Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Artigo
Adolescência e ato infracional: por que os adolescentes
se submetem à criminalidade?
Débora Ferreira Bossaa*
Andréa Maris Campos Guerrab
Universidade do Estado de Minas Gerais, Ituiutaba, MG, Brasil
a
b
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
Resumo: Este estudo contribui com a tessitura de uma análise das relações sociais e das formas políticas à luz
da psicanálise, e propõe reflexões sobre o desamparo e modalidades de subjetivação de adolescentes em risco
de envolvimento com a criminalidade. O estudo foi desenvolvido a partir de escuta clínica de adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa e teve como objetivo investigar a inserção no laço social pela via do ato
infracional. Para isso, foram resgatadas expressões produzidas pelos adolescentes e analisadas a partir de três
dimensões: desamparo, pacto com o grupo e violência. Concluiu-se que modalidades de sujeição e exclusão social,
nos contextos culturais colonizados, produzem efeitos significativos na subjetividade dos adolescentes, sendo o
ato infracional uma possível via de solução para o desamparo, uma inserção no laço social e uma modalidade
de identificação.
http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e200188
Débora Ferreira Bossa& Andréa Maris Campos Guerra
2
Os adolescentes em risco de envolvimento com sujeição criminal (Misse, 2010). A violência simbólica,
a criminalidade compõem, assim, uma parcela social encarnada na linguagem e suas formas, impõe um
excluída e que experimenta um panorama de fracassos das universo de sentido que naturaliza relações de dominação
políticas públicas. Nos espaços de privação de liberdade, e de desigualdade por meio da culpabilização, racialização
os adolescentes são submetidos a situações de violências e individualização da responsabilidade do criminoso.
e negligências (Gurski, 2017), são privados de fala, A medida socioeducativa em questão – a privativa
de vontades, de singularidade e identidade (Bossa & de liberdade – priva o adolescente de circular pelo espaço
Guerra, 2019) e as constantes denúncias que chegam urbano e, por isso mesmo, desconsidera todas as demais
ao Ministério Público sobre as violências sofridas no privações que o Estado e suas políticas públicas exerceram
interior das unidades socioeducativas (Whitaker, 2010) sobre ele ao longo de sua trajetória de vida. Expressões
revelam que o Estado também faz valer sua posição de resgatadas do atendimento a adolescentes privados de
exercício da violência contra os corpos (Derrida, 2007), liberdade, como “estou no crime porque não tenho nada a
provocando efeitos em suas subjetividades. As instituições perder” e “o crime precisa de gente como eu, abandonado”,
socioeducativas são, nesse sentido, construções sociais dizem respeito ao lugar de exclusão que esses sujeitos já
voltadas ao adolescente autor de ato infracional cuja ocupam e seguem ocupando quando são apartados da
finalidade é reparar o dano e produzir a responsabilização sociedade sob a égide da socioeducação e o intento de ser
pelo ato e pelas suas consequências sociais. No entanto, educado para a cidadania, como prescreve a lei no seu ideal
a reincidência infracional marca o fracasso da medida jurídico. Na prática, entretanto, a medida socioeducativa
socioeducativa, possivelmente porque, em seu trato, funciona como modalidade de proteção da sociedade face
não considera a singularidade do adolescente ocupante do ao adolescente infrator, e não como forma de proteger o
espaço de privação de liberdade, tampouco a adolescência adolescente dos processos de exclusão que sofreu devido
em questão ou, ainda, o contexto determinante de à necropolítica, ao preconceito e à divisão desigual de
sua exclusão. riquezas e de poder na organização social, somados ao
Foucault (1987) identificou que as instituições não acesso às políticas públicas (Batista, 2003).
de privação de liberdade se fundamentaram a partir de Agamben (2002) denominou por vida nua aquela
fatores coercitivos e dogmatizadores que submetem os dos corpos passíveis de sofrerem a violência do Estado.
sujeitos ao exílio e a estruturas repressivas e funcionam A vida nua é a vida passível de aniquilação pela força da
como um sistema normalizador da punição. Na transição sociedade e da governabilidade da vida. Agamben (2002)
entre o suplício às prisões, estas se configuraram como o também reconhece que o regime contemporâneo exerce
espaço em que a punição se estruturou e o poder se tornou um poder soberano sobre a vida que, travestido em sua
algo produtivo e produtor de normas. A reincidência defesa, acaba por reduzi-la à sua modalidade biológica.
indica a invalidade de seus objetivos quanto à reeducação Assim, supomos que a estratégia política da sociedade
ou à reflexão com vistas à mudança de posição subjetiva contemporânea se baseia nas modalidades de gozo e
e/ou política (Foucault, 1987). Além disso, devemos submissão do sujeito em seu campo libidinal, de forma que,
considerar que as insistentes violências ocorridas nesses a partir dessa contribuição, podemos compreender
espaços evidenciam a impossibilidade de conter o avanço que o sujeito resiste em se submeter, encontrando a
da violência e o desejo de morte aplicado a esses jovens, criminalidade, muitas vezes, como via escapatória à
visto que, no Brasil, termos um índice 30 vezes maior submissão e aniquilação social. Não pretendemos aqui
que os países europeus quanto às mortes por homicídio defender o crime como solução à situação de violência e
dessa população (Guerra, 2020). violação permanentes, mesmo porque, como ledo engano
Nesse sentido, entendemos que, se podemos individual, essa solução individual e identificatória
falar de uma escolha – ainda que forçada (Bemfica & conduz os adolescentes, como os dados estatísticos
Guerra, 2012) – quanto a se inserir na criminalidade, ela é nos evidenciam, à morte concreta (Guerra, Soares,
apenas uma etapa que compõe o longo percurso de privações Pinheiro, & Lima, 2012). Realiza-se, nessa decisão
e violações que culminam, nesse quadro, nos três C’s: subjetiva, movida por um empuxo-à-morte, sua dupla
cadeia, caixão e cadeira de rodas. Consideramos, também, realização: a morte simbólica, de um corpo eliminável
a perspectiva discursiva e estrutural que compõem juridicamente e não passível de luto, e a morte concreta,
aquilo que Zizek (2014) considerou como a violência de um corpo dispensado.
simbólica social que se manifesta de forma mais pura A partir da perspectiva decolonial, devemos
como o seu contrário, como espontaneidade do meio. relembrar que a dimensão segregatória quilombola
A violência simbólica social se mostra disfarçada de se difere da dimensão do crime, pois a primeira está
tolerância, seja em suas versões de racismo, religião e relacionada à criação de formas de resistência, de novas
efeitos da exploração capitalista ou na crônica e estrutural formas de associação e laço, de cosmologia, de um sistema
miséria da população. Tais condições não isentam a de solidariedades e de crenças, sendo fundamentada
responsabilidade do sujeito adolescente sobre os seus atos, a partir de um saber tradicional que funda uma nova
mas implica a responsabilidade social na reprodução condição de participação política (Santos, 2018).
retroalimentadora da criminalidade na constituição da Já no crime, o sujeito realiza seu destino neoliberal de
Abstract: This study contributes with weaving an analysis of the social relations and the political forms in the light of
psychoanalysis and proposes reflections on the helplessness and subjectivity modalities of adolescents at risk of involvement
with crime. The study was developed from the clinical listening of adolescents in a socio-educational measure and aimed to
investigate the insertion in the social bond via the infraction. To that end, the expressions produced by the adolescents were
recovered and analyzed from three dimensions: helplessness, pact with the group, and violence. In conclusion, the modalities of
subjection and social exclusion, in the colonized cultural contexts, produce significant effects on the subjectivity of adolescents,
with the crime being a possible solution to helplessness, as well as an insertion in the social bond, and an identification modality.
Résumé : Cette étude contribue au tissage d’une analyse des relations sociales et des formes politiques à la lumière de la
psychanalyse et propose des réflexions sur les modalités d’impuissance et de subjectivité des adolescents à risque d’implication
dans la criminalité. L’étude a été développée à partir de l’écoute clinique d’adolescents dans le respect d’une mesure socio-
éducative et visait à enquêter sur l’insertion dans le lien social à travers l’infraction. Pour cela, des expressions produites par les
adolescents ont été récupérées et analysées à partir de trois dimensions : l’impuissance, le pacte avec le groupe et la violence.
Il a été conclu que les modalités d’assujettissement et d’exclusion sociale, dans les contextes culturels colonisés, produisent des
Resumen: Este estudio contribuye con un análisis de las relaciones sociales y formas políticas a la luz del psicoanálisis, además
de proponer reflexiones sobre el desamparo y las modalidades de subjetividad de los adolescentes en riesgo de involucrarse en
la criminalidad. A partir de la escucha clínica de adolescentes en cumplimiento de una medida socioeducativa, este estudio tuvo
como objetivo investigar la inserción en el vínculo social a través de la infracción. Así, se tomaron los relatos de los adolescentes,
para analizarlos bajo tres dimensiones: desamparo, pacto con el grupo y violencia. Se concluyó que las modalidades de
sometimiento y exclusión social, en los contextos culturales colonizados, producen efectos significativos sobre la subjetividad
de los adolescentes, y es la infracción un medio de búsqueda de una posible solución al desamparo, una inserción en el vínculo
social y una modalidad de identificación.
Referências
Agamben, G. (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a Derrida, J. (2007). Força da lei: o “fundamento místico da
vida nua (Vol. 1). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG. autoridade”. São Paulo, SP: Martins Fontes.
Batista, V. M. (2003). Difíceis ganhos fáceis: drogas e Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão.
juventude pobre no Rio de Janeiro. (2a. ed.). Rio de Petrópolis, RJ: Vozes.
Janeiro, RJ: Revan. Freud, S. (2006). Psicologia de grupo e análise do ego.
Bemfica, A. G., & Guerra, A. M. C. (2012). O traumático In Edição standard brasileira das obras psicológicas
na infância e a passagem adolescente: cenas de uma completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 43-90). Rio de
infração. Revista aSEPHallus, 7(14), 106-119. Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1921)
Betts, J. (2014). Desamparo e vulnerabilidades no laço Freud, S. (2010). Mal-estar na civilização. In Sigmund
social: a função do psicanalista. Revista da Associação Freud (1930-1936): obras completas (P. C. Souza, trad.,
Psicanalítica de Porto Alegre, (45-46), 9-19. Vol. 18, pp. 9-89). São Paulo, SP: Companhia das Letras.
Biondi, K. (2014). Etnografia no movimento: território, (Trabalho original publicado em 1930)
hierarquia e lei no PCC (Tese de doutorado, Universidade Grosfoguel, R. (2016). A estrutura do conhecimento
Federal de São Carlos, São Carlos). Recuperado de nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo
https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/246 epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do
Birman, J. (2017). Arquivos do mal-estar e resistência longo século XVI. Sociedade e Estado, 31(1), 25-49.
(2a. ed.). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. doi: 10.1590/S0102-69922016000100003
Bossa, D. F., & Guerra, A. M. C. (2019). Ressonâncias da Guerra, A. M. C. (2012). Crítica de uma morte anunciada.
escuta psicanalítica com adolescentes em privação In C. Garcia, Interfaces (pp. 239-251). Belo Horizonte,
de liberdade. Estilos da Clínica, 24(3), 497-509. doi: MG: Ophicina de Arte & Prosa.
10.11606/issn.1981-1624.v24i3p497-509 Guerra, A. M. C., Soares, C. A. N., Pinheiro, M. C. M., &
Butler, J. (2019). Vida precária: os poderes do luto e da Lima, N. L. (2012). Violência urbana, criminalidade e
violência. Belo Horizonte, MG: Autêntica. tráfico de drogas: uma discussão psicanalítica acerca da
Cavalcanti, C. A. T., & Poli, M. C. (2015). O laço social e o adolescência. Psicologia em Revista, 18(2), 247-263.
mal-estar face ao desamparo. Interthesis, 12(2), 55-73. doi: 10.5752/P.1678-9563.2012v18n2p247
Ceccarelli, P. R. (2009). Laço social: uma ilusão frente ao Guerra, A. M. C., Cunha, C. F., Costa, M. H., & Silva, T. L.
desamparo. Revista Reverso, 31(58), 33-42. (2014). Risco e sinthome: a psicanálise no centro
Conselho Nacional de Justiça. (2019). Reentradas e socioeducativo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 30(20),
reinterações infracionais: um olhar sobre os sistemas 171-177. doi: 10.1590/S0102-37722014000200006
socioeducativo e prisional brasileiros. Brasília, DF: CNJ. Guerra, A. M. C. (2020). Periferias e subjetividades políticas
De Logivière, J. M. (1987). Une introduction au noeud na perspectiva psicanalítica. Novos Estudos, 39(1), 39-56.
borroméen. In Recueil-bulletin du Secrétariat de l’École doi: 10.25091/S01013300202000010002
de la Cause Freudienne à Angers (Vol. 3, pp. 96-100). Guimarães, V. C., & Celes, L. A. M. (2007). O psíquico e
Angers, Pays de la Loire : ECF. o social numa perspectiva metapsicológica: o conceito