstrutivos, ausência de
uma narrativa linear, plano-sequência único e estático, efeitos de sobreposição de
camadas – estes últimos na versão curta). Ao experimentar esses aspectos, foi
possível não apenas tencionar a plasticidade da imagem, mas também observar
como o trânsito da observação contemplativa para a participativa irá produzir novas
significações e ênfases para a experiência da visão propiciada pela própria imagem.
Um retorno à exibição individual e intimista ocorreu na exposição
“Panóptico”67 (Figura 109), concebida para um determinado prédio onde encontra a
galeria de arte do Centro de Cultura José Maria Barra, na cidade de Uberaba. O

67A exposição “Panóptico” representou a culminância da pesquisa de mestrado em Artes. Nela foram
exibidos os vídeos “Olho Mágico | TCP#01”, “Telescópio | TCP#02”, “Janela | TCP#03” e “À Espreita |
TCP#04”, além de uma interação proposta com o Google Street View. Para mais detalhes sobre a
exposição e o trabalho de pesquisa no mestrado, a dissertação pode ser acessada em: <http://
repositorio.ufu.br/handle/123456789/2027>.
317

lugar foi escolhido devido às similaridades físicas com o edifício do sistema


panóptico de Bentham (Figura 110).

!
Figura 109. Exposição “Panóptico”, de Aldo Pedrosa. Fotografia em panorâmica do interior da Galeria
de Arte do Centro de Cultura José Maria Barra. 2012.

!
Figura 110. Fotografia da fachada da Galeria de Arte do Centro de Cultura José Maria Barra, onde
ocorreu a exposição “Panóptico”, de Aldo Pedrosa. 2012.

A galeria está situada no segundo andar do prédio que possui um formato


arredondado, com 6,5m de raio e janelas amplas de vidro filmado que tomam o lugar
318

das paredes tradicionais. As janelas são espelhadas e permitem um interessante


jogo de visão, conforme a luminosidade do local. Quando há mais luz vinda do
exterior, a fachada externa se torna espelhada por completo, não permitindo que
nada do interior da galeria seja visto. Nesse caso, quem está no interior do edifício
pode ver com clareza todo o exterior, local de intenso tráfego de pessoas e veículos,
pois a galeria está localizada no centro da cidade. Já à noite e com as luzes internas
da galeria acesas, este espelhamento se inverte. Uma interessante relação entre o
jogo de visão (revelação e ocultação – “ver” sem “ser visto” – dada pelas janelas da
galeria) e o próprio panóptico de Bentham se faz presente – somada às
características arquitetônicas da galeria (arredondada) que permitem torná-la um
lugar privilegiado para o estabelecimento desse espaço como metáfora do
panóptico.
No interior da galeria se colocou uma pequena torre que simula a torre central
do edifício panóptico (Figura 111) que, também localizada no centro do espaço, foi
concebida com o objetivo de exibir o “Olho Mágico | TCP#01”. Para a ocasião,
utilizou-se a versão extensa do vídeo, e sua disposição evoca novamente a
visualização individual, na qual um pequeno orifício dá a visão do vídeo. Nesse
caso, ao olhar para dentro da torre do panóptico simulado, não se vê o vigia, mas
sim outro espaço: a cena voyeurística que pede uma visualização solitária, assim
como no olho mágico real, no cinetoscópio de Edison e em “Étant Donnés” de
Duchamp (Figura 112).
Se Thomas Edison hoje não é totalmente reconhecido como pai do cinema,
pois os irmãos Lumiére, diferentemente dele, fizeram de seu cinematógrafo um
dispositivo de exibição pública (e a partir de então, o cinema seguiu seu desígnio de
ser, cada vez mais, uma mídia das massas, a partir de exibições em locais que
comportam um grande público), os atuais dispositivos móveis, em processo
contrário, individualizam a experiência de assistir a filmes e vídeos. Assim, a “torre
cinetoscópica” se aproxima das mídias móveis em um caráter intimista:
smartphones, tablets, players, relógios inteligentes, GPSs, pequenas TVs digitais,
entre outras.
319

!
Figura 111. “Olho Mágico | TCP#01”, de Aldo Pedrosa. Fotografia da exibição na exposição
“Panóptico”. 2012.

Figura 112. “Olho Mágico | TCP#01”, de Aldo Pedrosa. Fotografia da exibição na exposição
“Panóptico”. 2012.
320

Outra importante experiência de exibição se deu na exposição “En quête du


lieu – Espaces Traversés”, que reuniu artistas-pesquisadores franceses e brasileiros
na Galerie Michel Journiac, integrada à Université Paris 1, Panthéon-Sorbonne, em
Paris, França, de novembro de 2012 a janeiro de 2013. Nela, a forma de exibir o
vídeo modificou-se novamente, pois agora ele foi mostrado numa tela de TV de 32
polegadas (Figura 113), o que, do ponto de vista técnico, ocorreu de maneira mais
convencional do que nas outras experiências. A apresentação do trabalho em um
monitor, sem as “distrações” operadas pelos aspectos plásticos de uma projeção em
grandes dimensões ou o apelo físico e objetual do olhar por uma fresta, permitiu que
a narrativa implícita se explicitasse.

!
Figura 113. “Olho Mágico | TCP#01”, de Aldo Pedrosa. Fotografia da exibição na exposição “En quête
du lieu – Espaces Traversés”. 2012-13.

Concomitantemente à exposição parisiense, o vídeo foi integrado ao ambiente


virtual também chamado de “Panóptico”, confeccionado pelo artista e por uma
pequena equipe mediante aprovação no edital “Trocas Contemporâneas –
Interações Artísticas Regionais”, em 2012. Esse ambiente está disponível no site
321

<http://www.panoptico.com.br> e exibe “Olho Mágico | TCP#01” juntamente com


outras duas tecnoscopias (“Telescópio | TCP#02” e “À Espreita | TCP#04”) – todas
produzidas no âmbito do mestrado. Ao abrir o site, o usuário tem a visão da fachada
de um prédio (Figura 114) e, ao “clicar” nas janelas do edifício, cada qual mostra
uma das três tecnoscopias poéticas. Além disso, algumas janelas permitem um
“passeio” no apartamento onde o próprio artista residia na ocasião. Instaura-se, aqui,
um jogo voyeurista-exibicionista-vigilante em uma das primeiras propostas
interativas que apontava diretamente para a futura tecnoscopia, que seria concebida
um ano após essa experiência.

!
Figura 114. “Panóptico”, de Aldo Pedrosa. Ambiente virtual interativo. 2012.

Outra exibição ocorreu em 2014 em Brasília, Distrito Federal, Brasil, na


exposição “EMmEIO6.0” realizada no Museu Nacional da República. Para a ocasião,
retomou-se a tentativa de exibição em tamanho pequeno, com o uso de uma MiniTV
Digital com tela de 3,5 polegadas (Figura 115). Essa nova investida ao “Olho Mágico
| TCP#01” já aconteceu após o início dos estudos de doutorado e, por isso, novas
indagações poéticas e conceituais surgiram, decorrentes das reflexões acerca do
322

conceito de tecnoscopia, ainda em estágio embrionário. Dentre os questionamentos,


pensou-se se seria necessário o uso de objetos intermediários, como a porta e o
orifício do olho mágico, para o sucesso na fruição voyeurista da obra. A partir disso,
houve uma tentativa de mudança ao exibir o vídeo numa tela bem pequena e que
pudesse deixá-lo do tamanho aproximado a um olho mágico, além do descarte de
todo e qualquer objeto mediado: porta, torre, orifício etc. Nesse novo formato de
exibição, os espectadores precisavam se aproximar consideravelmente da tela para
poderem ver a imagem por completo e ouvir o som da produção.

!
Figura 115. “Olho Mágico | TCP#01”, de Aldo Pedrosa. Fotografia da exibição na exposição
“EMmEIO6.0”. 2014.

No entanto, considera-se que essa questão apenas foi resolvida na última


mostra em que o “Olho Mágico | TCP#01” participou: “20 Anos do Museu
Universitário de Arte (MUnA)”, na cidade de Uberlândia, que ocorreu de novembro
de 2016 a abril de 2017. O vídeo foi exibido na menor tela até o momento, de 1,8
polegadas, a partir de um MP4 Player. Assim, chegou-se a um tamanho de imagem
equivalente ao olho mágico real e sem grandes interferências externas, uma vez
que, na tela de 3,5 polegadas, o vídeo ocupava apenas ¼ da imagem para se
323

aproximar do tamanho do referido dispositivo. Agora, ele ocupa a pequena tela por
completo, numa nova experiência de exibição em que lançou mão de fones de
ouvido, para que o espectador tivesse acesso ao som do vídeo. Ambos, som e
imagem, só eram acessados de maneira privada – pois para ouvir o som era
necessário utilizar o fone, e a imagem era vista apenas individualmente, devido ao
seu pequeno tamanho. A tela pequena e o som em fones remetem diretamente aos
dispositivos móveis onipresentes e que contribuíram para a instauração da
tecnoscopia contemporânea (Figura 116).

!
Figura 116. “Olho Mágico | TCP#01”, de Aldo Pedrosa. Fotografia da exibição na exposição “20 Anos
do Museu Universitário de Arte (MUnA)”. 2016-17.

A “história” e a trajetória deste trabalho explicitam sua transformação ao longo


do tempo, mostrando a capacidade de adaptação da poética, tais quais são as
capacidades dos onipresentes dispositivos tecnoscópicos – que possuem potencial
de inserção nos mais diversos ambientes. O “Olho Mágico | TCP#01”, a primeira das
tecnoscopias, se relaciona principalmente com dois dos três vértices tecnoscópicos
– voyeurismo e vigilância –, em que o observador tem a possibilidade de satisfazer
seu desejo escópico tanto nas pequenas telas como em tela grande. Por ser a
324

precursora das demais poéticas, a produção não abarcou toda a tecnoscopia, mas
abriu caminho para os seis trabalhos elaborados nos seis anos seguintes.

4.2 Telescópio (Telescope) | TCP#02 (Tecnoscopia 02)

Distância, para que o voyeur esteja seguro o bastante a ponto de “ver” sem
“ser visto”; frustração, pelo voyeur se sentir impotente diante do dispositivo óptico
que não consegue responder às suas necessidades – esses são os princípios
poéticos da produção “Telescópio | TCP#02” (“Telescope”), de 2011.
O telescópio é uma figura emblemática da prática voyeurista. O potencial
escópico desse dispositivo permite a visão à longa distância e, assim como a porta
(no caso do olho mágico e do buraco da fechadura), a distância é aqui a responsável
por velar e proteger o voyeur.
Esse mecanismo foi intensamente utilizado como tema no início do cinema.
Machado (2008) menciona que os primeiros filmes, por volta dos anos 1900,
utilizavam “máscaras circulares” nas imagens que sugeriam dispositivos de
ampliação – a princípio, a lupa e o microscópio; logo após, binóculos e telescópio
(este também chamado de luneta). Tal recurso era empregado no começo do
desenvolvimento da linguagem cinematográfica, pois ela não dispunha de outros
artifícios simbólicos para apresentar o primeiro plano 68.
Os primeiros tipos de utilização do telescópio como elemento de linguagem e
cênico no cinema eram inerentemente voyeuristas – para espiar a intimidade alheia.
Em um filme exemplar deste tipo, “As Seen Through a Telescope” (Figura 117), de
1990 e direção de George Albert Smith (1864-1959), Machado (2008, p. 127) relata
que:

[...] no primeiro quadro, o voyeur observa com sua luneta esse objeto
erótico por excelência (estamos em 1900, não o esqueçamos) que é
o tornozelo de uma mulher. No segundo quadro, nos é mostrado
aquilo que o personagem vê, o detalhe do tornozelo da mulher
isolado num primeiríssimo plano (para incrementar o erotismo, a
mulher levanta vagarosamente o vestido) e enquadrado numa

68 No início do cinema, o espectador era acostumado apenas aos planos abertos, que mostravam
cenas que se desenrolavam diante da câmera estática. Dessa forma, os primeiros planos (também
chamados de planos próximos) e os planos-detalhes eram mostrados com o uso de máscaras que
remetiam à visão de telescópios, binóculos ou lupas, para que o espectador compreendesse que se
tratava de uma imagem aproximada de um ser ou objeto.
325

máscara circular que imita o visor da luneta. O último quadro mostra


a punição clássica do voyeur. O namorado da dama se aproxima do
abelhudo e lhe desfere um golpe certeiro na cabeça.

!
Figura 117. “As seen through a telescope”, de George Albert Smith. Frames de filme em curta-
metragem. 1990. Fonte: <https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_film>. Acesso em 01/05/2017.

Importantes filmes já exploraram a carga voyeurista desse instrumento de


visão, a exemplo de “Dublê de Corpo” (“Body Double”), de 1984 e com direção do
cineasta americano Brian de Palma (1940-). Nele, o telescópio é o instrumento pelo
qual o protagonista se delicia (voyeurísticamente) com uma mulher que, todos os
dias e no mesmo horário, dança e se despe sensualmente em um prédio vizinho
(Figura 118). Com as janelas abertas e outras construções próximas, ela não se
preocupa se está em observação. A atividade a priori voyeurista (por parte do
protagonista) e exibicionista (por parte da mulher), com o avanço da trama, dá lugar
para um jogo dramático tecnoscópico que envolve também meandros de vigilância.

! !
Figura 118. “Body Double”, de Brian de Palma. Frame de filme em longa-metragem. 1984. Fonte:
<http://www.lazygirls.info/Deborah_Shelton/Body_Double35_GPLyiCT>. Acesso em 01/05/2017.
326

A proposta da produção “Telescópio | TCP#02” 69 se compõe de duas


importantes partes: um vídeo de 50 minutos, que apresenta imagens ininterruptas de
um parque avistado à distância (Figura 119) através de uma lente teleobjetiva que se
assemelha à lente dos telescópios domésticos e, assim como o “Olho Mágico |
TCP#01”, o vídeo foi editado para dar a impressão de um plano-sequência. Um
caráter de interatividade ao vídeo foi dado a partir do uso de um minitelescópio (ou
luneta) real – alterado para a proposta e que se comunica diretamente, por via
informática, com o vídeo. Tais dispositivos permitiram ao interator-es(x)pectador
reenquadrar a cena no vídeo, de acordo com os movimentos exercidos sobre o
telescópio real.

!
Figura 119. “Telescópio | TCP#02”, de Aldo Pedrosa. Frame de videoarte interativa. 2011.

A gravação do vídeo foi realizada com uma handycam semiprofissional, a


partir da janela do apartamento onde o autor do trabalho residia na ocasião (Figura
120), e direcionada para um parque localizado a 1,5 quilômetros de distância do
local. A gravação ocorreu durante duas horas e 30 minutos em um dia de feriado
nacional; por isso, o parque estava bastante movimentado.

69 Link para uma versão reeditada do vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=Qt2pHU_CGGw>


327

!
Figura 120. Janela da área de serviço do apartamento do artista, onde foi realizada a gravação do
vídeo para a produção “Telescópio | TCP#02”.

Por meio do software de programação para artistas MAX MSP (Figura 121),
foi desenvolvido um sistema de interação em tempo real, no qual o movimento
realizado pelo interator no tripé do telescópio simulou o reenquadramento da
imagem do vídeo. Nessa programação, aplicou-se um zoom digital via software,
aproximando a imagem em quatro vezes. Com isso, há um pequeno recorte da
cena, que reenquadra o vídeo a partir do enquadramento original. Tem-se agora
apenas uma parte (¼) de todo o vídeo, somado a uma ferramenta que movimenta
esse recorte para que a impressão seja de “passear” pela imagem. Esse movimento
foi possível através do uso de um mouse de computador (do modelo “mouse de
esfera”70) adaptado e integrado ao tripé do telescópio (Figura 122). Criou-se, então,
um novo dispositivo híbrido (mouse + tripé) que permitiu que os movimentos de
panorâmica71 e de tilt72 do tripé movimentassem também o cursor do mouse no
computador – da esquerda para a direita e de cima para baixo, respectivamente.
Com isso, o tripé agora fazia movimentar o ¼ de imagem dentro do “grande quadro”
do vídeo.

70Também conhecido como “mouse de bolinha”, esse mouse usa o sistema analógico (ou mecânico)
para a movimentação do cursor na tela do no computador. Hoje, tais mouses são raros, pois foram
substituídos por mouses ópticos ou a laser.

71 Movimento horizontal sobre o próprio eixo no tripé: para a esquerda e para a direita.

72 Movimento vertical sobre o próprio eixo no tripé: para cima e para baixo.
328

Figura 121. Sistema (patch) desenvolvido no software de programação MAX MSP, que permite a
interatividade na produção “Telescópio | TCP#02”.

! !
Figura 122. Telescópio e dispositivo confeccionado a partir de um mouse de computador instalado em
tripé, que permitem a interatividade na produção “Telescópio | TCP#02”.

Para que a adaptação do dispositivo do mouse de esfera na base da cabeça


do tripé se comunicasse perfeitamente com a programação realizada no MAX MSP,
foi necessário tornar muito mais sensíveis os movimentos do mouse no computador,
tendo como resultado uma produção objetual na qual o interator deve realizar
movimentos bem suaves no tripé para perseguir os transeuntes no parque ou
329

focalizar algum detalhe. Isso faz a produção assemelhar-se técnica e


simbolicamente ao ato de observar uma cena com um telescópio real – nesta, se
houver um movimento brusco, mesmo que mínimo, todo o enquadramento se
desfaz, sendo difícil voltar a encontrar aquilo que estava enfocado a priori.
Telescópios, dos gigantescos aos pequenos, são projetados para observar
objetos distantes e em quadro único, num enquadramento que deve ser fixo e
estático. Por esse motivo eles vêm, em sua maioria, munidos de outro visor,
pequeno, que amplia a imagem minimamente e é utilizado para montar o
enquadramento com maior precisão a partir de uma lente de menor aproximação e,
por isso, menos sensível à movimentação – quanto maior a “potência” da
teleobjetiva, maior é a dificuldade de enquadrar. O enquadramento ideal para esse
dispositivo sempre será estático, pois uma leve movimentação pode desfazer todo o
quadro. Por esse motivo, os telescópios são, a priori, objetos para observação
astronômica, já que astros se movimentam a velocidades ínfimas por estarem muito
distantes.
Quando se vale de um telescópio para se satisfazer no ato de espiar, o voyeur
precisa escolher seu objeto, segui-lo e fixá-lo numa operação que exige tempo e
tranquilidade. Do que serve esse dispositivo para um voyeur, se não pode ele
próprio enquadrar rapidamente o que quiser? O jogo voyeurístico frustrante é a
proposta poética de “Telescópio | TCP#02”, à medida que o interator deve ter o
máximo de paciência e atenção para observar alguma coisa de maneira eficaz. Se a
pessoa que estiver interagindo realizar movimentos bruscos, ela não verá nada além
de “borrões de pixels” espalhados pela tela.
A frustração decorre exatamente pela impossibilidade da total satisfação
voyeurística. De posse de um dispositivo (telescópio) que mira os objetos de desejo
(pessoas no parque), a satisfação se dá quando a excitante experiência de seguir e
acompanhar as pessoas que caminham for completa. Mas, pelas características
inerentes ao dispositivo telescópico, como a limitada nitidez da imagem e a falta de
definição, a experiência não se completa como se esperava, impedindo a total
satisfação. Nesses termos, Roudinesco e Plon (1998, p. 285) salientam que a
frustração é o “[...] estado em que fica um sujeito quando lhe é recusada ou quando
ele se proíbe a satisfação de uma demanda de origem pulsional”.
330

Pelo fato de a imagem do vídeo ter sido captada, editada e reprocessada com
o recurso do zoom digital (que simula a visão telescópica), ela não conta com uma
boa resolução (Figura 123). Essa é uma das poucas diferenças entre imagens vistas
em um telescópio real e as imagens captadas por uma câmera. Por ser totalmente
óptico, ele não desintegra os motivos em pixels, como faz a câmera com a imagem
eletrônica. O interator mais uma vez se torna um voyeur da própria condição da
imagem eletrônica, pois desvela sua mínima partícula formadora da imagem: o pixel,
grão quadriculado do mosaico imagético digital, por meio do qual é possível
encontrar apenas os conjuntos matemáticos da linguagem binária – não há o que
ver.

Figura 123. “Telescópio | TCP#02”, de Aldo Pedrosa. Frame de videoarte interativa. 2011.
Aproximação com zoom digital de 4x no plano geral do parque. Devido a esta aproximação, há visível
perda de definição na imagem.

Por mais exigente e frustrante que a experiência possa ser, o trabalho objetiva
estimular a curiosidade do es(x)pectador-interator, em face da promessa da invasão
das vidas alheias. O transporte espaço-temporal do interator faz com que ele ocupe
o lugar do voyeur e, mesmo frustrado, pode notar as particularidades das pessoas,
331

supor suas personalidades, adivinhar seus atos, julgar seus defeitos ou admirar suas
qualidades.
Outro aspecto que o trabalho põe em causa diz respeito à possibilidade de
“passear” pela cena como se “zapeasse” de uma para outra pessoa ou de um grupo
a outro, a exemplo do que o telespectador faz com os canais na televisão ou com os
conteúdos na internet. No entanto, ao decidir mudar o enquadramento, o voyeur
perderá a visão do todo, assim como o “zapper” perde a programação do outro canal
ou pode não conseguir mais encontrar o conteúdo antes visualizado.
Machado (1996, p. 163) observa proximidades entre o uso de um telescópio e
o efeito zapping da TV no filme “Janela Indiscreta” (“Rear Window”), exemplo
significativo do voyeurismo no âmbito do cinema (já descrito no item 1.3.2.2) em que
o voyeur, Jeff, por meio da teleobjetiva de sua máquina fotográfica, se esforça para
observar o que se passa em várias janelas simultaneamente, mas, ao focar em uma
cena, as outras se perdem:

Poder-se-ia dizer que Jeff, sem o saber, “zapeava” de uma janela a


outra e obtinha, como resultado final, o mesmo efeito de pluralidade
e simultaneidade do zapping? Aqui está precisamente a diferença.
Numa narrativa “clássica” como “Rear Window”, calcada no modelo
do romance oitocentista, as várias histórias simultâneas constituem
apenas um álibi do narrador, para fazer triunfar a unidade no
momento conveniente. De fato, à medida que avança a intriga
principal (o suposto crime que teria acontecido numa das janelas), as
outras intrigas particulares convergem todas para ela: Jeff telefona
para a polícia para avisar que a mulher da janela A pretende cometer
suicídio; mas o gesto da mulher é interrompido pela música que brota
da janela B, uma serenata que o pianista executa para a bailarina da
janela C; nesse instante, Linda – a noiva de Jeff – é surpreendida
pelo assassino na janela D e o fotógrafo, na janela E, aproveita o
telefonema para denunciar a agressão à mulher. Tudo vai se
amarrando e convergindo para o desfecho redentor e catártico. Ora,
o que se passa com o efeito zapping é justamente o contrário: temos
inicialmente narrativas fechadas, organizadas, coerentes e o gesto
do “zapper” consiste exatamente em desmantelá-las, confundi-las,
triturá-las até o limite da desconexão absoluta.

O ato de “zapear” com o telescópio se torna algo intuitivo para o interator, mas,
assim como abordou Machado (1996) no caso do zapping na TV, diante do
“Telescópio | TCP#02”, o sujeito desconstrói a narrativa ao ficar “zapeando” pelas
diversas “narrativas pessoais” dos transeuntes; logo, não retém uma “narrativa
máster”, pois o “zapper” não tem a visão do todo – o interator pode criar a própria
narrativa a partir das escolhas escópicas –, assim como faz um montador de cinema
332

na sala de edição. Interagir com o objeto e a imagem em “Telescópio | TCP#02”


significa escolher, montar, cortar e procurar. Nos pequenos movimentos possíveis de
se fazer com o telescópio, há inúmeras possibilidades, mas, mesmo assim, a
narrativa não oculta o grande passeio e converge para ele. Repetitivo e banal, esse
passeio, reforçado pela melodia também repetitiva “Boléro”, de Maurice Ravel
(1835-1937). Esta música, composta pelo músico francês em 1928, se mostrou
como opção de reforçar a a banalidade do vídeo. Com longa duração (14’10”), a
melodia repete sempre os mesmos movimentos, variando apenas em sua
intensidade, o que explicita que “Telescópio | TCP#02” não possui um clímax ou um
desfecho – o cotidiano, até nos feriados, não permite surpresas.
Essa produção foi exibida na exposição “Panóptico” (Figura 124), ocorrida no
Centro de Cultura José Maria Barra, na cidade de Uberaba, em 2012, e pode ser
acessada no ambiente virtual “Panóptico”, disponível no site <http://
www.panoptico.com.br>. No primeiro caso, ela foi exibida conjuntamente com os
outros três primeiros vídeos autorais tecnoscópicos, e, no site, ela foi acompanhada
por “Olho Mágico | TCP#01” e “À Espreita | TCP#04”, conforme já descrito no item
4.1 desta tese.

!
Figura 124. “Telescópio | TCP#02”, de Aldo Pedrosa. Fotografia da exibição na exposição “Panóptico”.
2012.
333

No ambiente virtual “Panóptico”, o “Telescópio | TCP#02” não conta com


interatividade. Devido às características do projeto e a outras questões inerentes ao
próprio ambiente online, deu-se preferência pelo uso do vídeo em quadro aberto e
câmera fixa. No entanto, para ressaltar a simbologia imagética do objeto telescópico
em si, agregou-se à imagem uma máscara circular (Figura 125) que remete tanto à
lente do dispositivo quanto às primeiras produções voyeuristas da história do
cinema73.

!
Figura 125. “Telescópio | TCP#02 | Versão_02”, de Aldo Pedrosa. Frame da videoarte com máscara
circular. 2012.

4.3 Janela (Window) | TCP#03 (Tecnoscopia 03)

Dubois (1993) conta que, certa vez, Janouch mostrou a Franz Kafka uma
série de fotografias, dizendo: “Por mais ou menos duas coroas, é possível fazer com
que alguém o fotografe sob todos os ângulos. É o conhece a ti mesmo automático!”
Kafka responde: “É o engane a ti mesmo automático”. Janouch, então, protesta: “Por
que diz isso? O aparelho não consegue mentir!” E Kafka assim termina: “A fotografia
concentra seu olhar sobre o superficial. Desse modo, obscurece a vida secreta que
brilha por meio dos contornos das coisas num jogo de luz e sombra”.

73 Link para esta versão do vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=03RhxWt4A0A>


334

A produção intitulada “Janela | TCP#03” (“Window”), também realizada em


2011, encarna em si o diálogo acima descrito. É inerente às imagens maquínicas a
discussão sobre realidade, ficção, verdade, mentira e natureza indicial da imagem
tecnologicamente captada. Logo, parte-se dessas questões para refletir sobre a
natureza do sujeito voyeur e do exibicionista. O trabalho é composto pela exibição
de um vídeo, gravado da janela do apartamento que o artista residia. A imagem
mostra outra janela (Figura 126), captada à noite e fechada, onde cortinas azuis
semitransparentes expõem os contornos silhuetados e os detalhes dos objetos do
local e das pessoas que ali passam, devido à luz que irradia de seu interior. Esse
lugar, por conta da transparência da cortina, não esconde por completo o que está
no interior, mas vela o suficiente para que haja a curiosidade de imaginar o que ali
se encontra.

!
Figura 126. Imagem da janela do apartamento vizinho ao do artista, Aldo Pedrosa, de onde foram
captadas as imagens para a videoarte interativa “Janela | TCP#03”.

A imagem da janela foi gravada por três horas e, a posteriori, editada para
ficar em tela apenas os momentos nos quais a luz interior do apartamento
permanecia acesa, resultando em um pseudo-plano-sequência de uma hora de
duração. Em decorrência disso, houve novamente o uso do software de
programação para artistas MAX MSP, com vistas a possibilitar uma interação em
335

tempo real. Nas exibições, o vídeo rodou intermitentemente e em loop, ao passo que
recebia imagens captadas ao vivo por uma webcam disposta ocultamente na galeria
de arte (Figura 127).

!
Figura 127. Webcam instalada no interior da galeria para a captação das imagens para a videoarte
interativa “Janela | TCP#03”.

Essas imagens eram exibidas com um delay (atraso) de cinco minutos a partir
da captação. A programação no software MAX MSP fundiu as duas imagens com a
técnica de incrustação74, conhecida também como chroma key (Figura 128). O vídeo
captado pela webcam oculta é “fundido” (“incrustrado”) no primeiro vídeo com a
imagem da janela. O chroma key utilizado apenas na cor azul permite que as
imagens ao vivo pareçam estar por detrás das cortinas semitransparentes e, então,
os es(x)pectadores-interatores passam a fazer parte daquele local onde
anteriormente havia apenas a janela e a cortina. Com determinados efeitos técnicos
executados no MAX MSP, a imagem subexposta à cortina adquire tons escuros e
silhuetados. Vê-se então aquilo que a câmera em delay captou há cinco minutos,
exposto como se estivesse no local (quarto ou sala do apartamento) e por trás das
cortinas (Figura 129). A “incrustação” também acontece de forma temporal, em que
passado e presente se unem entre o distante e o local – tudo isso permite que o
voyeur observe a si mesmo.

74 Segundo Dubois (2004), a técnica de inscrustração diz respeito à separação de um sinal de vídeo,
de acordo com sua crominância ou lumância, em que se cria um “buraco eletrônico” na imagem, que
pode ser então preenchido com outra imagem. Ou seja, em uma determinada imagem é selecionada
uma cor específica que, por sua vez, é retirada do vídeo, deixando essa parte em transparência para,
logo após, outra imagem ser inserida no local.
336

!
Figura 128. Sistema desenvolvido com software de programação MAX MSP, que permite a
interatividade na videoarte “Janela | TCP#03”.

!
Figura 129. “Janela | TCP#03”, de Aldo Pedrosa. Frame da videoarte interativa. 2011.
337

As janelas de casas e edifícios contemporâneos esboçam um mosaico de


fissuras na paisagem urbana, mas permanecem na maioria do tempo fechadas, na
tentativa de manter a segurança do local. Ironicamente, as telas de TV,
computadores, smartphones e demais dispositivos móveis costumam ser janelas
contemporâneas tão abertas quanto convidativas. A janela dessa produção
permanece constantemente fechada e não abre, mas, juntamente com seu aparato
de vedação, a cortina, falha no cumprimento da função principal: ocultar tudo aquilo
que está no interior do local. A responsável pela falha é a luz, elemento primordial
para a geração das imagens maquínicas (e a visualização de qualquer imagem, é
claro), sendo reveladora daquilo que deveria estar oculto.
Da mesma forma que ela transforma a matéria em imagem (química ou
eletrônica), a luz ativa a transparência do tecido da cortina, trazendo à tona a
imagem de seu interior. No entanto, quando o es(x)pectador se aproxima da
satisfação voyeurista ao dirigir um olhar curioso, atencioso e fetichista para o local e,
então, tentar imaginar ou descobrir o que se passa por trás daquelas cortinas, há a
surpresa: o es(x)pectador (agora interator) começa a fazer parte do próprio vídeo,
está dentro daquele local e se torna vítima de seu próprio voyeurismo, passando a
ser um voyeur de si mesmo.
“Conhece a ti mesmo automático!”. Retomar a frase de Janouch permite
analisar o momento em que o voyeur se “re-conhece” como o objeto fetichizado que
esperava; mas não seria, então, “engane a ti mesmo automático”, retomando Kafka?
À medida que o observador enganado pelo dispositivo técnico programador da obra
revela ali, atrás das transparentes cortinas, sua própria face, ele, agora ativo na
obra, descobre que o vídeo não se trata unicamente de uma imagem de registro
voyeurista e “real” ou de uma mise-en-scène previamente produzida, e sim uma
soma de camadas: uma que pertenceu outrora a determinado local “real” no tempo
passado, enquanto outra pertencente ao aqui e agora ou, mais especificamente, a
poucos minutos no tempo.
A partir do momento em que o observador descobre o observado e é pego de
surpresa em sua atividade marginal de espiar ou espionar, ele se vê entregue à
vergonha de ser descoberto. Consequentemente, ver-se por detrás das cortinas de
“Janela | TCP#03” também revela seu ato voyeurista em prática: a perversão. Cabas
(2010) aborda que muitas neuroses contemporâneas advêm do recalcamento de
338

uma pulsão. A pulsão escópica toma para si um caráter de marginalidade, e aqueles


que dela se nutrem correm o risco de receber juízos depreciativos a todo o
momento. Então, “Janela | TCP#03” pode representar em parte esse recalque, ao
passo que ela acusa o voyeur, ao mostrá-lo a todos ali presentes (observadores na
galeria) e ao próprio acusado seu “ato ilícito e perverso”. Segundo Lacan (1985b), o
“olhar” no ato voyeurista só se revela quando o voyeur é pego em flagrante e,
enquanto objeto, está sempre perdido, mas é encontrado na conflagração da
vergonha.
Carvalho (2011, p. 126), ao analisar uma citação de Lacan, faz uma
importante observação:

O que o voyeur procura e acha é apenas uma sombra, uma sombra


detrás da cortina. Aí ele vai fantasiar: a mais graciosa das mocinhas,
mesmo que do outro lado haja apenas um atleta peludo. [...] O que
se olha é aquilo que não se pode ver. [...] A fantasia é a sustentação
do desejo; não é o objeto que é a sustentação do desejo.

A fantasia do pré-voyeurismo imaginativo em busca da satisfação é, sem


dúvida, o que instiga o desejo do voyeur. Ao olhar para a semitransparência de uma
cortina, a imaginação pode projetar um objeto de desejo: uma mulher após o banho,
um casal na intimidade, uma cena de assassinato etc. Os vultos silhuetados podem,
inclusive, ser materializadores desses objetos de desejo, e o observador pode crer
piamente que aquela silhueta que ali passou foi o que pensou ter visto ou que quer
tanto ver.
Nesses termos, a frustração do flagrante, a angústia da vergonha e o
descontentamento ocorrem quando se descobre que quem está por trás das cortinas
da “Janela | TCP#03” é o próprio observador. O sentimento é, ao mesmo tempo,
criminoso (espião) e de vítima (espiado) num contexto tecnoscópico. Dubois (1993,
n.p.) disse que Kafka apontava o instante em que se “[...] obscurece a vida secreta
que brilha por meio dos contornos das coisas num jogo de luz e sombra”.
Na produção, a vida secreta revelada no jogo de luz e sombra no qual se
veem apenas as silhuetas daqueles seres descobertos nada se difere da vida do
próprio observador, pois se trata da própria vida dele. Na contemporaneidade, a
necessidade de “ver” o outro pode mostrar que nada há nos demais, além de
espelhos que refletem a própria imagem de quem olha. O “autovoyeurismo”
acontece a todo o momento, mesmo que de forma involuntária, e isso se intensifica
339

com o exibicionistmo contemporâneo. Hoje, com a multiplicação dos dispositivos


tecnoscópicos que permitem “ver” e “ser visto”, não é mais uma “[...] figura de
linguagem dizer, como os psicanalistas, que as pedras nos veem. Os olhos estão
não apenas fora de nós, mas também fora do vivente como espécie” (MACHADO,
1996, p. 229).
Conjugado ao “autovoyeurismo”, o trabalho propõe também um jogo
exibicionista, visto que os es(x)pectadores-interatores na galeria podem se
interessar em participar do jogo conscientemente, após se descobrirem na imagem;
e se aventurar a ter sua imagem captada agora por vontade própria, para se verem
novamente atrás das cortinas azuis. É provável que muitos interessados pela
interatividade posem diante da câmera (descoberta) e “brinquem” com a situação.
Nesse ponto, o voyeurismo se torna exibicionismo e se instaura um jogo
tecnoscópico de fato, posto que há também meandros de vigilância na atividade,
dada a presença da câmera oculta em ângulo alto (que remete às câmeras de
vigilância). Nota-se que o exibicionismo só ocorrerá em um segundo momento de
fruição e interação com o trabalho, mas tende a acontecer na maioria dos casos.
A condição dos sujeitos em passar de observadores para observados no
âmbito tecnoscópico é o principal ponto de reflexão de tal poética. Para Carvalho
(2011, p. 126), a excitação proveniente desse tipo de jogo:

[...] só existe onde há risco – nesse caso o risco de ser visto. Não
seria descabido pensar no ato do voyeur como um desejo
dissimulado (e espelhado em sua presa) de ser visto, como nos
jogos infantis em que se esconder é uma forma de chamar a atenção
para si mesmo.

O automatismo do vídeo interativo “Janela | TCP#03” cumpre o papel de


enganar o voyeur, pois, de acordo com Assoun (1999, p. 179), a janela “[...] prende o
olhar e o configura [...] em seu enquadramento, recorta a relação entre dentro e fora,
de que o olhar faz o contorno”, num jogo invertido que traz aquele que deveria estar
fora (sujeito voyeurista) para dentro (voyeur descoberto ou exibicionista). Esses
conceitos são aproximados e confrontados na realidade tecnoscópica, à medida que
o papel ativo do observador se inverte para passivo – e novas inversões que podem
ocorrer a todo o momento.
Assim como “Olho Mágico | TCP#01” e “Telescópio | TCP#02”, esta produção
foi exibida na exposição “Panóptico” (Figura 130), conforme descrição no item 4.1.
340

Interessante dizer que as demais produções dispostas no espaço serviram para


potencializar essa poética, pois o sujeito captado ocultamente pela webcam era
flagrado em outras observações e interações voyeuristas ou vigilantes. Com isso, a
revelação do voyeur se intensifica não apenas por esperar ver algo voyeurista
unicamente em “Janela | TCP#03”, mas por já ter satisfeito sua pulsão outras vezes,
com outras imagens presentes no “Panóptico”; agora, o flagrante do voyeurismo é
apresentado ao público e ao próprio es(x)pectador.

!
Figura 130. “Janela | TCP#03”, de Aldo Pedrosa. Fotografia da exibição na exposição “Panóptico”.
2012.

4.4 À Espreita (Lurking) | TCP#04 (Tecnoscopia 04)

A produção “À Espreita | TCP#04” (“Lurking”) foi realizada em 2012 e propõe


relações entre os vértices voyeurista e vigilante da tecnoscopia, sendo uma das
poéticas deste autor com mais enfoque nas questões de vigilância em comparação
às demais. Nessa proposta, o vigia tem acesso à multidão de pessoas por meio de
341

uma visão privilegiada: um campo amplo de visão numa posição superior que o
permite “ver” sem “ser visto”.
Na poética, as figuras do vigia e do voyeur se confundem, uma vez que o
observador assume o lugar de um detetive que se coloca em tocaia, à espreita, com
a finalidade de descobrir algo estranho ou suspeito nos comportamentos habituais e
cotidianos de pessoas desconhecidas ou não. É tanto mais voyeurista, devido à sua
intenção de submeter sujeitos comuns ao seu olhar curioso, atencioso e fetichista;
quanto vigilante, frente às questões inerentes ao ato de espionar ocultamente, com a
intenção prática de descobrir algo. O princípio desse vídeo é simples: novamente a
partir da janela do apartamento onde o artista residia, foram captadas imagens do
movimento de uma avenida (Figura 131). Pessoas, veículos, animais passaram por
ali durante todo o dia – foram 10 horas de gravação ininterruptas que mostraram, do
amanhecer ao pôr do sol, a movimentação de um dia comum nesse local.

!
Figura 131. “À Espreita | TCP#04”, de Aldo Pedrosa. Frame da videoarte. 2012.

Benjamin (1994), ao se referir ao início do cinema sonoro na primeira metade


do século XX, analisou como as massas eram retratadas nos programas chamados
de “atualidades da semana”, informativo rápido, de caráter jornalístico ou de
entretenimento, que era exibido antes dos filmes no cinema (Figura 132). Nos
informativos eram apresentadas as imagens da multidão para ela mesma, que
342

assistia com curiosidade e espanto, pois havia a chance de as pessoas se verem na


tela do cinema. Para o autor:

[...] a reprodução maciça corresponde principalmente à reprodução


das massas. Nos grandes desfiles festivos, em reuniões gigantescas,
em espetáculos de massas de tipo desportivo e na guerra, todas elas
captadas por equipamento visual e sonoro, as massas reveem-se a
si próprias. Este processo, cuja amplitude não necessita de ser
acentuada, está intimamente ligado ao desenvolvimento das técnicas
de reprodução e registro. Os movimentos de massas apresentam-se
mais nitidamente, em geral, às aparelhagens do que ao olhar.
Enquadramentos de centenas de milhares de pessoas apreendem-se
melhor de uma perspectiva aérea. E mesmo que esta perspectiva
também seja acessível ao olho humano, a imagem obtida pelo olhar
não é passível da reprodução que a fotografia possibilita. Quer isto
dizer que os movimentos de massas, incluindo a guerra, representam
uma forma particular de correspondência do comportamento humano
à técnica dos aparelhos (BENJAMIN, 1994, p. 19).

!
Figura 132. “A woman grasps a soldier as infantry march to the front line in August 1914 in Berlin”,
autor desconhecido. Frame de filme em curta-metragem. 1914. Fonte: <https://www.usnews.com/
news/articles/2014/07/30/world-war-i-the-1920s-and-modern-cool>. Acesso em 01/05/2017.

De forma semelhante às multidões captadas audiovisualmente no decorrer da


história, o vídeo “À Espreita | TCP#04” tenta representar o movimento da multidão a
partir do registro de centenas de transeuntes, por meio de uma visão quase aérea
343

(apartamento alto). Assim como em “Telescópio | TCP#02”, a câmera (visão) está


distante e no alto, mas, diferentemente deste, “À Espreita | TCP#04” apresenta um
quadro aberto, enquanto o primeiro fecha a imagem.
O quadro do “Telescópio | TCP#02” talvez seja mais voyeurista por isso, pois
é fechado e concentrado nos detalhes, enquanto “À Espreita | TCP#04” oferece uma
visão mais vigilante, em que tenta representar o todo para haver a varredura do
olhar em plano geral, dando ao espião (vigia) a possibilidade de ver tudo ao mesmo
tempo. Para contribuir nessa questão, as 10 horas de imagens captadas foram
editadas a partir do recurso de “câmera rápida”, com o aumento da velocidade em
cinco vezes, comparada à velocidade normal (500% vezes a taxa de frames por
segundo), para que o voyeur-vigilante veja em pouco tempo muito daquilo que se
passa, como se acelerasse a imagem registrada numa sala de controle e
monitoramento de vigilância pública. O resultado é um vídeo de uma hora e 38
minutos de duração75 .
Aumont (2004) aponta que os primeiros filmes de Lumiére eram encantadores
ao público devido ao que ele chama de “efeitos de realidade quantitativos”,
referindo-se ao grande número de pessoas representadas nas cenas. Em “La Sortie
de l’Usine Lumière à Lyon” (Figura 133) ou em “Place dês Cordeliers à Lyon”, ambos
de 1895, as personagens são vistas como independentes umas das outras, fazendo
com que as pessoas ficassem “[...] encantadas ao descobrir, na décima vez que
veem o filme, um gesto, uma mímica que até então não havia escapado: a cada
instante acontece alguma coisa, e quantas se quiser, ou quase” (idem, p. 33).
Não se espera que o público em geral tenha hoje a mesma reação diante da
produção “À Espreita | TCP#04”, pois tal encanto se deve também à novidade que
era a imagem em movimento naquela época, e até os mais banais dos atos
apareceriam instigantes quando projetados. Mas tal aproximação se justifica, pois a
proposta reside na tentativa de instigar o interesse do observador, mesmo com a
banalidade das imagens e, para isso, são utilizados alguns artifícios aqui descritos.
Em outra relação com os primórdios da produção fílmica, o aumento na taxa
de quadros para acelerar a velocidade da cena remete aos filmes do início do
cinema, que apresentavam uma taxa de 18 quadros por segundo. Quando
projetados em sistemas de 24 qps ou 30 qps, como os usados atualmente, eles

75 Link para uma versão reeditada do vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=5Hj1MVePr-4>


344

oferecem uma imagem visivelmente acelerada. Esse recurso permeia a produção


com um certo “humor”, mas não deixa de remeter às buscas feitas em vídeos
produzidos por câmeras de vigilância, nas quais as imagens podem ser aceleradas
para procurar detalhes significativamente importantes da captação, do mesmo modo
que os players de vídeo, desde o videocassete até os softwares digitais. Hoje, no
âmbito de uma “tecnoscopia inteligente”, softwares de reconhecimento facial e de
análises de padrão de comportamento auxiliam o vigilante na tarefa de varrer toda a
captação videográfica – em alguns casos, reconhecimentos e análises são
realizados em tempo real, ou seja, no ato da própria captação vigilante e pela
própria máquina.

!
Figura 133. “La Sortie de l'usine Lumière à Lyon”, de Auguste e Louis Lumière. Frame de filme em
curta-metragem. 1895. Fonte: <http://www.grandpalais.fr/fr/article/la-sortie-dusine-lumiere-par-les-
cineastes-contemporains>. Acesso em 01/05/2017.

Para ressaltar ainda mais o caráter vigilante da produção e, ao mesmo tempo,


promover uma forma de interatividade com ela, ao lado da tela onde as imagens são
vistas há um sistema de registro de fatos, dado por um relatório que o es(x)pectador
345

pode preencher no momento em que vê o vídeo (Figura 134). Esse relatório traz
algumas fichas em papel com perguntas relativas a possíveis situações que podem
(ou não) ser vistas na tela, e o participante pode anotar as respostas diretamente
nos formulários. Tais informações têm a intenção de estimular a curiosidade diante
do trabalho e trazem um caráter investigativo, esperando-se que o espião tenha
pleno conhecimento de tudo o que se passou ali.

!
Figura 134. Ficha disponibilizada, em grande quantidade, próxima à tela de exibição da videoarte “À
Espreita | TCP#04”, para anotação dos es(x)pectadores.
346

As questões elencadas no formulário proporcionam a curiosidade diante da


imagem e, ao mesmo tempo, se apresentam como metáforas para uma forma de
vigilância contemporânea (principalmente banóptica e, em certa medida, sinóptica):
aquela realizada por todos, a todo o momento. Não seria o homem contemporâneo
um intermitente vigilante da moral (dos atos alheios)? Ele não estaria pronto para
delatar o próximo quando não se comporta de acordo com as normas da sociedade
contemporânea (ou conforme aquilo que o delator julga ser correto)? A delação pode
ser feita para a polícia, o diretor da escola, o chefe, os pais, o vizinho, o marido ou a
mulher traída, a vigilância sanitária, o padre ou o pastor etc. Assim, neste trabalho,
os próprios olhos dos sujeitos, mediados pela máquina, trazem um tipo “bio-
panoptismo imaterial”.
“À Espreita | TCP#04” procura colocar o es(x)pectador na posição de
testemunha e de carrasco, com a possibilidade de ver e delatar, ser ele o próprio
censor do que quiser, uma vez que tem os “olhos de Deus”, que podem ver e julgar
a todos os “vistos”. No final da exibição do vídeo são apresentadas as respostas
para as indicações informadas nas fichas. Dessa forma, ter-se-á uma mostra do
número de fatos e infrações que supostamente aconteceram.
Cabe ao observador aceitar ou não as respostas para as perguntas que se
dedicou a responder. O ato “ver”, mesmo com intensa atenção, é permeado por
questões subjetivas que podem influenciar na “verdade” – talvez, uma tentativa de
furto vista por um sujeito não corresponda a isso para outro e vice-versa. No final, as
curiosidades poderão ser saciadas ou mais uma vez frustradas no jogo vigilante-
voyeurista de quem está à espreita. Ao identificar e delatar os infratores na cena, o
es(x)pectador pode, ao mesmo tempo, se deliciar voyeuristicamente com a cena
vista. Mas fica a incógnita: a última informação do formulário pede para que o
vigilante delate possíveis voyeurs; será que ele delatará a si mesmo?
Juntamente com as três últimas produções elencadas – “Olho Mágico |
TCP#01”, “Telescópio | TCP#02” e “Janela | TCP#03” –, este trabalho também foi
exibido na exposição “Panóptico” (Figura 135) e participa do ambiente virtual
“Panóptico”, disponível no site <http://panoptico.com.br>, com os vídeos “Olho
Mágico | TCP#01” e “Telescópio | TCP#02”, conforme descrito no item 4.1. “À
Espreita | TCP#04” fecha as quatro poéticas realizadas no âmbito do mestrado,
347

dando condições para as próximas produções que começaram a definitivamente


trilhar um “caminho” rumo à tecnoscopia de per si.

!
Figura 135. “À Espreita | TCP#04”, de Aldo Pedrosa. Fotografia da exibição na exposição “Panóptico”.
2012.

4.5 Le Voyeur {Paris Hôtel} | TCP#05 (Tecnoscopia 05)

Em 2013 foi realizada a videoarte “Le Voyeur {Paris Hôtel} | TCP#05” (“O
Voyeur {Hotel em Paris}”). Essa foi a primeira proposta poética produzida no âmbito
do estudo de doutorado do autor desta tese, ainda com base nas discussões
iniciadas no mestrado. O vídeo apresenta um mosaico de imagens voyeuristas
(Figura 136), compostas por dois elementos-chave. O primeiro, mostra um grande
quadro estático com uma imagem fixa em um único eixo que capta a fachada de um
prédio com 12 janelas. Esse, por sua vez, é rodeado por um mosaico com outros 14
348

pequenos quadros (segundo elemento) que mostram imagens em movimento e


enfocam diferentes janelas do mesmo prédio.

!
Figura 136. “Le Voyeur {Paris Hôtel} | TCP#05”, de Aldo Pedrosa. Frame da videoarte. 2013.

O edifício captado se refere a um hotel situado no bairro Quartier Latin em


Paris, França. Foram gravadas várias horas de imagens das janelas de alguns
apartamentos desse prédio que mostram desde situações corriqueiras, como uma
mãe cuidando de um bebê e casais de idosos conversando, até cenas íntimas, como
pessoas trocando de roupa e um ato sexual. Assim como na produção “Janela |
TCP#03”, a maioria das cenas dão a visão de corpos silhuetados por detrás de
cortinas semitransparentes.
A edição final culminou com um vídeo em single-channel de 13 minutos de
duração, composto por 15 quadros76. A montagem das cenas em mosaico privilegia
uma dispersão do olhar, pois tais quadros funcionam como diferentes “janelas”
videográficas que exibem, por sua vez, outras 26 janelas (“reais”), cada qual com

76 Link para esta versão do vídeo: <https://www.youtube.com/watch?v=SXEt86NADM8>


349

cenas diversas que impossibilitam a captação do todo ao mesmo tempo – a um só


olhar: é necessário escolher uma janela e mantê-la em foco, para que a cena
selecionada seja visualizada na íntegra.
No quadro central (Figura 137), a câmera estática mostra um plano master77,
com a parte superior da fachada frontal do hotel que contém 12 janelas de 12
diferentes apartamentos. Nelas há pouco movimento: vê-se esporadicamente uma
ou outra pessoa que cruza a luz do quarto e projeta sua silhueta na cortina. A
arquitetura estática e simétrica do conjunto de janelas escolhidas reforça a ideia de
imobilidade, assemelhando-se à impressão dada em “Empire”78, de Andy Wahrol. O
local escolhido pelo artista para dar lugar ao quadro master e central se deve à
simetria do conjunto, que distribui harmoniosamente diferentes grades e detalhes
das sacadas a partir de um eixo central e vertical. Essa imobilidade, somada à
harmonia axial simétrica da cena central, se contrasta com as demais imagens que a
cercam, pois traz cenas com movimentos de câmera – alguns são sutis, mas a
maioria é relativamente brusca, por conta das trepidações ocasionadas pelo uso do
zoom e da câmera na mão.
As imagens em movimento e trepidadas dão a sensação de uma captação
voyeurista, principalmente pela instabilidade e o “descuido” formal remeterem a
registros e gravações amadoras. Em contrapartida, a imagem estática central
concerne à vigilância, justamente pela imobilidade comum das câmeras de vigília.
Os habitantes desses quartos não se preocupam com a transparência das cortinas
que explicitam sua intimidade: o que fica evidente no ato sexual gravado,
aparentemente homossexual masculino, ou em outro quarto, onde se veem
indivíduos usando o sanitário de um banheiro situado em frente à janela. Supõe-se
que essas pessoas confiavam no potencial de vedação das cortinas e não sabiam
da semitransparência. Mas essa suposição parece inverídica, pois se sabe que a
cortina é transparente em ambas as faces: se ela gera a transparência para quem vê
de fora, isso também é notado por quem está dentro, dado que o sujeito consegue

77 Um plano master é um tipo de tomada cinematográfica em que a câmera fica sempre fixa e, assim,
pode acompanhar o desenrolar da cena a partir do movimento de panorâmica (girando em seu
próprio eixo, para a esquerda ou para a direita) ou do movimento tilt (vertical, para cima e para baixo).
Mas no caso da produção “Le Voyeur {Paris Hôtel} | TCP#05”, o plano master é estático.

78 Produção analisada no item 1.2.2 desta tese.


350

ver o que há na parte externa. De fato, a iluminação é importante: se há mais luz do


lado de dentro, a cena iluminada é melhor vista que o exterior escuro.

!
Figura 137. “Le Voyeur {Paris Hôtel} | TCP#05”, de Aldo Pedrosa. Frame da videoarte com close no
quadro central. 2013.

Mesmo diante dessas questões, não há a ignorância completa por parte de


quem é visto, pois, de fato, não se preocupa com quem o vê. Isso revela um caráter
de certa maneira exibicionista das pessoas que ali mostram sua intimidade sem se
preocuparem que alguém as veja. Talvez elas suponham que não haja voyeurs no
prédio vizinho ou, então, se exibir seja algo natural de suas vidas, principalmente
num ambiente tecnoscópico que “derrubou” antigas barreiras que definiam as cenas
que seriam íntimas e deveriam continuar privadas.
Essas características que apontam para o voyeurismo, a vigilância e o
exibicionismo revelam um potencial tecnoscópico maior neste trabalho, se
comparado às produções autorais anteriores. Isso demonstra um amadurecimento
poético por parte do artista-pesquisador, uma vez que o vídeo fora realizado durante
os primeiros meses do estudo de doutorado, em que já havia a proposta de
estabelecer uma discussão que reunisse o voyeurismo, o exibicionismo e a
351

vigilância numa abordagem única, inclusive poética. Enquanto as primeiras quatro


produções tendiam mais para o voyeurismo e a vigilância, “Le Voyeur {Paris Hôtel} |
TCP#05” já trouxe uma poética que inseria o exibicionismo na discussão e iniciava
uma reflexão sobre a realidade tecnoscópica – e isso se manteve nas duas
produções que serão analisadas a posteriori.
Nesse sentido, o exibicionismo dos habitantes dos quartos dispostos nas
janelas que envolvem o quadro central (vigilante) foi captado por um “zoom
voyeurista” que explicita a exibição da intimidade, à medida que coloca o
es(x)pectador muito próximo à cena. Cada um dos quadros-janelas conta uma
diferente “história” que pode ser acompanhada ao longo dos 13 minutos do vídeo.
No momento da edição, os quadros foram montados separadamente e tidos como
microvídeos independentes. Depois, foram superpostos para comporem o mosaico e
exibirem uma narrativa de vidas cotidianas.
Os prédios são figuras com uma forte simbologia tecnoscópica,
principalmente no âmbito do voyeurismo, muitas vezes abordado como tema em
obras visuais contemporâneas, a exemplo de “Empire”, de Andy Warhol, e de outras
produções como “Tokyo Decadence”, de Ryû Murakami, “Dirty Window”, de Merry
Alpern, “151 Pitt St.”, de William Mansfield e “Seitenflügel”, de Eve Sussman. Já o
prédio enquanto hotel também se configura como um elemento com grande
potencial simbólico no âmbito do “ver” e “ser visto”, apresentando-se como temática
de diversas obras, a exemplo de “The Hotel, Room 47”, de Sophie Calle e “Sunrise
Hotel”, de Emiliano Ponzi e Giacomo Benelli.
Considera-se que os prédios e hotéis possuem forte simbolismo
tecnoscópico, principalmente devido às inúmeras janelas que trazem grande
potencial de “ver”, pois permitem a visão ou a invisibilidade da intimidade dos
diversos habitantes do interior de vários ambientes, enquanto residências comuns
oferecem pouco atrativo voyeurista, dada a pequena quantidade de potenciais
intimidades a “serem vistas”. Assim, um hotel contribui ainda mais para a atração do
voyeur, uma vez que seus quartos se apresentam como lugares de trânsito e
oferecem rotatividade de pessoas e variedade de “vidas” a serem observadas.
Cabe aqui retomar, novamente, o filme “Janela Indiscreta”, de Alfred
Hitchcock, com certeza uma das maiores referências culturais para o voyeurismo. As
janelas nesse longa-metragem também se constituem como mosaicos
352

intermitentemente observados pelo protagonista que “zapeia”79 pelas janelas. Da


mesma forma que em “Le Voyeur {Paris Hôtel} | TCP#05”, se o observador escolher
ver por uma janela em específico, ele perderá a visão de outra janela, assim como o
protagonista do filme de Hitchcock e o es(x)pectador-interator em “Telescópio |
TCP#03”.
Outro filme de Alfred Hitchcock relevante para o voyeurismo e que traz um
hotel como elemento narrativo é “Psicose” (“Psycho”), de 1960. Na trama, a
personagem Marion Crane se esconde em um decadente hotel, após ter roubado
uma grande quantia de dinheiro de seu chefe. Esse hotel é dirigido por Norman
Bates, que revela ser um serial killer. Antes de assassinar a protagonista, Bates
espia sua vítima se despindo, através de um orifício escondido que dá a vista para o
quarto da personagem (Figura 138); e antes de se mostrar como assassino, ele
aparece como um voyeur, que usa a arquitetura do estabelecimento, o Hotel Bates,
para satisfazer seus desejos voyeurísticos e sádicos, ambos parafílicos de fato.

!
Figura 138. “Psycho”, de Alfred Hitchcock. Frame de filme em longa-metragem. 1960. Fonte: <https://
blogcapucine.wordpress.com/tag/psycho/>. Acesso em 04/05/2017.

Bates mata sua vítima durante o banho, o que torna o assassinato um


substituto do sexo com a personagem. Em 1998, o cineasta americano Gus Van

79 Ver sobre o efeito de “zapper” no filme “Janela Indiscreta”, no item 4.2 desta tese.
353

Sant (1952-) dirigiu um remake do filme de Hitchcock. Nele, Sant preferiu enfatizar
ainda mais o voyeurismo sexual da cena em que Bates espia Crane, ao mostrar o
assassino se masturbando enquanto vê sua vítima (de voyeurismo e de
assassinato). Vale dizer que os hotéis sempre tiveram ligações com o voyeurismo
sexual, talvez por conta da grande possibilidade das observações de “flagras”
íntimos nos mosaicos de janelas que dão a visão dos quartos desses edifícios que
sempre trazem habitantes temporários; por isso, as imagens íntimas serão
constantemente renovadas, sem repetir.
Alguns motéis (hotéis destinados a encontros sexuais) potencializam o
voyeurismo e o exibicionismo do local para satisfazer as pulsões sexuais de seus
clientes. Já há algumas décadas, um relativo número de motéis e hotéis pelo mundo
transmitia as imagens das relações sexuais dos casais de um para outro quarto
através de circuito fechado de vídeo. É claro que essa tendência diminuiu, à medida
que as câmeras de vídeo se tornaram mais comuns e populares e, assim, a
possibilidade do “vazamento” de imagens íntimas dos clientes aumentou
consideravelmente – agora, o “controle” interno e unilateral do circuito de vídeo não
funcionaria mais.
Recentemente, algumas notícias sobre voyeurismo e exibicionismo em hotéis
explicitaram as relações intrínsecas entre hotel e sexo. Em 2015, um luxuoso hotel
da rede Standard em Manhattan, Nova Iorque, Estados Unidos, trouxe como
proposta quartos com paredes translúcidas, em vidro, que podem ser observados
desde a rua, deixando à vista a cama e o banheiro. Em outro caso, ainda nesse
contexto, em 2016 houve a descoberta de que o dono de um motel da cidade de
Aurora, Colorado, também nos Estados Unidos, espiou seus clientes durante quase
30 anos. Entre as décadas de 1960 e 1990, ele os observou através de grelhas de
ventilação falsas, que davam acesso às lajes do edifício. Segundo o próprio dono,
que se autointitula como pioneiro “investigador do sexo”, ele fazia regulares
anotações por escrito de tudo o que via. Esta história foi contada através de diversos
artigos publicados pelo conceituado jornalista norte-americano Gay Talese (1932-),
que, por sua vez, deu origem ao documentário produzido pelo famoso serviço de
streaming em VoD (“Video on Demand” - “Vídeo sob Demanda”) Netflix em 2017,
que também possui o título “Voyeur”.
354

“Le Voyeur {Paris Hôtel} | TCP#05” tentou abordar questões tecnoscópicas a


partir de vieses voyeurista – pelas imagens em zoom e em movimento; vigilante –
por meio do quadro master estático; e exibicionista – dada a falta de pudor ou
preocupação dos sujeitos (nesse caso, hóspedes) que exprimem a intimidade sem
“fechar as janelas” por completo. Os hóspedes não se importam com a possível
observação, talvez a desejam, mas não sabem se estão ou não sendo vistos, uma
vez que as cortinas semitransparentes também impedem parcialmente a visão dos
possíveis observadores externos. De forma análoga à tecnoscopia online,
estabelece-se um jogo de sedução entre alguém que se mostra, sem saber se o
outro olhará, e alguém que observa, sem constatar se a pessoa que se exibe notou
sua presença.
Este trabalho foi exibido no “III Salão Xumucuís de Arte Digital: Mídias
Selvagens”, de março a maio de 2014, no Espaço Cultural Casa das Onze Janelas,
em Belém, Pará, Brasil.

4.6 Magic Mirror on the Web | TCP#06 (Tecnoscopia 06)

“Magic Mirror on the Web | TCP#06” (“Espelho Mágico na Web”) é uma


produção de 2015 realizada em parceria com o videomaker de Uberaba, Leonardo
Ramalho. Ela é a segunda poética baseada nas discussões realizadas no doutorado
do autor e foi a primeira que abordou o exibicionismo com maior ênfase. Pode-se
dizer que ela tratou a tecnoscopia de maneira mais completa, se comparada às
outras, principalmente por situar o voyeurismo e o exibicionismo no âmbito de dois
significativos produtos e serviços tecnoscópicos: smartphones e redes sociais.
As demais produções autorais antes elencadas, inclusive “Le Voyeur {Paris
Hôtel} | TCP#05”, se enquadram em um tipo de tratamento poético mais “clássico”
dos elementos do tripé voyeurismo, exibicionismo e vigilância. Suas poéticas se
valeram de dispositivos e elementos mais tradicionais nesse âmbito: olho mágico,
telescópio, câmera de vigilância estática, janelas e cortinas. “Magic Mirror on the
Web | TCP#06”, em contrapartida, não apenas se vale de produtos mais recentes e
tecnológico-digitais, como também atualiza e amplia consideravelmente o discurso
tecnoscópico, contemplando muitas questões discutidas nesta tese. “Le Voyeur
{Paris Hôtel} | TCP#05” ainda se apresentava como uma poética calcada na
355

transição do tratamento mais tradicional realizado no mestrado com os


desdobramentos contemporâneos discutidos no doutorado. Assim, “Magic Mirror on
the Web | TCP#06” e a próxima e última poética, “#ninfabebê | TCP#07”, tentam
abordar a tecnoscopia de forma mais plena e, curiosamente, o enfoque maior se deu
no âmbito exibicionista – item relativamente negligenciado no mestrado, mas
bastante enfocado neste estudo.
O trabalho se vale de um smartphone e de um espelho (Figura 139) de mesa
para a exibição de um vídeo em single-channel, que tece críticas acerca dos mirror
selfies (selfies realizados no espelho) que “transbordam” na internet. O vídeo exibido
na tela do aparelho celular mostra imagens apropriadas da rede mundial com
fotografias selfies femininas que captaram os corpos nus ou seminus das mulheres
autorretratadas e refletidos em espelhos, tendência em constante expansão no
âmbito do exibicionismo tecnoscópico contemporâneo. A maioria dos mirror selfies
sensuais disponíveis na web faziam parte de práticas de sexting e pertenciam a
bancos de dados privados das pessoas autorretratadas ou de seus parceiros, mas
que “vazaram” e se espalharam por diversos sítios online.

!
Figura 139. “Magic Mirror on the Web | TCP#06”, de Aldo Pedrosa. Fotografia da exibição na
exposição “20 Anos do Museu Universitário de Arte (MUnA)”. 2016-17.
356

Como já discutido em detalhes no Capítulo 2 desta tese, quando a intimidade


se dissolve na rede e se torna pública, vários problemas sociais podem acontecer,
principalmente nos inúmeros casos de adolescentes que se exibem sem refletir
sobre as consequências de seus atos. Para tratar dessas questões no âmbito
poético, este trabalho propõe uma analogia entre o tipo contemporâneo de
autorretrato conhecido como mirror selfie com o “Espelho Mágico” (“Magic Mirror”),
objeto utilizado pela personagem “Rainha Má” (“Evil Queen”) na famosa fábula
“Branca de Neve e os Sete Anões” (“Snow White and the Seven Dwarfs”), de autoria
dos irmãos alemães Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859). Essa fábula
foi originalmente publicada em formato de conto no ano de 1812, mas conseguiu
fama e notoriedade mundial pela adaptação em desenho animado feita por Walt
Disney (1901-1966) em 1937.
No conto, o Espelho Mágico se apresenta como dispositivo que legitima a
beleza da rainha, visto que ele sempre apontava a Rainha Má como a mulher mais
bela do reino, quando indagado por ela (Figura 140), salvo na ocasião em que ele
diz que Branca de Neve é a mulher mais bela – daí se desdobra a trama dessa
fantasia. No entanto, a verdadeira face da rainha se esconde por trás de sua beleza
ilusória (mágica), pois se trata na verdade de uma bruxa transformada.

!
Figura 140. “Snow White and the Seven Dwarfs”, de Walt Disney. Frame do filme em longa-metragem.
1937. Fonte: <http://pyxurz.blogspot.com.br/2014/11/snow-white-and-seven-dwarfs-page-1-of-5.html>.
Acesso em 06/05/2017.
357

A partir dessas relações, 13 diferentes mirror selfies apropriados da internet


foram escolhidos entre milhares de fotografias disponíveis. Essa seleção levou em
conta a disseminação das imagens (grau de “viralização” – um dos focos desta
discussão crítica), somada a questões formais e estéticas que contribuíram para a
produção. Tais imagens foram reeditadas, e as mulheres autorretratadas tiveram as
faces substituídas por rostos disformes de bruxas, com aparência próxima às da
cultura pop contemporânea (Figura 141). As fotomontagens foram inseridas em uma
animação que as apresenta, uma a uma, em um vídeo que simula o funcionamento
do famoso serviço de compartilhamento fotográfico Instagram, nomeado nesta
produção como “Mirror Mirror” (Figura 142).

! !
Figura 141. “Magic Mirror on the Web | TCP#06”, Figura 142. “Magic Mirror on the Web |
de Aldo Pedrosa. Frame da videoarte, com enfoque TCP#06”, de Aldo Pedrosa. Frame da
na fotomontagem das mirror-selfies/bruxas. 2015. videoarte. 2015.

O vídeo resultante da animação que simula o app Instagram com as 13


imagens possui cinco minutos de duração e é exibido no modo loop, diretamente da
358

tela de um smartphone80. O tamanho da janela do vídeo foi pensado para ocupar a


tela do aparelho para que o observador, na galeria de arte, acredite que se trata de
uma apresentação do funcionamento do próprio aplicativo de compartilhamento
fotográfico (Figura 143).

!
Figura 143. “Magic Mirror on the Web | TCP#06”, de Aldo Pedrosa. Frame da videoarte, com
simulação da exibição do vídeo na tela de um smartphone. 2015.

No âmbito crítico-poético, várias informações visuais e textuais foram


agregadas à imagem, justamente para a reflexão do espectador. Um usuário fictício
de nome “@magic_mirror” interage com as fotografias na animação, uma a uma,
usando as ferramentas “curtir” e “comentar” no app simulado. Os comentários
postados pelo @magic_mirror trazem dois textos que ironizam e transpõem o

80 Link para esta versão do vídeo: <https://vimeo.com/237307046/f4e312f28b>


359

diálogo entre a Rainha Má e o Espelho Mágico para o contexto contemporâneo. No


início da história, o espelho diz à rainha que ela é a mais bela de todo o reino, mas,
com o passar do tempo, Branca de Neve se torna mulher e, então, o Espelho
Mágico afirma que ela se tornou a mais bela. Desse modo, os textos postados pelo
usuário do espelho @magic_mirror destacam duas frases: “You are the sexiest in all
the land!” (“Você é a mais sexy em toda a terra!”) e “But some girls are a thousand
times more beautifull than you” (“Mas algumas garotas são mil vezes mais bonitas do
que você”).
Ambos os textos contribuem para a reflexão proposta pelo trabalho,
colocando o aparelho celular e a internet como dispositivos legitimadores da beleza
feminina, o que, na contemporaneidade tecnoscópica ocorre em muitas ocasiões.
Esses são os meios atuais que levam as informações (fotografias) para serem
legitimadas por outros usuários – “amigos” e “seguidores” das redes sociais,
parceiros sexuais, desconhecidos etc. – em algo efêmero e dinâmico; haja vista a
imensidão de imagens de selfies sensuais que pedem por legitimação e
reconhecimento a todo o momento, por meio de “curtidas”, “compartilhamentos” e
“comentários”. Sabe-se que a espera do intermitente feedback é um sério problema
no âmbito psicossocial tecnoscópico, em face da dependência tecnoscópica que,
somada aos leaks e ao cyberbulling, transforma a intimidade dos autorretratados em
objetos fetichizados – imagens potencialmente polêmicas e humilhantes que podem
gerar consequências trágicas.
Outras informações textuais no vídeo também ironizam e relacionam a
tecnoscopia e o conto de fadas clássico, tais como o nome do usuário do sistema
–”thefairestqueen” (“a rainha mais bela”); o local onde a fotografia foi “realizada” –
“distant realm” (“reino distante”); e quando ela foi postada – “a long time ago” (“muito
tempo atrás”). O vídeo é acompanhado por um áudio (disponibilizado na galeria de
arte por meio de headphones) retirado do filme animado dos estúdios Disney, que
apresenta um fragmento do diálogo da Rainha Má com o Espelho Mágico.
O smartphone foi disposto na galeria em pé e conectado a um acessório
(dock para iPhone) que fornecia energia elétrica ao dispositivo e transmitia o som do
aparelho para um fone de ouvido (Figura 144) – esses aparelhos foram alocados
sobre um suporte (módulo). A tela frontal do telefone fica de costas para o
observador e, logo à frente dela, há um espelho de mesa com lente de aumento, que
360

reflete a imagem do celular para que o observador possa vê-la unicamente através
do espelho, pois o vídeo foi editado utilizando o recurso de inversão vertical
(espelhamento) – e a reinversão dessa imagem, corrigindo-a, ocorre apenas quando
ela é vista através do espelho. Além disso, a lente de aumento do espelho permite
que a imagem da pequena tela do aparelho fique maior, o que possibilita uma
visualização melhor (Figura 145).

!
Figura 144. “Magic Mirror on the Web | TCP#06”, de Aldo Pedrosa. Fotografia da exibição na
exposição “20 Anos do Museu Universitário de Arte (MUnA)”. 2016-17.

!
Figura 145. “Magic Mirror on the Web | TCP#06”, de Aldo Pedrosa. Fotografia da exibição na
exposição “20 Anos do Museu Universitário de Arte (MUnA)”. 2016-17.
361

Enquanto objeto, o espelho possui um papel poético fundamental para a


produção, visto que propõe uma metalinguagem e reforça o simbolismo dos demais
espelhos tratados no trabalho: o espelho da captação fotográfica (mirror selfie); o
smartphone como um “espelho real” (muitas pessoas usam a câmera de selfie do
aparelho celular literalmente como um espelho para se ver, se pentear, se maquiar
etc.); como um “espelho digital” (pois ele “espelha a vida” do usuário e a transpõe
para o ciberespaço); e o Espelho Mágico da fábula (Magic Mirror), que deixou de
estar afixado em uma parede (on the wall) para estar disponível em toda a internet
(on the web). Somado a isso, o espelho devolve a imagem a seu aspecto normal e
anteriormente invertido. Tal inversão/espelhamento também remete à origem da
formação da imagem fotográfica, cinematográfica e videográfica, que é captada na
película/filme (analógica) ou no sensor (digital) de forma espelhada e, então,
corrigida (invertida e devolvida à posição normal) a partir da revelação em papel ou
filme (analógica) ou de monitores e telas (digital).
O espelho é um item simbólico muito importante para arte e os processos de
autorretratação, além de ser um instrumento narcísico por natureza. Sobre o espelho
e sua relação com a arte e a fotografia, Rebel (2009, p. 20-22) diz que ele

[...] foi o instrumento de introspecção e de autointerpretação desde o


século 15. Actuava inicialmente como um meio do processo de
concepção, depois como o foco imaginário dos olhares que todos os
autorretratistas esperam. É um reflexo social do aqui e agora assim
como do futuro imaginado. [...] Do estúdio imóvel para a câmara
móvel, do espelho na parede para a câmara na mão: estes são os
caminhos do futuro. Nada mudou o desenvolvimento das artes
visuais no século 19 tão profundamente como a marcha triunfal das
invenções fotográficas. [...] A fotografia é o novo espelho da arte e
dos artistas, um espelho que assume uma existência mecânica
independente. A documentação acompanha agora a ficção em
termos iguais. Por outro lado, o “olhar” do artista desliza para regiões
ainda desconhecidas do mundo e da imagem.

Outro referencial importante em “Magic Mirror on the Web | TCP#06”


concerne à imagem da maçã da logomarca da empresa fabricante do smartphone
usado: Apple. Ela é evidenciada na disponibilização dos objetos, pois o celular
estará com a parte traseira voltada para o interior da galeria e o observador – a
logomarca da empresa fica situada nessa parte do telefone celular. Tal fruta remete à
passagem do conto de fadas na qual a Rainha Má, transformada em bruxa,
envenena Branca de Neve.
362

A crítica proposta abrange a potência da “invasão branca” da tecnologia e seu


impacto na vida dos usuários que consensualmente dispõem seus dados e sua
intimidade na rede, sem temer as consequências disso, nutrindo uma quantidade
incalculável de voyeurs e vigilantes digitais. A maçã dada à Branca de Neve possuía
aspecto belo e sabor agradável, mas carregava em si malefícios ocultos que
retomam, inclusive, o simbolismo da maçã do pecado original.
Na contemporaneidade, não haverá nenhum referente ao Príncipe
Encantado, capaz de curar com um “único beijo” as consequências da
superexposição de imagens íntimas que vazam sem o consentimento dos usuários.
Com certeza, grande parte das mulheres autorretratadas nos mirrors selfies
(adolescentes, principalmente) produz imagens para o suposto “príncipe” ou visando
encontrar algum. Mas, quando o resultado do exibicionismo é negativo, o “príncipe”
se torna um “sapo”, e o “espelho mágico” (smartphone + internet) transforma o
autorretrato da bela mulher na imagem de uma “bruxa”, que deve ser julgada e
condenada à “fogueira” (ao vexame, à humilhação, à exclusão e ao suicídio) pela
hipocrisia dos “inquisidores digitais”. O que sobra é o retrato da “bruxa”, que será
disponibilizado na internet até o fim dos tempos ou da vida útil do disco rígido e da
memória do servidor da internet que a abriga. Como no “Retrato de Dorian Gray”,
essa imagem social disforme da “bruxa” carregará eternamente o índice daquela
mulher que um dia foi bela (sexy).
Esta produção foi exibida em duas ocasiões: na exposição “EmMeio#7.0”
ocorrida no Museu de Arte Nova, na cidade de Aveiro, Portugal, em outubro e
novembro de 2015; e na exposição “20 Anos do Museu Universitário de Arte
(MUnA)”, na cidade de Uberlândia, Minas Gerais, Brasil, de novembro de 2016 a
abril de 2017.

4.7 #ninfabebê (#babynymph) | TCP#07 (Tecnoscopia 07)

De fato, a culminância da transposição dos estudos desta tese para o âmbito


poético visual, até então, se deu com a produção do filme experimental em longa-
metragem “#ninfabebê”81 (título internacional “#babynymph”), também nomeado
como TCP#07 (Figura 146). Ele foi concebido na tentativa de explicitar as

81 Link para o trailer oficial: <https://vimeo.com/203754573>


363

discussões sobre a tecnoscopia no âmbito poético e tornou-se a principal poética


desenvolvida no doutorado. Na tentativa de abordar tais questões de maneira mais
popular e acessível ao grande público, houve a escolha pela linguagem do cinema
para essa realização. Foi proposta ainda uma relação entre o cinema, comumente
chamado de sétima arte, com a sétima produção deste autor no contexto da
tecnoscopia.

!
Figura 146. “#ninfabebê”, de Aldo Pedrosa. Primeiro cartaz oficial. 2016.

Ele evidencia um amadurecimento poético com relação aos trabalhos


anteriores, pois a produção cinematográfica posse interativos. Mesmo diante das
características próprias do cinema, “#ninfabebê” foi pensado para ser um “vídeo
experimental longo”, mais do que um longa-metragem cinematográfico propriamente
364

dito, pois este último costuma seguir padrões e preceitos do cinema comercial
contemporâneo. Isso se revela nos estilos de captação e de edição das imagens que
se relacionam com o atual exibicionismo videográfico amador da internet
(tecnoscópico).
Este filme se apropria do estilo mockumentary (falso documentário) misto com
o found footage (imagens encontradas) que, como descrito no Capítulo 1 desta tese,
estão em voga no circuito cinematográfico experimental e comercial mundial, que
tendem a realizar produções de baixíssimo custo e, em alguns casos, conseguem
interessantes retornos de crítica e público. De fato, tais estilos são pouco explorados
no âmbito do cinema brasileiro, mas já se encontram em fase de saturação no
contexto cinematográfico mundial.
Todavia, “#ninfabebê” se propõe a desconstruir o cânone recém-
convencionado para esse estilo de produção. A narrativa do longa-metragem parte
do ponto de vista da câmera de vídeo de um único telefone celular, pertencente à
adolescente/protagonista do filme, Cibelle, vivida pela atriz Dandara Adrien. Na tela
do celular, que se apresenta integralmente à visão dos espectadores, é exibida a
interação da protagonista com diversos aplicativos (apps) do aparelho: captura de
imagem, entretenimento, redes sociais, entre outros. O celular, de certa maneira, se
transformou em um importante personagem na trama, constituindo-se como um item
simbólico que abarca por si só uma série de questões e críticas relacionadas à
tecnoscopia, já tratadas neste estudo. O foco principal da produção concerne a
apresentar uma crítica à tecnoscopia, com ênfase no “vértice exibicionista”, que
instaura uma preocupante realidade social e atinge um grupo heterogêneo de
pessoas em todo o mundo, mas é fato que os adolescentes são os maiores
consumidores/interatores nessa realidade, faixa etária abordada pelo enredo do
filme.
O roteiro do longa-metragem foi concebido concomitantemente à pesquisa
teórica desta tese. Desde o início dos estudos de doutorado, o autor deste trabalho
possuía a vontade de realizá-lo como uma das poéticas relacionadas. Mas, para
tanto, havia a preocupação com o custeamento do projeto, uma vez que uma
produção em cinema necessita de mais recursos financeiros, técnicos e humanos,
se comparada às propostas videográficas antes realizadas. Felizmente, em julho de
2015, o projeto de execução do “#ninfabebê” foi aprovado em primeiro lugar na
365

primeira edição do “Edital do Fundo Municipal de Cultura”, promovido pela Fundação


Cultural da cidade de Uberaba, cidade onde vive o autor, sendo contemplado com o
valor de R$ 19.540,50. Uma realização comum de cinema prevê gastos muito
maiores do que o valor captado; por isso, prospectaram-se parcerias que
possibilitaram a execução com sucesso de todas as etapas do filme, gravado no
final e 2015 e finalizado e lançado em 2016.
O título “#ninfabebê” faz referência ao nickname82 da personagem
protagonista, Cibelle, vivida pela atriz Dandara Adrien, uma adolescente de 17 anos,
de classe média, com personalidade extrovertida e rebelde. Na trama, ela se depara
com a oportunidade de viver uma aventura ao saber que passará um final de
semana sozinha em casa na ausência do pai, seu único tutor, que estará em viagem
a trabalho. Para a ocasião, convida a amiga de 16 anos, Daiana, vivida pela atriz
Giovanna Almeida, que possui personalidade proporcionalmente oposta à de Cibelle
e nunca passou um dia sequer longe da presença de seus pais. Utilizando um
aplicativo de telefone celular que mescla a gravação de imagens captadas ao vivo
com a interação com outros apps, ambas registram os momentos dessa festa
particular.
Inicialmente, tudo ocorre conforme o planejado, em um ambiente
descontraído e com música alta, bebidas e chats na internet. No decorrer da
primeira noite, um estranho se junta a elas e, a partir desse momento, as coisas se
complicam terrivelmente. A noite das garotas se torna uma experiência de medo e
angústia, com várias situações inesperadas que são captadas e mostradas ao
espectador pela visão subjetiva da câmera do celular, ao passo que, em vários
momentos, as garotas, como também seus antagonistas, se revezam como
cinegrafistas.
O filme tenta ser um retrato da nova geração, mais especificamente dos
adolescentes que nasceram neste século (os millenials), que não conheceram um
mundo sem computador, internet e telefone celular e, por isso, considera as
“máquinas tecnoscópicas” como itens essenciais para a própria vida. Cibele, a
protagonista, é a referência principal desse contexto: baseou sua vida nas trocas
online, uma vez que não possuía uma estrutura familiar para lhe dar suporte e ainda

82 Nicknames, ou apenas nicks, são pseudônimos adotados pelos usuários de serviços sociais da
internet. Muito comuns no início dos primeiros serviços de chat online (ICQ, MiRC, MSN, entre
outros), caíram em desuso na última década e hoje são adotados por poucos usuários.
366

traz traumas de infância, como ter presenciado a própria morte da mãe quando tinha
sete anos de idade. Superdependente da interação digital, ela construiu uma
mitologia sobre si mesma na rede para ter a completa atenção de seus admiradores
virtuais, inclusive ao adotar o pseudônimo erotizado “ninfabebê”. É na rede que
Cibelle consegue se promover e se autoafirmar, pois sua personalidade instável e
autodestrutiva afasta as interações “reais” (in loco). Então, passou a transferir
dependências da relação materna inexistente para a relação paterna insuficiente,
com vários empréstimos de outras pessoas que fizeram parte de sua vida, e isso
culminou com a necessidade de sempre estar em companhia (virtual). Na rede,
defende uma imagem que não é ela de fato, assim como todas as personas que são
autoconstruídas na internet. Ela, por exemplo, não possui a experiência sexual que
demonstra ter – e que todos pensam que ela possui –, e isso ajuda a nutrir sua
personalidade narcísico-dependente.
A personagem Daiana apresenta-se como a contraparte a ser seduzida nesse
jogo voyeurista-exibicionista – na verdade, representa o próprio público que é
convidado a entrar na casa de Cibelle. Esse choque entre a ingenuidade de Daiana
e a personalidade exibicionista de Cibelle faz transparecer ao es(x)pectador as
relações virtuais que desembocam em trágicas consequências, intrínsecas às trocas
e “amizades” online bem ou mal estabelecidas.
O filme tenta levar o público ao limite entre a empatia com a protagonista e o
desejo de julgá-la, dadas as suas atitudes questionáveis. Ainda, há a tentativa de
chamar a atenção do público de outras gerações, sobretudo pais e responsáveis que
subjugam as ações virtuais da prole, e, de maneira quase pedagógica, alertar os
millenials de que, na verdade, o teatro da vida virtual em algum instante pode saltar
à tela para ferir aos voyeuristas de plantão, que pensam ser a parte passiva da
relação, isto é, aqueles que “apenas” veem.
Em cada um dos três capítulos que a produção foi dividida (“parte 1: ver”;
“parte 2: curtir”; e “parte 3: compartilhar”), busca-se mostrar um crescendo
quantitativo e qualitativo de questões/atitudes comuns aos dependentes virtuais, que
leva a narrativa a pontos de virada dramáticos e até bizarros. Do início lolitizado,
passando pelo suspense até o ápice de terror destrutivo do final, “#ninfabebê”
sugere que tudo se passa ao vivo para aflorar o sentimento voyeurista do
espectador contemporâneo. Enquanto o mais conservador se sentirá curioso, porém
367

perturbado, os exibicionistas tecnoscópicos terão a segurança do lugar comum nos


primeiros capítulos, mas esta segurança se dissolve por completo quando o
compartilhamento da vida, mesmo virtual, foge ao controle.
O enredo foi concebido para tratar das potenciais consequências que podem
decorrer do momento em que o jogo exibicionista-voyeurista ultrapassa limites antes
convencionados entre o que era público e privado. A espetacularização da
intimidade se desdobra em atos de sexo e violência que, como já visto, são os
temas mais comuns na tecnoscopia espetacularizada contemporânea e, inclusive,
basilares para os filmes de suspense e terror na história do cinema, e também nos
recentes mockumentaries/found footages.
Ademais, o uso dos estilos mockumentary/found footage busca evidenciar um
“efeito de realidade” maior na produção. Ao propor imagens e áudios que simulam a
captação amadora (Figura 147), tencionou-se transmitir ao espectador a ideia de
que aquilo que se assiste se trata de uma cena verídica, de uma captação “real” do
cotidiano e exibida da maneira o mais verossímil possível, em referência aos vídeos
amadores que transbordam no YouTube, WhatsApp e em outros sistemas da web
2.0.

!
Figura 147. “#ninfabebê”, de Aldo Pedrosa. Frame do filme em longa-metragem. 2016.

Com esse tipo de estilo são evidenciados os aspectos de registro na


captação/edição, que valem-se de imagens mal enquadradas e ruidosas, constantes
368

trepidações, som distorcido e outros elementos. Vários filmes contemporâneos


atuam conforme essa proposta estética e narrativa83 , e alguns recentes trabalhos
também abordam a temática tecnoscópica a partir de tais estilos. Um interessante
exemplo recente é “King Kelly” (Figura 148), produção independente de 2012, com
direção de Andrew Neel (1978-), que conta a história de uma stripper online, Kelly,
que quer exibir sua vida na internet a partir da captação de telefones celulares, na
tentativa de conseguir mais fama e “seguidores”. De forma análoga, o exibicionismo
exagerado de Kelly traz consequências críticas para a vida da protagonista e das
pessoas próximas a ela, no momento em que os fãs virtuais (voyeurs) começam a
interferir na vida da personagem.

!
Figura 148. “King Kelly”, de Andrew Neel. Frame do filme em longa-metragem. 2012. Fonte: <https://
www.rottentomatoes.com/m/king_kelly/>. Acesso em 13/05/2017.

Apesar de se valer do mockumentary/found footage, “#ninfabebê” tentou


desconstruir algumas características marcantes desse estilo de produção e

83 Vários filmes significativos nesse âmbito foram elencados no item 1.3.2.3 desta tese.
369

apresentar algumas inovações. O longa-metragem parte da visão da câmera de


vídeo de um único aparelho celular, enquanto a maioria dos mockumentaries lança
mão de várias câmeras. Nesse aparelho há um aplicativo fictício, concebido
exclusivamente para a película e que possui a função de mesclar a gravação de
imagens captadas in loco e ao vivo com a interação com outros apps.
Ao mesmo tempo em que os espectadores acompanham o cotidiano das
personagens, a interação delas com os aplicativos do dispositivo (chamadas de
áudio e vídeo, chats, redes sociais, fotos, vídeos, músicas, notificações, entre
outros) é exibida concomitantemente às imagens captadas. Os vídeos gravados são
híbridos de imagens “reais” com interação com apps, armazenados na memória do
celular da protagonista e, em determinado momento da narrativa, compartilhados na
rede. Essa interação é recorrente em toda o longa, constituindo-se como parte
fundamental da estética e da proposta poética-conceitual da produção. Esses
aplicativos ocupam parte da imagem vista (Figura 149): alguns são exibidos apenas
quando ativados, enquanto outros ficam visíveis durante todo o filme (como a barra
superior que mostra a hora, o sinal de wi-fi e o percentual de uso da bateria do
celular), sendo todos distribuídos harmonicamente na imagem.

!
Figura 149. “#ninfabebê”, de Aldo Pedrosa. Frame do filme em longa-metragem. 2016.

Essa é uma das desconstruções propostas, em que as imagens não são


“cruas” como em outros mockumentaries, e sim híbridas entre o registro “amador”
370

simulado e a interação com elementos digitais (apps). Além disso, outros recursos
próprios da captação de imagens por smartphones são importantes elementos
imagéticos, a exemplo dos quadros verticais que simulam a captação das imagens
verticalmente (em pé) e transições de imagens captadas pelas câmeras traseira e
frontal (de selfie) do aparelho.
Outra constante nessa desconstrução se deu na tentativa de minimizar os
“ruídos de imagens” tão comuns em mockumentaries realizados nas últimas duas
décadas e que foram condizentes com as primeiras gerações de câmeras digitais
domésticas e a “geração YouTube”. Hoje, inseridos na “geração Instagram”, os
fotógrafos e videomakers digitais tentam compor harmoniosamente suas imagens,
ao passo que tentam se desviar o máximo possível (ou pelo menos pensam que
estão desviando) de uma estética inerentemente amadora.
Fotografias e vídeos realizados por pessoas comuns na atualidade
apresentam certa preocupação com o enquadramento, a iluminação e a mise-en-
scène (através de uma protodireção de arte). Há a aplicação de filtros e outros
efeitos, além de elementos formais que evidenciam um relativo cuidado estético,
mesmo nos registros corriqueiros – em contraposição às antigas imagens que se
preocupavam apenas em registrar de forma “crua” (amadora). Agora, os novos
amadores digitais tendem a negar o próprio amadorismo e muitos, inclusive, se
autoproclamam artistas.
Nesse contexto, o longa-metragem “#ninfabebê” tentou representar tal
tendência ao exibir imagens com harmonia estética e um cuidadoso apuro visual,
ainda que proponha a simulação de uma captação amadora. Para isso, a
composição das imagens da maioria dos quadros no filme se deu a partir de uma
harmonia axial quase simétrica, que distribuiu os elementos imagéticos
(personagens, cenografia e efeitos visuais) harmoniosamente por meio de um eixo
central (Figura 150). Essa característica desconstrutiva tenta aproximar
poeticamente a simulação da captação amadora com uma estética utilizada por
alguns diretores experimentais atuais, como nas obras do diretor americano Wes
Anderson (1969-), que se vale de uma interessante harmonia visual em suas
produções (Figura 151).
371

!
Figura 150. “#ninfabebê”, de Aldo Pedrosa. Frame do filme em longa-metragem. 2016.

!
Figura 151. “Moonrise Kingdom”, de Wes Anderson. Frame do filme em longa-metragem. 2012.
Fonte: <http://focusfeatures.com/moonrise_kingdom>. Acesso em 13/05/2017.

Outra desconstrução proposta, agora sobre o caráter found footage da


película, se dá no que tange à disponibilização das imagens que não são
“encontradas” no telefone celular da protagonista, como ocorre nos filmes desse
estilo (e por isso o nome), mas deliberadamente compartilhadas nas redes sociais –
logo, estaria mais correto o uso do termo “shared footage” (“imagens
372

compartilhadas”). Essa questão vai ao encontro da crítica proposta pela produção,


pois o exibicionismo exacerbado na cultura e na sociedade contemporâneas, além
das decorrentes questões tecnoscópicas, pressupõe que a intimidade é
compartilhada pela pessoa que se exibe ou por outras próximas a ela. Muitos
mockumentaries abordam que as imagens encontradas (found footages) foram
disponibilizadas ao público sem o consentimento das pessoas que as realizaram, ao
passo que, em “#ninfabebê”, a disseminação delas é proposital84.
Para também contribuir nesse sentido, a equipe de pós-produção do filme
conclamou ao público das redes sociais o envio de fotografias exibicionistas “reais”,
para que elas pudessem fazer parte das informações exibidas nos aplicativos
criados para o filme, principalmente nos apps de chat e redes sociais. Houve grande
participação, com mais de uma centena de fotografias recebidas: muitas delas
trazem imagens dos usuários (a maioria autorretratados) com sensualidade (Figura
152), o que evidencia a quebra de tabus e paradigmas sobre a explicitação da
intimidade para os olhos do grande público. Com certeza, tais indivíduos enviaram
imagens sabendo das (e buscando as) visibilidade e repercussão do filme.

!
Figura 152. “#ninfabebê”, de Aldo Pedrosa. Frame do filme em longa-metragem. 2016.

84Pelo menos a priori. Para entender essa questão com todos seus meandros, é necessário assistir
ao filme na íntegra.
373

Ainda no âmbito estético-poético, o filme lança mão da cor vermelha em


grande parte dos elementos visuais disponíveis na tela (Figura 153), como em
objetos de cena, cenários, figurino, cabelo e maquiagem dos atores e os próprios
apps inseridos na pós-produção. O vermelho apresenta uma forte simbologia que diz
respeito à sexualidade (por ser uma cor quente e comumente relacionada ao amor)
e também à morte e à violência (por remeter ao sangue) – trazendo também
referências de importantes obras cinematográficas (Figura 154) que se apropriam
dessa cor a partir de propostas estético-poéticas semelhantes, como nos filmes de
Pedro Almodóvar (1949-) e de Stanley Kubrick (1928-1999), por exemplo.

!
Figura 153. “#ninfabebê”, de Aldo Pedrosa. Frame do filme em longa-metragem. 2016.

!
Figura 154. “Volver”, de Pedro Almodóvar. Frame do filme em longa-metragem. 2006. Fonte: <http://
www.filmandfurniture.com/2015/03/red-in-almodovar-volver/>. Acesso em 13/05/2017.
374

Nesses termos, uma questão importante no contexto de outras referências do


filme se relaciona à escolha dos nomes dos personagens. Eles receberam nomes
que remetem a figuras mitológicas greco-romanas, e cada um possui características
pessoais atinentes ao mito de seu personagem (quase ou totalmente) homônimo, o
que permitiu interessantes analogias por todo o longa-metragem – inserindo-se,
nesse ínterim, o próprio título do filme. O nome “ninfa” propõe reflexões acerca das
ninfas na mitologia grega, jovens mulheres muito belas que habitavam florestas e
jardins, sendo alvos da luxúria dos humanos e deuses, principalmente dos sátiros
(Figura 155).
A imagem da ninfa mitológica tem relevância análoga à imagem da Vênus/
Afrodite para o reconhecimento de um olhar voyeurista sobre a mulher durante a
história da arte, assim como fora analisado no Capítulo 1. Enquanto Vênus
representa a beleza ideal feminina que deve ser olhada e desejada pelos homens,
as ninfas são o referente juvenil dessa deusa e provocam o olhar dos deuses e
homens que preferem as mulheres mais jovens que remetem, por sua vez, a
determinada disseminação de um olhar e desejo pedofílico tratado no item 2.2.2.3.

!
Figura 155. “Ninfas e Sátiro”, pintura de William-Adolphe Bouguereau. 1873. Fonte: <https://
pt.wikipedia.org/wiki/Ninfas>. Acesso em 13/05/2017.
375

Um mito específico, da ninfa Io e do monstro vigilante Argos Panoptes, é


exemplar para o entendimento do olhar voyeurista-vigilante sobre as jovens e belas
mulheres. De acordo com o mito, Io era uma ninfa amante de Zeus. Por ciúmes, a
deusa Hera (conhecida em Roma como Juno) transformou a bela jovem em novilha
e a deixou sob a constante vigilância de Argos Panoptes, um gigante com cem
olhos. O monstro sempre deixava os olhos abertos e, mesmo quando dormia,
mantinha metade dos olhos em alerta. De acordo com Assoun (1999, p. 14)

“Argos” tinha uma cabeça rodeada por cem olhos; eles repousavam
por turnos, por grupos de dois a cada vez; todos os outros velavam e
permaneciam em ação. Isto faz deste “velador”, de insônia
irredutível, o espião ideal. A serviço de “Juno”, ele preenche
excelentemente a função de não tirar os olhos nem por um instante
da ninfa rival, transformada em novilha: fosse qual fosse sua atitude,
ele olhava para “Io”, ele tinha “Io” diante de seus olhos, mesmo de
costas. “Argos” tinha sempre pelo menos um olho virado na direção
de seu alvo.

O mito também diz que Zeus, para libertar Io, ordenou que Hermes matasse o
monstro. Feito isso, Hera o homenageou, transformando o monstro em pavão, em
cuja cauda ela pôs os cem olhos de Argos. Esse gigante também é conhecido como
“monstro escópico” e serve como interessante metáfora para o entendimento da
tecnoscopia atual. O próprio sobrenome Panoptes remete ao panóptico de Bentham
e aos pós-panópticos da contemporaneidade. Somada às ninfas, que exibiam seus
belos corpos para o deleite voyeurista dos deuses e sátiros, a tríade tecnoscópica é
representada nesse mito em face do triângulo amoroso – Zeus, Hera e Io. Por isso,
ele foi integrado à narrativa do filme e é apresentado verbalmente em determinada
cena, além de o nome Io estar tatuado no braço da personagem principal (Figura
156) e o nome Argos intitular o sistema operacional fictício criado para o longa-
metragem (Figura 157).
Além dessas relações, a mitologia greco-romana é referenciada em toda a
película, seja nas esculturas e em outros elementos distribuídos pelo set, nas
informações constantes nos aplicativos ou no endereço onde está situada a casa de
Cibelle – Rua Lago do Narciso, número 33 –, visto que o mito do Narciso é outro
referente abordado e analisado em toda a tese.
376

!
Figura 156. “#ninfabebê”, de Aldo Pedrosa. Frame do filme em longa-metragem. 2016.

!
Figura 157. “#ninfabebê”, de Aldo Pedrosa. Frame do filme em longa-metragem. 2016.

O termo “ninfa” (e a palavra derivada “ninfeta”) ganhou referente digital e é


utilizado amplamente desde o início da internet para nomear imagens sensuais ou
eróticas de jovens mulheres ou adolescentes. Outros vocábulos como teens e
novinhas são também usados nos dias atuais, instaurando um tipo de parafilia
pedofílica aceitável e amplamente disseminada; e o próprio nome composto “Ninfa
Bebê” foi amplamente empregado no início das tecnologias da web 2.0, sobretudo
377

com o surgimento dos fotologs. Tal nomenclatura foi retomada, principalmente,


devido à vontade de referenciar o início das tecnologias que promoveram a exibição
da intimidade e deram início à realidade tecnoscópica atual. O enredo traz a
explicação de que o nickname “#ninfabebê” foi escolhido por Cibelle em virtude do
apelido de infância, “Bebê”, precedido do nome “Ninfa”, dada a sua beleza
constantemente publicizada na internet. De fato, hoje poucas mulheres se apelidam
como “ninfa”, pois o nome se tornou pejorativo e estritamente ligado à pornografia
digital. O uso dele, reforçado pelo caráter ainda mais pedofílico do nome agregado
“bebê”, já propõe uma crítica desde o título do filme – o que de fato ocorreu, uma
vez que ele chegou a incomodar os mais pudicos.
Todavia, a expressão “ninfa bebê” é utilizada pela biologia para nomear um
estado de desenvolvimento de alguns insetos. Após passarem pelo estágio de larva
e pupa, surgem as “ninfas bebês”, insetos que já possuem o corpo bem próximo ao
de um inseto adulto, mas ainda são muito frágeis, por não estarem amadurecidas.
Essa é a metáfora perfeita para Cibelle e as demais “ninfas bebês” que se exibem
eroticamente na internet. Todas já têm corpos adultos, estão sexualmente
desenvolvidas e, pelas suas belezas joviais, atraem os olhos voyeuristas e vigilantes
dos homens que as espiam. Mas elas não possuem o amadurecimento psicológico e
social necessário para arcar com as consequências de seus atos, o que
normalmente chega a questões danosas para elas – este é o foco principal do
enredo do filme e também uma das questões mais importantes no tratamento crítico
desta tese.
Outra proposta autoral no âmbito do longa-metragem ocorreu na criação de
uma banda fictícia de pop rock (“Sexy Lollipop”85), responsável pela maioria das
músicas que compõem a trilha sonora e que são ouvidas pela protagonista da trama,
que também as executa no celular (Figura 158). Isso permitiu que as canções
pudessem dialogar com as cenas, a partir do momento em que elas foram criadas
para tal; logo, nas letras, elas tratam de assuntos relacionados a desdobramentos da
tecnoscopia na contemporaneidade.
O filme teve o primeiro corte exibido em três espaços da cidade de Uberaba
em maio de 2016: no dia 12, no Cinema Kinoplex; nos dias 13, 14 e 15, no
Cineteatro Vera Cruz; e no dia 15, no Teatro SESI/FIEMG, do Centro de Cultura José

85A música tema do filme, homônima à banda, “Sexy Lollipop”, pode ser ouvida neste link: <https://
soundcloud.com/sexy-lollipop-band>.
378

Maria Barra. O segundo corte foi exibido em 24 e 29 de agosto de 2016, no Instituto


de Neurociências Elza dos Passos Silva (INEPS), também em Uberaba; e no dia 12
de novembro, no Museu Universitário de Arte (MuNA), pertencente à UFU. As
primeiras exibições trouxeram excelentes resultados de crítica e público, além de
uma vasta cobertura na mídia regional. Estima-se que mais de duas mil pessoas
assistiram ao longa nessas oportunidades, e muitas delas foram seguidas de
debates sobre a proposta temática do filme, mostrando que o foco crítico obteve
sucesso ao transmitir, de forma poética e com entretenimento, boa parte das
questões aqui tratadas a um público diverso e heterogêneo.

!
Figura 158. “#ninfabebê”, de Aldo Pedrosa. Frame do filme em longa-metragem. 2016.

Além dessas exibições, “#ninfabebê” contabiliza, até o momento, 42 louros


(Figura 159) vindos de suas participações em 17 festivais internacionais e dois
festivais brasileiros, nos anos de 2017 e 2018. Compõem estes louros: 19 seleções
oficiais, 14 prêmios e indicações, uma menção honrosa, uma final, seis semifinais e
uma alta recomendação; com destaque aos festivais de Hollywood, Los Angeles,
Nova York, Londres, Madri, Moscou, Calcutá, Porto, Singapura, Transilvânia,
Romênia, Casaquistão e Caruaru.
379

!
Figura 159. Louros recebidos a partir das seleções e premiações em festivais e eventos de cinema
nacionais e internacional, totalizando 42, até o momento.

Essas seleções e premiações foram fundamentais para o reconhecimento do


longa-metragem, tanto nacional como internacionalmente86. Em outubro deste ano o
“#ninfabebê” será exibido comercialmente, entrando em cartaz pela rede de cinema
Cinemais (Figuras 160 e 161), com lançamento em Uberaba/MG e posterior exibição
nas demais salas da rede, que contemplam cidades do estado de Minas Gerais,

86Isso pode ser evidenciado na crítica internacional publicada pela Revista Cult Critics, uma das 50
melhores revistas digitais de cinema do mundo. A crítica foi assinada pelo redator-chefe da revista,
Antonio Rozich, e pode ser acessada no link: <http://hlc-cultcritic.com/babynymph/>.
380

Goiás e São Paulo. Após essa experiência, tentar-se-á prospectar novas parcerias
com salas de cinema87 ou distribuidoras.
O longa-metragem foi realizado com poucos recursos e através de um tipo de
produção independente e, de certa maneira, artesanal, o que necessitou do
empenho redobrado dos integrantes da equipe de aproximadamente 50 pessoas,
incluindo atores e técnicos, sendo gravado em uma única locação, durante 12 dias
distribuídos em seis finais de semana. Mesmo diante dessa difícil realidade, o
resultado final se mostra profissional: o filme foi finalizado em resolução de cinema
digital (2k) e com áudio em 5.1.

! !
Figura 160. “#ninfabebê”, de Aldo Pedrosa. Flyer com divulgação da estreia na rede Cinemais em
Uberaba/MG e segundo cartaz oficial. 2017.

87 Até o momento não houve parceria com distribuidoras do Brasil. Por isso, a distribuição na Rede
Cinemais será independente - através de um selo de distribuição recentemente criado pelo autor
desta tese. Isso, de certa maneira, é incomum e representa uma investida contra os monopólios de
distribuição comercial de filmes no Brasil; principalmente pelo “#ninfabebê” se tratar de uma produção
do interior do País, e isso, infelizmente, acaba por gerar preconceitos que dificultam a prospeção de
parcerias com grandes empresas audiovisuais.
381

! !
Figura 161. “#ninfabebê”, de Aldo Pedrosa. Terceiro e quarto cartazes oficiais. 2017.

Essa última produção realizada no âmbito das poéticas tecnoscopistas tenta


discutir o tripé tecnoscópico de maneira mais plena, mesmo que o âmbito da
vigilância não seja explicitamente abordado. Reafirma-se que a escolha pela
linguagem do cinema se deu na tentativa de obter uma comunicação melhor com um
público mais heterogêneo, sobretudo os alvos da crítica (adolescentes), uma vez
que as galerias de arte ainda se constituem como espaços não muito visitados, e o
cinema possui maior acesso, principalmente ao público mais jovem.
Hoje, a arte contemporânea se vale mais do “e”, em detrimento do “ou”.
Assim, o artista tem a obrigação de explorar várias maneiras de levar sua
mensagem ao público, ainda que precise trabalhar com linguagens “e” outras
linguagens; e não apenas escolher entre uma “ou” outra maneira de fazer “ver” sua
poética. McLuhan (1974) abordou que nenhuma sociedade teve conhecimento
suficiente de suas ações para poder desenvolver uma imunidade contra as
tecnologias. Para o autor, o artista apanha a mensagem do desafio cultural e
tecnológico décadas antes de haver seu impacto e constrói modelos para enfrentar a
mudança iminente.
382

Destarte, o filme “#ninfabebê | TCP#07” tenta explorar os principais meandros


tecnoscópicos contemporâneos e, ao mesmo tempo, refletir sobre o futuro de
maneira popular e lúdica, trazendo um misto de “realidade” e ficção e de poética e
entretimento. A arte é fundamental na prospecção sobre o futuro, à medida que
propõe mecanismos para o enfrentamento das questões vindouras e das que já se
fazem presentes. Nesse sentido, espera-se que o longa-metragem e as demais
obras poéticas deste autor possam servir para o entendimento e a reflexão crítica
acerca da realidade instaurada e o que está por vir.
383

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Espera-se, da conclusão de uma pesquisa, que ela possa “fechar” os debates


e indagações propostos. No entanto, ao longo de mais de quatro centenas de
páginas, esta tese, mais do que apresentar respostas concretas para os problemas
conceituais, epistêmicos e empíricos, tentou propor indagações e novas reflexões
para que o leitor possa tecer as próprias considerações e críticas acerca de uma
realidade instaurada e em continuidade, ainda sem previsão de quando ocorrerá seu
inevitável esgotamento.
Neste ponto da discussão, considera-se que o novo conceito proposto,
tecnoscopia, foi feliz ao facilitar o entendimento e o possível enfrentamento dessas
questões que, quando vistas interdisciplinarmente a partir de indissociáveis relações,
parecem mais inteligíveis e até mesmo identificáveis. De fato, a principal conclusão
que aqui se chega se refere ao fato de o voyeurismo, o exibicionismo e a vigilância
contemporâneos serem realmente indissociáveis mediante a onipresença das
máquinas em rede. O “ver” e o “ser visto” mediados pela tecnologia são práticas
cotidianas que transcendem modismos e tendências passageiras, pois se inserem
em tantos âmbitos psicossociais que se considera que o citado esgotamento ainda
tardará.
Em muitas análises teóricas e nas discussões artísticas, os três vértices do
triângulo escópico são comumente julgados e analisados de maneira separada ou,
quando se propõem inter-relações entre eles, um se destaca em detrimento dos
outros dois. Compreendê-los desse modo é importante, como foi proposto nesta
tese, mas analisá-los como parte de um todo e entendê-lo a partir das inter-relações
inerentes à tecnoscopia oferece outra visão de um complexo sistema - ao mesmo
tempo inter, trans e multidisciplinar - que envolve meandros de áreas distintas como
psicologia, sociologia, filosofia, pedagogia, economia, política, teoria da
comunicação, publicidade, arte e cultura, entre outras que poderiam ser elencadas.
Foi visto que os vieses tecnoscópicos também atendem a uma série de
parafilias e transtornos no âmbito da psicologia e psicanálise, além do voyeurismo e
do exibicionismo, e, de forma análoga, que a vigilância global permeia uma miríade
de questões político-econômicas. Em consonância a isso, na produção artística e
cultural da contemporaneidade, a tecnoscopia perpassa mais de uma linguagem ou
tipo de produção imagética, fazendo-se presente como poética, temática, crítica ou
384

meio, processo, suporte de dezenas de possibilidades, experimentações e produtos


no campo das artes, da comunicação e do entretenimento.
Retomar o que foi discutido aqui para propor um possível “fechamento” de
ideias e reflexões traria uma redundância dispensável de informações. Diante do
que já fora colocado no início desta conclusão, não há resposta, modelo ou receita
para enfrentar a tecnoscopia. De fato, o mais plausível a se fazer é entendê-la como
parte integrante da cultura humana, que engloba questões subjetivas e
sumariamente objetivas, pois a tecnoscopia é um dos principais motores do
capitalismo contemporâneo. Há um “sistema” multidisciplinar e comórbido regido
pela tecnoscopia e, como ainda não há meios palpáveis de combatê-lo, a arte se
apresenta como ferramenta “imaterial” para esse enfrentamento, conforme a
concepção de McLuhan (1974) citada ao fim do último capítulo.
Por essas questões, acredita-se que discutir a tecnoscopia no âmbito de um
objeto de pesquisa artístico não é apenas válido, como também essencial. A arte
costuma explicitar os problemas presentes e, ao mesmo tempo, fazer refletir sobre
questões passadas e prever inevitáveis dificuldades futuras.
Hoje, algumas redes sociais na internet, por exemplo, já possuem
mecanismos automatizados e inteligentes que identificam quando uma pessoa
morre para, então, inserir a expressão in memoriam no perfil online dela. Assim,
constata-se que a vida digital dos usuários transcende a própria morte e se torna
teoricamente eterna, pelo menos enquanto os servidores estiverem ativos. Mesmo
após a morte do corpo físico, o “espírito digital” alimentado por diversas imagens e
informações que o usuário “postou” em vida continuará disponível na rede. Será que
hoje, por meio da tecnoscopia, o homem conseguiu a sempre quista imortalidade?
Mas ela seria válida sem o “controle” ou “acompanhamento” do usuário que fora
uma vez vivo? Os exibicionistas continuarão sendo vistos (e continuarão se
exibindo) mesmo após sua morte. Inclusive, várias dessas mortes (pré-maturas)
ocorreram por conta de suicídios após o vazamento de imagens íntimas,
decorrentes das imagens que hoje são vistas e que criam um certo tipo de
voyeurismo post-mortem.
O exemplo citado no parágrafo anterior é apenas um entre outros bizarros
desdobramentos tecnoscópicos que não foram tratados por completo no decorrer
desta tese. O tema é tão amplo que se torna impossível esgotá-lo, uma vez que
385

novos desdobramentos surgem diariamente. Em face do que foi discorrido, acredita-


se que um pensamento crítico a partir das reflexões de um artista-pesquisador que
se propõe a compreender um complexo sistema cultual, capitalista e psicossocial –
e, concomitantemente, realizar proposições poéticas que permitem o intercâmbio
entre teoria e prática artística – pode ser um produto que auxilie na compreensão e
no enfrentamento do estado de coisas. A tecnoscopia enquanto arte, técnica
(tékhne) e múltipla maneira de “ver” e “ser visto” (skopós ou scopus) pode ser um
novo caminho para entender e enfrentar questões presentes e o futuro iminente.
Nesse ínterim, esta tese se propõe a dar sua singela contribuição.
386

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