Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
254
Daniel Vieira*
zharbo@gmail.com
Any Raquel Carvalho**
anyraque@cpovo.net
Resumo
Esse texto procura dimensionar um espectro teórico-filosófico para a apropriação poética na
performance musical. São apresentadas ideias oriundas da Teoria da Influência, do crítico
literário Harold Bloom, numa aplicação transversal à prática musical – performance musical.
A partir dessa reflexão é possível entender como a musicalidade é advinda da apropriação
de possíveis influências do próprio trabalho musical. Ainda em decorrência disso, pode-se
afirmar que não existem performances, mas sim relações entre performances apropriadas
antiteticamente entre si, sendo que resposta crítica a uma performance só pode ser uma
outra performance. Como resposta a um dos aspectos da teoria, debatidos no trabalho, o
texto se estende à compreensão de que uma própria tradição, por parte do performer, deve
ser desenvolvida ou criada, o que caracteriza um processo hermenêutico requerido e
presente no ato da performance.
Abstract
This text attempts to scale a theoretical-philosophical spectrum to poetical appropriation in
musical performance. Ideas presented are derived from the Theory of Influence, by the
literary critic Harold Bloom, in a cross-cut application to musical practice – musical
performance. From this discussion it is possible to understand how musicality comes from
the appropriation of possible influences of the musical work itself. Also as a result, there are
no performances – but relations between performances which are antithetically appropriated.
A critical response to a performance can only be another performance. In response to one
aspect of the theory discussed in this paper, the text extends to a realization that tradition
itself should be developed or created by the performer, featuring a hermeneutic process
required and present in the act of performance.
* Realiza o doutorado em Práticas Interpretativas na UFRGS, onde é orientado pela Profa. Dra. Any Raquel
Carvalho e pela Profa. Dra. Cristina Gerling. Tem realizado um estágio de doutoramento, como bolsista da
CAPES, na Universidade de Aveiro (Portugal) sob supervisão da Profa. Dra. Helena Marinho.
** Any Raquel Carvalho, organista, doutora em música pela University of Georgia (USA) com bolsa CAPES, é
docente e orientadora de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Música e no Departamento
de Música do Instituto de Arte da UFRGS. Membro fundadora da Associação dos Organistas do Rio Grande do
Sul e da Associação Brasileira de Organistas, tendo atuado em ambas como presidente. Atua como organista e
conferencista no Brasil e no exterior. Como pesquisadora do CNPq desenvolve trabalhos nas áreas de
contraponto e fuga (dois livros publicados) e de música brasileira para órgão. É membro do Conselho Editorial da
Em Pauta (PPG-MUS/UFRGS).
Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 255
1
Harold Bloom (1930), crítico literário. Formou-se em Cornell (1951), Ph.D. em Yale (1955). É professor dessa
universidade desde então. Autor de ensaios que renovaram os estudos poético-literários, o mais conhecido é A
angústia da influência (1973). Disponível em: <www.revista.agulha.nom.br/hbloom.html>. Acesso em: 3 mar. 2011.
2
A primeira das razões revisionárias desenvolvidas por Harold Bloom em A angústia da influência (2002).
3
A teoria da influência é demarcada na tetralogia da influência de Bloom, que é composta pelos seguintes títulos:
A angústia da influência (2002/1973); Um mapa da desleitura (2003); Cabala e Crítica (1991) e Poesia e
repressão (1994).
Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 256
Harold Bloom [...] reprova [uma] adoração do deus Linguagem, que não vale mais que o deus
Imaginação. Esse crítico vê a história da crítica e da poesia como a de uma luta perpétua, um “âgon”,
como se cada escritor estivesse numa relação edipiana com os seus predecessores, como Platão com
Homero (TADIÉ, 1992, p. 312-313).
Paul de Man afirma que A angústia da influência, de Bloom (1973, 2002), não é uma
teoria da poesia, mas uma teoria da imaginação literária (MAN, 1983). Renza (1995, p. 199),
por sua vez, argumenta que aquela teoria busca claramente recuperar nada menos que o
pathos humano. O que é necessário ressaltar, em relação à teoria da influência de Bloom, é
que, como afirma Nestrovski (1992, p. 203), não se trata de uma teoria da alusão ou de
busca de fontes: o que interessa é o que o poeta consegue deixar de fora e não aquilo que
incorporou do precursor.
4
Desconstrução é o termo proposto pelo filósofo francês Jacques Derrida nos anos sessenta para um processo
de análise crítico-filosófica que tem como objetivo imediato a crítica da metafísica ocidental e da sua tendência
para o que tal tradição havia imposto como estável. Do ponto de vista da análise textual, a desconstrução revela
as incompatibilidades e ambiguidades retóricas, demonstrando que é o próprio texto que as assimila e dissimula
[disfarça]. (O termo deve traduzir o original francês déconstruction, evitando a tradução por desconstrucionismo,
porque não representa uma proposta de escola de pensamento, movimento ou estética literária em particular;
Marca-se, assim, a diferença com o movimento a que se chama desconstrutivismo na arquitetura
contemporânea). Tornou-se sinônimo de leitura cerrada de um texto (literário, filosófico, psicanalítico, linguístico
ou antropológico). A desconstrução começa por ser uma crítica do estruturalismo, tornada pública numa célebre
conferência de Derrida na Universidade de Johns Hopkins, nos Estados Unidos, em 1967, com o título La
structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences humaines. Se o estruturalismo pretendia construir um
sistema lógico de relações que governaria todos os elementos de um texto, a desconstrução pretendia ser uma
crítica do estruturalismo, que não passava apenas de um dos episódios da tradição metafísica ocidental que
merecia ser revisto. Partindo do método especulativo de Nietzsche, da fenomenologia de Husserl e da ontologia
de Heidegger, Derrida apresenta a tese inicialmente nas obras A escritura e a diferença (1967) e Gramatologia
(1967). Tem rejeitado, desde então, qualquer definição estável ou dicionarizável para aquilo que se entende por
desconstrução. A própria compreensão da desconstrução como método crítico ou modelo de análise textual
nunca foi reconhecida por Derrida. A divulgação das ideias de Derrida nas Universidades de Johns Hopkins e de
Yale, nos Estados Unidos, onde o filósofo francês conferenciou, contribuiu para o alargamento da discussão aos
estudos literários, impondo-se internacionalmente como um método de análise textual, apesar das reservas de
Derrida. A obra coletiva Deconstruction and Criticism (1979) assegurou referência que faltava para divulgação
internacional das ideias da desconstrução. Inclui ensaios programáticos de Jacques Derrida, J. Hillis Miller,
Harold Bloom e Geoffrey Hartman. Disponível em: <www.fcsh.unl.pt/invest/edtl/verbetes/D/desconstrucao.htm>.
Acesso em: 12 nov. 2010.
Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 257
5
Clinamen, Tessera, Kenosis, Daemonização, Askesis, Apophrades (BLOOM, 2002, p. 64-65).
Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 258
Ninguém fica contente ao ser influenciado: os poetas não o suportam, os críticos ficam nervosos com
isso, e todos nós, enquanto estudiosos, sentimos forçosamente que estamos sendo ou que já fomos
influenciados em excesso. Ser influenciado é ser ensinado (BLOOM, 1991, p. 112-113).
performance. Tornar-se-ia o próprio valor da prática musical em si, o seu próprio contexto, o
seu próprio meio, a sua própria origem e a justificativa para a criação da sua própria
tradição.
De tal forma que: Prioridade + Autoridade = Propriedade.
Aquela aparente intuição é sugerida, mesmo a partir da teoria da influência, como
invocação de significado, uma encarnação de caráter poético: “Não sabemos de tempo
algum em que não fomos como agora” (BLOOM, p. 69), ou seja: tudo o que se faz se faz de
si para si mesmo e agora.
A automorte é consciente, passando a ser o próprio momento de criação: a busca
pela sua própria origem no momento crucial em que influência alguma é denotada, muito
menos percebida, pois esse 'agora' é a própria realização: 'Não há de ser se não for!'. Trata-
se de um heroísmo que fica na fronteira do solipsismo e, nesse isolamento, “seu difícil
equilíbrio […] é manter uma posição bem ali, onde com sua própria presença diz: O que eu
vejo e ouço vem apenas de mim mesmo. […] Nada tenho além do eu sou” (BLOOM, 2002,
p. 72). O solipsismo remete a uma sentença: “não estou em processo porque eu sou”. Essa
reflexão, tomada como ponto de partida, permite que se atinjam os mais baixos de todos os
níveis poéticos e se criem os seus próprios meios, sua apropriação: a consciência vem a ser
impactante e causará impacto em toda a criação. Se isso for classificado como retórica, fica
o questionamento: por que não? Aquele momento de “entrega”, pertinente à performance,
não constitui um ato de retórica?
Se o ato de criação performática em música é um ato de renovação suplementar em
que “não [saber] de tempo algum em que não [se é] como agora” e “o passado estar sempre
presente no presente” tornam-se oriundos de um espasmo de autodestruição caracterizando
a própria performance musical como um ato abrangente e profundamente imaginativo. O
que há de hermenêutico nessa construção? Ora, remete-se a um presente que tenha sido
presentificado em atos anteriores a ele mesmo. Em outras palavras, um passado camuflado
por uma metafísica de preparação e mesmo de construção.
Em música pode existir uma fronteira entre o preparo individual do performer, os
limites do texto do compositor e a novidade criativa de cada momento como paradoxos a
serem suplantados em si mesmos. Por exemplo, se um texto é estudado previamente não
deverá haver surpresas no seu decorrer declamatório. Porém, natural a toda performance,
uma aparente espontaneidade é requerida. “Não sei de tempo algum em que eu não fosse
como agora” passa a cumprir a função de trazer o conhecimento do passado imediatamente
para o presente, o passado necessitando do presente, revivido paradoxalmente num
momento de valor único. Tal pragmatismo, partidário da dialética bloomiana, permite um
enlace perspicaz, carregado de um certo humanismo. Humanismo que perdeu sua inocência
em termos de desconstrução, tornou-se condição de comunicabilidade.
Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 260
Centrado sobre o estudo da força, do poder, da vontade, do romance familiar, da agressão, da culpa e
da angústia, este é um humanismo em seus últimos limites, aguilhoado pela promessa de
desmistificação, pela tentativa de não cerrar os olhos ao princípio da realidade (NESTROVSKI, 1996, p.
114).
Ao mesmo tempo que ninguém fala ou falou uma linguagem lavrada por seus
precursores – força da tradição – a grande ansiedade artística precisa ver dentro de si,
encontrando situações em que não há objetos fora de si. Isso é um paradoxo à condição da
tradição: “quando se fala uma língua, sabe-se muita coisa que jamais se aprendeu”
(BLOOM, 2002, p. 75). Contudo, para Bloom, a linguagem não deve ser exaltada como
prioridade, mas concebida como um meio “sempre envelhecido pelas sombras da
anterioridade” (NESTROVSKI, 1996, p. 113). Assim, a própria leitura do texto musical, a
leitura da partitura não seria condição de fidelidade, ou manutenção de uma tradição para a
performance, visto que tal preocupação caracteriza um aspecto de linguagem em música,
mas a busca pela comunicabilidade de um sentido em particular seria a força denotativa
mais coerente e consistente num criar apropriado artístico.
O ato reflexivo, portanto, ensina a linguagem natural dos artistas, aquela que não foi
aprendida por eles: voltar a si, à sua própria produção, seu próprio momento, sua prática,
suas performances. Procura, inclusive, mostrar o processo em que aquela linguagem não
aprendida se maturou – maturação angustiante, não percebida pela audiência. Todo
discurso musical é delineado por meio de gestos musicais; e boa parte da musicalidade
percebida em determinadas interpretações é conseguida por meio de uma condução gestual
que basicamente não é aprendida, apenas percebida ou idealizada (MUÑOZ, 2007), pois
vem a tornar-se, como exposto, natural do gênero humano. Logo, muito da linguagem viva,
renovada e natural da música não se aprend: apenas se percebe e se realiza.
Com toda a reflexão elaborada acerca do ato de performance, influência apropriada
da tradição envolvida e construída sobre e para si mesmo, apresenta-se a questão
desdobrada: Como se encarna o caráter poético nesse ato? Como se torna
verdadeiramente artista? Essas perguntas, apesar de possuírem uma gama retórica natural,
estão contextualizadas. E assim, o contexto parece ser a chave para esse entendimento,
quer de tradição, influência, como de performance e até mesmo de reflexão.
A busca de contextualização histórica faz da obra de arte um documento, um
exemplo num processo e, se a história da arte pode, de um lado, detectar influências, não
pode, de outro, ouvir a angústia que as determina (MOLINA, 2003, p. 26). Para atingir
concretamente o artístico em uma exposição artístico-musical – isto é, numa performance
musical – é possível considerar uma relação com a tradição constituída em termos de
natureza – mesmo com a habilidade e o domínio técnico; existência em si – implicações
circunstanciais, algo a mais do que uma lembrança do ato realizado, algo como uma
Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 261
REFERÊNCIAS
BLOOM, Harold. A angústia da influência – uma teoria da poesia. Trad.: Marcos Santarrita.
2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
______. Um mapa da desleitura. Trad.: Thelma Médici Nóbrega. 2. ed. Rio de Janeiro:
Imago, 2003.
______. Cabala e crítica. Trad.: Monique Balbuena. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
______. Poesia e repressão – o revisionismo de Blake a Stevens. Trad.: Cillu Maia. Rio de
Janeiro: Imago, 1994.
______. The Breaking of Form. In: Descontruction and Criticism. New York: Seabury Press,
1979. p. 1-38.
LENTRICCHIA, Frank. After the New Criticism. Chicago: The University of Chicago Press,
1983.
LIMA, Sonia A. O virtual e o real na interpretação musical. In: LIMA, Sonia A. Performance e
interpretação musical: uma prática interdisciplinar. São Paulo: Música, 2006.
MAN, Paul de. Review of Harold Bloom's Axiety of Influence. In: ______. Blindness and
Insight: essays in the rhetoric of contemporary Criticism. 2. ed. Padstow: Methuen, 1983. p.
267-276.
MUÑOZ, Elena E. When gesture sounds: bodily significance in musical performance. In:
International Symposium on Performance Science (2007). Disponível em:
<www.rcm.ac.uk/cache/fl0020170.pdf>. Acesso em: 3 mar. 2011.
NESTROVSKI, Arthur R. Influência. In: ______. Ironias da modernidade. São Paulo: Ática,
1996. p. 100-118.
______. Influência. In: Jobim, José Luiz (org.). Palavras da crítica: tendências e conceitos no
estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 263
TADIÉ, Jean-Yves. A crítica Literária no século XX. São Paulo: Bertrand Brasil, 1992.