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Tipicidade dos Direitos Reais

BRUNO DANTAS
Pós-Doutorado (UERJ). Doutor e Mestre em Direito (PUC-SP). Pesquisador
Visitante na Benjamin N. Cardozo School of Law (Estados Unidos da América) e
no Max Planck Institute for Regulatory Procedural Law (Luxemburgo). Professor
da Pós-Graduação em Direito (IDP).

Artigo recebido em 17/8/2018 e aprovado em 19/9/2018.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 As ideias de abstração e concreção: rumo ao tipo 3 O numerus


clausus 4 A tipicidade no direito 5 Raízes da moderna concepção de propriedade 6 Direitos
pessoais x direitos reais 7 Especificamente, a tipicidade dos direitos reais 8 Conclusão 9
Referências.

RESUMO: Este artigo analisa o princípio da tipicidade dos direitos reais em contraste
com o princípio do numerus clausus. Para isso, realizou-se investigação de elementos
históricos, filosóficos e metodológicos, mediante o aprofundamento de três aspectos:
a ideia de tipo, contextualizada na perda de prestígio do pensamento abstrato; o
significado de numerus clausus dos direitos reais; e a necessidade, revelada pela
história, de disciplina minuciosa dos direitos relacionados à propriedade. A tipicidade
dos direitos reais, longe de ser uma opção estritamente jurídica, agasalha em si
verdadeira decisão política dos estados modernos, que possui enorme repercussão
em sua vida econômica e social.

PALAVRAS-CHAVE: Tipicidade Numerus Clausus Direitos Reais Metodologia


Propriedade.

Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 20 n. 121 Jun./Set. 2018 p. 439-463


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The typus in real property rights

CONTENTS: 1 Introduction 2 The ideas of abstraction and concretion: towards the typus 3 The
numerus clausus 4 The typus in law 5 Roots of the modern conception of property 6 Personal rights
vs. real property rights 7 Specifically, the typus of real property rights 8 Conclusion 9 References.

ABSTRACT: This article analyzes the typus of the real property rights in contrast
with the principle of numerus clausus. In order to do so, historical, philosophical
and methodological elements were investigated through the deepening of three
aspects: the idea of ​​typus, contextualized in the loss of prestige of the abstract
thought; the meaning of numerus clausus of property rights; and the need, revealed
by history, for thorough discipline of rights related to property. The typus of property
rights, far from being a strictly legal option, embodies in itself true political decision
of the modern states, which has enormous repercussion in its economic and social
life.

KEYWORDS: Typus Numerus Clausus Real Property Rights Methodology Property.

Tipicidad de los derechos reales

CONTENIDO: 1 Introducción 2 Las ideas de abstracción y concreción: hacia el tipo 3 El numerus


clausus 4 La tipicidad en el derecho 5 Raíces de la moderna concepción de propiedad 6 Derechos
personales x reales 7 Específicamente, la tipicidad de los derechos reales 8 Conclusión 9
Referencias.

RESUMEN: El artículo analiza el principio de la tipicidad de los derechos reales en


contraste con el principio del numerus clausus. Para eso, se realizó investigación
de elementos históricos, filosóficos y metodológicos, mediante la profundización
de tres aspectos: la idea de tipo, contextualizada en la pérdida de prestigio del
pensamiento abstracto; el significado de numerus clausus de los derechos reales;
y la necesidad, revelada por la historia, de disciplina minuciosa de los derechos
relacionados con la propiedad. La tipicidad de los derechos reales, lejos de ser
una opción estrictamente jurídica, agasaja en sí verdadera decisión política de los
estados modernos, que tiene enorme repercusión en su vida económica y social.

PALABRAS CLAVE: Tipicidad Numerus Clausus Derechos Reales Metodología


Propiedad.

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1 Introdução
Dentre os princípios que regem a disciplina legal dos direitos reais, merece
destaque o da tipicidade. Para se entender a sua aplicação, é fundamental, em
primeiro lugar, a compreensão do conceito, da aplicação e da função dos tipos a
partir da ideia de concreção do direito, contraposta à ideia tradicional de abstração
que prevalece na ciência jurídica.
Para tanto, é necessário proceder a uma pequena incursão no terreno da
metodologia do direito, com a finalidade de esclarecer satisfatoriamente como
agem a abstração e a concreção na formulação das hipóteses legais e na subsunção
a elas do suporte fático, com vistas à incidência da norma jurídica ao caso concreto.
Essas teses foram discutidas ardorosamente na Alemanha no século passado,
merecendo destaque os estudos de Larenz (1966) e Engisch (1968) sobre abstração
e concreção, respectivamente, na ciência do direito. Os influxos desse debate foram
absorvidos por José de Oliveira Ascensão (1968), que, ao observar a ausência de
rigor no campo dos direitos reais, na diferenciação entre tipicidade e numerus
clausus, ofereceu aos leitores de língua portuguesa uma das melhores obras de que
se tem notícia sobre o princípio da tipicidade aplicado aos direitos reais.
Não se pode olvidar, todavia, que a tipicidade dos direitos reais, nada obstante
a metodologia que lhe rege, deve ser analisada dentro de seu contexto histórico,
a fim de que resgatemos as reais razões que conduziram, a um só tempo, à quase
absoluta liberdade no campo obrigacional e a tamanha restrição no que diz respeito
aos direitos relacionados com a propriedade.
Nesse diapasão, Ourliac e Malafosse (1960), em profundo estudo sobre os
direitos romano e francês histórico, fornecem o panorama jurídico necessário para a
perfeita conexão dos fatos que se sucederam desde os tempos do Império Romano
até os dias de hoje, passando pela Revolução Francesa, em 1789.
A partir daí, revelam-se úteis considerações sobre as teorias explicativas dos
direitos reais, conforme bem anotam Allende (1967), Gatti (1980) e Arruda Alvim
(1987), de modo a distinguir com clareza os direitos reais dos pessoais, a fim de
delimitar com precisão o campo de atuação do princípio da tipicidade neste artigo.
Para estruturar o artigo, servimo-nos de pesquisa bibliográfica e documental,
tanto nacional quanto estrangeira. E, nesse sentido, a fim de cumprir a tarefa que
aqui nos propomos, dividimos o trabalho em sete tópicos. Nos quatro primeiros,
voltados aos aspectos filosófico-metodológicos, abordamos as ideias de abstração e
concreção na ciência do direito.

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Neste primeiro tópico, introdutório, apresentam-se as questões que pretendemos


problematizar, nossas hipóteses de trabalho, a metodologia utilizada para a
consecução da pesquisa e o plano do trabalho. No segundo, abordam-se a abstração,
a concreção e o tipo, trilhando um caminho progressivo. No terceiro, cuida-se do
princípio do numerus clausus e de sua relação com a tipicidade. O quarto tópico, por
sua vez, introduz a ideia que será melhor desenvolvida nos três últimos, ao abordar
a tipicidade no direito.
É nos três últimos tópicos, na verdade, que tratamos do tema central deste
trabalho: a tipicidade aplicada aos direitos reais. Para tanto, o quinto tópico versa
brevemente acerca das raízes históricas do direito de propriedade. Já o sexto
e o sétimo apresentam a teoria geral dos direitos reais visando trazer os traços
distintivos entre estes e os direitos pessoais e analisar a forma como a tipicidade é
aplicada aos direitos reais.
A pesquisa revelou as razões que justificam a distinção nas modelagens dos
direitos obrigacionais e reais. Na seara contratual, como será visto, deve imperar a
liberdade, ao passo que, no campo real, a prevalência é da liberdade vinculada, pois o
conteúdo em si dos direitos reais está fora da esfera de disposição dos interessados.

2 As ideias de abstração e concreção: rumo ao tipo

2.1 A ideia de abstração


O jusfilósofo alemão Karl Larenz (1966) empreendeu uma das mais agudas e
objetivas análises sobre o pensamento abstrativo aplicado à ciência jurídica. Em
sua Metodología de la ciencia del derecho, ao tratar da formação do conceito, Larenz
(1966, p. 334) denomina de abstração isoladora (com inspiração hegeliana) o
processo cognitivo no qual o pensamento apreende as propriedades ou atributos
de um objeto da percepção individualmente, estabelece diferenciação entre eles e
o objeto e entre si mesmos, os determina de modo genérico e cria um nome para
cada um deles.
Para o autor (LARENZ, 1966, p. 335), os atributos genéricos apreendidos e
diferenciados no bojo do processo de abstração isoladora são abstrações de primeiro
grau, mas ainda não são conceitos. Tornam-se elementos de conceitos (abstratos)
quando são acolhidos como características de uma definição conceitual. Ele afirma
que as características conceituais são irrelevantes para sua subsunção ao conceito

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abstrato, pois este ostenta sua própria totalidade, não dependendo necessariamente
da soma de suas características.
A respeito da indagação em torno das propriedades que devem ser consideradas
essenciais para a caracterização de um objeto sob classificação, Larenz (1966, p.
335-336) afirma que tal seleção dependerá fundamentalmente do fim que a ciência
em questão persegue precisamente com a classificação.
Em outras palavras: um mesmo objeto da percepção humana pode receber dois
conceitos abstratos absolutamente distintos, a depender da seara onde o conceito
será aplicado. Colhemos em Larenz (1966, p. 336) o exemplo do conceito de animal,
que se difere enormemente conforme seja aplicado no direito civil ou na biologia.
O objetivo da formação de conceitos com graus de abstração mais elevados é
tornar possível a subsunção neles do maior número possível de objetos individuais,
o que, segundo Larenz, é desejável, dentre outros motivos, porque:

[…] la formación del concepto mediante abstracción y la aplicación mediante


subsunción de los conceptos así obtenidos es el medio mediante el cual
nuestra razón pone orden en nuestras representaciones y lo que hace posible
el conocimiento rápido y seguro de cada cosa como tal, así como la obtención
de consecuencias de lo General para lo Especial que cae dentro de él 1. (1966,
p. 337, grifos no original).

A lei deve ser capaz de englobar um vasto número de situações fáticas distintas
e complexas, de modo a descrevê-las e ordená-las de forma tal que os fatos
considerados semelhantes possam receber o mesmo tratamento jurídico. Isso se dá
pela observação empírica das relações sociais que devem ser valoradas pelo direito,
de modo a alçar o fato social à categoria de fato jurídico.
Embora a formação de conceitos abstratos não se preste exclusivamente à
formulação de supostos de fato, mas também à designação de consequências jurídicas
e institutos jurídicos, Larenz (1966, p. 340) menciona a crítica que se faz ao método
abstrativo, relacionada ao fato de que nele se perdem certos traços característicos
da situação concreta abstraída pelo conceito. Isso porque o pensamento abstrativo
tende a se contentar com o menor número possível de elementos conceituais, o que,
se por um lado, facilita a subsunção, de outro, empobrece o conteúdo dos conceitos
jurídicos gerais.

1 “[...] a formação do conceito pela abstração e aplicação por meio da subsunção dos conceitos assim
obtidos é o meio pelo qual nossa razão coloca ordem em nossas representações e o que torna possível o
conhecimento rápido e seguro de cada coisa como tal, bem como a obtenção das consequências do Geral
para o Especial que se encaixa nele” (tradução nossa, grifos no original).

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Esse empobrecimento, no entender de Larenz, torna o conceito incapaz de “[...]


aprehender el sentido institucional de una regulación y de facilitar, en base a ellos, la
comprensión de los rasgos particulares” (1966, p. 340, grifos nossos)2, e o distancia
da representação naturalística à qual está vinculado, tornando-se vazio de sentido.
Daí porque determinados temas que exigiam tratamento jurídico mais rigoroso,
como, por exemplo, o direito penal, o direito tributário e os direitos reais, escaparam
da metodologia abstrativista e trilharam o caminho da tipicidade, que é uma das
formas de concreção na ciência do direito.

2.2 A ideia de concreção


Karl Engisch (1968), outro renomado jusfilósofo alemão, identificou a antinomia
concreto e abstrato não apenas no direito, mas também na lógica e na ontologia.
Em sua obra sobre a ideia de concreção na ciência jurídica moderna, observou com
precisão as falhas do pensamento abstrato e apresentou a concreção como tendência.
Em seus estudos sobre a concreção na ciência do direito, o jusfilósofo alemão
observou que se atribui uma pluralidade de sentidos à dicotomia concreto-abstrato,
mas que apenas algumas tendências à concreção são especialmente relevantes para
a teoria do direito (ENGISCH, 1968, p. 173).
Nesse sentido, Engisch delineou como relevantes para o direito, dentre outras,
duas tendências para a concreção: a concreção como tendência ao real e a concreção
como tendência ao tipo.
Para o autor (ENGISCH, 1968, p. 203-204), concreção do direito quer dizer
orientação do direito ao real, e não apenas imposição do direito à realidade e
tendência a uma realidade a estruturar. Adverte, porém, que deve-se evitar o
perigo de cair no imenso complexo de teorias do direito natural, pois quando o
direito tende à realidade da vida, pretende orientar-se pela natureza do homem,
pela natureza da sociedade e pela natureza da coisa, de modo a basear o dever-ser
no próprio ser, no ôntico, no existencial, de modo a elaborar-se um fundamentum
in re. Para evitar esse perigo, e não se enveredar pela metafísica do direito, afirma
que deve-se observar, de forma implacável, os problemas prévios delimitados para
a investigação (ENGISCH, 1968, p. 209).

2 “[...] apreender o sentido institucional de um regulamento e facilitar, com base neles, a compreensão da
especificidades” (tradução nossa, grifos nossos).

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Pondera Engisch ainda que “la teoría del derecho está en peligro de quedar
prisionera en las abstracciones” 3, para concluir que “desde comienzos de este siglo está
en marcha un movimiento que exige, paralelamente, una concreción del derecho y de su
aplicación así como una concreción de la ciencia jurídica (en el sentido de orientarse a
la realidad)”4 (1968, p. 244-245, grifos no original).

2.3 A ideia de tipo


As falhas do pensamento abstrativista há muito já haviam sido identificadas
quando, nos anos de 1951 e 1952, a revista alemã Studium Generale dedicou duas
edições ao estudo da aplicação do pensamento típico em diversas ciências, dentre
elas, o direito.
Nessas edições se encontram, entre outros, artigos de J. E. Heyde sobre o
conceito de tipo, de E. Kretschemer sobre o tipo como problema teórico-cognoscitivo
e de Hans J. Wolff e J. von Kempski sobre a aplicação do tipo ao direito e às ciências
sociais, respectivamente (ENGISCH, 1968, p. 416).
Está no artigo de Erich Heyde (1941, p. 220-223, apud LARENZ, 1966, p. 344)
uma grande contribuição ao conhecimento da história dos diversos significados da
palavra tipo e, sobretudo, a explicação sobre o uso atual do termo na acepção que
lhe vem emprestando a Metodologia moderna.
Heyde (1941, apud DERZI, 1987/1988, p. 630) aponta que a forma latina typus
adveio do grego, e que originariamente tinha o sentido de: impressão de uma
forma, forma oca, relevo, impressão, batida, cunhagem. Typus tem, inicialmente, dois
sentidos próprios e pacíficos: a) de cópia, contorno ou molde determinante da forma
de uma série de objetos que dele derivam – a cunhagem de moedas ou selo e
sua impressão exprimem a ideia de um tipo em correlação com a ideia de seus
exemplares ou empregos – e b) de exemplo ou modelo, em acepção mais valorativa,
derivando para protótipo ou arquétipo.
Heyde (1941, apud DERZI, 1987/1988, p. 630), todavia, sustenta que a origem
do atual conceito de tipo das ciências humanas como ordenação do conhecimento
que guarda a possibilidade de transições fluidas e ininterruptas está nas ciências
naturais, em especial na Zoologia e na Botânica.

3 “[...] a teoria do direito corre o risco de ser aprisionada em abstrações” (tradução nossa, grifos no original).

4 “[...] desde o começo deste século está em andamento um movimento que exige, paralelamente, uma
concreção da lei e sua aplicação, bem como uma concretização da ciência jurídica (no sentido de se
orientar para a realidade)” (tradução nossa, grifos no original).

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Segundo relata Misabel Derzi (1987/1988, p. 631), Heyde conclui que,


hodiernamente, o vocábulo tipo é usado no sentido geral de forma básica (Grundform)
ou essência, tanto na acepção mais específica de plano de construção como, por outro
lado, no significado mais lato de forma plena como padrão.
Nada obstante isso, como forma de ordenação lógica do conhecimento que
admitia, por comparação, as transições fluidas e contínuas, o tipo somente se firma
no séc. XIX, no campo das ciências naturais, e se instala, já no séc. XX, no domínio
das ciências sociais (HEYDE, 1941, apud DERZI, 1987/1988, p. 631).
Engisch (1968, p. 417), baseado nas palavras de Heyde, sustenta que à primeira
vista pode parecer estranho que o tipo possa conter uma afinidade com o concreto,
eis que muito se destaca que o tipo, como conceito ou lei, tenha caráter geral.
Com isso, formula Engisch a seguinte indagação: “concepto y ley son generales y
abstractos; si el tipo há de ser también general y abstracto, ¿en qué se diferencia pues
del concepto y de la ley?”5.
O próprio Engisch responde à indagação:

[…] conforme al uso actual del tipo, fundamentalmente en que es


comparativamente concreto. Para descubrir, y, sobre todo, para convencernos de
en qué sentido se habla del tipo como algo concreto, es imprescindible tener
a la vista los significados fundamentales del concepto de tipo, tan fluctuante
como el concepto de concreto. Hay diversas especies – o, ¿debe decirse tipos?
– de tipo6. (ENGISCH, 1968, p. 417).

Ascensão (1968, p. 22-23) atribui a Gustav Radbruch o pioneirismo da aplicação


sistemática do tipo à ciência do direito. Afirma o professor português que o ponto de
partida eram as investigações de Hempel-Oppenheim, nas quais eram contrapostos
os klassenbegrieffe (conceitos de classe ou classificatórios) aos ordnungsbegrieffe
(conceitos de ordem ou ordenadores).
A diferença residia no fato de que, enquanto os klassenbegrieffe se fundavam
numa abstração que desconheceria que a realidade é contínua, dissecando-a em
categorias rígidas, os ordnungsbegrieffe teriam fronteiras fluidas, sendo objeto de
mais de uma descrição, em vez de definição (ASCENSÃO, 1968, p. 22-23).

5 “Conceito e lei são gerais e abstratos; se o tipo também deve ser geral e abstrato, como é diferente do
conceito e da lei?” (Tradução nossa).

6 “[...] de acordo com o uso atual do tipo, fundamentalmente porque é comparativamente concreto.
Para descobrir e, acima de tudo, convencer-nos de em que sentido se fala do tipo como algo concreto, é
essencial ter em vista os significados fundamentais do conceito de tipo, tão flutuantes quando o conceito
de concreto. Existem diferentes espécies – ou, digamos, tipos? – de tipo” (tradução nossa).

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O tipo, acentua Ascensão (1968, p. 36), embora seja mais concreto que o conceito,
é mais abstrato que o caso individual, ocupando, pois, uma posição intermediária
entre este e aquele, o que o torna insuficiente para atender às tendências de
individualização na aplicação do direito.

3 O Numerus clausus
Já no final da década de 1960, o professor português José de Oliveira Ascensão
(1968, p. 14-15) observava a confusão conceitual que se fazia entre os princípios da
tipicidade e do numerus clausus na seara dos direitos reais. Sua obra A tipicidade dos
direitos reais tem sido, desde então, uma das maiores fontes doutrinárias em língua
portuguesa acerca desse espinhoso assunto.
O tema revela sua dificuldade por envolver discussão não estritamente jurídica,
mas principalmente de cunho filosófico e metodológico. Embora seja forçoso
reconhecer que os dois princípios – tipicidade e numerus clausus – andam juntos,
dessa assertiva não pode derivar a conclusão de que se tratam de figuras idênticas.
No campo do direito, o numerus clausus, em regra, está relacionado à restrição ou
à limitação de uma dada situação mencionada pela norma. Trata-se, evidentemente,
de uma enumeração taxativa, o que significa, em outras palavras, que não se admite
interpretação ampliativa diante das hipóteses especificadas. Naturalmente, o caráter
numerus clausus ou apertus não pode ser afirmado aprioristicamente, mas depende
de análise da situação abstrata arrolada pela norma.
Por sua vez, a tipicidade guarda relação com o método de construção normativa.
É ela uma forma de concreção dentro da própria norma, na medida em que, ao
prever elementos determinados que constituem – por exemplo, este ou aquele
direito real, crime, ou tributo –, exerce um tipo de materialização que não ocorre
nas normas mais abstratas. Embora um desavisado pudesse confundir os institutos,
teremos oportunidade de delinear suas semelhanças e distinções.
A evolução histórica do princípio do numerus clausus no campo dos direitos
reais está diretamente associada à da concepção da propriedade nas sociedades
ocidentais. Para melhor compreender o porquê da vasta adoção desse princípio
tanto nos países de civil law quanto nos de common law, é indispensável fazer uma
breve incursão na evolução do direito de propriedade.
Temos, no artigo de Bernard Rudden (1987), Economic theory v. property law:
the numerus clausus problem, uma das melhores e mais completas análises sobre
o princípio do numerus clausus, explicado a partir da teoria econômica. Nele, o

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professor de direito comparado da Universidade de Oxford vai às raízes históricas da


fragmentação da propriedade, que culminaram com a elevação do numerus clausus a
princípio quase universal na seara dos direitos reais.
Sob o direito romano clássico, ao proprietário não era lícito transferir menos que
todo o complexo de direitos, privilégios e poderes que tinha sobre a propriedade.
Transferências de direitos em menor medida que a propriedade plena eram
permitidas apenas em situações excepcionais e em um número limitado de casos.
A concepção da propriedade no direito romano (dominium ex iure Quiritium)
é baseada na constatação de que a otimização do uso da terra está sujeita a
mudanças. como por exemplo o tempo, e que a propriedade absoluta proporciona
maior flexibilidade, dada a concentração dos poderes decisórios nas mãos de um
único indivíduo.
A noção de propriedade absoluta sofreu uma mudança substancial no direito
feudal. Durante a era feudal, uma nova ordem de limitações funcionais e legais no
uso e disposição da terra transgrediu a concepção romana da propriedade absoluta.
Embora as fundações do direito de propriedade medieval fossem inquestionavelmente
romanas, o sistema feudal gradualmente transformou a concepção de propriedade
socialmente aceita7.
No mundo feudal, direitos e deveres estavam baseados na ocupação da terra
e nas relações pessoais e esta concepção de propriedade era instrumental para
manutenção da estrutura social e econômica do feudalismo (BESSONE, 1988, p. 21;
ARRUDA ALVIM, 1987, p. 43).
Nesse sistema de posse das terras, cada indivíduo era definido pelo seu status
hierárquico em relação à terra. À exceção do rei, todo indivíduo era subserviente a
outro. De acordo com a conhecida pirâmide feudal, apenas os possuidores inferiores
usavam a terra, e todos os outros seriam como intermediários na coleta de taxas e
concessões de serviços e proteções. O rei permanecia como último requerente residual.
Nesse processo, a propriedade feudal tornou-se muito distinta do paradigma
romano de propriedade, pois as concessões feudais eram sempre limitadas pelo
ato de licença e pelo título. Além disso, o proveito da posse nunca pertencia à
mesma pessoa; a propriedade não era ilimitada nem absoluta; os direitos não eram
oponíveis erga omnes, mas consistiam em um feixe de direitos e deveres, parcialmente
aplicáveis a toda comunidade e parcialmente determinados pela relação contratual
específica entre o concedente e o beneficiário. Um sistema complexo de controle

7 Para uma completa análise do direito na época feudal, ver OURLIAC; MALAFOSSE, 1960, capítulo V.

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social e político reforçava esta transição do sistema romano para o regime feudal
de propriedade dispersada (e fragmentação da propriedade).
O feudalismo era inseparavelmente vinculado à vida agrícola. Numa economia
agrícola, as formas funcionais de fragmentação geralmente não são problemáticas
enquanto a unidade física da terra estiver preservada. Já se observa aí uma
preocupação com a excessiva fragmentação8, o que era evitado, por exemplo,
mediante regras de primogenitura e proibição de subcontratação9.
Com a Revolução Francesa, de 1789, e o fim do feudalismo, os códigos modernos
passaram a limitar o nível permissivo de fragmentação da propriedade e a fornecer
proteção real apenas para direitos específicos e socialmente desejáveis.
Essa enumeração é conhecida como princípio numerus clausus e é uma importante
expressão do princípio fundamental que dá suporte ao moderno direito de propriedade.
A proposta deste princípio é evitar que os indivíduos criem direitos de propriedade
que se difiram daqueles expressamente reconhecidos pelo sistema jurídico10.
Estudiosos europeus também se referem a esse princípio ao invocar o conceito
de enumeração dos direitos de propriedade. Thomas Merril e Henry Smith (2001, p.
69) reconheceram que, embora o princípio numerus clausus seja mais uma doutrina
do direito romano seguida e imposta na maioria dos países da civil law, o princípio
também existe como parte da vaga tradição do common law. Os autores ilustram as
muitas formas que os juízes da common law estão acostumados a pensar em termos
comparáveis com a doutrina do civil law.
As primeiras formulações do numerus clausus careciam de um raciocínio bem-
articulado e eram especialmente atacáveis em razão do agudo contraste com a
doutrina da liberdade contratual (ASCENSÃO, 1968, p. 74-75).
A dicotomia entre os paradigmas do contrato e da propriedade resulta em uma
tensão geral entre o princípio da liberdade para contratar e a necessidade social de
padronização dos direitos de propriedade. Todas as codificações europeias modernas

8 Mesmo o sistema feudal da propriedade – frequentemente apresentado como paradigma da


propriedade fragmentária – concebia remédios para combater a fragmentação excessiva da propriedade.
Realmente, embora algumas formas funcionais de fragmentação da propriedade fossem instrumentais
para a estabilidade da sociedade feudal, outras podiam ser facilmente prevenidas.

9 Regras emergiam para prevenir a fragmentação dos direitos possessórios mesmo nos tempos feudais.
Os possuidores não podiam subcontratar seus direitos e obrigações.

10 Para um exame moderno do princípio numerus clausus, veja RUDDEN, 1987, que analisa criticamente
as justificações legais, filosóficas e econômicas para a limitação dos tipos legalmente reconhecidos de
direitos reais a um punhado de formas padronizadas.

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refletem essa tensão. Elas promovem a liberdade contratual ao reconhecer e dar


coercibilidade às formas nominadas e inominadas de contrato. Ainda, ao mesmo
tempo, elas limitam a autonomia privada em transações envolvendo direitos reais e
apenas fornece coercibilidade a transações relacionadas com as formas padronizadas
de propriedade11.
A influência do princípio numerus clausus tem durado além dos códigos pós-
revolucionários, e pode ser encontrada na maior parte dos códigos modernos. O Código
Napoleônico de 180412, o BGB alemão de 1900 – que dispõe, em seu parágrafo 90,
que “Sachen im Sinne des Gesetzes sind nur körperliche Gegenstände”, em tradução literal:
“apenas objetos corpóreos são coisas em sentido jurídico” (ALEMANHA, 1896, tradução
nossa), o que pode ser visto como uma partida substancial do conceito feudal de
propriedade, onde a maior parte dos direitos atípicos tinham natureza intangível – e
muitas outras codificações13 contêm provisões que restringem à criação (ao menos com
coercibilidade) de direitos de reais atípicos.
Como Rudden ensina: “in very general terms, all systems limit, or at least greatly
restrict, the creation of real rights: fancies are for contract, not for property” 14 (1987, p.
243, grifos no original).

11 Isso implica que os direitos de propriedade somente são coercíveis com ações reais se eles estiverem
em conformidade com alguma categoria padronizada de direitos reais. Inversamente, a presunção é
oposta no campo dos contratos: o sistema legal atribui coercibilidade a todos os tipos de contratos a
menos que eles violem regras de ordem pública.

12 Muitos artigos do Código Civil francês (FRANÇA, 2016) adotam o conceito de tipicidade de direitos
reais e articulam princípios de propriedade unitária e absoluta. Veja, por exemplo, o art. 516, sobre a
diferenciação da propriedade; art. 526, listando as formas de direitos reais limitados (usufruto, servidões
e hipoteca); arts. 544-546, sobre a definição e conteúdo necessário da propriedade absoluta, etc.

13 Praticamente todas as importantes codificações modernas – nem todas foram diretamente


influenciadas pelos modelos francês e alemão – abraçam um princípio similar de unidade na propriedade.
Bernard Rudden, 1987, fornece uma análise comparativa do princípio do numerus clausus nos modernos
sistemas legais do mundo, relatando que muitos sistemas legais na Ásia adotaram uma regra básica
segundo a qual “nenhum direito real pode ser criado além dos estabelecidos neste Código ou outra
legislação”. Como exemplo, temos o Código Coreano, em seu art. 185; o Código Tailandês, em seu art.
1298; e o Código Japonês, em seu art. 175. Disposições semelhantes existem em outros sistemas de
derivação diretamente europeia como o Código de Louisiana, art. 476-478; o Código Argentino, art.
2536; o Código Etíope, art. 1204 e a Lei de Terras de Israel, art. 1969, seções 2-5.

14 “Em termos muito gerais, todos os sistemas limitam, ou pelo menos restringem bastante, a criação
de direitos reais: fantasias são para contrato, não para propriedade (tradução nossa, grifos no original).

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Bruno Dantas 451

A antiga doutrina questionava se prevalecia no Brasil o sistema do numerus


apertus, ou seja, o da enumeração simplesmente exemplificativa, ou se vigorava o
sistema do numerus clausus, que é o da enumeração taxativa.
Darcy Bessone (1988, p. 9-10) afirma que, dentre outros, Afonso Fraga, Lacerda
de Almeida, Carvalho Santos e Philadelpho de Azevedo reputavam a lista como
exemplificativa, ao passo que Lafayette (ainda na vigência do direito pré-codificado),
Dídimo da Veiga (em comentário ao Código Civil), Pontes de Miranda e outros
entendiam sê-la taxativa.
O principal argumento dos primeiros era que no projeto elaborado por Clóvis
estava expresso que somente se considerariam direitos reais, além da propriedade,
os arrolados em lei. O advérbio somente foi suprimido em consequência de emenda
aprovada durante o processo legislativo do projeto que se transformou no Código
Civil de 1916.
Ponderavam, ainda, que em razão de poder o domínio ser decomposto em tantos
direitos quantas forem as frações de utilidade econômica que da coisa se obtém, não
seria possível determinar-se, em um texto legal, o número desses direitos. Assim,
não seria viável restringir a aplicação do princípio da autonomia da vontade, sob
pena de se criar distinção onde a lei não o fez (BESSONE, 1988, p. 9-10).
A esses argumentos podem ser opostos outros, como o de que a supressão do
advérbio somente visou apenas a aprimorar a redação do texto, sem lhe comprometer
o alcance; ou o de que, quando um direito é considerado real pela lei, todas as
partes em que ela se decomponha serão também reais, por força da lei, já que a
realidade do todo se comunica, necessariamente, com as partes resultantes de seu
fracionamento. Assim, o caráter real, nesses casos de decomposição do direito real,
teria origem na lei, não na convenção.
A exigência de que a transferência de propriedades imóveis seja registrada em
um registro público reforça o princípio numerus clausus porque apenas direitos reais
típicos podem ser legalmente registrados. Decorre logicamente disso que qualquer
contrato que constitua ou modifique uma situação de propriedade em desrespeito
à taxonomia dos direitos reais reconhecida pelo sistema legal é apenas fonte de
obrigações contratuais.
De fato, o restabelecimento da concepção absoluta da propriedade, tal qual
concebida no direito romano, era visto como uma forma de atenuar a estratificação
social fomentada pelo regime feudal, libertando, por assim dizer, os homens.

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452 Tipicidade dos Direitos Reais

4 A tipicidade no Direito
José de Oliveira Ascensão (1968, p. 20) reputa fundamental, para o início
de uma investigação científica, distinguir com o rigor possível os vocábulos
tipicidade e facti species. Ele afirma que, pelo fato de a tipicidade se sustentar
necessariamente numa referência ao tipo, poder-se-ia conjecturar que ela se
confunde com previsão ou hipótese legal, que, em verdade, é anterior a toda
norma jurídica. Para caracterização da última, os alemães se socorrem da palavra
tatbestand, que Pontes de Miranda (1983, p. 395) traduziu como suporte fático e
utilizou como alicerce de sua teoria do fato jurídico.
Assim, para Ascensão, o estudo da facti species é, ao mesmo tempo, mais amplo
e mais limitado do que o da tipicidade, justificando que é mais amplo porque “nem
toda previsão legal, no sentido de facti species, implica o recurso à tipicidade”, e mais
limitado porque “a facti species traz consigo a previsão legal, e a tipicidade funciona
tanto no que respeita à previsão como à estatuição” (1968, p. 21).
Em outras palavras, sua amplitude consiste no fato de que a tipicidade é apenas
um dos recursos que o suporte fático se vale para se juridicizar, podendo mesmo
utilizar outros métodos. Por outro lado, sua limitação consiste no fato de ter sempre
caráter positivista, enquanto a tipicidade assume também a feição normativa.
Karl Larenz (1966, p. 350) leciona que, na ciência do direito, o tipo se apresenta,
em primeiro lugar, como meio para designar elementos do suporte fático; em
segundo lugar, como forma de apreensão e exposição de relações jurídicas.
Sobre o problema que era causado pelos conceitos de classe na seara do direito
penal e a virada para o tipo, afirmava Ernst von Beling:

Han pasado los tiempos en que toda acción culpable contraria al derecho
desataba sin más la amenaza de una pena. El desbordado epíteto... será
castigado con la pena adquiere estructura estable cuando nos damos cuenta
de que hoy solo pueden ser objeto de la amenaza de una pena tipos de delito,
claramente descritos... El hombre moderno no soporta ya más un derecho
penal silencioso, que deambula de puntillas con zapatillas de felpa15. (apud
ENGISCH, 1968, p. 458).

15 “Se passaram os tempos em que todas as ações culpáveis contrárias à lei desencadeavam a ameaça
de uma penalidade. O epíteto transbordante... será punido com a penalidade adquire estrutura estável
quando percebemos que hoje só os tipos de crime claramente descritos podem ser objeto da ameaça de
uma penalidade. O homem moderno não pode mais suportar um direito penal silencioso, que vagueia na
ponta dos pés com chinelos de pelúcia” (tradução nossa, grifos no original).

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Com a tipificação não apenas dos delitos, mas também da culpabilidade, Beling
verifica, na evolução do direito penal até a tipicidade, uma contraposição com o
direito civil, no qual a configuração típica dos negócios jurídicos se constituiria como
ponto de partida histórico, que restou suplantado pela autonomia privada reinante
nesse campo do direito (BELING apud ENGISCH, 1968, p. 458).
Isso, todavia, não se constitui em empecilho para que Engisch vislumbre,
no Código Civil Alemão, um vasto campo de aplicabilidade para a tipicidade,
especialmente nos direitos reais, na gestão de negócios, nos atos ilícitos, no
enriquecimento ilícito, nos regimes de bens do casamento, dos motivos para
separação judicial etc. (ENGISCH, 1968, p. 459).
Não se pode olvidar que a tipicidade no direito se contrapõe à consagração,
nas normas jurídicas, de figuras genéricas ou conceitos sem especificações. E é por
isso que, para determinadas questões que carecem de maior rigidez interpretativa,
o legislador opta pela modelação de tipos, eis que eles são determinados por
referência a um conceito, que concretizam (ASCENSÃO, 1968, p. 34).
Percebe-se, pois, que a utilização dos tipos significa um degrau a mais
no nível de concretude da norma, à medida que, naturalmente, valem-se de
conceitos, mas acrescidos de especificações que os tornam menos abstratos que
o conceito puro e simples.
A questão, todavia, não envolve uma tendência cega, mas altamente vinculada
às matérias carentes de regulamentação. Assim, se por um lado há um movimento
no sentido da tipificação em determinados ramos do direito, como o penal, o
tributário e o das coisas, nota-se, por outro lado, o movimento inverso, no sentido
da utilização de conceitos vagos ou imprecisos, em relação, por exemplo, aos
direitos processual e constitucional.
É fundamental, para o exame da tipicidade dos direitos reais, analisarmos duas
espécies distintas de tipologias: taxativas e exemplificativas.
Consoante distingue Ascensão (1968, p. 34), nas primeiras, os tipos disponíveis
para o amoldamento dos conceitos ou figuras são exclusivamente estabelecidos
pela lei, ao passo que, nas segundas, à normatização se segue autorização (explícita
ou implícita) para que os particulares criem novas figuras típicas.

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454 Tipicidade dos Direitos Reais

5 Raízes da moderna concepção de propriedade


Em geral, as normas jurídicas que versam sobre o direito de propriedade
predominantes no mundo ocidental têm como raiz alguns textos cuja enorme
ressonância universal os converteu em paradigma para legisladores.
Tratam-se da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada
pela Revolução Francesa em 1789, da 5a Emenda à Constituição dos Estados
Unidos, introduzida em 1791, e dos artigos do Código Civil francês, promulgado
em 1804 (Código de Napoleão).
A Declaração estatui em seu artigo XVII: “Sendo inviolável e sagrado o direito
de propriedade, ninguém deverá ser privado dele, exceto nos casos de necessidade
pública evidente, legalmente comprovada, sob a condição de uma indenização
prévia e justa” (FRANÇA, 1789, art.XVII). No artigo II, essa mesma declaração havia
qualificado o direito de propriedade como um direito humano natural e imprescritível.
A 5a Emenda à Constituição Norte-Americana, ao absorver a figura da law of the
land, que se refere ao due process of law em sentido substantivo e procedimental,
dispõe que a ninguém “serão privados a vida, a liberdade ou a propriedade senão
por meio do devido processo legal; nem se poderá tomar propriedade privada para
o uso público sem a devida compensação” (UNITED STATES OF AMERICA, 1791,
tradução nossa).
Os dispositivos do Código Civil francês que guardam relação com o tema são os
artigos 544 e 545, que expressam:

Art. 544 – A propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas do modo


mais absoluto, sempre que não se faça delas um uso proibido, pelas leis ou
os regulamentos.

Art. 545 – Ninguém pode ser obrigado a ceder sua propriedade se não
é por motivo de utilidade pública e mediante justa e prévia indenização.
(FRANÇA, 2016).

Vivia-se a época do individualismo exacerbado, durante a qual se concebia um


direito de propriedade inviolável, com atributos absolutos em favor de seu titular
e dotado de um caráter exclusivo e perpétuo. A influência do pensamento liberal,
que repercutiu no Código de Napoleão, encontrou terreno fértil em diversos outros
países, como o Brasil. Tal tendência não se modificaria senão passada a primeira
terça parte do século XX, mediante uma evolução gradual, que hoje se conhece
como o perfil social do direito civil.

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Naturalmente, esse discurso não é casual. Ao contrário, corresponde à


evolução geral das ideias políticas, sociais e econômicas que fizeram sucumbir o
feudalismo e impuseram a ascensão do capitalismo em sua forma mais pura: a do
liberalismo econômico.

6 Direitos pessoais versus direitos reais


Segundo o conceito firmado pela escola clássica, direito real é o poder jurídico
da pessoa sobre a coisa, oponível a terceiros (BESSONE, 1988, p. 4). Guillermo
Allende o define como

[...] um direito absoluto, de conteúdo patrimonial, cujas normas,


substancialmente de ordem pública, estabelecem entre uma pessoa
(sujeito ativo) e uma coisa determinada (objeto) uma relação imediata, que
a prévia publicidade obriga a sociedade (sujeito passivo) a abster-se de
realizar qualquer ato contrário ao mesmo (obrigação negativa), nascendo
para o caso de violação uma ação real e que outorga a seus titulares as
vantagens inerentes ao jus persequendi e ao jus preferendi. (1967, p. 18).

Edmundo Gatti (1980 p. 33) atribui a Ulrici Huber a formulação do conceito de


direito real em contraposição ao de direito pessoal. Para ele, “ius in re é a faculdade
que compete ao homem sobre a coisa sem consideração a determinada pessoa; ius
ad rem é a faculdade que nos compete sobre outra pessoa para que nos dê ou faça
algo” (apud GATTI, 1980, p. 33, tradução nossa).
Direito pessoal, conforme anota Ortolan, citado por Vélez Sarsfiel, “é aquele em
que uma pessoa é individualmente sujeito passivo do direito” (apud ALLENDE, 1967,
p. 14). Em outras palavras, direito pessoal é aquele que gera a faculdade de obrigar
individualmente uma pessoa a uma prestação qualquer.
Enquanto Arruda Alvim (1987, p. 47) anota que à teoria que tenta unificar os
direitos reais e os obrigacionais a partir do critério do patrimônio dá-se o nome de
teoria unitária realista, Gatti (1980, p. 43) assinala que, para os defensores dessa
teoria, o direito obrigacional seria absorvido pelo direito real, pois, em última análise,
todos os direitos seriam reais, na medida em que recairiam não sobre a pessoa do
devedor, mas sobre seu patrimônio.
Segundo Washington de Barros Monteiro (1955, p. 16), essa teoria pretende
despersonalizar a obrigação a fim de patrimonizá-la, abstraindo, portanto, a
figura do devedor.

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456 Tipicidade dos Direitos Reais

Teoria diametralmente oposta é a unitária personalista, que, para Arruda Alvim


(1987, p. 48), incorpora os direitos reais aos pessoais, sob o argumento de que entre
ambos não haveria diferença essencial. Essa teoria, que tinha por base a ideia de que
o direito real era uma obrigação passiva universal, embora formulada originalmente
por Windscheid (apud GOMES, 1995, p. 5), foi largamente adotada na França a partir
das lições de Marcel Planiol (1904, p. 679).
Conforme relata Gatti, interpretando a lição de Planiol, para os teóricos da
corrente unitária personalista “no existen diferencias sustanciales entre los derechos
reales y los personales, desde que los primeros no serían más que derechos obligacionales
en los que la prestación consistiría siempre en una abstención que estaría a cargo de
todas las personas”16 (1980, p. 36).
Essa teoria teve evidente inspiração nas ideias de Immanuel Kant, que, em seus
Princípios metafísicos do direito, sustenta ser inconcebível a relação entre pessoas e
coisas, ponderando que ontologicamente que só se pode admitir relações jurídicas
entre pessoas: proportio hominis ad hominem (DINIZ, 2002, p. 10).
Demogue (apud DINIZ, 2002, p. 11), embora simpatizasse com essa teoria,
entendia que a eficácia erga omnes do direito real seria mais forte que a do direito
pessoal. Para o jurista francês, os direitos possuem a mesma natureza, e sua distinção
estaria na eficácia (MONTEIRO, 1955, p. 15).
Orlando Gomes aponta como principais objeções à teoria personalista:

i) a distinção que há entre a obrigação passiva universal e a obrigação, dita,


comum, que vincula o credor e o devedor. Em verdade, anota o professor
baiano, a obrigação passiva universal se trata de uma regra de conduta;

ii) a regra de conduta que impõe o respeito aos direitos de outrem não
é exclusividade do direito real, sendo aplicável mesmo aos direitos
creditórios. (1995, p. 4-5).

Gatti (1980, p. 50) assinala que a teoria eclética ou harmônica busca a conciliação
entre a valorização dos aspectos interno (consoante o faz a teoria clássica) e externo
(conforme a teoria unitária personalista). Essa distinção entre direitos pessoais e
reais assume especial relevância neste artigo, em razão de o princípio do numerus
clausus ser aplicável apenas aos últimos.

16 “Não há diferenças substanciais entre os direitos reais e os pessoais, uma vez que os primeiros não
seriam mais que direitos obrigacionais, em que o benefício consistiria sempre numa abstenção que seria
de todas as pessoas” (tradução nossa).

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Bruno Dantas 457

7 Especificamente, a tipicidade dos direitos reais


Diante da evolução histórica traçada nos tópicos anteriores, observamos como
dois fatores igualmente relevantes contribuíram para que os direitos reais sofressem
a influência do pensamento típico e, mais, para que a tipologia escolhida para esta
seara do direito civil fosse a taxativa.
Igualmente, pudemos delinear a distinção entre tipicidade e taxatividade,
procedendo à adequada particularização onde grande parte da doutrina brasileira ora
vê identidade, ora simplesmente não se manifesta sobre a questão. Uma das exceções
à regra é Arruda Alvim (1987, p. 48) que, ao tratar da teoria geral dos direitos reais,
enfrenta os princípios da tipicidade e do numerus clausus, efetuando as necessárias
distinções e cuidando para evidenciar que não se tratam da mesma coisa.
O ponto que gera a dificuldade doutrinária decorre da tipologia taxativa que
rege os direitos reais. Note-se que taxatividade é apenas adjetivação empírica para
a tipicidade, eis que, conforme afirmamos, outras tipologias podem existir.
Para explicitar a dificuldade, pondera José de Oliveira Ascensão:

Se há um numerus clausus, também há, necessariamente, uma tipologia de


direitos reais. O numerus clausus implica sempre a existência de um catálogo,
de uma delimitação de direitos reais existentes. Quer dizer, o numerus clausus
significa que nem todas as figuras que cabem no conceito de direito real são
admitidas, mas tão-somente as que forem previstas como tal. Pressupõe, pois,
a especificação de uma pluralidade de figuras que realizam o preenchimento
incompleto dum conceito, o que nos dá a própria definição de tipologia. O
conceito de direito real tem extensão maior do que a resultante da soma dos
direitos reais existentes. (1968, p. 104-105).

Adiante, o professor português arremata, identificando o equívoco:

Temos assim consolidada a base que nos permite afirmar que a


referência tradicional ao numerus clausus desemboca na categoria
moderna da tipicidade.

Mas daqui não podemos inferir que tudo o que respeita à tipicidade dos
direitos reais se esgota com a referência ao princípio do numerus clausus.
Na verdade, enquanto este se limita a estabelecer que só se admite um número
normativamente determinado de direitos reais, aquela conduz a investigação
para campos muito mais vastos. (ASCENSÃO, 1968, p. 107, grifos nossos).

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458 Tipicidade dos Direitos Reais

Eis o ponto nodal da questão: ao passo que o numerus clausus não passa de
delimitação à autonomia privada, a tipicidade permite a fixação de elementos
relevantes para as figuras que carecem de maior concretização.
Pela evolução histórica do direito de propriedade, constatamos com clareza
as razões que levaram quase todas as nações civilizadas a adotar a tipicidade
dos direitos reais (conjugada com a taxatividade). Pretende-se, em resumo, evitar
a ocorrência de situações econômico-sociais indesejáveis, dar transparência ao
sistema, reduzindo a assimetria de informação e os custos de transação e viabilizar
a publicidade, através do sistema de registros públicos (ASCENSÃO, 1968, p. 107).
Outra questão, todavia, intriga os civilistas: o que é preciso para caracterizar a
existência de um tipo legal de direitos reais?
Mais uma vez, a resposta é fornecida por Ascensão (1968, p. 110). Os requisitos
são dois: i) a existência, na lei, da descrição essencial de uma situação; e ii) o
estabelecimento de um regime real.
Daí por que, ao analisarmos o Livro III do Código Civil Brasileiro (BRASIL, 2002)
e verificarmos tanto a descrição essencial quanto o regime real de figuras jurídicas
como hipoteca, penhor, anticrese, superfície, habitação etc., temos a convicção de
que o legislador pátrio optou pela tipicidade dos direitos reais.
Repetimos: a tipicidade não decorre da taxatividade, mas sim da descrição da
situação jurídica e do regime real.
Mais uma questão que é frequentemente levantada quando se confrontam os
limites da autonomia privada nos campos dos direitos pessoais e reais é a relativa às
razões que conduziram um mesmo movimento filosófico a conceber total liberdade
em uma seara e tamanha restrição em outra.
Para se obter uma justificativa satisfatória sobre o problema, não se deve
observar os fenômenos com olhos ingênuos.
Ascensão (1968, p. 75) anota, com acuidade, que a disparidade de critérios
é explicada pelas motivações político-econômicas que influenciaram a decisão,
pois as transformações empreendidas pela Revolução Francesa não tinham como
destinatários os hipossuficientes, mas uma burguesia crescente e ávida por um
arcabouço jurídico que lhes garantisse a riqueza, mediante um único movimento
que enfraquecesse a nobreza e favorecesse a dominação da plebe.
Realmente, devemos concluir, com Ascensão, que “a razão está em que a classe
que lucrava com a liberdade contratual no Direito das Obrigações, não era a mesma
que perdia com a exclusão dessa liberdade no Direito das Coisas” (1968, p. 75).

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Bruno Dantas 459

Embora, de fato, a liberdade contratual seja amplíssima, não se pode dizer que a
autonomia privada está totalmente excluída na seara dos direitos reais.
Arruda Alvim (1987, p. 48) assevera que os direitos das coisas são modelados por
normas de ordem pública, que repelem a vontade dos particulares quando pretende
remodelar seus institutos, o que só pode ser feito mediante a atuação do legislador.
Apesar disso, em raras situações, como sói ocorrer no Brasil, a própria lei abre
aos particulares pequena margem para o exercício de sua autonomia privada, como
ocorre, verbi gratia, para a definição do objeto de servidão, usufruto ou superfície.

8 Conclusão
No decorrer do artigo, nos detivemos em três aspectos, considerados o tripé de
sustentação da tipicidade aplicada aos direitos reais: i) a ideia de tipo, contextualizada
na perda de prestígio do pensamento abstrato; ii) o significado de numerus clausus
dos direitos reais; e iii) a necessidade, revelada pela história, de disciplina minuciosa
dos direitos relacionados à propriedade.
Investigados os elementos históricos, filosóficos e metodológicos que pudessem
auxiliar o enfrentamento quanto à questão da tipicidade dos direitos reais,
concluímos que a tipicidade dos direitos reais, longe de ser uma opção estritamente
jurídica, agasalha em si verdadeira decisão política dos estados modernos, que
possui enorme repercussão em sua vida econômica e social. Porque o regime é
capitalista, faz-se necessária a adequação dos institutos jurídicos, a fim de que
óbices estruturais – como os que conduziram ao feudalismo – não tenham condições
de prosperar hodiernamente.
O tipo e a tipicidade, conjugados com o numerus clausus, foram as ferramentas
identificadas para, restringindo a autonomia da vontade na seara dos direitos reais,
reservar apenas aos legisladores o poder de constituir novos direitos reais. Essas
razões políticas justificam porque os direitos reais são o campo do direito civil mais
homogêneo e menos suscetível a mudanças.
Verificamos, ainda, que há, no direito brasileiro, uma tipologia taxativa dos
direitos reais, à medida que se pôde observar a existência, no Código Civil, da
descrição essencial das situações típicas e o estabelecimento de um regime real
para elas. Tipicidade e numerus clausus, embora entrelaçados, não têm o mesmo
significado, pois ao passo que o numerus clausus não passa de delimitação à
autonomia privada, restringindo apenas ao legislador a prerrogativa de estabelecer

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460 Tipicidade dos Direitos Reais

novas figuras, a tipicidade é o método que permite a fixação de elementos relevantes


para as figuras que carecem maior concretização.
A utilização do tipo para disciplinar os direitos reais, ao dar maior concreção às
situações descritas, acaba por conferir maior estabilidade e segurança jurídica ao
sistema. Para se concluir isso, basta dar uma olhada superficial sobre o objeto das
lides que se travam perante o Poder Judiciário. Um volume enorme de ações discute
interpretação e alcance de cláusulas contratuais, ao passo que raras discutem o
conteúdo, mesmo de direitos reais.
Na seara contratual, deveria imperar a mais absoluta liberdade, ao passo que,
no campo real, a prevalência é da liberdade vinculada, pois o conteúdo em si dos
direitos reais está fora da esfera de disposição dos interessados. A liberdade consiste
na decisão sobre criar ou não direitos reais e extingui-los ou não.
Como ponderamos ao longo do artigo, essa última posição tem sua razão de
ser, pois as transformações empreendidas desde a Revolução Francesa não tinham
como destinatárias as camadas mais pobres da população. Daí porque a avaliação
feita para se concluir pela conveniência da tipicidade e do numerus clausus não foi
voltada para a melhor distribuição dos recursos por toda a população, mas para o
desenvolvimento e a manutenção de uma estrutura que se formava, e a garantia da
segurança jurídica, entendida como manutenção do status quo.

9 Referências
ALEMANHA. Bürgerliches Gesetzbuch (BGB). Alemanha, 1896. Disponível em:
<https://www.gesetze-im-internet.de/bgb/>. Acesso em: 18 set. 2018.

ALLENDE, Guillermo A. Panorama de derechos reales. Buenos Aires: La Ley, 1967.

ARRUDA ALVIM. A argüição de relevância no recurso extraordinário. São Paulo:


RT, 1988.

______. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral. In: WAMBIER, Teresa Arruda


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