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20/03/2018 A face de Marielle e o rosto dos difamadores (por Fernando Nicolazzi) - Sul 21

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A face de Marielle e o rosto dos


difamadores (por Fernando Nicolazzi)
Publicado em: Março 20, 2018

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Fernando Nicolazzi (*)

“A lógica racista supõe um elevado grau de


baixeza e estupidez.”
Achille Mbembe

Em 15 de março, apenas um dia após a


execução sumária da vereadora carioca
Marielle Franco no Rio de Janeiro, Felipe Pedri,
membro atuante do MBL gaúcho, postou um
comentário difamatório em sua página de
Foto: Reprodução Facebook
rede social. Segundo ele, taxativo na
a rmação, Marielle era “envolvida com o crime organizado” e sua morte estaria ligada a uma disputa entre
facções rivais. Quando indagado por uma interlocutora sobre as fontes de informação que ele utilizou para
proferir a acusação, a resposta foi não menos taxativa: “por óbvio a vereadora tinha relações com CV
[referência ao Comando Vermelho] e outros. Isso é básico”, a nal, como ele prossegue sem qualquer
razoabilidade ou comprovação factual, ninguém conseguiria uma votação tão expressiva no Complexo da
Maré, onde nasceu e foi criada Marielle, sem a “benção de uma facção”.

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Desconsiderando o mérito da insustentável e desonesta a rmação do militante do MBL, que fala muito
mais sobre quem ele realmente é do que sobre a capacidade política dos moradores da Maré, seu
comentário público faz parte de um movimento mais amplo, mesmo que com pouca e cácia midiática,
que procura deslocar a repercussão de um crime político para as estatísticas ordinárias da criminalidade
cotidiana. Pior, faz da vítima aquela sobre quem deve pairar a acusação criminal.

Filiado desde 2016 ao partido Democratas, Pedri nada mais fez que ecoar uma mentira que foi propagada
por um de seus correligionários nacionais, o deputado federal Alberto Fraga (DEM/DF), cujos comentários
criminosos não serão aqui repetidos. Aliás, o mesmo crime de difamação foi cometido por uma
magistrada carioca que, é muito provável, deve atuar juridicamente com o mesmo ímpeto de ódio com que
posta inverdades em redes sociais.

O fato é que, ainda que sem o impacto almejado por esses indivíduos, movimentos e partidos políticos (a
maioria esmagadora dos comentários em redes sociais é de apoio e solidariedade à Marielle e ao que ela
representa), o que está em jogo é a tentativa de desenhar uma caricatura grosseira e desprezível da face
mais evidente da vereadora. Trata-se, nesse sentido, do esforço para se deformar um rosto com o intuito
de fazer dele uma gura monstruosa, distorcida da realidade, para que seja olhado como aquilo que ele não
é. Considerando ainda que aquele rosto traz as marcas de uma cor de pele particular e de um gênero
especí co, todo esse esforço assume signi cados muito mais vastos do que o simples “delito de opinião”,
como normalmente se tenta justi car atitudes racistas e misóginas cometidas publicamente.

Minha intenção neste texto, no entanto, não é dizer qual o rosto ou a face verdadeira de Marielle que
podemos ou devemos realmente enxergar por trás da opacidade criada pelo gesto difamador, algo
desnecessário diante da realidade que impera sob nossos olhos. Meu objetivo aqui é realizar um rápido
esforço crítico de re etir sobre o que signi ca a tentativa infrutífera de mascarar esse rosto, quais seus
signi cados no âmbito político da ética e seus desdobramentos no contexto ético da política.

Se compreendermos, então, seguindo aqui os passos de Judith Butler (não por acaso uma lósofa que foi
demonizada pelos mesmo indivíduos que agora difamam Marielle), que parte da dimensão ética nas
relações humanas diz respeito diretamente ao face à face entre o si mesmo e o outro, de nindo a vida a
partir de uma condição essencial de vulnerabilidade (somos todos vulneráveis uns aos outros, seja pela
violência, seja pelo cuidado), pensar o que é essa face que se coloca à nossa frente assume incontestável
relevância política. Pois, na relação com o outro é a sua face, por vezes materializada em seu próprio rosto,
o que aparece em primeiro lugar diante de nossos olhos. É sobre ela que o olhar pousa o gesto primeiro de
indagação: quem é esse outro que está diante de mim e que se dirige a mim manifestando sua alteridade?

Apropriando-se das re exões de Emmanuel Levinas, Butler sustenta que é a partir da face (categoria que
não se justapõe completamente à noção física de rosto) que reivindicações ou a rmações de ordem moral
são feitas sobre o outro, assim como é a partir da sua face que o outro realiza uma demanda ética sobre
mim. É, portanto, nela que aquela condição de vulnerabilidade se manifesta de forma mais intensa: se, por
um lado, a a rmação moral pode revelar um gesto de violência (o racismo é essencialmente um juízo de

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valor moral), por outro, a demanda ética pode também ser uma solicitação de cuidado (a atenção solidária
voltada a outrem em situação de risco).

Ora, se materializarmos essa face abstrata no rosto concreto de Marielle, podemos compreender melhor
em que se sustenta a lógica difamatória. A nal, o que aquele rosto mostra é uma face negra, feminina,
oriunda de um contexto de exclusão social. Uma face em que, considerando-a em nossa sociedade, a
precariedade da vida (no sentido que Butler dá a essa expressão) se manifesta de forma inegável. Mas,
sobretudo, é a face de alguém que conseguiu escapar da invisibilidade social a que outras tantas mulheres
negras e pobres são relegadas e que, além disso, criou formas bastante e cazes de tentar se desvencilhar
das máscaras que muitas vezes são projetadas sobre ela. Uma face que, fazendo-se ver por si mesma,
podemos, de fato, enxergar o que ela nos mostra.

Pois é justamente o gesto consciente e estratégico de tentar mascarar o rosto de Marielle com uma outra
face inventada e invertida que precisa ser aqui enunciado e denunciado. Segundo esse gesto, sendo da
favela, mulher, negra e militante dos direitos humanos, “por óbvio” a vereadora tinha relações com o trá co
e com a criminalidade, segundo o tortuoso raciocínio cometido por Felipe Pedri. Certamente, não se trata
de algo novo em nossa sociedade fazer do rosto alheio, sobretudo se negro e feminino, o objeto primeiro
da violência.

Porém, trata-se de uma máscara que, ao invés de ocultar a face de Marielle, acaba por tornar evidente o
próprio rosto daqueles que produziram essa máscara. A nal, esse tipo de difamação pretende sempre,
além de ferir a pessoa difamada, colocar em evidência o difamador, jogar a luz efêmera e narcísica das
redes sociais sobre sua indizível, porque mascarada pela covardia, face.

Que o Conselho Nacional de Justiça tome as providências necessárias em relação à magistrada carioca,
que o comitê de ética da Câmara dos Deputados avalie o decoro do deputado do Distrito Federal, que o
membro do MBL gaúcho responda criminalmente pelos atos cometidos, essas são apenas algumas das
medidas básicas que se espera. Mas é preciso também ir além delas, trazendo para o primeiro plano a
indagação ética que essa situação nos coloca.

A morte de Marielle não é apenas mais uma nas nossas estatísticas. Embora o irreparável da morte,
sobretudo em condições tão violentas, torne toda a forma de luto e pesar relevante e socialmente
signi cativa, isso não quer dizer que toda morte se equivale em termos políticos e sociais. A nal de contas,
se vidas são vividas de maneiras absolutamente dessemelhantes em nosso país, algumas consideradas
jurídica e socialmente mais vivíveis que outras, sob que princípios éticos poderíamos sustentar que suas
mortes anulam as diferenças, desigualdades e exclusões a que foram submetidas durante sua existência?

Assim, aquilo que Judith Butler sugere como fundamento ético das humanidades no mundo
contemporâneo deveria servir como perspectiva para várias outras instâncias da nossa sociedade, a
política entre elas: a tarefa de “retornar-nos ao humano onde não esperamos encontrá-lo, na sua fragilidade
e nos limites da sua capacidade de fazer sentido”. A difamação, por outro lado, é justamente a violência

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cometida contra esse retorno ao humano; é um gesto que tem por única intenção invisibilizar a face do
outro diante de nós, colocando sobre ela a máscara da falácia.

Se a vida de Marielle foi um sopro de humanidade em um país atualmente tão carente disso, que sua
morte faça do sopro uma ventania, arejando aquela face saudável da dignidade que ela representa e
revelando o rosto sombrio e desumano de seus difamadores.

(*) Professor do Departamento de História da UFRGS.

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Editoria: Opinião Pública


Palavras-chave: Fernando Nicolazzi, Marielle Franco, MBL, Rio de Janeiro

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