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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

LEONARDO AUGUSTO BATISTA

NEUROTEOLOGIA: FUNDAMENTOS E PERSPECTIVAS

São Paulo

2018
LEONARDO AUGUSTO BATISTA

NEUROTEOLOGIA: FUNDAMENTOS E PERSPECTIVAS

Dissertação apresentada à
Universidade Presbiteriana Mackenzie,
como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Ciências da
Religião.

Orientador: Profª. Dra. Suzana Ramos Coutinho

São Paulo

2018
B33n Batista, Leonardo Augusto
Neuroteologia: fundamentos e perspectivas / Leonardo Augusto
Batista – 2018.
63 f.; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade


Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2018.
Orientador: Profa. Dra. Suzana Ramos Coutinho
Bibliografia: f. 62-63

1. Neuroteologia 2. Religião 3. Espiritualidade 4. Metateologia 5.


Megateologia I. Coutinho, Suzana Ramos, orientador II. Título

LC BV4012.2

Bibliotecário Responsável: Eliezer Lírio dos Santos – CRB/8 6779


DEDICATÓRIA

Dedico esse trabalho àqueles a quem dedico minha vida: Pollyanna,


João Pedro e Lorenzo.
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos Doutores Ricardo Quadros Gouvêa, Suzana Ramos


Coutinho, Eduardo Rodrigues da Cruz e Cristiano Camilo Lopes, pelas
orientações, correções e paciência; agradeço o apoio recebido pela minha
família menor – meus pais, irmãs e “agregados” – e pela família maior – Igreja
Presbiteriana do Bairro Varginha e Igreja Presbiteriana de Cristina e seus
respectivos Conselhos – pelas orações, tempo e incentivo; agradeço aos
colegas de caminhada, especialmente ao amigo Rúben Pirola e sua esposa
Joyce Pirola, pelo apoio, encorajamento, fortalecimento e comunhão; agradeço
o amor, o carinho e apoio recebidos de minha esposa Pollyanna e por meus
filhos João Pedro e Lorenzo; e, por fim, agradeço a Deus, que me permite
questionar sem me censurar – que não desiste de mim.
“mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia
em que dela comeres, certamente morrerás”.
(Gn 2:17)
RESUMO

BATISTA, Leonardo Augusto. Neuroteologia: Fundamentos e Perspectivas.


Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, São Paulo, Universidade
Presbiteriana Mackenzie, 2017.

A neuroteologia é um campo emergente de pesquisa que busca


compreender a relação entre o cérebro e a mente, bem como avaliar o que
acontece com o cérebro de uma pessoa envolvida com atividades e
experiências espirituais e religiosas. O presente trabalho visa apontar aspectos
históricos da neuroteologia e, também, quais alguns dos fundamentos
propostos por Andrew Newberg para sistematização da neuroteologia como
campo científico de pesquisa. A partir de tais considerações, as perspectivas
futuras da religião apontam para a construção de uma espiritualidade voltada
para a saúde, sendo desenvolvida em um espaço de tolerância e pluralidade.

Palavras-chave: neuroteologia, religião, espiritualidade, contemporaneidade,


tolerância, pluralidade, metateologia, megateologia.
ABSTRACT

BATISTA, Leonardo Augusto. Neuroteologia: Fundamentos e Perspectivas.


Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, São Paulo, Universidade
Presbiteriana Mackenzie, 2017.

Neurotheology is an emerging field of research that seeks to understand


the relationship between the brain and the mind, as well as assess what
happens to the brain of a person involved in spiritual and religious activities and
experiences. The present work aims at pointing out historical aspects of
neurotheology and also some of the foundations proposed by Andrew Newberg
for the systematization of neurotheology as a scientific field of research. From
such considerations, the future perspectives of the religion point to the
construction of a spirituality focused on health, being developed in a space of
tolerance and plurality.

Keywords: neurotheology, religion, spirituality, contemporaneity, tolerance,


plurality, metatheology, megatheology.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 10
1 DAS ORIGENS ..................................................................................................... 11
1.1 DA RELAÇÃO CIÊNCIA E RELIGIÃO .................................................................. 11
1.2 BREVE HISTÓRIA DA NEUROTEOLOGIA ......................................................... 15
1.3 PESQUISAS REALIZADAS POR NEWBERG .................................................... 17
1.4 MÉTODOS UTILIZADOS ........................................................................................ 18
1.5 RESULTADOS OBTIDOS ....................................................................................... 19
2. DOS PRINCÍPIOS DA NEUROTEOLOGIA ..................................................... 22
2.1 PADRONIZANDO DEFINIÇÕES ........................................................................... 22
2.1.2 DIFERENCIANDO MENTE DE CÉREBRO ..................................................... 23
2.1.3 A CONSCIÊNCIA ................................................................................................. 25
2.1.4 A ALMA .................................................................................................................. 25
2.1.5 DIFERENCIANDO RELIGIÃO DE ESPIRITUALIDADE ................................. 26
2.1.6 CRENÇA E FÉ ...................................................................................................... 27
2.1.7 TEOLOGIA ............................................................................................................ 28
2.1.8 METATEOLOGIA E MEGATEOLOGIA ............................................................ 29
2.1.9 DEUS ...................................................................................................................... 30
2.1.10 CIÊNCIA................................................................................................................. 32
2.1.11 NEUROTEOLOGIA .............................................................................................. 33
2.1.12 PRINCÍPIOS DE INTERAÇÃO ........................................................................... 35
2.1.13 DEMAIS PRINCÍPIOS A SEREM CONSIDERADOS ..................................... 37
3. O PAPEL DA RELIGIÃO ..................................................................................... 38
3.1. OS CEGOS E O ELEFANTE .................................................................................. 41
3.2. VOLTAIRE E O TRATADO DA TOLERÂNCIA .................................................... 45
3.2.1. VOLTAIRE, GREGOS E ROMANOS ............................................................ 47
3.3. O AMBIENTE CONTEMPORÂNEO ...................................................................... 49
3.4. DA NEUROTEOLOGIA ........................................................................................... 53
3.5. DA RELIGIÃO ........................................................................................................... 58
3.6. DA METATEOLOGIA E MEGATEOLOGIA .......................................................... 59
3.7. DO FUTURO DA RELIGIÃO .................................................................................. 60
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 62
10

INTRODUÇÃO

O presente trabalho não se propõe a esgotar as ponderações acerca do


emergente campo de pesquisa, oriundo da aplicação das neurociências à
religião, a neuroteologia.

Em um primeiro momento, o trabalho apontará, historicamente, a relação


entre ciência e religião, partindo da origem da filosofia e seu distanciamento da
mitologia grega. Faz-se importante tais apontamentos uma vez que uma das
propostas da neuroteologia é a conciliação entre ciência e religião, entre razão
e fé. Imediatamente a seguir, o trabalho discorrerá acerca da origem da
neuroteologia – seu desenvolvimento, seu objeto de pesquisa, seu método de
observação e escaneamento cerebral. O principal viés histórico utilizado será o
do Dr. Andrew Newberg.

Em um segundo momento, o trabalho apontará os fundamentos


propostos por Newberg para o estabelecimento da neuroteologia e sua
consolidação como campo de pesquisa validado pelos pesquisadores e pela
academia. O material base para tais apontamentos será o livro Principles of
Neurotheology de Andrew Newberg.

Por último, o trabalho discorrerá acerca das perspectivas da religião


tendo em vista as considerações apontadas pela neuroteologia, bem como
outros demais apontamentos que contribuem e caminham na mesma direção
das propostas da neuroteologia, a saber, os pressupostos filosóficos e
teológicos que influenciam o pensamento contemporâneo.
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1 DAS ORIGENS

Esta pesquisa bibliográfica pretende sistematizar o campo emergente


chamado de Neuroteologia, fazendo as observações que se seguem no
presente texto.

1.1 DA RELAÇÃO CIÊNCIA E RELIGIÃO

A história do pensamento ocidental pode ser relacionada à história da


transição entre a mitologia grega e a filosofia grega. Tal transição é, sobretudo,
marcada por mudança de mentalidade, a saber, do pensamento mitológico –
caracterizado pela crença nos mitos, deuses, oráculos e opiniões – para o
pensamento filosófico – caracterizado pela busca incessante pelo
conhecimento e pelo saber amparados no pensamento racional. Pode-se dizer
que o ser humano contentava-se com o conhecimento mediado, com a
revelação, com as explicações mitológicas da realidade. Todavia, em um
determinado momento da história, os questionamentos surgidos pelo espanto,
pela admiração e pela contemplação da physis não encontram mais satisfação
nas respostas mediadas pelos deuses. O ser humano passou a investigar e
desenvolveu uma atitude filosófica, fazendo, gradualmente, sua transição da
mitologia para a filosofia, das cosmogonias para as cosmologias, do
conhecimento mediado pelos deuses para o conhecimento mediado pela razão
humana.

Nesse contexto histórico específico acima mencionado, há quem


proponha uma relação de continuidade entre a mitologia e a filosofia, como se
as áreas fossem complementares; outros há que propõem uma relação de
ruptura, como se a filosofia nada tivesse a ver com a mitologia. No entanto, ao
longo do processo de desenvolvimento da humanidade, é possível observar
que a humanidade oscila entre as duas áreas – mitológica e filosófica – e opta,
vez por outra, por uma área em detrimento da outra, mas, não são poucos os
esforços realizados para buscar uma mediação entre as duas áreas.
12

Pode-se sugerir ainda que, analogamente, essa transição – continuidade


ou ruptura – possa ser comparada ao processo de desenvolvimento humano:
uma criança, ao nascer, é completamente dependente dos cuidadores, mas, na
medida em que cresce e se desenvolve fisicamente, racionalmente e
emocionalmente, passa a se “desprender” cada vez mais, tornando-se
independente. Esse processo de desprendimento é chamado de maturação,
termo que sugere amadurecimento, maturidade – o que sugere, também por
analogia – a seguinte questão: ao alcançar maturidade, o ser humano se
desvencilha da dependência das mediações e torna-se autossuficiente?

Sem a intenção de encontrar, imediatamente, resposta para tal questão,


a presente reflexão ainda traz junto de si outras considerações. As duas
dimensões – complementares ou antagônicas entre si – fazem parte da vida
humana. A distinção entre doxa (opinião) e alétheia (verdade), entre
conhecimento seguro – como Aritmética e Geometria – e entre conhecimento
“inseguro” – sensações, emoções, crenças, ideias e pensamentos – permeou o
desenvolvimento do pensamento humano e da reflexão científica. Durante
séculos, essa distinção entre conhecimento seguro e conhecimento “inseguro”
se evidenciou em escolas filosóficas cuja epistemologia se fundamentou em
pressupostos diferentes, a saber, sensação e razão.

Platão (428-347 a.C.), fundador da academia, desenvolveu seu dualismo


filosófico – do mundo das ideias (formal) e do mundo real (sensorial) –
ancorado na concepção grega de que o ser humano é formado por corpo
(mortal) e alma (imortal) e que, então, ao morrer, seu corpo se deteriora e sua
alma volta ao mundo das ideias e transmigra para outro corpo. Esse processo
de transmigração de almas é conhecido como metempsicose. Assim, a partir
dessas concepções, Platão desenvolveu a teoria de que, nesse mundo, os
seres humanos são incapazes de chegar ao conhecimento verdadeiro. Para
ele, o conhecimento possível nesse mundo é marcado pelas percepções
sensoriais, que distorcem a realidade. Nesse mundo, de acordo com Platão, os
seres humanos apenas reconhecem através das percepções – como num
processo de lembrança – aquilo que conheceram verdadeiramente no mundo
das ideias. Assim, a percepção das coisas sensíveis serve de estímulo para a
memória.
13

A influência do platonismo pode ser vista em Santo Agostinho de Hipona


(354-430 d.C.), teólogo, bispo, filósofo e o principal expoente da Patrística. A
Patrística foi o primeiro período da filosofia medieval que permaneceu até o
século VIII. Agostinho foi um representante do neoplatonismo. Seus estudos
estiveram voltados para a luta entre o bem e o mal (maniqueísmo) e, além
disso, ele desenvolveu os conceitos de “pecado original”, “livre arbítrio” e
“predestinação divina”. Agostinho é autor da fórmula credo ut intelligam –
creio para que possa compreender – propondo uma fusão da fé (representada
pela Igreja) e da razão (representada pela Filosofia) para encontrar a verdade.
Consequentemente, segundo Agostinho, fé e razão poderiam trabalhar juntas,
sendo que a razão serviria de auxílio para a busca da fé, que por sua vez, não
poderia ser atingida sem o pensamento racional. Assim, é possível encontrar
em Agostinho raízes de uma tentativa de conciliação da fé com a razão
(HÄGGLUND, 2003).

Logo depois da Patrística surgiu a Escolástica no século IX. Este período


da filosofia permaneceu até o início do Renascimento, no século XVI. São
Tomás de Aquino (1225-1274), chamado de “Príncipe da Escolástica”, é o
maior representante dessa escola e seus estudos ficaram conhecidos como
tomismo. Como a Patrística, a filosofia Escolástica também esteve inspirada na
filosofia grega e na religião cristã. Seu método dialético de unir a fé e a razão
tinha como intuito o crescimento humano. O sistema criado por Tomás de
Aquino aplicava os princípios aristotélicos ao campo teológico e suponha que a
teologia e a ciência estariam em harmonia, assim como a fé e a razão.
Todavia, para os tomistas, embora o conteúdo da fé seja inacessível à razão,
tal conteúdo chega ao ser humano por meio da revelação e da luz da graça.
Não há conflito entre as esferas – a razão é incapaz de perceber o conteúdo da
revelação, mas a fé o aceita tendo como pressuposto a autoridade divina
(HÄGGLUND, 2003).

Esse dois períodos históricos acima citados, a saber, a Patrística e a


Escolástica, são marcados pela tentativa de conciliar a fé com a ciência.
Todavia, o pressuposto dos dois períodos acaba sempre sendo enfatizado pela
afirmação de que a razão deve estar submissa à autoridade da revelação, i.e.,
14

da fé, por assim dizer. Há um possível construto nessa relação histórica entre
fé e ciência: a ciência deve estar submissa à fé.

Acerca dessa relação entre ciência e religião, Ian Barbour (BARBOUR,


2004) introduz quatro modelos de interação entre ciência e religião, e, seus
modelos, acabam por ser aplicados na Neuroteologia. São os modelos assim
sintetizados: (1) conflito – ou a ciência é verdadeira, ou a religião, de tal forma
que ambas se encontram em posições antagônicas; (2) independência –
ambas são verdadeiras, mas se mantêm em domínios separados,
independentes; (3) diálogo – ciência e religião são parceiros em diálogo,
procurando estabelecer paralelos metodológicos a partir das suas questões
limítrofes visando manter a discussão; e (4) integração – tal modelo leva o
diálogo muito além, de tal forma a considerar que a ciência e a religião
“construirão” a verdade em conjunto.

Dessa maneira, a neuroteologia propõe novamente uma relação


“ciência-religião”. Ela não propõe uma fusão de perspectivas, mas sim, um
diálogo e uma integração. O diálogo surge a partir de questões limítrofes
existentes tanto no campo científico quanto religioso. Questões como “o que
existiu antes do Big Bang”, ou “por que o Big Bang ocorreu”, ou ainda “por que
o universo está aqui”, são questões científicas atuais que não podem ser
definitivamente respondidas pela ciência, mas que podem ser tratadas pela
religião. Existem ainda outras questões que surgem diariamente a partir da
experiência humana – e.g. ansiedade, alegria, confiança, morte, etc. – que
podem, tanto ser tratadas pela ciência, quanto pela religião, permitindo assim,
uma compreensão completa a partir do diálogo entre ambas. A integração
consiste em uma espécie de relacionamento entre ciência e religião, onde a
ciência ajuda a explicar a religião, e vice-versa, e ambas explicam juntas o
mundo (BARBOUR, 1990).
15

1.2 BREVE HISTÓRIA DA NEUROTEOLOGIA

De acordo com Newberg1, há cerca de 30 anos atrás, a partir do


desenvolvimento das pesquisas de imagem cerebral e da própria ciência
cognitiva, os pesquisadores ganharam a oportunidade de avaliar o que
acontece com o cérebro de uma pessoa envolvida com atividades e
experiências espirituais e religiosas. Basicamente, os pesquisadores da
neuroteologia estão buscando compreender as relações entre as diferentes
áreas e funções do cérebro e como essas relações podem auxiliar, ou até
mesmo impedir, em termos de desenvolvimento da espiritualidade humana.

As pesquisas realizadas se deram a partir da observação das sinapses


do cérebro de indivíduos religiosos enquanto tais pessoas recitavam suas
orações, falavam em “línguas”, desenvolviam suas experiências de
contemplação e meditação. O esforço realizado pelos pesquisadores visa
explicar qual a base neurológica para as experiências espirituais e religiosas.

Assim, a neuroteologia é um campo emergente de pesquisa científica


que procura estabelecer uma aproximação compreensiva, equilibrada e
interdisciplinar entre duas áreas que, ao longo dos séculos, caminham
separadas: fé e ciência, isto é, a natureza empírica da ciência e os discursos
puramente teóricos da teologia.

Os esforços da neuroteologia têm, como ponto de partida, responder


questões acerca da natureza do cérebro humano, as especificidades de cada
uma das áreas do cérebro, a base fisiológica da espiritualidade entre outras.

Entre os anos 1970/1980, o Dr. Michael Persinger desenvolveu uma


série de estudos experimentais onde procurou estimular áreas específicas do
cérebro (amigdala, hipocampo e o núcleo caudado). Os estímulos ocasionaram
uma variedade de “experiências espirituais”, tais como alucinações de sonhos,
visões, experiências extracorpóreas, alterações no estado de consciência e a
percepção/sensação de presença espectral no local da experiência (ALSTON,
2007).
1
Alternative and Complementary Therapies. DOI: 10.1089/act.2015.21102 • MARY ANN LIEBERT,
INC. • VOL. 21 NO. 1, February 2015.
16

Ashbrook e Albright procuraram elaborar alguns princípios básicos para


uma “nova aproximação” entre o cérebro humano e as experiências espirituais:
(a) a possibilidade de visualizar a neurociência como um “ponto de ligação”
entre a teologia e a ciência; (b) a possibilidade de um chamado “God-spot” no
cérebro humano; e (c) a possibilidade de um mapeamento cerebral para
compreender o comportamento humano e as experiências humanas (ALSTON,
2007).

Nessa mesma direção, procurando interpretar através do mapeamento


cerebral, Newberg e D’Aquili argumentam o que cérebro e a mente formam
uma “conexão mística”, ou “união mística”, que é responsável por fornecer um
meio pelo qual os seres humanos experimentam, interpretam, geram e mediam
a experiência religiosa/espiritual.

Embora haja uma intenção clara de conciliação entre ciência e


religião/espiritualidade, o desenvolvimento das neurociências acrescentam
complexidade à relação entre os dois campos. Por exemplo, quando as
neurociências apontam para a dependência da experiência religiosa/espiritual
do cérebro humano, os discursos teórico-filosóficos desenvolvidos pela teologia
tendem à obsolescência. Tal obsolescência da religião/espiritualidade redunda,
consequentemente, na obsolescência do “sagrado”, que acaba por ser uma
manifestação desenvolvida por determinados estímulos ao cérebro que,
interagindo misticamente com a mente, constrói a percepção de Deus.

Quanto ao termo neuroteologia, de maneira simplista, por um lado, tem-


se o termo “neuro” – que inclui não apenas a neurociência, mas a psicologia, a
antropologia e a medicina em geral, bem como todas as demais áreas de
estudo que procuram a avaliar o modo como o cérebro e o corpo humano
interagem. De outro lado, tem-se o termo “teologia” – o qual designa um campo
de estudo muito mais delimitado cujo foco principal está nos estudos
relacionados aos textos sagrados e às ideias/doutrinas provenientes dos textos
sagrados. Quando se trata de neuroteologia, é preciso incluir ainda os
conceitos e estudos acerca da espiritualidade, os ritos e rituais, as crenças e as
práticas relacionadas ao relacionamento do ser humano com sua
espiritualidade.
17

Pode-se afirmar que a neuroteologia procura entender a relação


existente entre o cérebro e a teologia ou entre a neurociência e a teologia:

Este é precisamente o objetivo do emergente campo da


neuroteologia: entender a conexão entre função cerebral e todos
os aspectos importantes da religião. Para melhor explorar a
fascinante conexão entre mente, cérebro, e fé, nós devemos
considerar como a neuroteologia pode atualmente se tornar uma
“metateologia” e “megateologia”. Essas expressões são intimidantes,
mas seu significado é tão simples. Uma metateologia é a forma de
descrever como os princípios teológicos específicos de qualquer
religião podem ter surgido. Uma megateologia é uma forma de
aproximação religiosa que foca nos elementos universais que todas
as religiões parecem compartilhar. Os elementos de uma
megateologia teoricamente poderiam ser integrados em qualquer
sistema de crença específico. Importante, enquanto estes elementos
precisam incluir uma compreensão da experiência mística, eles
precisam também tratar os aspectos mais comuns do comportamento
religioso, incluindo as ideias a respeito da comunidade e família,
moralidade, amor, devoção, perdão, o senso de pertença, e o senso
de ser uma parte de algo maior do que o próprio eu [...] (NEWBERG,
et al., 2001 pp. 175-76, grifo nosso, tradução nossa).

1.3 PESQUISAS REALIZADAS POR NEWBERG

O presente trabalho não se dedicará a elencar todas as pesquisas


desenvolvidas pela neuroteologia, especificamente por Newberg (Newberg
pesquisou ainda em 1999 um grupo de freiras, e, em 2003, membros de uma
igreja pentecostal que falavam em “línguas estranhas”). Uma das pesquisas
desenvolvidas por Newberg (2009) tinha por objetivo averiguar qual tipo de
efeito a prática da meditação poderia trazer sobre os pacientes com problemas
de memória. Tal pesquisa teve início no ano de 2006 e enfatizou uma prática
específica de meditação indiana chamada Kirtan Kriya. Durante a pesquisa, a
meditação Kirtan Kryia deveria ser realizada todos os dias durante 12 minutos.
O método utilizado integra três elementos, a saber:
18

1. Respiração – a regulação consciente da respiração é um dos


fundamentos da meditação e está presente em muitas formas de
meditação oriental.
2. Som – a repetição, tanto silenciosa quanto audível, melodiosa ou
não, dos seguintes sons: sa ta na e ma; a repetição caracteriza um
mantra com significados sagrados ou simbólicos, ou simplesmente
podem apenas ser a repetição de sons primários.
3. Movimento – o movimento específico dos dedos de uma forma
sequencial, fazendo com que o dedão toque nas pontas dos demais
dedos, seguindo a sequência dos sons sa ta na e ma.

O sujeito denominado Gus por Andrew Newberg é descrito como uma


pessoa que nunca havia praticado nenhum tipo de meditação antes da
pesquisa. Gus participa da pesquisa tendo em vista o desejo de melhorar seu
próprio funcionamento cerebral. Antes de iniciar a prática de meditação, Gus
passa pelo primeiro de quatro exames de escaneamento cerebral.

Depois de oito semanas de prática de meditação, Gus, segundo


Newberg, torna-se um símbolo para a capacidade do cérebro de “curar-se” a si
mesmo e de transformar-se – especialmente no lobo frontal.

Ao ser submetido a novos exames, Gus apresentou (1) um aumento


significativo da atividade neural no córtex pré-frontal – área responsável pela
atenção; (2) um aumento de atividade nos gânglios da base – ajudam a
controlar os movimentos voluntários, a postura, auxiliam na memória, no
controle de comportamento e na flexibilidade cognitiva; (3) o córtex cingulado
anterior apresentou aumento de atividade – essa área é responsável pelo
controle das emoções, do aprendizado e da memória e desempenha
importante papel no controle da ansiedade e da irritabilidade.

1.4 MÉTODOS UTILIZADOS

Dentre os métodos utilizados, pode-se citar a tomografia


computadorizada por emissão de fóton único (SPECT). Processo conhecido de
19

obtenção de neuroimagem onde se emprega contrastes convencionais para


que se obtenham quadros funcionais do cérebro com um alto grau de definição.
O SPECT usa a gama-câmera para adquirir e identificar as imagens.

A neuroteologia utiliza ainda a tomografia por emissão de pósitrons


(PET) e a ressonância magnética funcional (fMRI).

1.5 RESULTADOS OBTIDOS

De acordo com Newberg e Waldman (2009), a relação do ser humano


com Deus é capaz de mudar o cérebro humano. Todavia, mesmo que Deus
seja tirado do ritual ou da prática religiosa, o ritual ainda alterará o cérebro
humano. Quanto mais o ser humano se envolve com as práticas espirituais,
maior controle tem sobre sua mente e seu corpo.

A partir das pesquisas e do escaneamento cerebral durante as


experiências, pode-se chegar às conclusões que seguem abaixo em um
quadro intitulado por Newberg como “The ‘God’ Circuits in Your Brain” que
forma um esboço dos principais circuitos e estruturas neurais que desenvolvem
a percepção humana de Deus:

Circuito Occipital-Parietal Responsável por identificar Deus como um


objeto existente no mundo. Crianças veem
Deus como uma face porque seus cérebros
não podem processar conceitos espirituais
abstratos.
Circuito Frontal-Parietal Responsável por estabelecer um
relacionamento entre dois objetos conhecidos
como “você” e “Deus”. Situa Deus no espaço
e permite que você sinta a presença de Deus.
Se você diminuir a atividade em seu lobo
parietal através da meditação ou oração
intensa, os limites entre você e Deus se
dissolvem. Você sentirá um senso de unidade
20

com o objeto de sua contemplação e crença


espiritual.
Lobo Frontal Cria e integra todas as suas ideias acerca de
Deus – positivas ou negativas – incluindo a
lógica que você usa para avaliar sua religião
e crenças espirituais. Profetiza seu futuro no
relacionamento com Deus e se esforça para
responder intelectualmente todas as questões
do tipo “por que, o quê, e onde” que surgem a
partir de questões espirituais.
Tálamo Dá o sentido/significado emocional ao seu
conceito de Deus. O tálamo lhe dá um senso
holístico do mundo e parece ser o órgão
chave que faz de Deus um sentimento
objetivamente real.
Amígdala Quando excessivamente estimulada, a
amígdala cria uma impressão emocional de
um Deus assustador, autoritário e punitivo, e
suprime a habilidade do lobo frontal pensar
de maneira lógica a respeito de Deus.
Estriado Inibe a atividade da amígdala, permitindo que
você se sinta seguro na presença de Deus,
ou mesmo diante do objeto ou conceito o qual
você contempla.
Cingulado Anterior Permite que você experimente Deus de modo
amável e compassivo. Ele reduz a ansiedade
religiosa, a culpa, o medo e a ira suprimindo a
atividade da amígdala.
(NEWBERG, et al., 2009 pp. 43-4, tradução
nossa)

Sendo assim, uma tomografia computadorizada pode servir para


identificar possíveis lesões em determinadas áreas no cérebro de um indivíduo
a fim de compreender seu comportamento religioso e sua percepção do objeto
de sua contemplação. Fica evidente que a percepção que determinado
indivíduo desenvolve de Deus determina seu comportamento religioso.

Todavia, embora possa ser evidenciado no ambiente contemporâneo um


crescente interesse pela espiritualidade nas suas mais diversas expressões,
21

sob uma ótica tolerante e holística, o ser humano contemporâneo valida suas
verdades sob a ótica científica, debaixo de rigorosos métodos que visam
legitimar seus achados.

Para que tal espaço colaborativo e complementar seja encontrado pelo


ser humano contemporâneo, propõe-se que o mundo contemporâneo seja
ensinado e/ou educado a controlar a amigdala através da aprendizagem, da
contemplação, meditação e do amor que, ao estimularem o córtex frontal e o
cingulado anterior.
22

2. DOS PRINCÍPIOS DA NEUROTEOLOGIA

Os esforços da neuroteologia visam um maior entendimento do


relacionamento entre o cérebro e a teologia, ou, em outras palavras, entre a
mente e a religião. Assim, a neuroteologia se propõe a aprimorar a
compreensão da mente humana, do cérebro, da religião, da teologia, bem
como aprimorar também a condição humana sob dois vieses, a saber, a saúde
física e mental e, também, a condição humana sob a ótica da religião e da
espiritualidade.

Para isso, a neuroteologia faz uma tentativa de conciliar dois campos


distintos – ciência e religião – mantendo o foco de preservar e/ou agregar os
valores de ambos os campos. Assim, a neuroteologia pressupõe que, em tal
relação, haja uma abertura de ambos os vieses científicos e religiosos. Não se
propõe a anulação de nenhuma das áreas, mas um trabalho cooperativo com a
manutenção das principais ênfases que caracterizam ambas. A aproximação
entre os dois campos deve ser feita cautelosamente, sem pressupostos
preconceituosos, com uma disposição ao enriquecimento e ao diálogo, visando
trazer benefícios para o ser humano e não, simplesmente, visando estabelecer
um saber em detrimento a outro.

Todavia, a importância de enfatizar com tanta veemência a necessidade


de um trabalho cooperativo só faz denunciar uma crise, tão antiga quanto
óbvia, existente entre a religião e a ciência. É necessário um diálogo, por vezes
simplificado – uma vez que a maioria dos envolvidos não possui conhecimento
aprofundado do outro campo de pesquisa.

2.1 PADRONIZANDO DEFINIÇÕES

Como novo campo de pesquisa, a neuroteologia, de acordo com


Newberg, precisa estabelecer bases comuns para construir suas propostas e
teorias.
23

Os termos utilizados, advindos de múltiplas disciplinas, evocam variadas


interpretações. Então, faz-se necessária a padronização dos termos e de seus
significados. Sem uma padronização de significados, não há padronização do
discurso. Assim, quando os termos se tornam abrangentes demais, perde-se a
objetividade e o discurso fica comprometido. Por exemplo, termos como
religião, religiosidade, espiritualidade e espiritual podem ter diversas
interpretações em disciplinas diferentes.

A palavra é um signo, e como tal, é por excelência um fenômeno


ideológico. A realidade, ou seu real significado, resulta de um consenso entre
indivíduos. É a organização social das consciências individuais arranjadas em
esferas sociais as mais variadas que possibilitam que um ser compreenda os
códigos linguísticos de outro ser, e assim, tornam a palavra realidade
(BAKHTIN, et al., 1997). Essa organização social em torno dos códigos
linguísticos provenientes de diversos campos e disciplinas, e, portanto, com as
mais variadas realidades, é pretendida por Newberg na padronização dos
termos utilizados pela neuroteologia.

Newberg (2010) estabelece alguns princípios para o discurso da


neuroteologia. Dois destes passam a ser agora considerados neste trabalho.
São eles: (1) neuroteologia deveria se esforçar para providenciar e procurar
definições claras para os tópicos de sua pesquisa; e (2) as definições usadas
na neuroteologia necessariamente surgirão de múltiplas disciplinas e fontes.

Assim, tomam-se as definições propostas por Newberg (2010 pp. 24-44)


para os termos abaixo relacionados. Não cabe, na presente pesquisa, um
estudo exaustivo e crítico de cada um dos termos visando defini-los. Cumpre,
no presente trabalho, apenas lançar as definições propostas pelo próprio
Newberg.

2.1.2 DIFERENCIANDO MENTE DE CÉREBRO

O termo mente é definido referindo-se especificamente às funções


tipicamente atribuídas ao cérebro. Este, por sua vez, é definido como sendo as
24

estruturas de neurônios e células de suporte existentes dentro da cabeça


humana em associação com neurotransmissores, processos químicos e a
vasos sanguíneos que possibilitam o funcionamento do cérebro. Aquele possui
funções que incluem pensamentos, sentimentos e experiências que um
determinado indivíduo pode ter.

Em outras palavras, “o cérebro é a coleção das estruturas físicas que


coletam e processam os dados sensoriais, cognitivos e emocionais; a mente é
o fenômeno dos pensamentos, memórias e emoções [...]” (NEWBERG, et al.,
2001 p. 33).

As funções da mente são consideradas as “menos tangíveis”. Isso


porque estas não podem ser medidas senão por um relato pessoal de
pensamentos, sentimentos e experiências. Não é possível capturar um
pensamento para que este possa ser avaliado. Note-se ainda que, as imagens
capturadas do cérebro, durante o funcionamento cerebral, fornecem apenas o
resultado dos processos fisiológicos associados ao funcionamento deste.
Assim, só é possível avaliar experiências subjetivas a partir de comparações
entre indivíduos.

Para que um simples pensamento possa existir é necessária uma


interação altamente complexa de centenas de milhares de neurônios. Mesmo
consciente deste processo, a neurologia não é capaz de explicar como a mente
pode surgir a partir de meras funções biológicas. Considera-se que, ao longo
tempo, o cérebro humano evoluiu. Tal evolução fez com que o cérebro
percebesse sua própria existência. Assim, o ser humano adquiriu a habilidade
de refletir a partir das capacidades de percepção desenvolvidas pelo cérebro.
Mesmo diante destas considerações, a pergunta permanece: como pode o
mecanismo de carne e sangue chamado cérebro, repentinamente, se tornar
“consciência”?
25

2.1.3 A CONSCIÊNCIA

A dificuldade de se definir o termo consciência está justamente no fato


de não ser possível encontrar bases concretas para tal tarefa. A observação
do fenômeno consciência não se dá empiricamente. Embora este seja inerente
a todo ser humano, não é possível capturá-la, medi-la, ou até mesmo prová-la.

Uma das possibilidades de compreensão do que possa ser a


consciência é entendê-la como o relacionamento existente entre a mente e o
cérebro.

A partir daí, pode-se fazer uma distinção entre consciência e percepção.


Deve-se também considerar que a percepção é muito mais do que apenas uma
simples capacidade de detecção de objetos ou seres. A mente humana detecta
um objeto ou um ser qualquer e imediatamente está cônscia do mesmo. Por
isso, pode-se dizer que a soma das percepções de um ser humano formam a
consciência deste mesmo ser. Inclusive a percepção que o indivíduo tem de si
mesmo a partir de uma capacidade de autotranscendência.

A capacidade de reflexão que surge a partir da autopercepção forma as


bases da consciência humana, consequentemente, a consciência é formada
pela autopercepção e pela percepção do mundo ao redor do ser humano.

2.1.4 A ALMA

Embora a alma não seja, literalmente, a mente e o cérebro, ela está


totalmente relacionada a ambos.

Na neuroteologia, todos os conceitos de alma, provenientes de


concepções místicas ou não, serão considerados e avaliados.

Ainda, em relação ao termo alma, as discussões são abrangentes, uma


vez que este termo possui diversas interpretações nas mais variadas culturas e
sistemas de crença e fé. De acordo com Newberg, a compreensão platônica e
aristotélica do termo é de que a alma é a essência do ser humano. Ainda,
26

sabe-se a que no Egito Antigo acreditava-se que a alma subsistia mesmo após
a morte. Praticamente da mesma maneira, o hinduísmo considera que a alma
retorna sempre de novo através da reencarnação (NEWBERG, 2010). O
mundo ocidental considera a alma como sendo parte da personalidade dos
indivíduos. Percebe-se que o conceito de alma assume uma variedade de
interpretações.

De fundamental importância ainda é a observação de que o conceito


alma possui grande valor no discurso religioso. Possui também diversas
possibilidades de interpretação ou variadas configurações e possíveis funções
na relação com o sagrado. Entretanto, qual a relação da alma com a mente e o
cérebro humano? O que se pode afirmar?

Embora a alma não seja o cérebro ou a mente, ela está em profunda


relação com estes. Parece que a alma é capaz de sentir, de se emocionar, de
desejar, e que ela é o centro da existência de cada indivíduo.

Uma vez que o termo alma apresente múltiplas concepções – filosóficas,


religiosas e científicas – e que este conceito não pode ser cientificamente
atestado, medido, ou comprovado, a neuroteologia pretende trabalhar de tal
modo a englobar todas as compreensões. Assim, a proposta passa ser a
compreensão holística do termo, e não uma concepção simplista que
desconsidere a complexidade do termo.

2.1.5 DIFERENCIANDO RELIGIÃO DE ESPIRITUALIDADE

Uma compreensão simplista, todavia, também significativa é a


mencionada por Newberg que afirma: “‘Espiritualidade’ é derivado da [...]
palavra ‘spiritus’ que significa ‘fôlego’ [...] a palavra ‘religião’ é geralmente
entendida como derivada [...] de palavras que significam ‘ligar’” (2010 p. 30,
tradução nossa). Desta maneira, espiritualidade está relacionada ao fôlego de
vida de cada indivíduo, enquanto que a religião está relacionada a uma espécie
de ligação entre os seres e entre os seres e o sagrado.
27

Pode-se ainda observar que o termo espiritualidade está mais


relacionado às experiências individuais com o sagrado e o termo religião está
relacionado aos sistemas de crença organizados em doutrinas e estabelecidos
como instituições. O termo religiosidade se refere aos sentimentos, práticas e
experiências associadas com qualquer religião. Note-se que, a diferença entre
espiritualidade e religiosidade está no objeto da experiência religiosa. Enquanto
esta surge a partir da religião – sistemas de crenças e doutrinas em torno de
uma instituição –, aquela surge a partir da relação imediata com o sagrado.

Na contemporaneidade os termos religião e espiritualidade estão em


crise. É possível encontrar indivíduos que se consideram tanto religiosos
quanto espirituais. Mas é possível também encontrar outros que, diferente
destes, se consideram espirituais, mas não religiosos. Parece que o conceito
religião perdeu sua força, ao passo que o conceito espiritualidade possui
atrativos que o tornam mais relevante na concepção do indivíduo “pós-
moderno”. Associar o termo religião com instituição e doutrina faz com que este
seja visto com descrédito. O termo espiritualidade parece, por sua vez, abrir
espaço para um discurso existencialista, que, hoje, se enquadra melhor na
reflexão da mente contemporânea.

2.1.6 CRENÇA E FÉ

Os termos crença e fé podem ser confundidos. Na compreensão popular


estes são semelhantes, senão, iguais. Estão profundamente relacionados.
Ainda, ambos os conceitos estão relacionados à ausência de provas, i.e., para
a existência da crença ou fé não se pressupõem provas, evidências. Neste
sentido de compreensão destes termos, pode haver aqui uma ruptura na
relação com a ciência ou com o pensamento científico. Historicamente ciência
e religião foram vistas como opostas entre si justamente por causa dessa
compreensão de que não se fazem necessárias evidências ou provas para que
a religião considere verdadeiras suas suposições. Em muitos casos, não se
pode tratar a religião com o mesmo rigor de uma investigação científica. Vale
relembrar aqui, e.g., o conceito conhecido como “revelação”. A bíblia judaico-
28

cristã é considerada “revelação” de Deus, e assim, inquestionável. Todavia,


esse conceito não pode evidenciado cientificamente, e, pelo contrário, a bíblia
é simplesmente um livro que contém tratados de crença e fé. Note-se que, para
a aceitação deste conceito, não é necessário nenhuma prova. Simplesmente
se crê. Neste ponto podem-se findar os diálogos entre a religião e a ciência.

Pode-se definir o termo crença como sendo qualquer percepção,


cognição ou emoção que o cérebro assume, consciente ou inconscientemente,
como sendo verdade. O termo fé pode ser definido como uma crença que não
necessita de evidências e que está particularmente fundamentada na ideia de
uma revelação especial feita pelo divino.

Tais termos podem estar relacionados na seguinte configuração: a fé


antecede a crença. Parece que a fé, enquanto ligada ao sobrenatural, ao
improvável, é aceita, enquanto que a crença é a fé assumida como verdadeira
pelo cérebro.

2.1.7 TEOLOGIA

O termo teologia está relacionado a um campo de estudos que avalia e


estuda os conceitos fundamentais, as doutrinas e os textos de uma
determinada religião para determinar como interpretar esses conceitos,
doutrinas e textos. A teologia também procura entender o real significado de
Deus.

Um dos objetivos da teologia é procurar entender como os conceitos,


doutrinas e textos de uma determinada religião podem ser relacionados aos
indivíduos e à sociedade em geral.

O termo teologia pode compreender duas ramificações, a saber: a


teologia natural e a teologia dogmático-sistemática. Esta se desenvolve
justamente a partir dos conceitos, doutrinas e textos que são considerados
sagrados. A teologia dogmático-sistemática leva em consideração a ideia da
29

“revelação especial de Deus” e faz desta ideia ponto de partida para sua
reflexão.

A teologia natural se distingue da teologia dogmático-sistemática


justamente por não considerar nenhuma espécie de “revelação” divina e por
partir da razão, de conceitos filosóficos para buscar a compreensão do divino,
do sagrado.

Note-se que, atualmente, grande parte dos estudos realizados no campo


da teologia são dedicados para se compreender as bases da religião, a
natureza de Deus e o relacionamento entre Deus e os seres humanos. Neste
sentido, é correto afirmar que a teologia procura compreender Deus, ora
partindo de pressupostos místicos e transcendentes, ora partindo da razão
humana ancorada em conceitos filosóficos.

Retomam-se aqui nesta discussão os termos acima citados


“metateologia” e “megateologia”.

2.1.8 METATEOLOGIA E MEGATEOLOGIA

De modo mais específico, a metateologia pode ser compreendida como


uma tentativa de avaliar os princípios gerais subjacentes de toda e qualquer
religião ou ainda sistemas de fé e suas teologias. O cérebro humano possui
características e funções consideradas universais, e em todo sistema religioso
ou em qualquer manifestação de experiência religiosa, o cérebro determina as
percepções. Assim, uma hermenêutica neuroteológica seria capaz de avaliar e
extrair, da variadas expressões religiosas, tais funções cerebrais comuns a
todos os seres humanos. Uma metateologia tem como função ajudar a explicar
o como e o porquê as doutrinas fundamentais, as doutrinas da criação e da
salvação são desenvolvidas; a partir daí, deve explicar o como e o porquê tais
doutrinas são elaboradas através de uma sistematização específica e
teológica; e por fim, deveria responder o como e o porquê tais doutrinas
sistematizadas influenciam o comportamento humano em cerimônias e rituais
(NEWBERG, 2010 p. 64).
30

Partindo do conceito de metateologia pode-se falar em megateologia. O


conteúdo da megateologia deveria ser de tal abrangência universal que este
poderia ser assumido por praticamente todas as religiões do mundo como
elementos básicos, sem afetar em nada suas doutrinas essenciais
(NEWBERG, 2010 apud D'AQUILI, et al., 1999).

Em síntese, pode-se afirmar que a metateologia transcende os conceitos


teológicos de todo sistema elaborado de fé e crença para então, extrair
conceitos teológicos comuns a todos estes sistemas. A metateologia tem como
parâmetro a mente humana. Daí, os resultados coletados pela metateologia
são instrumento de trabalho para a megateologia que pretende estabelecer
uma teologia universal e assim, a partir de considerações e observações
comuns a todos os seres humanos, proporcionar unidade na diversidade de
manifestações. Esta proposta está para além de uma simples relação de
tolerância. Ela quer proporcionar um fundamento que possibilite a um mesmo
indivíduo tramitar por todas as religiões sem perder sua identidade, mas, pelo
contrário, desenvolvendo uma nova identidade.

Quando se pensa a respeito do futuro da religião a megateologia parece


despontar como uma opção que desmistifica as diferenças de práticas e
doutrinas, abrindo a possibilidade para um estabelecimento de questões
primárias e secundárias. Uma vez que estas sejam estabelecidas, seria natural
a humanidade optar por características comuns às expressões religiosas e
torná-las ponto de referência e de ligação para todas as religiões do mundo.

2.1.9 DEUS

Em relação à compreensão do termo Deus pode-se afirmar que este é


considerado como um ser transcendente e de poderes sobrenaturais. Deus é o
criador do mundo e pode estar em relacionamento com a humanidade.

Praticamente todas as concepções religiosas de Deus tomam o ser


humano como ponto de referência para desenvolver sua compreensão do que
31

Deus é. Entretanto, Deus extrapola os limites da própria humanidade. Ele


transcende a sua própria criação.

Justin L. Barret e Frank C. Keil contribuem para a formação do conceito


Deus. Os ensinos acerca de Deus entre os católicos e os protestantes o
descrevem como sendo infinito, ilimitado, todo-perfeito, todo-poderoso,
imutável, imaterial, conhecedor de tudo e perfeitamente simples. O judaísmo
ensina que Deus é onipotente, onisciente, onipresente e eterno. A concepção
islâmica se aproxima da judaica quando ensina que Deus é completamente
diferente da humanidade por transcender aos limites desta. Salientam ainda
que o cristianismo formula sua compreensão acerca de Deus a partir da
“autorrevelação” de Deus. Os resultados obtidos pelas pesquisas de Barret e
Keil apontam para a seguinte direção:

[...] estes estudos proporcionam um primeiro passo ao responderem à


pergunta de como é que entendemos Deus, e, consequentemente,
como nós entendemos seres não naturais. [...] Deus é compreendido
como um super-humano e propenso a se comportar como nós. O
problema está em criar Deus à nossa própria imagem, e assim utilizar
nossas restrições naturais e da humanidade como nossa base de
suposições para entender Deus [...] (SLONE, 2006, tradução nossa).

Acerca da concepção de Deus, pode-se mencionar a narrativa bíblica


das origens, a saber, especificamente o texto que relata a criação do ser
humano. A narrativa de Gênesis 1:262 diz que Deus criou o ser humano à sua
“imagem” e “semelhança”. Parece ser possível afirmar então que existem reais
semelhanças, de acordo com a narrativa bíblica, para as religiões judaico-
cristãs, entre Deus e o ser humano. Esta compreensão pressupõe a aceitação
passiva do conceito de “autorrevelação” de Deus. Se não for desta maneira,
tendo o texto sido escrito por mãos humanas, pode-se imaginar que o texto é
mais uma clara projeção humana de quem Deus é, i.e., um antropomorfismo.
Todavia, uma antropomorfização anda em sentido oposto à narrativa bíblica
que quer ser entendida justamente como o ser humano sendo imagem e
semelhança de Deus e não o contrário.
2 “Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança;
tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais
domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra” (Bíblia
Sagrada na versão de João Ferreira de Almeida, revista e atualizada, grifo nosso).
32

Um Deus antropormófico é problemático porque se percebe que este


representa apenas uma projeção mental que pode ser oriunda de comparações
problemáticas, tais como: a figura de um pai violento e ausente; ou a figura dos
pais – pai ausente e violento, mãe presente e carinhosa –; e, ainda, uma
projeção do próprio “eu”. Quais Deuses podem ser gerados a partir destas
possíveis projeções? Um Deus intolerante, agressivo e ausente; um Deus
presente-ausente, carinhoso-agressivo, i.e., bipolar; ou ainda, um Deus
doentio.

Preferível é que se mantenha a ideia de Deus como um ser


transcendente, extra-humano e que está apto para relacionar-se com a
humanidade como um todo e também individualmente.

2.1.10 CIÊNCIA

O termo ciência se refere aos campos nos quais a investigação empírica


fornece todas as afirmações necessárias para a compreensão do mundo
natural ou material.

Relacionado do termo ciência está o termo cientificismo. Este termo


representa uma crença de que os métodos científicos serão capazes de,
empiricamente, prover a humanidade de todas as respostas que ela necessita.
O cientificismo considera a interpretação científica como autoridade sobre
todas as demais interpretações possíveis de qualquer fenômeno observável.
Assim, a interpretação científica supera as interpretações sociológicas,
psicológicas, religiosas e espirituais. O cientificismo não entra em diálogo com
nenhuma outra perspectiva que não possa ser considerada científica. Por isso,
na neuroteologia, o termo ciência se faz indispensável, enquanto que o
cientificismo impossibilita o desenvolvimento das pesquisas neuroteológicas.
33

2.1.11 NEUROTEOLOGIA

Por fim, definitivamente, passa-se a definição do termo neuroteologia:


“Neuroteologia se refere ao campo de estudo que conecta as neurociências
com a religião e a teologia” (NEWBERG, 2010 p. 45, tradução nossa).

A neuroteologia procura compreender Deus, a crença e a fé, a alma, a


teologia, a religião e a espiritualidade, o cérebro e a mente e ainda, a ciência se
utilizando simultaneamente dos recursos científicos e da religião. A
abrangência de sua atuação compreende o ser humano holisticamente. A
relação entre o cérebro e a mente com o corpo humano aumenta ainda mais o
lastro científico que ampara a neuroteologia.

A neuroteologia está aberta para contribuições da psicologia, da


psiquiatria, das ciências cognitivas, da biologia e da genética, da
endocrinologia e ainda a outras macro e micro áreas das neurociências.

A proposta da neuroteologia é trabalhar, pesquisar e observar


cientificamente o cérebro humano na relação com o sagrado. Seu foco está no
cérebro e na mente humana, e não na experiência religiosa em si, muito menos
na ciência como um cientificismo. As ferramentas surgem das áreas de
conhecimento acima relacionadas. Interessante é perceber que, a partir de um
mapeamento cerebral é possível observar o comportamento da mente durante
experiências religiosas consideradas benéficas e ou maléficas. Todavia, pode-
se considerar possível, através das avaliações neuroteológicas, manipular os
estímulos a fim de se obter os mesmos benefícios para o ser humano?

Os avanços científicos são rápidos. Assim, a neuroteologia precisa estar


aberta para tratar seus conceitos fundamentais sempre de novo, atualizando-se
para que seus resultados sejam relevantes. Essa proposta de atualização
constante evita a cristalização da neuroteologia e a lança na direção do ser
humano sempre em busca do saber que pode afastá-lo, ou até mesmo
aproximá-lo de Deus.

Ainda, a neuroteologia quer ser um campo de pesquisa aberto e


disposto a lidar todas as diferentes perspectivas – religiosa, espiritual, cultural
34

ou científica. Pressupondo tal abertura, a neuroteologia deve estar pronta para


tirar vantagens de todos os avanços científicos alcançados no mundo
contemporâneo, bem como de toda a evolução do pensamento teológico-
religioso atual.

Consideram-se, para o estabelecimento dos princípios da neuroteologia,


os fundamentos históricos – uma observação histórica do desenvolvimento do
pensamento religioso ao longo dos séculos em relação à mente humana –,
científicos e teológicos – o reconhecimento das condições científicas e
teológicas contemporâneas. Só a partir da consideração de tais fundamentos é
que se pode falar a respeito dos objetivos fundamentais da neuroteologia, que,
de acordo com Newberg podem ser:

(1) melhorar nossa compreensão acerca da mente e do cérebro


humano; (2) melhorar nossa compreensão acerca da religião e da
teologia; (3) melhorar a condição humana, particularmente no
contexto de saúde e bem-estar; (4) melhorar a condição humana,
particularmente no contexto da religião e da espiritualidade
(NEWBERG, 2010 p. 18, tradução nossa).

A neuroteologia também se preocupa com o lado espiritual procurando


responder perguntas como: “O que significa, definitivamente, ser uma pessoa
espiritual?”; “O que significa ser uma pessoa religiosa?”; “Como é possível um
desenvolvimento moral a partir da religião/espiritualidade?”. Para responder
tais perguntas, a neuroteologia busca observar quais práticas e crenças podem
ser mais efetivas no desenvolvimento do ser humano, de maneira específica
para cada uma das perguntas acima feitas. Tais descobertas possuem um viés
duplo: (1) definições que podem caracterizar de modo mais claro, a partir da
observação da relação entre o corpo e o cérebro, o que é “ser espiritual”, “ser
religioso”, etc.; e (2) descobrir meios adequados para incrementar o
desenvolvimento espiritual/religioso orientando os “sistemas de crenças e
práticas” para serem mais hábeis em suas tarefas (desenvolvimento de liturgias
e rituais mais efetivos).

De acordo com Newberg, a neuroteologia reúne, a partir dos resultados


das suas pesquisas, informações que, em última instância, pode trazer
condições de esclarecer questões como: (1) o que o ser humano pensa sobre o
35

mundo? (2) o que o ser humano pensa sobre a natureza e sobre a realidade?
(3) como o ser humano elabora conceitos de certo e errado? e, (4) o que o ser
humano pensa acerca da verdade? ou o que é a verdade? Tais
questionamentos tendem a caminhar na direção do esclarecimento das
experiências religiosas e espirituais humanas – são essas experiências ilusões,
delírios? Ou tais indivíduos vislumbram uma realidade mais profunda acerca da
realidade? Será que, ao vivenciar a experiência religiosa, o ser humano apenas
estimula determinadas áreas do seu cérebro e sua mente então percebe Deus?
Ou, de fato o cérebro humano tem condições de perceber a existência de um
ser definido como Deus e, a partir dessa percepção, realmente experimenta um
tipo de relacionamento transcendente?

2.1.12 PRINCÍPIOS DE INTERAÇÃO

Como acima mencionado, a relação entre ciência e religião tem grande


potencial para o conflito. A religião sempre parte de um pressuposto
sobrenatural, i.e., suas crenças fundamentais estão sempre vinculadas a uma
espécie de revelação improvável. Por sua vez, a ciência constrói seus
paradigmas a partir de resultados naturais, i.e., empiricamente comprováveis.
E, exatamente neste ponto, pode-se criar uma relação de conflitos e não de
cooperação mútua. A religião tende a excluir o viés científico, enquanto que a
ciência tende a desconsiderar o viés religioso.

Na tentativa de um diálogo, a neuroteologia deve estar preparada para


responder algumas perguntas sugeridas por Newberg:

1. O que é mais importante no diálogo entre a ciência e a religião:


percepções, cognições ou emoções? 2. Quais ideias religiosas ou
crenças podem ser postas com mais facilidade em diálogo, ou
pelo contrário, quais ideias religiosas ou crenças apresentam
mais dificuldade? 3. Se o diálogo implica na linguagem, qual é a
linguagem mais apropriada? É a filosofia, teologia, antropologia,
sociologia, ou ciência, ou alguma nova opção? 4. Como os textos
sagrados e a pesquisa científica podem entrar em diálogo? 5.
Quais são as barreiras de percepção, cognitivas e emocionais
36

que diferentes indivíduos têm que podem impedi-los de participar


deste diálogo? 6. Se existem barreiras, qual aproximação deveria
ser feita: tentar quebrar tais barreiras ou seria melhor deixá-las
intactas? (NEWBERG, 2010 p. 53, tradução nossa).

Parece um desafio para a ciência e para a teologia desenvolver um


relacionamento baseado no diálogo. É uma tentativa de aproximação isenta de
pressupostos.

A neuroteologia ainda considera duas outras características, a saber: um


ceticismo e uma paixão pela investigação (NEWBERG, 2010).

O ceticismo deve ser equilibrado. De acordo com Newberg, deve ser


temperado com otimismo. É a aproximação crítica por parte do neuroteólogo do
objeto de sua pesquisa, como também dos resultados. Esse ceticismo deve
contemplar o fato de que na neuroteologia é preciso estar em constante diálogo
e atualização, e que, assim, não se deve avaliar fenômenos e resultados
permitindo-se envolver. Deve-se procurar uma neutralidade para que se
desenvolvam os trabalhos da neuroteologia.

A paixão pela investigação deve considerar que o campo de pesquisa da


neuroteologia é muito vasto, que este possui muitos tópicos, ideias e
possibilidades. Esta paixão está relacionada não a um desejo de perguntar
perguntas difíceis, mas sim, deve estar relacionado a uma disposição de
abertura para as muitas possibilidades de aproximação.

Pode-se fazer analogia a um “quebra-cabeças” cujas peças separadas


não podem formar uma imagem relevante, mas que, todavia, uma vez juntadas
as peças, tem-se uma imagem clara e definida. Assim, a neuroteologia procura,
a partir de muitas peças, montar uma imagem clara acerca conexão existente
entre as neurociências e a religião e a teologia. A neuroteologia procura
melhorar a qualidade de vida do ser humano – sua saúde e bem-estar. Procura
ainda encontrar seu papel como agente preventiva dos maus causados pela
religiosidade. A neuroteologia não quer ser um estudo neurocientífico da
religião, mas quer desenvolver sua pesquisa fazendo uso em uma mão das
neurociências, e em outra mão, da teologia e religião.
37

2.1.13 DEMAIS PRINCÍPIOS A SEREM CONSIDERADOS

Newberg (2010) acentua ainda a necessidade de manutenção do rigor


teológico e científico para que a neuroteologia se mantenha o mais rigorosa
possível. Para tanto, faz-se necessário desenvolver métodos adequados que
contemplem os rigores necessários aos dois campos de pesquisa.

Uma vez que a neuroteologia pressupõe a neurociência, na pesquisa


neuroteológica, toda estrutura cerebral deve ser considerada para
compreensão dos conceitos teológicos e filosóficos. Justamente porque toda a
construção doutrinária e toda percepção espiritual envolvem muitas áreas do
cérebro, todos os processos cerebrais devem ser considerados potencialmente
aptos para contribuir com a neuroteologia.

Cada visão religiosa acerca da ciência deve ser considerada, uma vez
que a neuroteologia deverá se esforçar para compreender cada uma delas.
Cada visão religiosa acerca da ciência contempla uma forma específica
possível de a ciência afetar a religião. Tal influência científica sobre a religião
pode ocorrer de modo subjetivo ou até mesmo afetando um sistema doutrinário
de uma religião inteira.

Deve, ainda, a neuroteologia se esforçar para promover a saúde


humana, procurando informações acerca da relação existente entre a
espiritualidade e a saúde.
38

3. O PAPEL DA RELIGIÃO

O presente capítulo visa apontar quais perspectivas podem ser


encontradas a partir da neuroteologia que respondam aos seguintes
questionamentos: (a) para que serve a espiritualidade? (b) para que serve a
religião? (c) quais as perspectivas futuras da religião?

Entretanto, algumas reflexões que influenciaram o pensamento


contemporâneo serão apresentadas nas considerações abaixo. Todavia, tais
reflexões não serão apresentadas de maneira exaustiva.

Pode-se observar que as preocupações religiosas em relação ao


desenvolvimento da ciência não são novidade. O aprofundamento do
conhecimento, ou a “iluminação” da mente humana por meio da ciência, tem
sido discussão continuada nos meios religiosos. A proibição da “emancipação”
humana frente aos sistemas religiosos é sempre descrita por metáforas cujas
intenções visam a manutenção das doutrinas, das práticas e dos sistemas
teológicos. Tome-se por base o relato teológico do mito judaico das origens,
cujo Deus criador adverte ao ser humano que não “coma” da árvore do
discernimento, i.e., árvore que lhe traria a capacidade de discernir entre o bem
e o mal. Caso o ser humano optasse pela desobediência, as consequências
seriam graves, porque o Deus criador havia dito que “[...] no dia em que dela
comeres certamente morrerás!”3. Considerando-se que o conceito
veterotestamentário de morte está também relacionado à quebra de
relacionamento (WOLFF, 2007 pp. 172-3), pode-se supor que quando a morte
ocorre, a quebra de relacionamento ocorre para as partes envolvidas. Portanto,
se há ruptura para o ser humano que optou – e sempre de novo o faz – pelo
conhecimento do bem e do mal, i.e., o discernimento, a sabedoria, há também
ruptura para o Deus judaico em questão.

A partir de uma interpretação da narrativa literária de Gênesis,


pressupondo claras intenções teológicas dos autores, pode-se apreender uma

3
Gênesis 2:7, versão Almeida Revista e Atualizada.
39

intenção de manutenção do sistema de fé judaico4 que procurava trazer


identidade ao povo de Israel no exílio cananeu. No texto das origens,
permanecer debaixo da tutela e da dependência de um Deus que domina a
árvore do conhecimento do bem e do mal significa permanecer debaixo do
sistema de fé que precisa sobreviver. Assim, pode-se afirmar que, por detrás
da narrativa mitológica judaica, aparece uma intenção protecionista de um
sistema teológico elaborado no texto acima citado.

A possibilidade de igualdade proposta pela serpente que fala no Éden


seria a anulação óbvia do Deus que domina sozinho o conhecimento.
Logicamente por isso a serpente se torna inimiga. Entretanto, conhecer o bem
e o mal significa, para o ser humano, “crescimento”. Quanto mais um indivíduo
cresce e avança em busca da maturidade, maior a capacidade, adquirida pela
experimentação, de decidir sobre o certo e o errado, o bom e o ruim, o bem e o
mal. Quanto mais maduro um ser humano, maior sua capacidade de optar. Daí
que, logicamente, quanto maior sua capacidade de refletir – conhecer o bem e
o mal –, tanto maior será seu distanciamento da infância. Assim os sistemas
primários de conhecimento e crença se tornam obsoletos. Daí que, Deus
parece ter a tendência de se tornar obsoleto na reflexão contemporânea.

Semelhante concepção também pode ser extraída a partir da alegoria da


caverna de Platão encontrada em sua obra intitulada A República (Livro VII).
Embora a metáfora da caverna aponte para a realidade do ser humano em sua
relação com o mundo visando fundamentar a epistemologia platônica, é
possível usar a metáfora fazendo a seguinte comparação: (1) o caminho
percorrido pelo filósofo em direção ao exterior da caverna é a busca pelo
conhecimento verdadeiro, pela iluminação – semelhante ao ser humano na
mitologia judaico-cristã que, conforme acima mencionado, opta por “comer do
fruto da árvore do conhecimento”; (2) o encontro do filósofo com o mundo
externo, para além da realidade da caverna – sendo a caverna o mundo
enganoso, formado por ilusões resultantes das percepções humanas – é o
momento em que o filósofo passa a conhecer a realidade verdadeira, o que
acaba gerando um deslumbre pelo “choque” entre aquilo que acreditava ser

4Gerhard von Rad acentua que as narrativas da criação pertencem à etiologia de Israel (RAD,
2006 p. 137).
40

verdade e aquilo que agora passa a conhecer e reconhecer como verdadeiro;


(3) a volta do filósofo à caverna e a rejeição por parte dos seus amigos do
“novo saber” é semelhante à crise gerada a partir da troca de paradigmas
proposta pela evolução da pesquisa científica – novos saberes que se
complementam ou até mesmo se contrapõem aos antigos saberes, ao senso
comum. Fica evidente na alegoria proposta por Platão que todo processo de
aprendizagem envolve uma troca de paradigmas, e que, nessa troca, conceitos
antigos são ultrapassados e dão espaço para novos conceitos. Essa mudança
de paradigmas gera crise e conflito. Do mesmo modo como sistemas
teológicos procuram trabalhar para a manutenção do próprio sistema, os
prisioneiros da caverna não aceitam nenhum conhecimento que seja diferente
daquele aprendido ao longo dos séculos, da tradição e do senso comum.

Assim, fica evidente que há muito tempo o fundamentalismo religioso,


bem como os sistemas de crenças tendem sempre à manutenção daquilo que
sistematizaram e consolidaram ao longo dos anos. Todas as “novidades” são
vistas sob o viés da desconfiança e tendem a rejeição. Entretanto,
considerando-se a evolução da humanidade, sobretudo do pensamento
humano, pode-se acrescentar ainda, para esta discussão em torno da crise
entre a religião e a ciência, a interessante comparação feita por Paul Tournier,
das fases desenvolvimento intelectual da humanidade, a saber:

[...] e creio tê-lo encontrado em Pascal, quando escreve: “A sucessão


de todos os homens, ao longo dos séculos, deve ser encarada como
se fosse um único homem, que sempre subsiste e que aprende
continuamente”. Consideraremos assim a história da humanidade
como sendo a história da vida de um homem. [...] a infância da
humanidade é a Antiguidade. [...] Depois a humanidade passou pela
Idade Média, que podemos comparar com a idade escolar [...]
podemos comparar essa crise da adolescência com a que foi
causada pelo Renascimento? (TOURNIER, 2002 pp. 14-6).

Dessa maneira, pode-se supor que humanidade caminha numa espécie


de sistema evolutivo, especificamente agora em se tratando do pensamento,
onde seu desenvolvimento intelectual o afasta da realidade e da necessidade
de um Deus. Mas pode-se definitivamente afirmar que o mundo
contemporâneo alcançou tamanha maturidade que o dê condições de
41

considerar a concepção de Deus obsoleta? Faz-se necessária essa crise entre


ciência e religião como se ambas fossem caracterizadas apenas pelo
antagonismo? Ou ainda, é possível contemplar uma nova ciência que não
desprezará por completo as considerações teológico-religiosas? Pode a
neuroteologia apontar novos caminhos para a religião de forma a estabelecer
campos distintos que, sob determinadas condições, podem se complementar?

3.1. OS CEGOS E O ELEFANTE

Uma dificuldade em relação à concepção de Deus está no conceito da


autorrevelação. A dificuldade se dá porque o conceito de autorrevelação
conduz, regra geral, a uma ideia exclusivista acerca de quem Deus é. Assim,
cada religião que pressupõe a autorrevelação de Deus assume que o Deus
revelado é a expressão última da verdade, não admitindo nenhuma sombra de
variação.

Na discussão contemporânea acerca da verdade, um ideal relativista


supõe que a verdade é construída a partir de referenciais diferentes, os mais
variados, de tal modo que a verdade passa a ser construída a partir de muitas
verdades subjacentes à Verdade.

Uma antiga parábola indiana, atribuída à cultura Jaina – uma das


religiões mais antigas da Índia –, narra a história de seis homens cegos que
tentam apalpar um animal desconhecido, que, no caso, é um elefante. Após
apalparem o animal “no escuro”, passam a fazer afirmações para descrever o
tal animal. Cada um dos seis homens cegos acredita ter condições de fazer a
descrição correspondente à verdade absoluta acerca do elefante.

John Godfrey Saxe (1816-1887), poeta norte-americano, publicou uma


das versões mais famosas da antiga parábola indiana dos cegos tateando um
elefante, conforme abaixo:
42

OS HOMENS CEGOS E O ELEFANTE5

Uma fábula hindu

I.

Foram seis homens do Hindustão

Muito inclinados a aprender,

Que foram ver o Elefante

(Embora todos fossem cegos),

Para que, cada um, pela observação

Pudesse satisfazer sua mente.

II.

O Primeiro se aproximou do Elefante,

E aconteceu de cair

Contra seu lado largo e robusto,

Imediatamente começou a gritar:

“Deus me abençoe! Mas o Elefante

É muito parecido com uma parede!”

III.

O Segundo, sentindo a presa

Gritou: “Oh! – o que temos aqui

Tão redondo e suave e afiado?

Para mim é muito claro

Esta maravilha de Elefante

É muito parecido com uma lança!”

IV.

O Terceiro se aproximou do animal,

E aconteceu de pegar

A tromba se contorcendo em suas mãos,

Assim corajosamente e falou:

“Eu vejo”, ele disse, “o Elefante

É muito parecido com uma cobra!”

V.

5 Poema disponível na internet. Tradução nossa.


43

O Quarto esticou sua mão ansiosa,

E apalpou o joelho.

“Com o que mais essa besta maravilhosa se parece

É muito fácil”, ele disse:

“É claro o suficiente o Elefante

É muito parecido com uma árvore!”

VI.

O Quinto, que por acaso toca o ouvido,

Disse: “Até o homem mais cego

Pode dizer ao que isso mais se assemelha;

Negar o fato quem pode,

Esta maravilha de um Elefante

É muito parecido com um leque!”

VII.

O Sexto mal havia começado

Sobre a fera tatear,

Então, agarrando a cauda oscilante

Que veio ao seu alcance,

“Eu vejo”, ele disse, “o Elefante

É muito parecido com uma corda!”

VIII.

E assim, esses homens do Hindustão

Discutiram por muito tempo

Cada um com sua opinião

Excessivamente rígida e forte

Embora cada um estivesse parcialmente certo,

Todos estavam errados!

MORAL.

Então, muitas vezes em guerras teológicas

Os disputantes, eu suponho,

Trilham em total ignorância

Sobre o que o outro entende,

E tagarelam sobre um elefante


44

Que nenhum deles viu!

Na tentativa de compreender as perspectivas futuras da religião, a antiga


parábola indiana dos cegos tateando um elefante pode servir como um
paradigma para a relação da humanidade com Deus.

Se Deus é realmente infinito, deve manifestar-se de infinitas maneiras.


Pensar um Deus infinito que se manifesta de infinitas maneiras é encontrar, em
certa medida, um Deus correspondente/equivalente às demandas do ser
humano contemporâneo, que busca validação da diversidade por meio da
tolerância.

A parábola demonstra que, embora todos os cegos tenham apalpado o


mesmo elefante, a percepção final de cada um parece não corresponder ao
mesmo animal, gerando uma discordância entre os cegos, uma vez que as
partes tocadas por cada um deles era diferente (orelha, cauda, tromba, pernas,
barriga). Somente com a soma de todas as percepções é que o elefante passa
a ser entendido e conhecido.

Analogamente, sugere a neuroteologia que, o entendimento e o


conhecimento de Deus resultam das percepções das mais variadas formas de
espiritualidade, e, a somatória dessas percepções é a única capaz de trazer um
conhecimento mais aprimorado de Deus. As diferentes formas de
espiritualidade, manifestas nas mais variadas formas de religiosidade, não
devem ser excludentes entre si. Pelo contrário, devem encontrar um espaço
colaborativo e complementar.

Assim, não caberia supor que uma religião detém a verdade absoluta
acerca da realidade de Deus em detrimento a todas as demais religiões. Pelo
contrário, a soma de todas as verdades subjacentes à Verdade, conforme
acima, pode aproximar a humanidade da Verdade acerca da realidade de
Deus.

Pode-se dizer então que, por exemplo, as “grandes” religiões conhecidas


do mundo, a saber, o Hinduísmo, o Budismo, o Judaísmo, o Islamismo e o
Cristianismo, conhecem e reconhecem verdades parciais da realidade de
Deus. Cada uma dessas religiões assume o papel de um dos cegos tateando o
45

elefante. A soma de todas as descobertas parciais dos cegos se aproxima –


imperfeitamente – da realidade do elefante. Então, cada uma das visões
religiosas oriundas dessas “grandes” religiões é capaz de apresentar apenas
uma faceta da realidade de Deus. Ao invés de guerrear em nome de Deus,
mais vantajoso é somar as percepções.

3.2. VOLTAIRE E O TRATADO DA TOLERÂNCIA

O ambiente contemporâneo é palco das maiores atrocidades em nome


de Deus. Aliás, desde que Deus se tornou produto exclusivo de uma só
religião, atos violentos são cometidos em nome de Deus.

Os conflitos religiosos em todo mundo são carregados de diversos


fatores – políticos, econômicos, raciais, étnicos, crenças e doutrinas. Todavia, a
intolerância religiosa é a principal característica que perpassa todos os conflitos
em nome de Deus.

O tipo de mentalidade que presta um desserviço à religião, colocando-a


sob a suspeita dos mais céticos, sob a ótica da neuroteologia (NEWBERG,
WALDMAN, 2009), é aquela que declara haver apenas uma verdade absoluta
e inegável. Tal assertiva induz o ser humano a desenvolver um comportamento
de disputa, do tipo “nós versus eles”. Esse tipo de pensamento ou mentalidade
estimula o medo e a hostilidade, gerando stress e despertando a resposta “luta
ou fuga”. Deve-se considerar que, religiões que pressupõem o conceito de
revelação especial de Deus, tendem a considerar a existência de uma única
verdade absoluta, e.g., o cristianismo e o judaísmo.

Assim, não é simplesmente a religião a responsável por essa


mentalidade de intolerância, de raiva, de hostilidade, de idealismos extremos e
de separatismo – é o próprio ser humano. Tomem-se como contraponto
favorável à religião e à espiritualidade todos os esforços realizados ao redor do
mundo para promoção da paz entre os adeptos das mais variadas religiões,
para a promoção dos direitos humanos, para o combate à fome, para a
46

manutenção da saúde física e emocional do ser humano, dentre outras tantas


lutas em favor da humanidade.

No Afeganistão o conflito entre fundamentalistas radicais muçulmanos e


os não muçulmanos mata milhares de pessoas. O principal conflito acontece
entre dois grupos muçulmanos, a saber, o Talibã (movimento fundamentalista
islâmico) e a Aliança do Norte (uma organização político-militar que busca
combater o regime do Talibã).

Na Nigéria, os conflitos entre cristãos e muçulmanos divide o país


africano. Os conflitos religiosos já mataram mais de 10 mil pessoas desde o
ano 2002, quando a sharia – lei islâmica – se tornou a base da legislação dos
estados do norte da Nigéria.

Em 30 de janeiro de 1972, em um domingo que ficou conhecido como o


“Domingo Sangrento”, na cidade de Derry, na Irlanda do Norte, soldados
britânicos mataram 14 católicos que faziam parte de uma manifestação por
causa dos conflitos entre católicos e protestantes.

Ao redor do mundo, conflitos religiosos e violentos matam milhares de


pessoas: na Tailândia o conflito fica por conta dos muçulmanos e dos budistas;
no Tibete, com o avanço do partido comunista da China, o conflito surge contra
os budistas; no Sudão, milhares de pessoas foram mortas nos conflitos entre
muçulmanos e não muçulmanos, deixando mais de um milhão de refugiados
sudaneses; em Israel, muçulmanos e judeus lutam pela Terra Santa; no Iraque,
xiitas e sunitas lutam em nome de Deus e em busca de poder.

No dia 09 de março de 1762, segundo Voltaire (2017), Jean Calas, de 68


anos, foi morto, executado no suplício da roda, em Toulouse, na França,
acusado de matar o próprio filho Marc-Antoine Calas, de 28 anos. Jean e sua
esposa eram protestantes em uma França de maioria católica. De acordo com
a acusação, Jean matou seu próprio filho porque soube que seu filho pretendia
se converter ao catolicismo. No dia 09 de março de 1765, Jean Calas foi
considerado inocente. Assim, seu processo é considerado um dos maiores
casos de intolerância religiosa da história, um caso marcado por preconceito e
desamor – Jean Calas foi morto supliciado, clamando por sua inocência, tendo
47

sido quebrado vivo, estrangulado e atirado em uma fogueira ardente. Seu filho
Marc-Antoine foi considerado um santo na ocasião, justamente por abandonar
a fé protestante a abraçar a fé católica.

Por conta desse caso, Voltaire escreveu sua famosa obra “Tratado sobre
a tolerância”, onde discorre acerca da necessidade da tolerância,
especialmente a religiosa. Segundo Voltaire, não é possível ao ser humano ter
certezas acerca de Deus, da alma e de outros tantos assuntos. Assim, ele
propõe o respeito mútuo e a coexistência pacífica, uma vez que, a única
certeza que o ser humano realmente possui é a certeza da ignorância. De
acordo com Voltaire (1978), “se tiverdes entre vós duas religiões, os seus
seguidores se esganarão uns aos outros; se forem trinta, todos viverão em
paz”. Embora a afirmação de Voltaire pareça fazer sentido, no ambiente
contemporâneo existem diversas manifestações religiosas, e, mesmo assim, a
intolerância continua evidente.

3.2.1. VOLTAIRE, GREGOS E ROMANOS

Em defesa da tolerância, no zeitgeist iluminista, Voltaire (2001) toma o


comportamento dos gregos e dos romanos como exemplares em relação ao
pluralismo religioso e a tolerância.

Quanto aos gregos, Voltaire (2001) declara:

“segundo me parece, dentre todos os povos antigos que investigamos, nenhum


perturbou a liberdade de pensamento. Todos tinham uma religião; contudo, a
impressão que tenho é que eles a usavam para tratar os homens do mesmo modo
como se relacionavam com os deuses: todos reconheciam a existência de um
deus supremo, mas associavam a ele uma quantidade prodigiosa de divindades
inferiores; tinham um único culto, mas permitiam o funcionamento de uma
multidão de sistemas particulares.”

Agora, em relação aos romanos, “nunca se soube de um único homem


que fosse perseguido somente por seus sentimentos” (VOLTAIRE, 2001, p.
37). Um dos princípios do senado e do povo romano era “Deorum offensae diis
curae” (somente os deuses devem ocupar-se das ofensas feitas aos deuses).
48

Sob a égide do Império Romano inúmeras crenças, sistemas e religiões


encontravam seu livre espaço de culto e rito. Até mesmo um altar para um
Deus desconhecido havia sido levantado, como uma espécie de garantia de
direito de culto a todos os deuses conhecidos e desconhecidos.

Assim, Voltaire sugere que gregos e romanos são exemplos ao mundo


de tolerância religiosa.

Quanto à questão da perseguição contra os primeiros mártires cristãos,


supor que tenham sido perseguidos e mortos apenas por causa de sua opção
de crença e fé é ignorar o fato descrito acima. É impossível que, sob tamanha
tolerância religiosa, os cristãos tenham sido perseguidos apenas por conta de
sua religiosidade específica. Nessa direção, assevera Voltaire (2001), conforme
se segue:

“Não é crível que jamais tenha havido uma inquisição contra os cristãos sob o
governo dos imperadores romanos, nem que sequer tenham ido a suas casas a
fim de interrogá-los a respeito de suas crenças. Nesse sentido, nunca foram
perturbados nem judeus, nem sírios, nem egípcios, nem bardos, nem druidas,
nem filósofos. Os mártires foram, portanto, aqueles que se revoltaram contra os
falsos deuses. Era uma coisa muito acertada e piedosa não acreditar neles;
todavia, se não se contentaram em adorar um Deus em espírito e em verdade,
mas se rebelaram violentamente contra o culto tradicional, por mais absurdo que
pudesse ser, somos forçados a admitir que eles próprios eram intolerantes.”
(Voltaire, 2001, p. 41)

Daí que, conforme acima mencionado, a suposição da exclusividade da


revelação de um único Deus parece fomentar a intolerância religiosa. Defender
a posse da Verdade em detrimento às supostas verdades subjacentes à
Verdade tende a conduzir o ser humano ao uma postura de intolerância e de
arrogância, o que culmina em conflitos e combates violentos em nome de
Deus.

Ainda, conforme citado acima, a intolerância religiosa, sob a ótica de


Voltaire, fica por conta dos próprios cristãos. Soa contraditório ao próprio
sistema do cristianismo, senão, veja:

Você me responde que a diferença é grande, que todas as religiões são obras dos
homens, que somente a Igreja católica, apostólica e romana é a obra de Deus.
49

Mas usando de boa-fé, somente porque nossa religião é divina, deverá então
reinar pelo ódio, pelos furores, pelos exílios, pelo confisco dos bens, pelas prisões,
pelas torturas, pelos assassinatos e pelas ações de graças rendidas a Deus por
esses mesmos assassinatos? Quanto mais a religião cristã é divina, tanto menos
pertence ao homem dirigi-la: se foi Deus que a fez, Deus a sustentará sem a
nossa ajuda. Você sabe que a intolerância apenas produz hipócritas ou rebeldes:
que alternativa funesta! Por fim, você gostaria de sustentar nos braços dos
carrascos a religião de um Deus que fizeram perecer nas mãos dos carrascos e
que somente pregou a doçura e a paciência? (Voltaire, 2001, p. 53)

O pensamento de Voltaire exerce profunda influência na construção do


pensamento iluminista, e assim, pode-se considerar que as bases do ambiente
contemporâneo se estabelecem a partir das reflexões iluministas.

3.3. O AMBIENTE CONTEMPORÂNEO

Ao apontarmos perspectivas futuras da religião, faz-se necessário,


também, caracterizar o ambiente contemporâneo. Fica evidente que, nesse
tópico, não se tem a intenção de construir um “tratado da contemporaneidade”,
senão pontuar algumas características que exercem influencia no modo de
pensar religião e espiritualidade na atualidade.

Há, no ambiente contemporâneo, uma suposta superação da


modernidade. A compreensão do termo aqui apresentado superação deve
considerar a discussão proposta por Gianni Vattimo (1996). Vattimo procura
construir uma relação que liga as conclusões nietzschianas e heideggerianas
com os discursos sobre o fim da modernidade e o ambiente contemporâneo.

Esta conexão entre Nietzsche e a contemporaneidade, de acordo com


Vattimo (2004), pode ser estabelecida, sobretudo, a partir do anúncio de
Nietzsche da morte de Deus, o que não é uma pura e simplista declaração de
ateísmo – como se ele estivesse dizendo “Deus não existe”. É, na verdade,
uma declaração de que para ele não há um fundamento definitivo, e nada mais.
O que Nietzsche chama de a morte de Deus (ou superação do Deus moral), é
no pensamento contemporâneo considerado como o fim da metafísica.
50

Da mesma forma, prossegue Vattimo, quando Heidegger anuncia o fim


da metafísica, seu discurso passa a ser o mesmo de Nietzsche, e ambos os
anúncios marcam o fim da modernidade e o início da pós-modernidade. Dessa
maneira, o fim da metafísica – que significa a passagem de uma concepção do
ser como estrutura para uma concepção do ser como evento, também
caracterizada ainda por uma tendência ao enfraquecimento – acompanha, no
pensamento e na prática social a morte do Deus moral, mas também um
renascimento do sacro em diversas formas (VATTIMO, 2004).

Tal renascimento é o que interessa na presente discussão acerca das


perspectivas futuras da religião. Todavia, cabe ainda questionar o que mais
caracteriza a contemporaneidade que se faça relevante mencionar no presente
texto?

Assim, prosseguindo, o ambiente contemporâneo é, também,


caracterizado não apenas como novidade em relação ao pensamento
moderno, mas também como a dissolução – um enfraquecimento – da
categoria do novo. Essa dissolução não significa apenas uma evolução, mas
sim uma experiência de “fim da história”. Assim, o contemporâneo é o fim da
história, ou seja, o fim da vida humana na Terra. É também um abrir-se para
uma concepção não metafísica da verdade, de tal maneira que a experiência
contemporânea da verdade passa a ser uma experiência estética e retórica.
Isso reduz a experiência da verdade a emoções e sentimentos subjetivos
(VATTIMO, 2004). Justamente nesse espírito é que, em 2016, o Dicionário de
Oxford elegeu o termo “pós-verdade” como a palavra do ano (ENGLISH
OXFORD LIVING DICTIONARIES, 2016). A descrição do termo, de acordo
com o Dicionário é “relacionadas ou denotando circunstâncias nas quais os
fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que
apelos à emoção e à crença pessoal”. Embora o termo esteja, regra geral,
relacionado às falsas notícias (fake news), ele acaba por sintetizar o pluralismo
característico da estrutura do pensamento contemporâneo, que não permite
mais um pensar a realidade como uma estrutura fortemente ancorada em um
único fundamento. Há, portanto, uma franca abertura para a diversidade, para
o pluralismo e para a tolerância no ambiente contemporâneo.
51

Ainda, de modo mais simplificado, Jean-François Lyotard (2008) afirma


que se pode considerar como contemporaneidade a incredulidade em relação
aos metarrelatos, o que sem dúvida, é um efeito do progresso das ciências. Os
metarrelatos foram os discursos produzidos no século XIX que explicavam a
condição histórica do homem ocidental, nos seus aspectos econômicos, sociais
e culturais. Assim, pode-se dizer:

Aos olhos revolucionários, a pós-modernidade é reformista. Aos olhos


iluministas ela é uma freguesa contumaz, ou seja, mais uma rebelião
anárquica da irracionalidade. Aos olhos verdadeiramente modernos, ela é
apenas modernizadora. Porém, aos seus próprios olhos, a pós-
modernidade é antitotalitária, isto é, democraticamente fragmentada, e
serve para afiar nossa inteligência para o que é heterogêneo, marginal,
marginalizado, cotidiano, a fim de que a razão histórica ali enxergue novos
objetos de estudo. Perde-se a grandiosidade, ganha-se a tolerância. Em
lugar do dever histórico do homem, tem-se a integração plena do cidadão
em comunidades. (LYOTARD, 2008, p. 127)

Assim, tendo sido descartados os metarrelatos legitimadores do bom, do


justo e do verdadeiro, a questão passa a ser sobre como se podem constituir
novas formas de legitimação na contemporaneidade. Já não se pode recorrer
aos fundamentos ou aos metarrelatos, que são agora substituídos pelo
“contextual”, “pragmático”, “funcional” e “relativista”. E isso nada difere do
sempre optar por “aquilo que é conveniente ao que opta”. Assim, um pluralismo
de ideias resulta em um pluralismo de éticas, que inevitavelmente conduz à
uma rejeição enérgica de qualquer espécie de diferenciação entre o “bom” e o
“mal” (RÓLDAN, 2000).

Na ambiente contemporâneo pode-se constatar uma volta do mal com


toda força, i.e., a face obscura da natureza humana, aquela mesma que pode
ser domesticada pela cultura, mas que continua a animar nossos desejos,
nossos medos, nossos sentimentos e todos os afetos. É o tempo dos
assassinos, onde se pode dizer que a tragédia aceita é a própria “consolação”.
A parte do diabo tem agora seu lugar e se expressa no paganismo ambiente. É
a relativização do Sujeito absoluto: o Deus cristão, único, absoluto,
transcendente, criador do mundo cede lugar ao politeísmo multiforme, ou
52

ainda, a um “henoteísmo” onde tudo são deuses, i.e., os deuses estão em toda
parte, e se relativizam entre si. É ainda um homeopatizar o mal, até que este
possa proporcionar o bem de que também é portador. Ainda, teatralizar o
daimon passa a ser uma excelente maneira de domesticá-lo, de proteger-se
dele (MAFFESOLI, 2004). Maffesoli acrescenta ainda que cada ser humano
tem seu próprio daimon, e toma como exemplo a figura do Cristo, “inteiramente
homem e inteiramente Deus”. Ainda considera feliz o pecado que permite a
salvação.

É o espaço dado à parte do diabo na contemporaneidade que relativiza


a moral, permitindo que a heterossexualidade e a homossexualidade, a
monogamia e a sucessão de casamentos tornem referências aceitas pela
sociedade. Bem e mal funcionam em perfeita sinergia. O mito de Dionísio,
adolescente perpétuo, o malandro encontra seu lugar, repousando na sombra
da aceitação interior que progressivamente tende a se exteriorizar. O inimigo
interior precisa conviver com o inimigo exterior (MAFFESOLI, 2004).

O pensamento contemporâneo se manifesta de maneira silenciosa,


permanente e em todos os âmbitos da sociedade contemporânea. Assim,
surge um novo homem moderno, tal que:

Dos meandros dessa realidade sociocultural vai surgindo o novo homem moderno,
produto de seu tempo. Se observarmos melhor, veremos que esse homem tem os
seguintes componentes: pensamento fraco, convicções sem firmeza, assepsia em
seus compromissos, indiferença sui generis feita de curiosidade e relativismo ao
mesmo tempo [...] sua ideologia é o pragmatismo, sua norma de conduta, a
vigência social – que vantagens leva, o que está na moda; sua ética se
fundamenta na estatística, substituta da consciência; sua moral, repleta de
neutralidade, carente de compromisso e subjetividade, fica relegada à intimidade,
sem se atrever a sair em público. (ROJAS, apud AMORESE, 1998, p. 82)

Da mesma forma como acima citado, na contemporaneidade os valores


absolutos não mais existem: a permanência, a fidelidade, a constância. Aliado
ao conceito de pluralismo, um novo absoluto toma espaço, a saber, o
relativismo (AMORESE, 1998).
53

A discussão em torno do pensamento contemporâneo faz evidenciar a


abertura pluralista e relativista que se estende também às manifestações
religiosas e espirituais. Não há necessidade de comprovação ou validação de
uma revelação em detrimento a outras. Com a morte de Deus e o fim da
metafísica, não há mais espaço para um discurso exclusivista e autoritário
acerca de nenhuma verdade.

3.4. DA NEUROTEOLOGIA

Embora o fundamentalismo religioso tema que os resultados obtidos


pela neuroteologia possam apontar para o fato de que Deus seja um
subproduto da mente humana, a existência de Deus continua não sendo o
proprium da pesquisa neuroteológica. Todavia, é legítima a preocupação. As
experiências realizadas por Newberg e d’Aquili (2001) a partir da observação
da atividade cerebral de budistas praticantes através de um processo
conhecido como SPECT, demonstraram que as percepções que foram
consideradas espirituais pelos budistas eram, na verdade, captadas
simplesmente como atividade neurológica. Daí que, uma avaliação reducionista
destes resultados poderia argumentar que tais experiências realmente
comprovam a inexistência do espiritual, visto que, tais experiências podem ser
simplesmente definidas como atividade neurológica. Todavia, Newberg e
d’Aquili argumentam:

Imagine, por exemplo, que você é o sujeito de um estudo de imagem


do cérebro. Como parte deste estudo, foi pedido a você que comesse
um generoso pedaço de uma torta de maça caseira. Enquanto você
saboreia a torta, uma varredura cerebral captura imagens da
atividade neurológica [...] as áreas do olfato registram o delicioso
aroma das maças e da canela, as áreas visuais percebem a visão da
crosta marrom dourada, centrais de tato percebem a complexa
mistura de texturas crocantes e grudentas, e o rico, doce, satisfatório
sabor é processado nas áreas responsáveis pelo sabor [...] a
experiência de comer a torta está completamente em sua mente, mas
isso não significa que a torta não seja real, ou que não seja realmente
deliciosa (NEWBERG, et al., 2001 pp. 36-7, tradução nossa).
54

Da mesma maneira, a observação da atividade neurológica do ser


humano no momento em que desenvolve sua experiência religiosa não será
suficiente para determinar se o objeto de contemplação realmente existe ou
não. Assim, embora os dados obtidos a partir da observação empírica do
cérebro humano possam ser codificados, jamais serão suficientes para definir a
existência ou “não-existência” de Deus.

Tendo como objetivo o aprimoramento da condição humana, a


neuroteologia procura trazer contribuições para a humanidade em geral. No
que diz respeito à saúde e ao bem-estar, através de suas pesquisas
neurológicas, Newberg observou que muitas formas de práticas espirituais são
saudáveis para a mente humana. Estes benefícios são observados até mesmo
em indivíduos que não creem, mas se submetem às tais atividades como
oração intensa e meditação (NEWBERG, WALDMAN, 2009). Observou-se que
em pessoas com deficiências cognitivas, a prática da meditação, ainda que
removidas as estruturas religiosas e espirituais, é capaz de melhorar
substancialmente a memória. Dessa maneira, evidencia-se que as “raízes
espiritual-religiosas” dessas práticas podem ser removidas, e mesmo assim,
pode se conseguir um aprimoramento da condição humana. Ou seja, o sagrado
pode ser tirado da experiência que os benefícios serão sentidos ainda assim.
Estes benefícios se estendem: diminuição da ansiedade, do nervosismo, da
insegurança e a perda de concentração (NEWBERG, WALDMAN, 2009). A
meditação e a oração podem ajudar a melhorar vários processos físicos,
incluindo o sistema cardiovascular, os sistemas digestivo e imunológico
(NEWBERG, 2010).

Newberg e Waldman (2009), como resultado de suas pesquisas de


observação dos efeitos da experiência religiosa na mente humana, propõem
exercícios capazes de manter o cérebro humano fisicamente, mentalmente e
espiritualmente saudável. Também, a partir de suas pesquisas neurológicas,
puderam desenvolver um programa personalizado de “engrandecimento
cerebral” capaz de ajudar na redução do stress, de tornar a mente mais atenta
e mais alerta, desenvolver maior sensibilidade e empatia, e, em geral, melhorar
o funcionamento cerebral.
55

As contribuições podem ser também preventivas. As pesquisas


neuroteológicas são capazes de prever as consequências potencialmente
negativas da religiosidade e das crenças espirituais. Dessa maneira, pode-se
procurar prevenir o problema do terrorismo a partir da avaliação da mente de
um terrorista. Embora não seja ainda clara a questão do por que alguns
indivíduos se tornam extremistas religiosos, é possível, através da
neuroteologia, identificar qual tipo de indivíduo é mais propenso ao extremismo
e, preventivamente, redirecioná-lo (NEWBERG, 2010). Existem, inclusive,
pesquisas neurológicas que identificam o problema do fundamentalismo
religioso a partir de uma deficiência no lobo frontal. De acordo com estas
pesquisas, quando há algum dano no lobo frontal, o indivíduo lesado apresenta
uma estranha incapacidade chamada de “aderência” – consiste numa
inabilidade de abandonar pensamentos e ideias, ou ainda, de trocar de
paradigmas. De acordo com Oliver Zangwill, da Universidade de Cambridge,
danos causados ao lobo frontal impossibilitam um raciocínio divergente
(DONDA, et al., 2011 – Seeking a Neurological Explanation of Religious
Fundamentalism).

Interessante também é, através da neuroteologia, a possibilidade de


observação dos efeitos e das alterações produzidas na mente humana a partir
da experiência religiosa. “Diferentes atividades religiosas tem diferentes efeitos
sobre específicas partes do cérebro [...]”, comenta Newberg (NEWBERG,
WALDMAN., 2009, tradução nossa). Assim, torna-se possível desenvolver uma
espécie de mapeamento da experiência religiosa no cérebro humano. É
possível constatar qual parte do cérebro humano é responsável ou estimulada
em cada atividade religiosa. Dessa maneira é possível se obter um vislumbre
da realidade neural de Deus.

De acordo com inúmeras pesquisas, o envolvimento com a


espiritualidade e a prática de atividades consideradas “espirituais” – como
meditação, yoga e oração – trazem significativos efeitos para o ser humano.
Alguns desses efeitos observados por meio das pesquisas incluem benefícios
psicológicos em termos de sentimentos e humor; benefícios físicos como
redução da pressão sanguínea, da frequência cardíaca e melhora do sistema
imunológico, conforme citado acima. Dentre os objetivos da neuroteologia,
56

nesses casos onde se observa resultados significativos para cada pessoa a


partir do desenvolvimento da espiritualidade ou da religião, pode-se mencionar
que, no futuro, poder-se-á determinar qual tipo de rito ou prática espiritual
surtirá melhor efeito em um paciente de acordo com sua necessidade
específica.

Os benefícios observados pelas pesquisas realizadas pela neuroteologia


incluem o aumento da capacidade de concentração através da meditação,
fazendo com que a meditação, que exige intensa concentração, possa ser uma
prática indicada para pacientes com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção
com Hiperatividade). Tal recomendação pode ser feita sem que a prescrição de
um medicamento ou suplemento adequado seja dispensada. A prática é
recomendada como uma terapia complementar.

Newberg orienta os médicos para que recomendem a seus pacientes


para que desenvolvam práticas contemplativas, espirituais ou religiosas para
melhorarem suas condições de saúde. Nesse aspecto, é preciso considerar
que cada indivíduo é um ser único, e, portanto, deve explorar e encontrar às
práticas e abordagens que melhor funcione para ele. Antes de iniciar tal
“exploração”, pode-se elaborar um questionário que sirva de orientação
individual, a saber: o que o indivíduo gosta de fazer? O indivíduo gosta de
passar tempo assentado calmamente? Ele é inquieto? Tem dificuldades em se
concentrar ou concentra-se com facilidade? Ele gosta de deixar sua mente
divagar? O indivíduo já possui uma determinada prática ou tradição religiosa?
Pode-se acrescentar ainda: quais as expectativas do indivíduo ao desenvolver
a prática espiritual ou religiosa? Está apenas em busca de uma redução de
stress ou procura uma “experiência místico-religiosa”? Todas essas sugestões
de questionamento visam orientar o indivíduo e respeitá-lo como unidade.
Algumas experiências demonstraram que algumas pessoas que foram
conduzidas a prática de meditação tiveram impressões muito negativas e não
conseguiram as melhorias esperadas no humor, no relaxamento e na redução
de estresse.

Outra recomendação de Andrew Newberg faz menção à necessidade de


se considerar os pacientes como uma somatória, i.e., como sendo indivíduos
57

biológicos, psicológicos, sociais e espirituais. Para que seja possível obter


benefícios resultantes do envolvimento com a religião e a espiritualidade, a
individualidade de cada paciente precisa ser respeitada. É preciso ser sensível
à crença de cada pessoa para que se possa recomendar a religião e/ou a
espiritualidade como prática terapêutica auxiliar e complementar ao tratamento
recomendado pelo médico.

Quantos aos benefícios acima descritos, de acordo com a neuroteologia,


eles parecem estar relacionados às práticas em si e não são necessariamente
uma “resposta de Deus” para aquele que ora, medita ou desenvolve qualquer
outra prática relacionada à religião. Considerar como sendo válida essa
afirmação faz com que a pergunta pela obsolescência de Deus seja retomada,
uma vez que o benefício está diretamente relacionado ao exercício espiritual e
sua ação sobre o cérebro e corpo humano. Prescinde-se a fé ou a crença.
Basta que se desenvolva a prática de maneira intensa.

Cabe mencionar ainda que as recentes pesquisas feitas pela


neuroteologia indicam uma possibilidade de se explicar a diversidade de
crenças religiosas e o próprio comportamento religioso a partir de processos
mentais naturais comuns a qualquer ser humano saudável.

Ainda, quanto às perspectivas da própria neuroteologia, àquela


relacionada à saúde parece ocupar um lugar de destaque. Atualmente, muitos
estudos apontam para a influência das práticas espirituais na saúde humana –
auxílio no tratamento de ansiedade e depressão, aumenta a imunidade e,
inclusive, aumento da longevidade dos sujeitos envolvidos em tais práticas
(NEWBERG, 2010). Senão, veja:

“[...] muitos estudos demonstraram que as práticas religiosas e espirituais têm um


efeito benéfico na psicologia humana como estratégias de enfrentamento, e
também em termos de sentimentos e humor. Essas atividades também
demonstraram beneficiar nossos corpos, reduzindo a pressão arterial [PA] e a
frequência cardíaca [FC], ao mesmo tempo em que melhoram nosso sistema
imunológico. Há até evidências de que esses tipos de práticas podem afetar a
expressão genômica humana. Então, se reconhecermos esses vários efeitos
fisiológicos e clínicos, então, parte da razão para conduzir a pesquisa em
neuroteologia é entender o que são esses elos e encontrar maneiras de otimizar
58

os efeitos estudados [...]”.(Mary Ann Liebert, Inc. • Vol. 21 nº. 1. ALTERNATIVE


AND COMPLEMENTARY THERAPIES, 2015. The Neurotheology Link - An
Intersection Between Spirituality and Health. NEWBERG, A. 2015. Tradução
nossa)

Dentre os benefícios observados, resultantes da contemplação de Deus


ou da meditação – considere que o ritual é o diferencial, e não a realidade de
Deus em si –, pode-se citar os seguintes (NEWBERG, 2009): (a) aprimorar a
neuroplasticidade do cérebro; (b) desenvolver o sentimento de compaixão; (c)
controle e redução do sentimento de raiva; (d) promover sentimentos de fé e
esperança.

Newberg parece fomentar o uso terapêutico da religião, uma vez que,


segundo as pesquisas realizadas pela neuroteologia, os benefícios
relacionados à saúde podem ser observados em práticas de oração, meditação
e contemplação, abarcando todas as religiões e práticas espirituais. Ainda, de
acordo com Newberg, a indicação clínica das práticas religiosas e espirituais
deve levar em consideração a experiência pessoal de cada sujeito. Tal
indicação, por parte dos médicos, psiquiatras, psicólogos e terapeutas parte
sempre da experiência de cada sujeito, de tal modo a indicar a prática de
acordo com os sistemas de crença de cada um. Mais uma vez, enfatiza-se que,
a prática traz benefícios, independente da realidade do Deus ou da crença do
sujeito (ALTERNATIVE AND COMPLEMENTARY THERAPIES, 2015).

3.5. DA RELIGIÃO

Em conformidade às considerações acima, a religião deve assumir o


papel de mediadora. Deve, portanto, de acordo com as origens latinas do termo
(religio), religar, reconectar os seres humanos, não apenas a Deus, mas,
necessariamente, uns aos outros.

Não deve assumir a postura de “guarda da única verdade revelada”, mas


deve esforçar-se para encontrar caminhos que possam expandir as relações
entre as religiões, evitando conflitos e abrindo espaço para diálogos
59

compreensivos que visam o bem de toda a humanidade, e não apenas de um


grupo seleto de fiéis.

Deve ainda a religião, munida dos pressupostos corretos, esforçar-se


para educar seus fiéis. Deve educar fomentando práticas espirituais.

Quanto a real incapacidade de, definitiva e verdadeiramente, religar a


humanidade a Deus, seu foco deve ser religar os seres humanos aos seres
humanos.

Cabe acrescentar ainda Durkheim (2008), que considerou haver na


religião algo de eterno a sobreviver a todos os símbolos particulares ao longo
do desenvolvimento da humanidade. Desse modo, segundo Durkheim, não há
símbolos (evangelhos) que sejam imortais e também não há razão para crer
que a humanidade não será capaz de desenvolver outros símbolos. O sistema
de ideias que afloram da interpretação religiosa da realidade humana será,
sempre de novo, repensado e desenvolvido. Assim, a religião tende a se
transformar mais do que tende a desaparecer.

Historicamente é possível perceber que cada geração reinventa Deus.


No ambiente contemporâneo, parece evidenciar-se que o Deus das religiões
históricas tem sido reconfigurado.

Cabe aqui evocar os conceitos acima descritos, a saber, a metateologia


e megateologia.

3.6. DA METATEOLOGIA E MEGATEOLOGIA

Metateologia é uma forma de descrever como os princípios teológicos


específicos de qualquer religião tendem a aparecer.

Acerca da metateologia, seu sentido é de buscar os elementos


universais compartilhados por todas as religiões. Tais elementos, uma vez que
são encontrados em todas as expressões religiosas, podem construir um
sistema universal de crenças.
60

Considera-se, a partir da neuroteologia, que, por mais que tais vieses


sejam “assustadores”, são passiveis de concretização, uma vez que o ser
humano é o sujeito presente em todas as experiências religiosas.

3.7. DO FUTURO DA RELIGIÃO

Quando se trata das perspectivas futuras da religião, poderíamos, a


partir da neuroteologia e de suas pesquisas, formular a questão da seguinte
maneira: “Qual o futuro de Deus?”; ou ainda, de modo mais claro: “Qual o Deus
do futuro?”. Analisando os resultados da pesquisa neuroteológica, pode-se
deduzir que, no futuro, Deus deverá preencher muitos papéis e, também,
transcender às várias interpretações religiosas históricas que se sustentam em
textos religiosos.

As inferências lógicas feitas a partir das reflexões acima conduzem às


seguintes respostas: (a) Deus deve ser, e está sendo, repensado – não no
sentido de negação de sua realidade, mas no sentido de possibilidades
humanas de conhecimento definitivo; (b) o Deus do futuro parece ser um Deus
com tendências antropomorfas, flexível, cuja revelação se manifesta no sujeito
que o experimenta.

Exatamente conforme a analogia dos cegos tateando o elefante serve


bem para compreensão da pluralidade religiosa, do subjetivismo
contemporâneo, da relativização e da consequente necessidade de tolerância.
Assim, tais características promovem um espaço suficientemente amplo para o
desenvolvimento de uma religião educadora, promotora da saúde – física,
mental e espiritual –, trabalhando para a conexão entre os homens nos mais
variados sistemas religiosos.

Cabe considerar ainda que, uma vez que a neuroteologia postula ser
impossível, a partir de suas pesquisas, comprovar a existência ou a
inexistência de Deus, torna-se possível, para qualquer sujeito, assumir que a
experiência espiritual, mediada pelo rito e pela religião, pode ser tanto apenas
o resultado do estímulo cerebral como também a capacidade de percepção do
61

cérebro humano de uma realidade transcendente ao ser. Assim sendo, a


discussão em torno do conhecimento absoluto, definitivo e último de quem
Deus é – realidade transcendente ao ser ou um subproduto da mente humana
– torna-se irrelevante.

Nos mesmos moldes da construção do pensamento contemporâneo,


cabe ao sujeito determinar/autenticar a própria experiência como autêntica,
necessária e/ou contingente.

Assim, a realidade de Deus torna-se cada vez mais pessoal, restando à


religião a fomentação da tolerância e da qualidade de vida.
62

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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63

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