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BRUNO DANTAS
Pós-Doutorado (UERJ). Doutor e Mestre em Direito (PUC-SP). Pesquisador
Visitante na Benjamin N. Cardozo School of Law (Estados Unidos da América) e
no Max Planck Institute for Regulatory Procedural Law (Luxemburgo). Professor
da Pós-Graduação em Direito (IDP).
RESUMO: Este artigo analisa o princípio da tipicidade dos direitos reais em contraste
com o princípio do numerus clausus. Para isso, realizou-se investigação de elementos
históricos, filosóficos e metodológicos, mediante o aprofundamento de três aspectos:
a ideia de tipo, contextualizada na perda de prestígio do pensamento abstrato; o
significado de numerus clausus dos direitos reais; e a necessidade, revelada pela
história, de disciplina minuciosa dos direitos relacionados à propriedade. A tipicidade
dos direitos reais, longe de ser uma opção estritamente jurídica, agasalha em si
verdadeira decisão política dos estados modernos, que possui enorme repercussão
em sua vida econômica e social.
CONTENTS: 1 Introduction 2 The ideas of abstraction and concretion: towards the typus 3 The
numerus clausus 4 The typus in law 5 Roots of the modern conception of property 6 Personal rights
vs. real property rights 7 Specifically, the typus of real property rights 8 Conclusion 9 References.
ABSTRACT: This article analyzes the typus of the real property rights in contrast
with the principle of numerus clausus. In order to do so, historical, philosophical
and methodological elements were investigated through the deepening of three
aspects: the idea of typus, contextualized in the loss of prestige of the abstract
thought; the meaning of numerus clausus of property rights; and the need, revealed
by history, for thorough discipline of rights related to property. The typus of property
rights, far from being a strictly legal option, embodies in itself true political decision
of the modern states, which has enormous repercussion in its economic and social
life.
1 Introdução
Dentre os princípios que regem a disciplina legal dos direitos reais, merece
destaque o da tipicidade. Para se entender a sua aplicação, é fundamental, em
primeiro lugar, a compreensão do conceito, da aplicação e da função dos tipos a
partir da ideia de concreção do direito, contraposta à ideia tradicional de abstração
que prevalece na ciência jurídica.
Para tanto, é necessário proceder a uma pequena incursão no terreno da
metodologia do direito, com a finalidade de esclarecer satisfatoriamente como
agem a abstração e a concreção na formulação das hipóteses legais e na subsunção
a elas do suporte fático, com vistas à incidência da norma jurídica ao caso concreto.
Essas teses foram discutidas ardorosamente na Alemanha no século passado,
merecendo destaque os estudos de Larenz (1966) e Engisch (1968) sobre abstração
e concreção, respectivamente, na ciência do direito. Os influxos desse debate foram
absorvidos por José de Oliveira Ascensão (1968), que, ao observar a ausência de
rigor no campo dos direitos reais, na diferenciação entre tipicidade e numerus
clausus, ofereceu aos leitores de língua portuguesa uma das melhores obras de que
se tem notícia sobre o princípio da tipicidade aplicado aos direitos reais.
Não se pode olvidar, todavia, que a tipicidade dos direitos reais, nada obstante
a metodologia que lhe rege, deve ser analisada dentro de seu contexto histórico,
a fim de que resgatemos as reais razões que conduziram, a um só tempo, à quase
absoluta liberdade no campo obrigacional e a tamanha restrição no que diz respeito
aos direitos relacionados com a propriedade.
Nesse diapasão, Ourliac e Malafosse (1960), em profundo estudo sobre os
direitos romano e francês histórico, fornecem o panorama jurídico necessário para a
perfeita conexão dos fatos que se sucederam desde os tempos do Império Romano
até os dias de hoje, passando pela Revolução Francesa, em 1789.
A partir daí, revelam-se úteis considerações sobre as teorias explicativas dos
direitos reais, conforme bem anotam Allende (1967), Gatti (1980) e Arruda Alvim
(1987), de modo a distinguir com clareza os direitos reais dos pessoais, a fim de
delimitar com precisão o campo de atuação do princípio da tipicidade neste artigo.
Para estruturar o artigo, servimo-nos de pesquisa bibliográfica e documental,
tanto nacional quanto estrangeira. E, nesse sentido, a fim de cumprir a tarefa que
aqui nos propomos, dividimos o trabalho em sete tópicos. Nos quatro primeiros,
voltados aos aspectos filosófico-metodológicos, abordamos as ideias de abstração e
concreção na ciência do direito.
abstrato, pois este ostenta sua própria totalidade, não dependendo necessariamente
da soma de suas características.
A respeito da indagação em torno das propriedades que devem ser consideradas
essenciais para a caracterização de um objeto sob classificação, Larenz (1966, p.
335-336) afirma que tal seleção dependerá fundamentalmente do fim que a ciência
em questão persegue precisamente com a classificação.
Em outras palavras: um mesmo objeto da percepção humana pode receber dois
conceitos abstratos absolutamente distintos, a depender da seara onde o conceito
será aplicado. Colhemos em Larenz (1966, p. 336) o exemplo do conceito de animal,
que se difere enormemente conforme seja aplicado no direito civil ou na biologia.
O objetivo da formação de conceitos com graus de abstração mais elevados é
tornar possível a subsunção neles do maior número possível de objetos individuais,
o que, segundo Larenz, é desejável, dentre outros motivos, porque:
A lei deve ser capaz de englobar um vasto número de situações fáticas distintas
e complexas, de modo a descrevê-las e ordená-las de forma tal que os fatos
considerados semelhantes possam receber o mesmo tratamento jurídico. Isso se dá
pela observação empírica das relações sociais que devem ser valoradas pelo direito,
de modo a alçar o fato social à categoria de fato jurídico.
Embora a formação de conceitos abstratos não se preste exclusivamente à
formulação de supostos de fato, mas também à designação de consequências jurídicas
e institutos jurídicos, Larenz (1966, p. 340) menciona a crítica que se faz ao método
abstrativo, relacionada ao fato de que nele se perdem certos traços característicos
da situação concreta abstraída pelo conceito. Isso porque o pensamento abstrativo
tende a se contentar com o menor número possível de elementos conceituais, o que,
se por um lado, facilita a subsunção, de outro, empobrece o conteúdo dos conceitos
jurídicos gerais.
1 “[...] a formação do conceito pela abstração e aplicação por meio da subsunção dos conceitos assim
obtidos é o meio pelo qual nossa razão coloca ordem em nossas representações e o que torna possível o
conhecimento rápido e seguro de cada coisa como tal, bem como a obtenção das consequências do Geral
para o Especial que se encaixa nele” (tradução nossa, grifos no original).
2 “[...] apreender o sentido institucional de um regulamento e facilitar, com base neles, a compreensão da
especificidades” (tradução nossa, grifos nossos).
Pondera Engisch ainda que “la teoría del derecho está en peligro de quedar
prisionera en las abstracciones” 3, para concluir que “desde comienzos de este siglo está
en marcha un movimiento que exige, paralelamente, una concreción del derecho y de su
aplicación así como una concreción de la ciencia jurídica (en el sentido de orientarse a
la realidad)”4 (1968, p. 244-245, grifos no original).
3 “[...] a teoria do direito corre o risco de ser aprisionada em abstrações” (tradução nossa, grifos no original).
4 “[...] desde o começo deste século está em andamento um movimento que exige, paralelamente, uma
concreção da lei e sua aplicação, bem como uma concretização da ciência jurídica (no sentido de se
orientar para a realidade)” (tradução nossa, grifos no original).
5 “Conceito e lei são gerais e abstratos; se o tipo também deve ser geral e abstrato, como é diferente do
conceito e da lei?” (Tradução nossa).
6 “[...] de acordo com o uso atual do tipo, fundamentalmente porque é comparativamente concreto.
Para descobrir e, acima de tudo, convencer-nos de em que sentido se fala do tipo como algo concreto, é
essencial ter em vista os significados fundamentais do conceito de tipo, tão flutuantes quando o conceito
de concreto. Existem diferentes espécies – ou, digamos, tipos? – de tipo” (tradução nossa).
O tipo, acentua Ascensão (1968, p. 36), embora seja mais concreto que o conceito,
é mais abstrato que o caso individual, ocupando, pois, uma posição intermediária
entre este e aquele, o que o torna insuficiente para atender às tendências de
individualização na aplicação do direito.
3 O Numerus clausus
Já no final da década de 1960, o professor português José de Oliveira Ascensão
(1968, p. 14-15) observava a confusão conceitual que se fazia entre os princípios da
tipicidade e do numerus clausus na seara dos direitos reais. Sua obra A tipicidade dos
direitos reais tem sido, desde então, uma das maiores fontes doutrinárias em língua
portuguesa acerca desse espinhoso assunto.
O tema revela sua dificuldade por envolver discussão não estritamente jurídica,
mas principalmente de cunho filosófico e metodológico. Embora seja forçoso
reconhecer que os dois princípios – tipicidade e numerus clausus – andam juntos,
dessa assertiva não pode derivar a conclusão de que se tratam de figuras idênticas.
No campo do direito, o numerus clausus, em regra, está relacionado à restrição ou
à limitação de uma dada situação mencionada pela norma. Trata-se, evidentemente,
de uma enumeração taxativa, o que significa, em outras palavras, que não se admite
interpretação ampliativa diante das hipóteses especificadas. Naturalmente, o caráter
numerus clausus ou apertus não pode ser afirmado aprioristicamente, mas depende
de análise da situação abstrata arrolada pela norma.
Por sua vez, a tipicidade guarda relação com o método de construção normativa.
É ela uma forma de concreção dentro da própria norma, na medida em que, ao
prever elementos determinados que constituem – por exemplo, este ou aquele
direito real, crime, ou tributo –, exerce um tipo de materialização que não ocorre
nas normas mais abstratas. Embora um desavisado pudesse confundir os institutos,
teremos oportunidade de delinear suas semelhanças e distinções.
A evolução histórica do princípio do numerus clausus no campo dos direitos
reais está diretamente associada à da concepção da propriedade nas sociedades
ocidentais. Para melhor compreender o porquê da vasta adoção desse princípio
tanto nos países de civil law quanto nos de common law, é indispensável fazer uma
breve incursão na evolução do direito de propriedade.
Temos, no artigo de Bernard Rudden (1987), Economic theory v. property law:
the numerus clausus problem, uma das melhores e mais completas análises sobre
o princípio do numerus clausus, explicado a partir da teoria econômica. Nele, o
7 Para uma completa análise do direito na época feudal, ver OURLIAC; MALAFOSSE, 1960, capítulo V.
social e político reforçava esta transição do sistema romano para o regime feudal
de propriedade dispersada (e fragmentação da propriedade).
O feudalismo era inseparavelmente vinculado à vida agrícola. Numa economia
agrícola, as formas funcionais de fragmentação geralmente não são problemáticas
enquanto a unidade física da terra estiver preservada. Já se observa aí uma
preocupação com a excessiva fragmentação8, o que era evitado, por exemplo,
mediante regras de primogenitura e proibição de subcontratação9.
Com a Revolução Francesa, de 1789, e o fim do feudalismo, os códigos modernos
passaram a limitar o nível permissivo de fragmentação da propriedade e a fornecer
proteção real apenas para direitos específicos e socialmente desejáveis.
Essa enumeração é conhecida como princípio numerus clausus e é uma importante
expressão do princípio fundamental que dá suporte ao moderno direito de propriedade.
A proposta deste princípio é evitar que os indivíduos criem direitos de propriedade
que se difiram daqueles expressamente reconhecidos pelo sistema jurídico10.
Estudiosos europeus também se referem a esse princípio ao invocar o conceito
de enumeração dos direitos de propriedade. Thomas Merril e Henry Smith (2001, p.
69) reconheceram que, embora o princípio numerus clausus seja mais uma doutrina
do direito romano seguida e imposta na maioria dos países da civil law, o princípio
também existe como parte da vaga tradição do common law. Os autores ilustram as
muitas formas que os juízes da common law estão acostumados a pensar em termos
comparáveis com a doutrina do civil law.
As primeiras formulações do numerus clausus careciam de um raciocínio bem-
articulado e eram especialmente atacáveis em razão do agudo contraste com a
doutrina da liberdade contratual (ASCENSÃO, 1968, p. 74-75).
A dicotomia entre os paradigmas do contrato e da propriedade resulta em uma
tensão geral entre o princípio da liberdade para contratar e a necessidade social de
padronização dos direitos de propriedade. Todas as codificações europeias modernas
9 Regras emergiam para prevenir a fragmentação dos direitos possessórios mesmo nos tempos feudais.
Os possuidores não podiam subcontratar seus direitos e obrigações.
10 Para um exame moderno do princípio numerus clausus, veja RUDDEN, 1987, que analisa criticamente
as justificações legais, filosóficas e econômicas para a limitação dos tipos legalmente reconhecidos de
direitos reais a um punhado de formas padronizadas.
11 Isso implica que os direitos de propriedade somente são coercíveis com ações reais se eles estiverem
em conformidade com alguma categoria padronizada de direitos reais. Inversamente, a presunção é
oposta no campo dos contratos: o sistema legal atribui coercibilidade a todos os tipos de contratos a
menos que eles violem regras de ordem pública.
12 Muitos artigos do Código Civil francês (FRANÇA, 2016) adotam o conceito de tipicidade de direitos
reais e articulam princípios de propriedade unitária e absoluta. Veja, por exemplo, o art. 516, sobre a
diferenciação da propriedade; art. 526, listando as formas de direitos reais limitados (usufruto, servidões
e hipoteca); arts. 544-546, sobre a definição e conteúdo necessário da propriedade absoluta, etc.
14 “Em termos muito gerais, todos os sistemas limitam, ou pelo menos restringem bastante, a criação
de direitos reais: fantasias são para contrato, não para propriedade (tradução nossa, grifos no original).
4 A tipicidade no Direito
José de Oliveira Ascensão (1968, p. 20) reputa fundamental, para o início
de uma investigação científica, distinguir com o rigor possível os vocábulos
tipicidade e facti species. Ele afirma que, pelo fato de a tipicidade se sustentar
necessariamente numa referência ao tipo, poder-se-ia conjecturar que ela se
confunde com previsão ou hipótese legal, que, em verdade, é anterior a toda
norma jurídica. Para caracterização da última, os alemães se socorrem da palavra
tatbestand, que Pontes de Miranda (1983, p. 395) traduziu como suporte fático e
utilizou como alicerce de sua teoria do fato jurídico.
Assim, para Ascensão, o estudo da facti species é, ao mesmo tempo, mais amplo
e mais limitado do que o da tipicidade, justificando que é mais amplo porque “nem
toda previsão legal, no sentido de facti species, implica o recurso à tipicidade”, e mais
limitado porque “a facti species traz consigo a previsão legal, e a tipicidade funciona
tanto no que respeita à previsão como à estatuição” (1968, p. 21).
Em outras palavras, sua amplitude consiste no fato de que a tipicidade é apenas
um dos recursos que o suporte fático se vale para se juridicizar, podendo mesmo
utilizar outros métodos. Por outro lado, sua limitação consiste no fato de ter sempre
caráter positivista, enquanto a tipicidade assume também a feição normativa.
Karl Larenz (1966, p. 350) leciona que, na ciência do direito, o tipo se apresenta,
em primeiro lugar, como meio para designar elementos do suporte fático; em
segundo lugar, como forma de apreensão e exposição de relações jurídicas.
Sobre o problema que era causado pelos conceitos de classe na seara do direito
penal e a virada para o tipo, afirmava Ernst von Beling:
Han pasado los tiempos en que toda acción culpable contraria al derecho
desataba sin más la amenaza de una pena. El desbordado epíteto... será
castigado con la pena adquiere estructura estable cuando nos damos cuenta
de que hoy solo pueden ser objeto de la amenaza de una pena tipos de delito,
claramente descritos... El hombre moderno no soporta ya más un derecho
penal silencioso, que deambula de puntillas con zapatillas de felpa15. (apud
ENGISCH, 1968, p. 458).
15 “Se passaram os tempos em que todas as ações culpáveis contrárias à lei desencadeavam a ameaça
de uma penalidade. O epíteto transbordante... será punido com a penalidade adquire estrutura estável
quando percebemos que hoje só os tipos de crime claramente descritos podem ser objeto da ameaça de
uma penalidade. O homem moderno não pode mais suportar um direito penal silencioso, que vagueia na
ponta dos pés com chinelos de pelúcia” (tradução nossa, grifos no original).
Com a tipificação não apenas dos delitos, mas também da culpabilidade, Beling
verifica, na evolução do direito penal até a tipicidade, uma contraposição com o
direito civil, no qual a configuração típica dos negócios jurídicos se constituiria como
ponto de partida histórico, que restou suplantado pela autonomia privada reinante
nesse campo do direito (BELING apud ENGISCH, 1968, p. 458).
Isso, todavia, não se constitui em empecilho para que Engisch vislumbre,
no Código Civil Alemão, um vasto campo de aplicabilidade para a tipicidade,
especialmente nos direitos reais, na gestão de negócios, nos atos ilícitos, no
enriquecimento ilícito, nos regimes de bens do casamento, dos motivos para
separação judicial etc. (ENGISCH, 1968, p. 459).
Não se pode olvidar que a tipicidade no direito se contrapõe à consagração,
nas normas jurídicas, de figuras genéricas ou conceitos sem especificações. E é por
isso que, para determinadas questões que carecem de maior rigidez interpretativa,
o legislador opta pela modelação de tipos, eis que eles são determinados por
referência a um conceito, que concretizam (ASCENSÃO, 1968, p. 34).
Percebe-se, pois, que a utilização dos tipos significa um degrau a mais
no nível de concretude da norma, à medida que, naturalmente, valem-se de
conceitos, mas acrescidos de especificações que os tornam menos abstratos que
o conceito puro e simples.
A questão, todavia, não envolve uma tendência cega, mas altamente vinculada
às matérias carentes de regulamentação. Assim, se por um lado há um movimento
no sentido da tipificação em determinados ramos do direito, como o penal, o
tributário e o das coisas, nota-se, por outro lado, o movimento inverso, no sentido
da utilização de conceitos vagos ou imprecisos, em relação, por exemplo, aos
direitos processual e constitucional.
É fundamental, para o exame da tipicidade dos direitos reais, analisarmos duas
espécies distintas de tipologias: taxativas e exemplificativas.
Consoante distingue Ascensão (1968, p. 34), nas primeiras, os tipos disponíveis
para o amoldamento dos conceitos ou figuras são exclusivamente estabelecidos
pela lei, ao passo que, nas segundas, à normatização se segue autorização (explícita
ou implícita) para que os particulares criem novas figuras típicas.
Art. 545 – Ninguém pode ser obrigado a ceder sua propriedade se não
é por motivo de utilidade pública e mediante justa e prévia indenização.
(FRANÇA, 2016).
ii) a regra de conduta que impõe o respeito aos direitos de outrem não
é exclusividade do direito real, sendo aplicável mesmo aos direitos
creditórios. (1995, p. 4-5).
Gatti (1980, p. 50) assinala que a teoria eclética ou harmônica busca a conciliação
entre a valorização dos aspectos interno (consoante o faz a teoria clássica) e externo
(conforme a teoria unitária personalista). Essa distinção entre direitos pessoais e
reais assume especial relevância neste artigo, em razão de o princípio do numerus
clausus ser aplicável apenas aos últimos.
16 “Não há diferenças substanciais entre os direitos reais e os pessoais, uma vez que os primeiros não
seriam mais que direitos obrigacionais, em que o benefício consistiria sempre numa abstenção que seria
de todas as pessoas” (tradução nossa).
Mas daqui não podemos inferir que tudo o que respeita à tipicidade dos
direitos reais se esgota com a referência ao princípio do numerus clausus.
Na verdade, enquanto este se limita a estabelecer que só se admite um número
normativamente determinado de direitos reais, aquela conduz a investigação
para campos muito mais vastos. (ASCENSÃO, 1968, p. 107, grifos nossos).
Eis o ponto nodal da questão: ao passo que o numerus clausus não passa de
delimitação à autonomia privada, a tipicidade permite a fixação de elementos
relevantes para as figuras que carecem de maior concretização.
Pela evolução histórica do direito de propriedade, constatamos com clareza
as razões que levaram quase todas as nações civilizadas a adotar a tipicidade
dos direitos reais (conjugada com a taxatividade). Pretende-se, em resumo, evitar
a ocorrência de situações econômico-sociais indesejáveis, dar transparência ao
sistema, reduzindo a assimetria de informação e os custos de transação e viabilizar
a publicidade, através do sistema de registros públicos (ASCENSÃO, 1968, p. 107).
Outra questão, todavia, intriga os civilistas: o que é preciso para caracterizar a
existência de um tipo legal de direitos reais?
Mais uma vez, a resposta é fornecida por Ascensão (1968, p. 110). Os requisitos
são dois: i) a existência, na lei, da descrição essencial de uma situação; e ii) o
estabelecimento de um regime real.
Daí por que, ao analisarmos o Livro III do Código Civil Brasileiro (BRASIL, 2002)
e verificarmos tanto a descrição essencial quanto o regime real de figuras jurídicas
como hipoteca, penhor, anticrese, superfície, habitação etc., temos a convicção de
que o legislador pátrio optou pela tipicidade dos direitos reais.
Repetimos: a tipicidade não decorre da taxatividade, mas sim da descrição da
situação jurídica e do regime real.
Mais uma questão que é frequentemente levantada quando se confrontam os
limites da autonomia privada nos campos dos direitos pessoais e reais é a relativa às
razões que conduziram um mesmo movimento filosófico a conceber total liberdade
em uma seara e tamanha restrição em outra.
Para se obter uma justificativa satisfatória sobre o problema, não se deve
observar os fenômenos com olhos ingênuos.
Ascensão (1968, p. 75) anota, com acuidade, que a disparidade de critérios
é explicada pelas motivações político-econômicas que influenciaram a decisão,
pois as transformações empreendidas pela Revolução Francesa não tinham como
destinatários os hipossuficientes, mas uma burguesia crescente e ávida por um
arcabouço jurídico que lhes garantisse a riqueza, mediante um único movimento
que enfraquecesse a nobreza e favorecesse a dominação da plebe.
Realmente, devemos concluir, com Ascensão, que “a razão está em que a classe
que lucrava com a liberdade contratual no Direito das Obrigações, não era a mesma
que perdia com a exclusão dessa liberdade no Direito das Coisas” (1968, p. 75).
Embora, de fato, a liberdade contratual seja amplíssima, não se pode dizer que a
autonomia privada está totalmente excluída na seara dos direitos reais.
Arruda Alvim (1987, p. 48) assevera que os direitos das coisas são modelados por
normas de ordem pública, que repelem a vontade dos particulares quando pretende
remodelar seus institutos, o que só pode ser feito mediante a atuação do legislador.
Apesar disso, em raras situações, como sói ocorrer no Brasil, a própria lei abre
aos particulares pequena margem para o exercício de sua autonomia privada, como
ocorre, verbi gratia, para a definição do objeto de servidão, usufruto ou superfície.
8 Conclusão
No decorrer do artigo, nos detivemos em três aspectos, considerados o tripé de
sustentação da tipicidade aplicada aos direitos reais: i) a ideia de tipo, contextualizada
na perda de prestígio do pensamento abstrato; ii) o significado de numerus clausus
dos direitos reais; e iii) a necessidade, revelada pela história, de disciplina minuciosa
dos direitos relacionados à propriedade.
Investigados os elementos históricos, filosóficos e metodológicos que pudessem
auxiliar o enfrentamento quanto à questão da tipicidade dos direitos reais,
concluímos que a tipicidade dos direitos reais, longe de ser uma opção estritamente
jurídica, agasalha em si verdadeira decisão política dos estados modernos, que
possui enorme repercussão em sua vida econômica e social. Porque o regime é
capitalista, faz-se necessária a adequação dos institutos jurídicos, a fim de que
óbices estruturais – como os que conduziram ao feudalismo – não tenham condições
de prosperar hodiernamente.
O tipo e a tipicidade, conjugados com o numerus clausus, foram as ferramentas
identificadas para, restringindo a autonomia da vontade na seara dos direitos reais,
reservar apenas aos legisladores o poder de constituir novos direitos reais. Essas
razões políticas justificam porque os direitos reais são o campo do direito civil mais
homogêneo e menos suscetível a mudanças.
Verificamos, ainda, que há, no direito brasileiro, uma tipologia taxativa dos
direitos reais, à medida que se pôde observar a existência, no Código Civil, da
descrição essencial das situações típicas e o estabelecimento de um regime real
para elas. Tipicidade e numerus clausus, embora entrelaçados, não têm o mesmo
significado, pois ao passo que o numerus clausus não passa de delimitação à
autonomia privada, restringindo apenas ao legislador a prerrogativa de estabelecer
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