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Linha de pesquisa:
Arte, Memória e Narrativa
CURITIBA – PR
2020
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................03
2.4 - Dos crimes contra a vida; prostituição por morte voluntária: o assassinato de si
mesmo..............................................................................................................................80
4 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................130
5- FONTES...................................................................................................................133
6- GLOSSÁRIO...........................................................................................................134
Introdução
Como um estudo que tem como base uma “matriz” presente no âmbito da História
das mulheres, em especial sobre a prostituição, e consequentemente, o tráfico de mulheres
no limiar do século XX no Brasil, trazer essas discussões para uma cidade como a Curitiba
dos anos de 1930, requer uma série de analises e discussões que foram sendo incorporadas
ao longo deste trabalho. Para sustentar essa discussão, os estudos de gênero, que surgiram
em meados dos anos 1980, a partir de feministas americanas que queriam compreender e
intervir na qualidade fundamentalmente social das diferenças baseadas na sexualidade.
Com o uso desta terminologia, o que se pretendia, inicialmente, era reforçar a rejeição do
determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”.
Desta forma, os estudos de gênero sublinhavam também o aspecto relacional das
definições normativas de feminilidade. Para essas autoras, o fato de a produção dos
estudos feministas estar centrada nas mulheres, estreia e isoladamente, comprometia suas
possibilidades analíticas. A proposta de uso do termo “gênero” permitiria, segundo elas,
introduzir uma noção relacional no vocabulário analítico e, ao mesmo tempo, reconhecer
a amplitude dos papeis sexuais e do simbolismo sexual nas sociedades, evidenciando suas
repercussões sobre as mulheres e os homens. Um breve balanço sobre a contribuição dos
estudos de gênero pode ser resumido na transformação dos paradigmas através dos quais
as mulheres eram concebidas nas diversas disciplinas, o que confere visibilidade tanto a
vivência pessoal e subjetiva, como também as atividades públicas e políticas no que
concerne a essas mulheres.
1
SCOTT, Joan. 2008.
2
SCOTT, Joan. Ibidem.
3
FOUCAULT, Michel, 2005.
Ao trabalharmos como substantivo feminino de “mulheres”, é possível identificar
que o termo foi, e ainda continua sendo, empregado com um sentido pejorativo, associada
a histerismo, mulher da vida, mulher perigosa, e de certa forma, com adjetivos carnais.
São poucas as palavras relacionadas à mulher que não usam essas conotações. O próprio
verbete de “mulher” já é apresentado no dicionário de forma especial. Segundo o
consagrado Aurélio Buarque de Holanda, mulher é: “1. pessoa do sexo feminino, após a
puberdade; 2. esposa”. Em seguida a definição, vem as composições usualmente feitas
com a palavra “à toa”, “da comédia”, “da rua”, “da vida”, “da zona”, “da rótula”, do
“fado”, “errada”, “perdida’, dentre outras, todas sinônimos de meretriz. Na mera
observação da linguagem, pode ser revelada muito mais sobre a desigualdade e assimetria
na relação homem/mulher do que todas as histórias de horror e violência que se possam
compilar. Sendo assim, há uma série de evidencias de que a língua portuguesa não é um
código neutro na designação do mundo masculino e feminino. No seu uso cotidiano, a
mulher é inferiorizada, discriminada, tornando-a invisível, desqualificada para o campo
de trabalho e é inserida nas premissas de uma cultura centrada no domínio masculino.
4
FOUCAULT, M. História da sexualidade. 2005.
autoridades administrativas5. Mas ele também envolve a vigilância no sentido de
supervisão direta. Nesse sentido, prisões e asilos dividem algumas das características
generalizadas das organizações modernas, incluindo o local de trabalho capitalista, além
de uma variedade de outras organizações. Enquanto o pensador francês se concentra nos
mecanismos usados pelo Estado para impor sua normatização, tanto na esfera pública
quanto na vida privada, com o confinamento em larga escala dos doentes, loucos e
criminosos, a relação do indivíduo com a sociedade e o local de trabalho é uma das
grandes trincheiras que marcam as sociedades modernas. Sendo assim, todo sujeito ou
coletivo de indivíduos que se esbarram com essas normatividades, estiveram passíveis de
tornar-se escopo para discursos coercitivos e métodos repressivos.
Para delinear essa narrativa, é preciso recorrer a outro ponto central das
conjunturas cruciais para se pensar uma escrita sobre a prostituição feminina. Nessa
estratégia global, as instituições penal e médica se destacaram, fundadas que eram nas
práticas de polícia que realizava o controle social da população urbana. A criminalização
e a medicalização das camadas mais pobres estavam no front primordial dessas práticas
coercitivas. Isso porque a degeneração era o denominador comum que permeava os
discursos médico e penal. Foi assim que o biopoder, mencionado por Foucault 6, foi
estabelecido nas sociedades contemporâneas, constituindo uma política simultaneamente
eugênica e racial. Foi isso que possibilitou o encontro fatal entre os discursos jurídico,
psiquiátrico e de certa maneira, o discurso jornalístico nas representações desses sujeitos,
constituindo a criminologia. Assim, a psiquiatrização foi a contrapartida da
criminalização; ambas tiveram na polícia o seu ponto de apoio para o rastreamento dos
ruídos existentes no campo social, realizando o esquadrinhamento meticuloso das
populações urbanas, polarizadas que era entre os polos do normal e do anormal.
5
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2005.
6
Foucault, M. Segurança, território, população: Curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo:
Martins Fontes. 2008.
7
EDWARD, Shorter. A History of Women's Bodies. Pelican Book. 1984.
mulheres, o século XX representou um marco importante na destruição de mitos do século
XIX ainda circulantes até a segunda metade do século XX. O autor estabelece
comparações entre a longevidade feminina e masculina, explicando a nítida inferioridade
das mulheres causada pelas condições de vida e saúde que lhes eram impostas nos séculos
anteriores. Percorre também as doenças relativas à sexualidade subversiva, usualmente
associada à prostituição, e as repercussões sempre negativas no imaginário social,
fundamentando a ideia de que residia no corpo social a raiz explicativa para a opressão,
corroborada pelo tratamento social que foi reservado as mulheres marginalizadas e pelo
interesse que a ciência teve em fazer progressos nesse campo mítico e difuso
Dessa forma, não deixa de ser significativo que os primeiros passos para o
florescer de uma escrita sobre prostituição feminina em uma cidade em que os sintomas
de uma cidade metropolitana começavam a ganhar forma, estivesse envolto de fábulas e
mitos que rodeavam o imaginário social em torno do discurso da sexualidade. Mais do
que isso, esses discursos sobre o fenômeno da prostituição e do lenocínio, ficou
circunscrito em meio às barreiras que foram capazes de projetar uma retórica do gozo e
das práticas alternativas que ligavam o intimo erotismo social, com o desenvolvimento
da criminalidade por meio da linguagem científica. Nesse sentido, pode-se dizer que tanto
na literatura, quanto nas ciências médicas e policiais, a noção do corpo, do prazer e da
sexualidade se tornaram elementos centrais no escopo teorias e discussões que buscavam
dar “sentido” a esses fenômenos urbanos, que resultavam em práticas e comportamentos
alternativos em meio a um projeto de sociedade moderna e “civilizada”.
Nesse começo de século, com todos os valores virados e revirados, sem dúvida,
é interessante pegar um fio da história e ir seguindo até onde o folego der. Sendo assim,
a principal hipótese aventada pelo presente estudo busca analisar as formas de “comércio
imoral”, que estiveram circunscritas a um enfileirado conjunto de comportamentos
desviantes que tradicionalmente, estiveram atrelados ao desenvolvimento industrial dos
grandes e pequenos centros urbanos. O envolvimento das camadas mais populares com
“vícios urbanos”, parecia absorver os olhares tênues das práticas policiais e do discurso
jornalístico, enfatizando a ciclo inexorável do alcoolismo, do consumo e comercialização
do ópio e do lenocínio, que, em conjunto, completavam uma parte gráfica do que se refere
ao lado obscuro das cidades. Nesse sentido, compreender o fenômeno da vivencia destes
seres humanos, é desvelá-lo através de suas práticas e de seus movimentos, buscando
analisar, por mais tortuosa e paradoxal que seja, a construção da representação da mulher
prostituta em sociedade, definida através do seu contexto social e moral.
8
ADLER, Laure. Os bordeis franceses, 1990.
Brancas”, germinado em bas-fond daquela metrópole, onde se concentravam colônias
estrangeiras, e que aos poucos foram se expandindo para outros centros urbanos, como
Rio de Janeiro, São Paulo, Montevidéu, New York e em até mesmo capitais em processo
de expansão, como Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre.
9
FREY, Julia. Toulouse-Lautrec. Uma Vida, 1985.
relevando ainda, outros elementos que pregavam sobre os traços da “natureza humana”,
sendo classificadas, geralmente, nas rubricas da histeria e da loucura moral. Dessa forma,
diferentes saberes formularam no século XIX, discursos que se baseavam na antropologia
criminal e nas ciências médicas, apresentando possíveis diagnósticos invariavelmente
concisos, sempre em direção à escala da degeneração física e moral, sustentados por
categorias próximas à anormalidade.
Nos últimos anos temos visto aparecer um número avultado de escritas de história
que mostram inúmeros caminhos para se conhecer o passado através de narrativas, melhor
dizendo, para conhecer o ser humano, seja qual for a época em que viveu. Na esteira do
grupo dos Annales e de outros menos conhecidos, os grandes temas foram deixados de
lado em benefício de abordagens, assuntos e enfoques novos. A partir de meados dos anos
1970, começou a surgir uma série de estudos a respeito da história das camadas populares
no Brasil. Sendo assim, buscou-se analisar temas que abordam a vida dos trabalhadores
e de coletivos que não pertenciam a elite nacional de maneira mais especifica. Ou seja,
trata-se de reduzir a amplitude do objeto, que tem cada vez mais ganhado repercussão,
para aprofundar-se no conhecimento e nos estudos de categorias como a vida de
trabalhadores, a condição de trabalho em dada região, aspectos do cotidiano dos
populares, e assim por diante. Trocando em miúdes, a historiografia do crime e da
criminalidade, busca, em esforço coletivo com outras áreas que dialogam com a história,
estudando objetos que ainda não foram bem investigados como a condição de mulheres
prostitutas, das formas de violência feminina, e as formas de controle social, que
acompanham o início do desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
10
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o quotidiano dos trabalhadores cariocas na Belle
Époque. Campinas: Editora da Unicamp. 2001.
11
BRETAS, Marcos Luiz. 1997.
12
FAUSTO, Boris. 1984.
sociais indicam a direção de um novo pacto social e cumpre ressaltar que os estudos
recentes que remete a prostituição feminina, das formas de violência e de controle contra
sujeitos marginalizados, buscam acompanhar de perto esses fenômenos muitas vezes
associados ao âmbito do crime e da criminalidade.
13
Art. 4 do Código Penal de 1890.
por proxenetas internacionais, desenvolviam suas artimanhas em diferentes cidades. Em
atenção à Buenos Aires, os escritos de Albert Londres, jornalista francês que analisou
cara a cara o cotidiano das organizações Zwi-Migdal e Marchereal, além da tese
publicada pelo então delegado responsável pela formação do inquérito policial onde
investigou, além da origem da organização Zwi-Migdal, as falhas que o próprio aparato
policial do período desempenhou na tentativa de ocultar denúncias e declarações
ocorridas durante a década de 1920, em decorrência dos casos de exploração da
prostituição de mulheres desconhecidas na capital portenha.
No entanto, como toda planta que ao estreitar sobre o chão, esparra suas
sementes, o curso ascendente do capitalismo e de algumas práticas criminosas resultaram
em condutas relativamente módicas, que foram sendo, aos poucos, enraizadas na própria
cultura portenha, como a “romantização” do surgimento do Tango, ritmo característico
dos bares e bordeis de Buenos Aires16.
14
FIDANZA, Eduardo. De la regulamentacion de la prostitucion pública. Buenos Aires. 1860. Documento
facultativo da academia de Ciências Médicas de Buenos Aires, onde são apresentadas as razões pelas quais
as autoridades governamentais deveriam adequar a prostituição enquanto atividade regulamentada.
Composta por treze membros acadêmicos, esse corpo justifica em 118 páginas, explorar as necessidades de
tornar a prática da prostituição individual livre, prevista por lei. Um da das justificativas seria como
manobra para conter o avanço da sífilis e os habituais exames médicos no qual essas mulheres estariam
submetidas.
15
SCHNABEL, Raúl. História de la trata de personas em Argentina como persistenia de la esclavitud. 2013.
16
MARTIBELLO, Liliana. 2008, p. 4.
17
FERRERAS, Norberto. A formação da sociedade Argentina contemporânea. Sociedade e trabalho entre
1880 e 1920. História, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 170-181, 2006
e refinadas. Isso porque, em cidades localizadas no litoral argentino, que se tornariam
metrópoles de destaque, os entretenimentos “semioculto”, como no caso da prostituição
clandestina, do tráfico e do álcool e posteriormente, o uso da cocaína se tornaram
corriqueiros nos embates jurídico e policial, que resultou, década depois, em novas
políticas públicas contra a “imoralidade”.
Mas, antes disso, tais mudanças tardou a acontecer. Influenciado por estudiosos
da Escola de Chicago, Albert Londres foi um jornalista, escritor e investigador francês,
que dedicou uma pequena parcela de sua vida profissional a apresentar estudos com base
em problemas enfrentados pela cidade moderna e os desvios pelos quais derivavam de
seus habitantes. A Escola de Chicago, que surge no final do século XIX, concentrou uma
leva de estudos empíricos com base no sentimento de rompimento de especulações sobre
diferentes fenômenos sociais. Seus pensadores tinham a premissa de estimular um método
científico com base na investigação prática, consagrando a teorização no estudo do
comportamento social com base na premissa da observação delineada de sujeitos e
práticas alternativas.
Mas, foi somente em 1927, que, Albert Londres, ousou ao investigar o que outros
jornais jamais teriam ousado naquele período. Sua ambição, o levou a penetrar em um
submundo submerso de práticas criminosas, onde relatou, em seus escritos, o
constrangimento, brutalidade e horror ao vivenciar e acompanhar o cotidiano de mulheres
vítimas do tráfico de escravas brancas. Em sua obra Les Chemin de Buenos Aires, o autor
descreveu, como espécie de diário, sua experiência em meio ao cotidiano de agentes
proxenetas criminosos que atuavam nos portos de Buenos Aires e Rosário, aliciando e
comercializando mulheres de origem “desconhecida”, para os principais bordeis não
apenas da Argentina, mas de toda a América do Sul.
18
MELHEM, P.M. Cidade grande, mundo de estranhos: escola de Chicago e comunidades guarda-roupas.
2012.
19
JORNAL DO BRASIL. Quixotismo de Albert Londres. 23/06/1932.
20
Ibidem
Em suas narrativas, foi possível compreender que o objetivo dessas
investigações internacionais, não se baseava apenas na produção de uma análise
discursiva sobre tais práticas, como o mesmo descreve ao relatar a degradação dos
hospitais psiquiátricos na França, em 192521. A reflexão do autor, embora jornalística, foi
sendo construída através de uma estratégia discursiva com base em seu fichário de campo,
onde o autor, primeiro se baseava em vestígios e códigos apresentados pelo próprio
cotidiano social, dando sentindo, posteriormente, as teorias sobre os fenômenos que
condicionavam tais práticas hediondas, como foi com tráfico das escravas brancas na
historiografia argentina.
Pensadores deste período, como Erza Pak e Watson Burges estiveram pensando
o método sociológico que foi utilizado por Londres, ao decorrer de sua carreira. Esses
pensadores entendiam que, em um cenário de grandes migrações e mobilidade social,
haveria uma certa ruptura dos dispositivos que instauravam a ordem social do espaço
urbano. Essas aglomerações, bem como aconteceu no contexto do tráfico de mulheres na
Argentina, se estende a um cenário de novos modos de vidas e comportamentos distintos
oriundos de grupos étnicos, nascendo o conflito que gera a desordem, o que possibilitou
o relaxamento de freios morais, bem como aumento da criminalidade 22.
21
A NOITE. O mais sensacional “repórter” dos nossos dias. 07/06/1932.
22
BREUNING, Alex Erno. Sociologia do crime e da violência. 2008.
fundamental a ser debatida, é que a obra de Londres, jamais tentou dar uma justificativa
ao fenômeno das escravas brancas, mas sim, através das dramas que o espaço cotidiano
dos centros urbanos e suas redes de sociabilidade e solidariedade, possibilitam
desenvolver no interior da sociedade, organizações, cuja atividades desempenharam
problemas que lavram Londres a circunscrever uma narrativa a fins de compreender as
“máscaras” que teciam a prostituição involuntária, o tráfico de mulheres.
23
KUSHIR, Beatriz. Baile de Máscaras, 1996.
24
VINCENT, Isabel. 2006. P.39.
25
Após o término da primeira grande guerra mundial, que germinou da assinatura da rendição alemã, em
11 de novembro de 1918, na crença de que o fim da grande guerra pudesse gerar tréguas e evitar possíveis
repetições de acontecimentos semelhantes, resultando em conflitos, foi instaurada em 1919 a Liga das
Nações. Dessa forma, despertou-se na opinião pública, a necessidade de um conjunto de uma nova era das
relações pacificas entre diferentes nações. No entanto, naquele momento apenas países que estiveram
associados aos campos de batalha se propuseram a participar em apoio a Liga das Nações. O Brasil mesmo
que não tenha fornecido uma colaboração relevante, via na possibilidade de vitória, receber algum apoio
ou recompensa no futuro, contribuindo para importantes decisões no âmbito de políticas externas no
período. Segundo Eugenio Vargas (2000), havia uma certa rivalidade por parte da Argentina, que se
estendia à competição por um prestigio internacional na Europa, porque, em determinado ponto, o
desenvolvimento econômico do país se mostrava essencialmente estável, o que dava brechas para se
importar apenas contra possíveis agressões externas que afetariam a economia do país, ficando de fora do
acordo inicial da Liga das Nações
“desposado” aproximadamente, 30 mulheres em prostíbulos de cidades desconhecidas da
América do Sul.
26
O DIA. Liga das Nações procura abolir a escravidão. 20/09/1925
27
O Dia. A escravatura branca. Rio de Janeiro, 09/12/1927.
repressão e a punição para traficantes de mulheres e crianças em território de países
aliados à entidade, o que não aconteceu com a Argentina.
28
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite, 1989.
magnitude com que homens comerciantes gerenciavam atividades ilícitas, sem um
momento se quer tropeçarem por tais deslizes.
As regras da vida são extrapoladas são extrapoladas pela narrativa ordinária que
Londres percorre ao desenhar discussões sérias sem abrir mão da sensibilidade com que
vivenciou o cotidiano de mulheres e mulheres envolvidos no tráfico. A começar por Vitor,
“O Vitorioso”, onde o autor mostra que havia uma certa insatisfação da velha geração de
cafténs com os mais novos, que segundo Vitor, cáften entrevistado por Londres, os mais
velhos serviam como espécie de protetores da regeneração da mulher prostituta. Segundo
ele, porque cabia ao homem colocando-as nos trilhos, civilizando, de certa forma, as
mulheres para que pudessem ingressar e conviver na alta boemia29 dos centros urbanos,
sem se deixar levar pela pieguice.
29
LONDRES, Albert, p. 45.
30
RAGO, Margareth, Op. Cit.
31
VINCENT, Isabel. Bertha, Sophia e Rachel.
32
RAGO, Margareth. O que e taylorismo, 1988.
distintos, que na prática, desempenhavam as mesmas atividades, competindo de certa
forma, pelo monopólio que a prostituição involuntária dissolvia, através da noção
impregnada por Margareth Rago de “prostitutas-máquinas33”.
Vale ressaltar ainda, que embora essas mulheres também fossem vítimas do
tráfico, diferentemente das mulheres de origem polonesa, as franceses não eram, pelo
menos em sua grande maioria, enganadas e aliciadas por falsas promessas. Tendo em
mente que Paris era considerado, no século XIX, como um dos maiores prostíbulos a céu
aberto do mundo, muitas destas mulheres que vagavam pelos alcouces franceses para a
América do Sul por livre e espontânea vontade, pois já viviam expensas ao submundo da
prostituição em cidades como Paris e Marselha 38. Perguntado sobre como essas
33
RAGO, Margareth, 1989.
34
LONDRES, ALBERT, p. 99.
35
Idem.
36
Espécie de doença, como “sarnas noturnas”, que predominavam ao anoitecer.
37
LONDRES, Albert. P. 100.
38
Neste período, as prostituições francesas já eram internacionalmente conhecidas tanto por serem
sinônimo de beleza e elegância, mas também por representarem um importante parcela da prostituição baixa
em paris, como lembra alguns estudos de Alexandre Parent du Châtelet na primeira metade do século XIX.
Na Argentina, as prostitutas francesas que eram “recrutadas”, como aparece nos escritos de Londres, mas
franchucas39 iriam em Buenos Aires, alguém respondeu muitas vinham acompanhadas,
quase sempre de sujeitos familiarizados com o comércio de escravas brancas na
América40.
Dos bairros de Paris, para o bairro La Boca, em Buenos Aires, os dois centros
urbanos onde a prostituição tinha em comum a noção de regulamentação da prática e das
formas de “venalidade” do amor, em meio a um século de tensões e obsessões pela
erradicação do uso dos prazeres. Ainda no século XIX, uma série de leis previa, por
exemplo, que as mulheres públicas só poderiam exercer a prostituição sobre casas de
tolerância na Argentina, pois assim as autoridades médicas e policiais poderiam controlar
e vigiar esses corpos, visto que entre os pilares da regulamentação da prostituição na
capital portenha, estava o desenvolvimento de doenças venéreas, em especial a sífilis 41.
Não é de hoje, como veremos mais adiante, que inúmeros estudos no âmbito da
história do crime e da criminalidade na América Latina apresentam diversas
aproximações com o sistema francês de polícia, e, o impacto que essas políticas externas
obtiveram na adoção de medidas em prol da segurança pública de países da América do
Sul. No que concerne à prostituição de Buenos Aires, o modelo de regulamentação,
entendida como uma medida “moderna e europeia”, segundo Cristiana Schettini, foi
aprovada, em 1875, após uma série de debates e sucessivas ordenanças municipais,
fundamentado sobretudo, por argumentos higiênicos e morais do período, contra as
que na verdade foram traficadas, costumavam circular vagamente pelas ruas das grandes cidades, o que as
tornavam “corpos fáceis” de serem manipulados e enviados para outros centros urbanos familiarizados com
esse comércio da “carne branca”.
39
Prostitutas de origem francesa.
40
LONDRES, Albert. P.106.
41
SCHETTINI, Cristiana. Lavar, passar e receber visitas: debates sobre a regulamentação da prostituição e
experiências de trabalho sexual em Buenos Aires e no Rio de Janeiro, fim do século XIX. cadernos pagu
(25), julho-dezembro de 2005, pp.25-54, p. 33.
42
MENEZES, Lena Medeiros. O tráfico de brancas e os bastidores migratórios em obras de época. 2017.
ameaças que a prostituição clandestina poderia desencadear, como é o caso das doenças
sexuais.
43
GALEANO, Diego. Polícia, antropometria e datiloscopia: história transnacional dos sistemas de
identificação, do rio da Prata ao Brasil, p. 173.
Em decorrência dessa demanda por um poder policial capaz de vigiar e controlar
os corpos, foi instaurado, com o nascimento da prisão, forças de normalização, que
Foucault vai chamar, através do conceito de panóptico, de uma sociedade disciplinar 44.
Dessa forma, a disciplina, buscando vigiar e controlar os sujeitos, se pautava no exercício
de poder sobre os sujeitos, apurando e reprimindo comportamentos e expressões que
perpassavam a noção definido como “normal”. Com o nascimento da prisão, através da
disciplina, esse poder de “regulamentação” dos corpos, em certo ponto, teria ocasionado
uma certa homogeneidade sobre os indivíduos criminosos, forçando, dessa forma, a se
desprenderem dos desvios e se auto ajustando na sociedade em meio as normas e valores
estabelecidos em determinada época.
44
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 1975.
45
(FOUCAULT, 1975, pag. 174).
consequência o tráfico de mulheres, parece ter surgido como efeito que não estava, de
modo direto, previsto de antemão. Todavia, as ações solares do poder, concebidas como
funções capazes de reprimir e impor uma determinada ideologia, onde a submissão passou
a ser disfarçada em operações que a própria modelagem do corpo produzia, foi capaz de
gerar um conhecimento do indivíduo, onde o aprendizado das técnicas induzia novos
modos de comportamento e a aquisição de aptidões de poder.
A historiografia, bem como ressalta Laure Adler 46, não se baseia num discurso
de verdade controlável em todos seus aspectos. Pois afinal, todos os discursos sobre a
prostituição estão atrelados ao furor de fantasias e da forma como diferentes mecanismos
de repressão tendem a objetivá-las para um discurso desmoralizador. Neste aspecto, cabe
ao historiador vasculhar os arquivos e descobrir informações que muitas vezes passaram
por despercebidas.
46
ADLER, Laure. Os bordeis franceses.
1.4 - Trilogia do Tráfico de Escravas Brancas
47
MARTIBELLO, Liliana. Apuntes para una historia de lá prostitución em Buenos Aires (1920-1940). 2008,
p. 05.
tênues, sobre possíveis atividades ilícitas, já que agiam articulando submersos à
fiscalização policial e municipal. Seria um descuido saltar para o final trágico que o
desfecho da organização vivenciou, sem antes escrever o papel que desempenhou, por
meio de uma série de transformações de caráter sociocultural na sociedade portenha, sem
antes percorrer pelos dicotomia dos caminhos que traçaram esses sujeitos, como forma
de precaver uma possível colisão entre lei, cotidiano e municipalidade 48.
48
ALSOGARAY, Júlio.
49
Explicar o porquê do nome.
50
Foi um dos principais líderes da organização criminosa ainda durante a fase “ajuda mutua Varsóvia”, e,
posteriormente, teve seu nome homenageado por membros da organização, dando início, então, a uma outra
fase, intitulada zwi-migdal. Luís ficou conhecido, antes de se envolver com o lenocínio, por ter sido preso
acusado ser anarquista e promover desordem em países por onde teria transitado.
telefônicas da cidade em 1928. Nele, se concentrava toda a hierarquia constituída pela
máfia clandestina, desde líderes até traficantes proxenetas que leiloavam suas vítimas em
palcos, como grandes leilões de venda de mulheres. Estimasse que o saldo da funerária
apresentava um aumento significativo a cada ano. Em termos líquidos, conseguiu
arrecadar até 1929, 275.204,01 mil pesos. Como é de se notar, a circulação desse capital
logo acabou se tornando alvo para possíveis investigações, o que inicialmente foram
rebatidos sob alegações de que se tratavam de doações fervorosas doações em dinheiro,
ou bens materiais, de associados, já que se tratava de uma entidade religiosa.
51
O termo “mercado de mulheres”, ficou registrado, sobretudo na imprensa periódica do início do século
XX, se referindo principalmente, ao ato de comercializar mulheres no interior dos salões disfarçados de
restaurantes e bares.
Devido aos obstáculos que driblavam essas denúncias, apenas em 1927, com a
nomeação do renomado inspector Martin Pérez Estrada, segundo José Luís Scarsi 52,ficou
encarregado de chefiar a Inspeção da Sociedade de Informações Legais da Argentina, é
que os ares começaram a tomar outros rumos. No mesmo ao em que foi nomeado
Inspector, Estrada ficou encarregado em averiguar uma série de denúncias que teriam
sido arquivadas por falta de provas, sobre possíveis atividades que estariam, de forma
ilícita, alimentando o comércio imoral do tráfico de mulheres naquela cidade. Como já
mencionado antes, haviam diligências em aberto que deveriam ser investigados a fundo,
dito isso, o Inspetor deu início a uma série de recentes denúncias para apurar a fiscalização
de bares, lojas e restaurantes que estariam vinculados ao caso Varsóvia, pelos autos
ganhos arrecadados em um curto período e sem recebedores identificados.
A denúncia chegou até o diretor jurídico, após uma série de declarações por parte
de Don Selig Ganopoi, alegando que o restaurante em questão, era usado como prostíbulo,
servindo ainda para leilão de mulheres. Na época, o Inspetor chegou a entrevistar o
responsável pelo estabelecimento, Zitnitsky, no qual o mesmo alegou em tom indignado,
de que os acusadores, Ganopoi nesse caso, não teria razões coesas para deliberar tamanha
gravidade. A princípio, a de defesa do acusado e dos demais envolvidos teria tentado
inocentar os envolvidos alegando que as atividades monetárias do restaurante, se
originava em razão da sua função como fabricante e comercial de tecidos local 53. No
entanto, a tática de alegar exercer profissões como fabricantes donos de comércios de
tecido já era alvo familiar para as entidades policias, devido ao constante uso de tal
circunstância em processos criminais envolvendo criminosos viajantes.
52
SCARSI, Luís. Tmeiim: los judíos impuros: historia de la zwi migdal. 2018, p. 65.
53
BRA, Gerardo. La Organización Negra. La Increíble Historia de La Zwi Migdal. 1982, p. 129.
Mas, na época, em resolução do Diretor Jurídico da cidade de Buenos Aires, o
mesmo teria alegado que decidiu dispensar tais acusações omitidas por Don Selig
Ganopoi contra a suposta Sociedade, devido à falta de provas. Segundo o delegado de
polícia, que estava envolvido em atividades ordenadas pela organização, não existiam
evidências de possíveis desvios nas atividades da sociedade ou quaisquer histórico
criminal envolvendo os suspeitos.
54
GLICKMAN, Nora. The Jewish White Slave Trade and the Untold Story of Raquel Liberman. 2000.
55
HOCHMAN, Gilberto. Lima, Nísia Trindade. Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são...
Discurso médico-sanitário e interpretação do país. 2000.
56
(FARIA, 2010, p.831)
57
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres, prisioneiros. 2017.
58
FERLA, Luís Antônio Coelho. Feios, sujos e malvados sob medida: do crime ao trabalho, a utopia médica
do biodeterminismo em São Paulo (1920-1945). 2005.
Com a profissão de costureira para ajudar nas despesas da família, Raquel
desesperadamente partiu rumo à capital portenha em busca de emprego que pudesse
desarcar com as despesas familiares que o marido chefiava. No entanto, a historiografia
recente sobre o tema não explana exatamente se Liberman teria sido vítima da prostituição
involuntária, ou se teria deixado cair nas lábias de homens e mulheres que transitavam
pelas cidades, aliciando mulheres para trabalhar em bordeis da cidade em troca de
dinheiro. No entanto, se sabe que Elke, cunhada de Liberman trabalhava em um bordel
clandestino nas proximidades de Buenos Aires, desempenhando funções relativas à
prostituição clandestina, o que a tornava uma cafetina que servia para a organização Zwi-
Migdal.
Após se desprender das garras da organização, aos poucos ela tentou reconstruir
sua vida, adquiriu uma propriedade e instalou uma loja de antiguidades na Rua Callão,
no centro de Buenos Aires, graças a arrecadação que juntou durante os anos em que fora
explorada. No entanto, após se desligar de membros e da própria organização, Raquel
passou a receber constantes ameaças de homens ligados ao comércio imoral, sob
alegações de que não seria permitido que nenhuma mulher se tornasse independente. Um
desses sujeitos teria sido Mauricio Kirsthein, que passou a ameaçá-la caso ela recorresse
as autoridades policias.
Ficou claro, que a organização não permitia nenhuma tentativa de “rebelião” por
parte das mulheres. Na verdade, se tratava de mais um golpe que os proxenetas aplicavam
sobre suas vítimas, tomando-as tudo o que conseguissem arrecadar, sendo obrigadas a se
sujeitarem aos desejos dos proxenetas. Muitas vezes, sem ter para onde ir ou para quem
pedir auxílio, essas mulheres ficavam espessas as margens da pobreza dos centros
urbanos, assim como aconteceu com as escravas brancas traficadas na cidade do Rio de
Janeiro, no início do XX.
Neste percurso, foi descoberto ainda que, inúmeros leilões aconteciam nos
fundos de estabelecimentos comerciais, como foi apurado na suposta ilegalidade do
restaurante de Zitnitzki anos antes. No interior desses locais havia salas separadas,
destinadas a compra e venda dos corpos femininos. O “ápice” do espetáculo acontecia
quando enormes cortinas que separavam a divisão dos estabelecimentos entre o “aceitável
e o não aceitável” eram abertas, expondo mulheres totalmente nuas às dezenas de homens.
Há relatos ainda, de que os funcionários que chefiavam os leilões permitiam que os
compradores apalpassem e sentissem os dentes das mulheres, além das dimensões
corporais, conforme fosse do agrado da “clientela”.
Quando foi emitido a informação de que havia sido descoberta uma sociedade
clandestina, vulgo Zwi-Migdal, localizada na Avenida Avellaneda, no centro da capital
portenha, as autoridades rapidamente providenciaram a retirada do status legal concebido
a empresa, em 25 de julho de 1906. Em parágrafo especial, foram apontadas as seguintes
diligências no que se referia à ilegalidade da sociedade:
Estimasse que dos 434 mandados de prisão, 103 foram realizados e apenas 15
sujeitos tiveram a prisão executada60. Os demais acusados fugiram da Argentina para
países vizinhos como Brasil, Paraguai e Chile, dando início a um processo de
identificação em regiões como Rio de Janeiro e São Paulo contra a entrada indevida de
59
BRA, Gerardo. P. 48.
60
Diário da Tarde. “as prisões efetuadas em Buenos Aires. Curitiba, 23/04/1930.
agentes proxenetas em território nacional. No entanto, por se tratar de grandes cidades,
onde haveria uma concentração maior de vigilância por parte das autoridades, outras
cidades como Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre, abriram caminhos para possíveis
novas atividades desse grupo que por uma brecha, teria se desfragmentado.
61
Raquel Liberman hoje, é reconhecida internacional como “heroína”, ícone que lutou contra o tráfico e
exploração de mulheres, e contribuiu desencadeando o desfecho de uma das maiores organizações
criminosas destinadas ao tráfico de mulheres ao submundo da prostituição clandestina. Sua trajetória de
vida despertou inúmeras produções mundo à fora, além de inspirar produções audiovisuais e romances que
relatam o fenômeno do tráfico por um viés literário. Atualmente, acontece em Buenos Aires o concurso
Prêmio Raquel Libermann em Buenos Aires em sua homenagem pela contribuição aos direitos humanos.
O concurso age em prol do reconhecimento de organizações não governamentais ou pessoas com projetos
sociais, que promovem e protegem os direitos de mulheres vítimas de violência física ou simbólica, por
estarem sujeitas a um universo “inebriado” por discursos de estigmas e exclusão.
discricionariedade, os apontes para investigar a alta demanda de criminosos ou crimes
cometidos por eles, logo se mostrou uma tarefa árdua, que necessitaria de um elenco de
atribuições e contribuições por parte das diligências policias de países vizinhos,
principalmente o Brasil.
62
Relatório do Chefe de Polícia de 1927.
63
GALEANO, Diego. P. 19.
64
ANTONIO, Luís.
criminoso escruchulante, ventanista ou punguista passa a compartilhar de novas
experiencias, de sujeitos especialistas que fogem em meio a aglomerações, que
desaparecem nas estações ferroviárias, os mesmos que folheiam repentinamente as
páginas da imprensa em lugares de boemia, que na alvorada da manhã, transitam em
outras cidades, despistando as deliberações do cotidiano de um aparelho policial, que
semelhante a qualquer atividade profissional, necessitaria de melhorias a seu favor65.
Definindo a cidade como um ímã, Rolnik 67 explica que grandes centros urbanos
passaram a respirar em tom libertador durante as transformações culturais do homem no
espaço urbano, contribuindo de forma indireta para redefinir, projetar e reorganizar
modelos arquitetônicos de grandes cidades civilizadas. Nesse parâmetro, as noções de
espaço deixam de se restringir a um conjunto denso e definido de edificações, ou seja, de
aglomerações, se tornando espaços de reorganização do convívio social. Sendo assim, a
noção de cidade política se torna cada vez mais evidente a medida em que políticas
públicas em prol do saneamento social foram criando barreiras, diferenciando a
arquitetura urbana não apenas em espaços destinados ao comércio e ao lazer, mas também
ao convívio social da sociedade, acarretando na vida coletiva de grupos menos
favorecidos.
Habituados com a vida coletiva dos bordeis, o ritual de dispersão desses sujeitos
criminosos acabou acarretando na circulação pelas capitais em movimento, como Rio de
Janeiro, São Paulo e Buenos Aires. Entretanto, há certa peculiaridade no que diz respeito
65
GALENAO, Diego.
66
ENGEL, Magali. Sexualidades interditadas: loucura e gênero masculino. 2008.
67
ROLNIK, Rachel. O que é a cidade.
ao povoamento desses criminosos em cidades que, em meio a esse contexto, semeavam
rumo ao progresso, injetados via a um modelo de modernidade, como veremos mais
adiante. Esse mapa que caracterizava as rotas que o tráfico percorria no período
trabalhado, esteve acompanhado de complexos códigos, no que diz respeito a operação
de grandes máfias, bem como a atuação de sujeitos que agiam em pequenos grupos ou
individualmente.
O autor explica ainda que essa discussão esteve atrelada a necessidade dos
modelos policiais em acompanhar o desenvolvimento do crime internacional, que
adquiria um novo arsenal de exames como armas, objetos e táticas, tidos como códigos,
utilizados por esses criminosos viajantes. Esses intercâmbios proporcionaram diferentes
saberes e práticas policiais e criminológicas se deu pelo intenso movimento de homens e
68
GALEANO, Diego. Idem.
69
SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-
1920.
70
MENEZES, Lena Medeiros. Os indesejáveis, 1996.
mulheres que convertiam as cidades em territórios de interação entre sujeitos anônimos.
Ou seja, cada vez mais a circulação de estrangeiros criminosos usufruía da precariedade
policial para estabelecer procedimentos tendo como fio condutor, a fuga e falsificação de
documentos para despistar processos judiais.
71
Considerado o “iniciador” da polícia cientifica, Alphonse Bertillion orientou a organização de um
conjunto de métodos, processos e noções, utilizados no inicio do século XX, para facilitar o inquérito
judiciário, cuja existência serviu incontestavelmente, para constiruir as etapas no caminho do progresso da
polícia técnica.
72
Juan Vucetich, responsável por coordenar a Oficina de Identificação de La Plata, na Argentina, ficou
conhecido pela imprensa policial como o “pesquisador do dedo alheio”, foi responsável por empregar o uso
da impressão papilar como valor de identidade no campo da policia cientifica. Esse novo método de
identificação baseado sobre as impressões digitais ficou conhecido como Datiloscopia.
73
GALEANO, Diego.
descrever detalhadamente, legendas que pudessem identificar o escalão dos criminosos,
desde do gatuno, do falsificador até o proxeneta. Mas foi nas décadas de 1920 e 1930 que
boa parte das reportagens jornalísticas sobre narrativas de crimes faziam o uso dessas
fotografias, como forma de ilustrar ao leitor, visto que boa parte da sociedade neste
período era analfabeta, os perigos que poderiam circular nos arredores das cidades.
74
Idem.
75
ANTONIO, Luís. Ibidem, p. 329.
mulheres, desenvolviam outras atividades que interferiam diretamente na conexão
policial entre diferentes polícias.
76
ANTONIO, Luís. Ibidem, p. 153.
Quando o crime passa a ser um objeto de consumo, gerando repercussão para
grandes empresas de periódicos, crimes de nível internacional rapidamente acabam
repercutindo em todo o território nacional, e até mesmo para países vizinhos. No caso da
imprensa nacional, grandes jornais como A noite e O dia repercutem diretamente com
suas informações que são apuradas por correspondente a países estrangeiros, enquanto
que a imprensa propriamente dita, de menor repercussão, acaba transmitindo notícias
projetas em versões anteriores77.
77
MAROCCO, Beatriz. Prostitutas, Jogadores, Pobres e Vagabundos no Discurso Jornalístico. 2004
78
DIÁRIO DA TARDE. Mercadores de escravas brancas. Curitiba, 03/08/1930.
policiamento portenho contra a tentativa de fuga de estrangeiros suspeitos, possivelmente
relacionados a crime à ordem pública. A polícia marítima neste contexto tornou-se
principal instrumento no enquadramento na nova ordem social, principalmente contra
proxenetas traficantes, criminosos viajantes. Uma das características que levaram as
autoridades a suspeitarem de possíveis contraventores, seria o fato de andarem sempre
em grupos pequenos, desquitados de malas e acessórios, acompanhados de mulheres
jovens, fazendo alusão à figura do proxeneta e suas “mercadorias” tomando rumo
desconhecido em razão de algum processo criminal.
79
O mesmo sujeito investigado em Buenos Aires, sendo um dos responsáveis pelo restaurante clandestino.
80
Diário da Noite. “Uma grande organização para o tráfico das brancas”. 18/05/1930.
81
Ultimas Informações. O tráfico de brancas na Argentina. Santa Catarina, 04/08/1930.
Evidente que este processo de dispersão teria acontecido durante primeiros
meses após a descoberta da organização, tomando proporções maiores do que apenas as
mostradas pela imprensa carioca e paulista na década de 1930. Nos anos posteriores à
denúncia, as investigações tomam outro rumo. Ficou claro pelas fontes analisadas sobre
o período que as tentativas de embarcarem ou desembarcarem no Rio para fins de
exploração sexual, sucederam durante toda a década decorrente, mas o policiamento
tomou frente de novas constatações que indicavam uma possível ligação desses
traficantes em bordeis, cabarés e pensões alegres nos centros das cidades.
Assim como no caso anterior, dos envolvidos que tentaram sair do país por via
marítima, desta vez noutra reportagem do A noite, em um antro da Avenida Gomes Freire
a polícia teria efetuado a prisão de 4 homens suspeitos de pertencerem à Migdal. Por meio
de uma denúncia não identificada, a polícia teve conhecimento que membros da dita
organização estariam novamente explorando o lenocínio na capital carioca. Esses sujeitos
teriam sido expulsos do território argentino, traçando rumo à Montevideo, mas por não
apresentarem documentação e passaporte legal, se hospedaram na velha modesta cidade
do prazer, o Rio de Janeiro. Para não barrar diretamente com a polícia marítima, esses
sujeitos buscavam atravessar fronteiras, entrando pelo Estado do Rio Grande do Sul,
marchando por capitais como Florianópolis, Curitiba até São Paulo e Rio de Janeiro.
“Nestes últimos tempos, a cidade tem sido um campo livre para essa
sociedade de homens... Poucos são os bairros em que não haja um grupo
de exploradores metidos em apartamentos, onde as infelizes, quando
não são por eles procuradas, vão levar a diária a que são forçadas a custa
de ameaças terríveis. A polícia, felizmente, a despeito de não dispor,
porá ora, de uma delegacia especializada, vae capturando e expulsando
os que lhe caem nas mãos. Às vezes, conforme a necessidade de uma
providencia mais urgente, eles são postos, mesmo sem processo de
expulsão, a bordo do primeiro navio apropriado, que os deixa longe do
Brasil. Essa providencia, entretanto, depende sempre, como é natural,
do passaporte encontrado em poder de cada um deles”. 82.
82
A noite. Tráfico de Brancas. 24/02/1932.
conjunto de problemas sociais que recaiam sob o controle do policiamento urbano das
cidades.
Figura 1 - Grupo de homens presos pela polícia do Rio de Janeiro acusados de tentarem fugir das autoridades
portenhas, para países europeus, acompanhados de jovens moças, vítimas do tráfico. A NOITE. 21/04/1930.
Como veremos no próximo caso, cabe citar que o plural de indesejáveis se torna
cada vez mais recorrente no que diz respeito as investigações de proxenetas traficantes.
Três anos depois do caso anterior, em 1935 a polícia carioca novamente desenvolvia uma
série de campanhas contra os traficantes de mulheres brancas no Rio de Janeiro. Como
83
ANTONIO, Luís. Ibidem.
84
MENEZES, Lena Medeiros. Ibidem.
muitos desses proxenetas eram mandados a tomar “novos ares”, muitos acabavam se
instalando no Brasil. Essas medidas, em prol do saneamento e da ordem pública, tinham
reflexo em outras cidades, como em São Paulo, onde as autoridades também
desempenhavam uma vigorosa ação contra esses elementos “infames” 85.
Esses cafténs, por possuírem dinheiro, foram aos poucos, se hospedando com
pessoas da elite brasileira, segundo a imprensa, se passando por turistas, gente
“qualificada”. Rapidamente se tornam comerciantes no Rio ou em S. Paulo, mas que
apresentam antecedentes em países onde percorreram durante anos. Em um caso, um dos
envolvidos era foragido de Montevideo por ter assassinado um comissário da polícia
durante um conflito. Esses sujeitos estão sempre protegendo suas “mercadorias”, como é
o caso de Edmundo, proxeneta vindo do Uruguai acompanhado de duas escravas, ambas
de origem polonesa. Havia ainda aqueles que preferissem as francesas, ou as italianas, as
espanholas ou até as chilenas, como é o caso de Mauricio, conhecido como “polaco”.
Certamente, essa variedade da “carne branca” era grande, e atendia a todos os tipos de
gostos e desejos dos traficantes. Mas o que parecia entusiasmar a clientela dos bordeis
gerenciados por esses caftens ia além pelo desejo carnal. Conforme ainda na mesma
reportagem, nestes locais as meretrizes eram fornecedoras da “poeira do sonho”, alegando
que além do consumo, os agentes administravam a distribuição da cocaína nas redondezas
do prostíbulo. Dessa forma, as autoridades cariocas entravam em coloração com
autoridades de outras cidades, como São Paulo, para agirem coletivamente impedindo o
vício, a perversão e o crime. Segundo a própria polícia carioca, muitos desses criminosos
apresentavam características ágeis que impediam o funcionamento da lei na prática.
85
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1889-1924). 2001.
estabelecido por esses criminosos, Curitiba e Florianópolis também teriam se tornado os
ares para onde os ventos teriam levado esses “indesejáveis”.
Figura 2 - Apreensão de homens e mulheres, proxenetas, caftinas e meretrizes, envolvidas com o Zwi-Migdal no
cenário carioca. A NOITE. 19/06/1930.
86
Ibidem.
sujeito ocioso, e no caso do lenocínio, a prova testemunhal contra os suspeitos era peça
chave para o processo de expulsão dos estrangeiros.
Dessa forma, esse capítulo buscou relevar uma participação canônica masculina,
configurando os principais agentes responsáveis pelo tráfico das escravas brancas. Antes
de quaisquer ramificações no que se refere ao tráfico, é preciso cumprir com o objetivo
de auxiliar o leitor de que o universo privado dessa narrativa histórica não se restringe na
87
RAGO, Margareth. A mulher e o espaço urbano. 1989
construção de uma narrativa baseada em exercício de estereótipos e estigmas. Tendo em
vista, não se deve justificar o tráfico, mas sim, compreendê-lo, é preciso tornar público a
existência dos verdadeiros agentes responsáveis pela existência de uma marginalidade
transnacional. É preciso ainda, nas falas de Moacyr Scliar 88, exorcizar os fantasmas que
sucumbem operando sob falsas máscara, sujeitos que estiveram segregados a uma
construção de uma entidade conceituado por tabus, observando dessa forma, o fenômeno
aqui concebido.
88
SCLIAR, Moacyr. O ciclo das águas, 1996.
historiadores cabe, portanto, valendo-se de argúcia, sensibilidade e criatividade, buscar
resquícios, indícios e fragmentos capazes de fornecer narrativas sobre o passado, um
método, bem como lembrou Carlo Ginzburg, um método que se aproxima ao do detetive
e ao do psicanalista. Entre os exemplos mais notórios no desenvolvimento dos estudos
sobre a mulher, mas não únicos, podemos citar (SOIHET, 1989), onde a autora avalia a
violência física e simbólica a que as mulheres eram submetidas na virada entre os séculos
XIX e XX e as formas de resistência articuladas por elas. Outras narrativas seguem
contribuindo para se pensar a violência sobre diferentes recortes e perspectivas de analise,
como (RAGO, 1989), ao conectar a formação de uma sociedade paulistana trazendo o
recorte de gênero numa análise sobre a prostituição feminina que engloba as décadas
inicias do século XX.
Em uma parte, referente ao campo dos estudos sobre história das mulheres, que
é a prostituição feminina, destacam-se autores que buscam dialogar em suas pesquisas,
os problemas de gênero atrelados as formas de violência, em diferentes contextos e
recortes teóricos. Dessa forma, ainda que em diferentes escalas, a historiografia sobre a
prostituição, que dialogam com os problemas de gênero atrelados as formas de violência,
sobretudo com base em diferentes mecanismos de intervenção social e moral, podemos
mencionar (RAGO, 1989); (ENGEL, 1989); (SOARES, 1992); (KUSHNIR, 1996);
(MENEZES, 1996); (SALDANHA,2013) e outros autores que buscam ressaltar a
relatividade da condição humana, implicando discussões que não diferente das
proporções das ciências ditas empíricas. Das formas de violência, oriundo das
transformações sociais, sobretudo na linearidade das abordagens mencionadas, autores
como (ADLER, 1991); (BRA, 1982), (KALIFA, 2019), (CORBIN, 1989); e (GRUNER,
2018), contribuem para ilustrar como as transformações sociais e culturais acabaram
refutando em comportamentos subversivos, se configurando em meio as transformações
sociais ocorridas por grupos alternativos inseridos sobre as marquises de diferentes
centros urbanos.
89
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. 2017.
90
91
PERROT, Michelle. P. 77.
A prostituição feminina foi, em diferentes contextos históricos, vista como
sistema antigo e quase “universal”, mas organizado e compreendido sobretudo por
diferentes hierarquias internas, ou seja, ela é entendida e aceitavelmente tolerada em
algumas sociedades dependendo do discurso que é atribuído a sexualidade e a figura da
mulher, como em sociedades onde há a supervalorização ao tributo da virgindade92. O
princípio básico que norteava a noção de virgindade, sobretudo em sociedades cristãs, se
pautava na simbolização da castidade perante à Deus. Sendo assim, toda forma de
“amores ilícitos”, representava a mais fiel representação do “fruto proibido”,
estabelecidos na sociedade através da alienação praticada pela igreja cristã ao longo da
história.
92
Ibidem.
93
Teoria criada por Cesare Lombroso.
exemplo em espécies de insetos shymenoptera ou pela ordem de artrópodes da classe
Araneae.
94
LOMBROSO; FERRI. 1889. A mulher delinquente. 1889
95
PRECHET; SAIOL; NERY. Antropologia criminal e prostituição: a matematização do corpo segundo
Pauline Tarnowsky. Dossiê Transversos: O Corpo na História e a História do Corpo, Rio de Janeiro, v. 05;
n. 05; Ano 02. dez. 2015.
96
CHÂTELET, Parent du. 1836.
seja, capazes de serem consideradas opostas as “mulheres de caráter imaculado”. Como
metodologia de análise, o autor foi além de medições corporais, incorporando também
em suas analises, documentos policias, bem como entrevistas de campo com as prostitutas
parisienses. O autor observou ainda, em estudo sobre a regulamentação da prostituição
em Paris, que a prática era considerada “necessária” para a sociedade, mas isso não
significava na exposição visto ao público das mulheres prostitutas.
97
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 17. ed. Tradução de Maria Isaura Pereira de
Queiroz. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002.
98
sociedade, mas seu pensamento nos encaminha a uma linha de raciocínio, que nos
possibilita entender o desvio social da mulher prostituta, como parte de uma subordinação
da legitimação da representação feminina. Através da resposta que o Estado, por
intermédio da construção de diferentes mecanismos de repressão e de discursos médicos
e higienistas, é que punição surge como resposta aos comportamentos transgressivos que
o próprio sistema impõe.
Para o filosofo francês Michel Foucault 99, a passagem do tempo nos fez
mergulhar em uma sociedade disciplinar, que através de estudos da análise do modelo
panóptico sobre a sociedade, compreendemos como o controle sobre comportamentos
acarretaram na imposição de medidas de vigilância contra os comportamentos tidos
enquanto imorais. De acordo com a teoria do panoptismo, como visto anteriormente,
observar a sociedade de acordo com o modo como diferentes poderes interferem no meio
social da sociedade, possibilitou o desenvolvimento de ferramentas de controle social,
concebendo a noção de uma sociedade vigiada.
99
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir.
100
FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Ed.16. Rio de Janeiro: Graal, 2005.
mecanismo capaz de incitar a fala sobre o sexo 101. Não se podia reprimir o que era
proibido, mas sim regular o que era falado, sendo assim, o fascínio e a ambição na
tentativa de vigiar a sexualidade, esteve atrelada a forma como esses mecanismos
identificavam e delimitavam a sexualidade feminina, através da origem patológica da
histeria. A repressão sexual, por seguinte, floresce na sociedade pela via da submissão
dos desejos, pela interdição dos prazeres, caminho natural da criação de ressentimentos e
pela noção de culpa, atendendo a construção social de “corpos subjugados”102.
Desde a idade média, até os primeiros séculos da era moderna, toda mulher fosse
considerada desvirtuada aos padrões estabelecidos pela sociedade ou pela igreja, era
classificada como perigosas. Desde bruxas, prostitutas, mulheres solteiras, adúlteras,
mulheres consideradas histéricas, órfãs e criminosas, elas foram relegadas e sujeitas à
discursos que pressupõe a inferioridade não apenas sobre o homem, mas sobre elas
101
Ibidem.
102
Ibidem.
103
BEAUVOIR, S. O segundo sexo (volume único). Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2009.
104
Ibidem.
105
Ibidem.
mesmas. Da macro história, desde as grandes guerras, até importantes rupturas que
marcaram uma época, como a abolição do trabalho escravo, ou o fenômeno da
prostituição clandestina e consigo, o tráfico de mulheres na América, essas mulheres
foram sendo negadas na história.
106
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
dourados e olhos claros, como “cristais”, seriam mais terrivelmente perigosas e
sanguinárias do que as morenas de cabelos negros. Todavia, por mais paradoxal que
pareça, Gilbert justificava que na Ciência Penal, as mulheres morenas provinham de um
temperamento mais criminoso do que as outras mulheres. Para reforçar seu ponto de vista,
ele reafirmava o fato de que o desenvolvimento da criminalidade nas grandes cidades,
esteve diretamente ligado ao surgimento do número de “pessoas de cabelos escuros”.
Entretanto, segundo um psicólogo francês do período, apenas foi identificado por Duval,
as morenas, quando eram predispostas a matar, matavam a si mesmas, enquanto as louras
tinham a tendência de praticar o crime de homicídio, o que na prática, lhes tornavam todas
homicidas. A teoria amadora, embora não tivesse sido concluída no período, fazia um
breve diagnostico sobre o estudo técnico do ponto de vista criminal, classificando a
mulher loura como sanguinária pelo fato de terem muito mais sangue no corpo do que as
outras. Enquanto a cor morena apresentava maiores índices de habilidades
temperamentais que culminasse no crime 107.
107
O DIA. Gravetos e fagulhas, louras e morenas. Curitiba, 29/03/1934.
108
PEDRO, Maria Joana. Mulheres do Sul, In História das mulheres no Brasil. 2004. P. 232
Em Curitiba, no momento imediatamente posterior a proclamação da
República, travou-se uma intensa batalha entre os jornais, no qual os
positivistas, aliados aos maçons, disputam com os católicos conservadores o
predomínio do pensamento na cidade. Cada um deles tinha uma forma
especifica de idealizar as mulheres; no entanto concordavam em que os papeis
definidores da feminilidade eram os de esposa, mãe e dona de casa 109.
109
Ibidem.
110
SOIHET, Rachel. 1989. P. 203.
111
Ibidem.
112
RONCAGLIO, Cyntia. Pedidos e recusas: mulheres, espaço público e cidadania (Curitiba, 1890-1934).
1994.
113
ARENDT, Hanna A condição humana, 1959.
para o período da Modernidade, onde público e privado passam a ter novos significados
atribuídos a sociedade despolitizada e atomizada. Puxando gancho para a modernidade,
Habermas, argumenta que na sociedade burguesa, a esfera pública serviu para regular a
sociedade civil, momento em que há uma supervalorização da vida privada como espaço
pertinente aos interesses do “coletivo”114.
Essa dicotomia entre público e privado foi fator primordial na influência das
representações entre os papeis masculinos e femininos na sociedade ocidental,
demarcadas por discursos morais e religiosos. No entanto, embora o discurso da mulher
devota à submissão dos flagelos masculinos, dona do lar, tenha sido, de certa forma,
desconstruído, ele nunca deixou de existir. Na sociedade curitibana das primeiras décadas
do século passado, não havia oposição existe os olhares interditos à representação da
mulher na sociedade, sendo a educação feminina o único reduto capaz de especializar e
modelar a feminilidade capaz de atrair outras limitações fora do ambiente privado 115.
114
RONCAGLIO, Cinthya. Curitiba, p. 19.
115
TRINDADE, Etelvina. P. 276.
necessário116”, a prostituta figurava o ideário inverso da mulher de família, sendo ela a
personificação da “perturbação da razão117”.
A prostituição, embora não constituísse crime segundo o código penal, era vista
como uma “ameaça” contra a segurança moral e social, que colocava em risco a
honestidade das famílias, segundo Boni118. Na prática, a prostituição esteve nas iras de
“agentes controladores” que buscavam inibir a prostituição e o lenocínio por meio de
discursos religiosos e práticas médicas e policiais. Assim como a mendicância, a
embriaguez e a vadiagem, a prostituição se constituiu em um grave problema social que
colocava em jogo os preceitos e idealizações do ser civilizado em risco 119.
116
Ver AGUIAR, Nayara Elisa. 2018.
117
Trindade, Etelvina. P. 228.
118
Ignês, Maria Boni. P. 120.
119
Ignês, Maria Boni. P. 121.
120
ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890).
1989.
Na medida em que casos de prostituição de menores marcha passo a passo,
repercutindo nas crônicas policiais, nota-se também uma equivalência de crimes contra a
honra, como defloramento, estupro e sedução de menores a prostituição. Mesmo sem
saber o que é amor, meninas adolescentes praticavam a prostituição nas sombras das
praças e nas vielas escusas onde o policiamento não fiscalizava. É uma prostituição que
não é lhe concedida requintes, mas trocados do pão de cada dia para matar a fome e saciar
a sede de ganância de agentes proxenetas e mulheres caftinas.
121
Relatório do Chefe de Polícia do Estado do Paraná. 1926.
os lugares de meretrício, que se mostrava uma tarefa árdua para a vigilância municipal,
pois a prática esteve encobertada por um leque de outros problemas considerados ilícitos
e secretos, que incitava também o desenvolvimento de crimes de gênero.
122
SOUZA, Luís Antônio Francisco de. Entre lei, ordem e a cidade na sociedade republicana. P. 137.
123
SCHETTINI, Cristiana. Empregados do comércio e prostitutas na formação da classe trabalhadora no
Rio de Janeiro republicano, p. 68. 2007.
sincronia com discussões que merecem atenção em relação a sua ênfase e impacto no
cenário estabelecido. As narrativas de fatos críticos, que envolvem crimes sexuais como
defloramento e estupro, além do lenocínio de menores, são esferas que possibilitam
compreender melhor as narrativas sobre crimes que estiveram relegados à prostituição no
imaginário curitibano no limiar do XX.
Dessa forma, a proibição pela ordem do desejo, pelo manuseio das práticas
sexuais de outrem, forçou a existência de uma prostituição clandestina que se configurava
pela via estreita da ação mediadora de um homem ou mulher, através do aliciamento e do
cárcere de jovens em territórios propícios aos vícios que sustentavam atividades
extrajurídicas, como jogos, consumo de drogas, bebidas e crimes sexuais. De antemão, as
diligências policiais relativas ao lenocínio deviam apreender quaisquer indivíduos que
atentasse contra a lei, induzindo mulheres e abusando de suas fraquezas psíquicas e
sociais, como a miséria e o abandono social, aliciando-as por intimidações ou promessas
emocionais. A lei previa que o agravamento da pena poderia acontecer em casos
específicos, como em crime contra de menores de idade, fosse pela orientação dos pais
ou tutores próximos.
124
Ver o significado de sujeitos vulneráveis pela constituição de 1890.
estiveram atrelados a possíveis casos de prostituição, lenocínio e prostituição infantil.
Sendo assim, na contenda dos dados apurados, oriundos dos relatórios apresentados
respectivamente nos anos de 1923, 1925, 1926 e 1933, em conjunto com uma série de
denúncias do mesmo período, que ganharam repercussão imediata nas páginas da
imprensa local, tendo como principais acusações, casos de cópulas carnais, foi possível
que determinar a autoria desses inquéritos enquanto crimes sexuais
“O dono da casa, acordando, chamou sua esposa e foram ambos até a porta da
cozinha, onde pressentiram o barulho. Para essa inspeção José armou-se de
uma espingarda e mandou que sua mulher abrisse a porta, recebendo, nessa
ocasião, um tiro em pleno peito. Mortalmente ferido, José disparou a sua arma
para o solo, correu e pulou a janela da frente e foi cair em plena estrada,
agonizante”126.
A partir deste caso, foi possível identificar que José Raymundo já havia sido
condenado em 3 de abril de 1906 por crime de estrupo, e teria sido preso novamente em
1912 pelo mesmo crime, vindo a ser libertado em junho de 1919. E graças a repercussão
do último caso, surgiram outras inúmeras denúncias de estupro contra o delinquente.
Dentre os relatos, surgiram denúncias de adolescentes e mulheres de idade, que relataram
terem sido vítimas do sujeito, forçadas a satisfazer seus instintos brutais. Nomes como
Pascolina de Jesus, Santa Bozzato, que perambulava pela rua vendendo leite e foi
ameaçada com um revólver, Josephina Gebur, Anna Volensky, Martha, Maria Mikua e
Maria Mendia, de 60 anos, espancada e violentada pelo autor demonstravam a gravidade
do indivíduo em exposição à sociedade. Havia ainda uma queixa sobre o acusado ter
desonrado a própria filha, cuja o nome era Rosa da Silva, que fora o sobrenome,
apresentava as mesmas características da vítima de anos atrás, que declarou rumo à
prostituição depois do crime. Encarcerado, o acusado não falava nada a respeito dos
125
ANTÔNIO, Luís, p. 284.
126
O Dia. Obra dantescamente horrível de um monstro. 1923
crimes e das perguntas feitas por autoridades, mas falava sobre sua vida na Bahia e sobre
condenações anteriores.
Ao analisar, com maior profundidade alguns dilemas sociais, casos que iam além
de crimes sexuais, fez reverberar denúncias de casos envolvendo prostituição de menores,
por parte de entes familiares para fins mercantis. Embora o aspecto da violência sexual
seja determinante em casos de raptos e de lenocínio por parte de outrem, é de se supor
que crimes envolvendo familiares também se tornaram corriqueiros na esfera judicial e
policial do período.
Embora seja um assunto de espessura delicada, não há como justificar, para além
do crime de lenocínio, a onipresença de casos que geraram repercussão envolvendo
adolescentes nos “mercados de amores de Curitiba”, sem antes pensar na violação do
estágio final referente ao desenvolvimento psicossexual do sujeito envolvido. Em ensaios
que remetem a questões da sexualidade dentro da perspectiva da psicanalise, Freud128
explica que é possível que o sujeito desenvolva e expresse transtornos relativos à
repercussão da violação do desenvolvimento genital, como em casos de crimes contra a
honra, promovidas ainda durante a fase da puberdade, período onde florescem as zonas
erógenas do corpo humano, trazendo possíveis desequilíbrios à vítima durante a fase
adulta129.
127
AGUIAR, Nayara. Ibidem. P. 62
128
FREUD, S. Um Caso de Histeria, Três Ensaios sobre Sexualidade e outros trabalhos (1901-1905):
Volume VII. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 2006.
129
Ibidem.
tornaram peças cruciais para o desenvolvimento desses inquéritos, porque sem conseguir
provas, a polícia dificilmente conseguiria identificar e localizar a autoria do crime.
Sendo assim, foi possível concluir que o número de inquéritos policiais sobre
defloramentos e estupros, crime-síntese para se entender o cometimento de sentenças
realizadas no período de apenas quatro anos em Curitiba, embora separados, foi o
equivalente a 96 inquéritos policiais. É de se levar em consideração também, que a honra
e a moral das vítimas, meninas e mulheres, estariam sendo expostas mediante ao público,
por meio das crônicas policiais, e questionadas com base em possíveis intervenções da
prática judicial. Sendo assim, esses números se juntam a quase outros 30 casos de
exploração e aliciação de menores, para fins de práticas ilícitas, em Curitiba, apenas um
curto período de 13 anos. São discussões complexas, densas e de certa forma, delicadas,
pois abrangem um arcabouço de práticas e enigmas de criminosos que agem como coites,
que na imensidão dos desfechos, destilam suas garras descabidas sobre vítimas inocentes.
2.4) Dos crimes contra a vida; prostituição por morte voluntária: o assassinato
de si mesmo
130
A prostituição livre, diferente da prostituição clandestina, não era acompanhada pelo proxenetismo, ou
seja, na prática, estas mulheres exerciam a prática da prostituição involuntariamente, sem necessariamente
ser coagida e obrigada por outrem ao mundo da prostituição. Embora no Brasil, a prostituição nunca tenha
sido de fato regulamentada, desde o começo do século XX, no Rio de Janeiro e em São Paulo, os modelos
de identificação de mulheres meretrizes se baseavam no princípio de vigiar e controlar a prostituição livre,
impedindo o desenvolvimento da prática clandestina, que operava longe dos olhares tênues da polícia e de
autoridades médicas.
social do indivíduo. Após definir os fatos sociais, o autor classificou a questão do suicídio
em três categorias: o egoísta, o indivíduo desintegrado socialmente que já não vê mais
sentido em viver; o altruísta, quando o indivíduo se vê na obrigação de dar a sua vida em
prol de algum objetivo; e o anômico, quando o suicídio acontece devido à falta de
normalidade da sociedade, onde há ausência de regras, gerando o caos.
Dessa forma, Ferri compreende que “o suicídio é uma válvula de escape contra
o homicídio”132, sendo assim, mais do que uma produção de sentidos, tensões e exclusões
sociais, o espaço urbano foi também palco para a crise do empobrecimento e da
marginalização daqueles que não se adequavam a um projeto de estandardização coletiva,
capaz de atender os feitos e desejos de uma elite burguesa e dominante. A transição dos
centros urbanos para um projeto de modernidade tardia, acelerada e sobretudo, capitalista,
trouxe consigo choques físicos e perceptivos na própria experiência de vida cotidiana de
grupos alternativos. Sendo assim, a experiencia da vida cotidiana de mulheres públicas
esteve orbitada por banalidades e paradoxos que não se explicam apenas por questões
legais ou judiciais, ou ainda, através de mecanismos coercitivos, propagadores de
discursos morais e normatizadores.
131
ALVES, João Luiz. Sobre o suicídio. p. 273.
132
Ibidem.
acerba amalgama de subserviências de desilusões, de desesperos e de
lágrimas”133.
Por isso ao discutir a intervenção policial nos bordeis e nas ruas, é uma
complexidade que perpassa além do imaginário de um “incomodo moral”, mas também
de necessidade subjetiva de uma proteção involuntária, muitas vezes intervinda por meio
de denúncias e crimes hediondos que colocam o bordel, como cena do crime. Podemos
133
O império da Ganancia. Última Hora. Curitiba.
134
Ibidem. P. 164.
compreender o suicídio, entre as meretrizes, como um mecanismo de defesa utilizado
como forma de auto prevenção característico às questões ligadas à degeneração, mas não
apenas no sentido da hereditariedade, integrada à conceitos de normalidade e desvio que
justificava, conforme Foucault 135, as condutas sociais e morais, mas também emocionais
do indivíduo em situação de suicídio.
No cenário carioca, conforme Isabel Vincent 137, em meio a servidão das escravas
brancas, traficadas e exploradas em bordeis próximas a região portuária do Rio de Janeiro,
as meretrizes, brasileiras e estrangeiras, foram submetidas a atender homens das camadas
pobres como marinheiros, ébrios e estrangeiros que traziam consigo, doenças e agressões
físicas que marcavam os rostos das mulheres na medida em que as mesmas demonstravam
formas de resistência138.
135
FOUCAULT, 1999, p. 311
136
WEINHARDT, Otávio. Delitos etílicos: embriaguez, criminalidade e justiça (CURITIBA, 1890-1920).
Dissertação de Mestrado em História, pela Universidade Federal do Paraná. 2019.
137
VINCENT, Isabel. P. 76.
138
Ibidem.
A datar de 1910, os números de inquéritos policiais até 1936, que envolvem
comportamentos de caráter suicida em Curitiba e em regiões próximas, somam o
equivalente a 170 inquéritos policiais, de acordo com os dados oriundos da catalogação
de processos judiciais do Museu da Justiça do Paraná. Dessa porcentagem, por via das
margens, 42 processos teriam sido movidos por conta de possíveis tentativas de suicídio
sem sucesso, enquanto o restante, 124 inquéritos, seriam especificamente sobre suicídios
terminados em óbito. De acordo com a autopsia, que apresentava a causa e o modo da
morte, grande parte dos casos envolviam armas de fogo, afogamento, enforcamento,
como também o consumo de venenos e substâncias de base química, como a soda caustica
e cianeto de potássio.
139
Informações referentes ao Processo criminal de 1924, extraído do Museu da Justiça de Curitiba.
um homem casado ainda em 1934; o sexto e último, naquele mesmo ano, aconteceu
novamente em uma casa de meretrício, onde a vítima, de 22 anos, tirou a própria vida
pelas mesmas razões do caso anterior.
140
Correio do Paraná. “Suicidio: mais uma vez a formicida entrou em cena”. 03/07/1928.
141
Se refere objetos que possam servir tanto para defesa quanto para atacar, como facas, navalhas, canivetes,
cutelos, dentre outros objetos cortantes.
série de atentados envolvendo homicídios e tentativas de homicídios entre sujeitos que
buscam e oferecem serviços sexuais. De acordo com os dados correspondentes a análise
dos Relatórios de Chefe de Polícia do Paraná, referente aos três distritos da capital, entre
os anos de 1920, 1923, 1924, 1925 e 1933, somaram-se mais de 300 inquéritos policiais
para averiguar apenas homicídios qualificados e aproximadamente 62 inquéritos para
investigar tentativas de homicídio.
142
TRINDADE, Etelvina. P. 89.
143
Ibidem. P. 227.
144
BESSE, Susan K., "Crimes passionais: a campanha contra os assassinatos de mulheres no Brasil: 1910-
1940", Revista Brasileira de História, Vol. 9, n. 18, São Paulo, ago./set.1989, pp. 181-197.
145
Ibidem.
mulher meretriz e das relações amorosas, como laços que pronunciam deliberadas
estatísticas acerca da criminalidade. Afrânio Peixoto, já comentava que desde o século
XIX, a indulgência social para os crimes de gênero, estava intrinsicamente associado ao
romântico daquele século, em que se criou um imaginário que saudava o amor moderno,
baseado no “autocontrole” do corpo de outrem146.
146
Ibidem.
147
RAGO, Margareth. P. __
148
CORREIO DO PARANÁ. Se é rica, é baronesa, se é pobre, é prostituta. 23/06/1934.
estigmatização de categorias definidas que propunham classificar as mulheres entre
pobres e favorecidas.
149
O Estado do Paraná. 14/11/1925.
150
O Dia, 08/02/1929.
empunha, decidiu abandonar o lar e se atirar na prostituição, até que conheceu Ricardo,
jovem moço de uma “mutua simpatia”, no qual rapidamente se apaixonou.
Ricardo era natural de Antonina, e subia a serra com frequência para visitar
assiduamente a pretendida no bordel onde ela residia. As viagens do sujeito ocorreram
por dois anos, até que em uma tarde de domingo, Ricardo teria convidado Rosa para um
passeio de bond até o parque do Juvevê, aparentemente sem demonstrar nenhuma
atividade suspeita. Em uma região afastada do parque, transeuntes relatam terem ouvido
dois disparos de arma de fogo. No local, a polícia ouviu Rosa, ainda em estado grave,
onde relatou que Ricardo, após tentar matá-la, se suicidou com um na face direita,
enquanto a motivação do crime pouco se sabe, pois, a vítima, Rosa, acabou falecendo
horas depois no Hospital. Para a polícia, depois de verificar o óbito do autor do crime,
afirmou que a motivação para o crime de homicídio, seguido de suicídio, teria sido
motivado em razão do “excesso de ciúmes” 151.
151
O Dia, misterioso findar de duas vidas.
152
CHALHOUB, Sidney, Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
Belle Époque, São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 248.
como cenário do crime, casas de prostituição, territórios onde a violência masculina
destilava uma série de atentados a vida dessas mulheres por questões de ciúme 153.
Naquele mesmo ano, sobre outro crime de uma meretriz confinada em um espaço
de conflito desde 1914, ano em que teria chegado em Curitiba por vias desconhecidas
após um período em curso na grande São Paulo, a meretriz de nacionalidade italiana, que
pouco se sabia sobre seu paradeiro até a cidade, foi identificada pela Delegacia de
Costumes de Curitiba em 1930. Sete anos depois, aos 37 anos, a mesma administrava
uma pensão alegre na rua Westphalen, onde em companhia de outras mulheres da vida,
exercia a prostituição. Antonieta e Pedro Freitas eram velhos conhecidos, há oito anos
mantinham um relacionamento às escuras, Pedro, de temperamento forte, se embriagava
e destilava ataques de ciúmes contra Antonieta. Segundo investigação apurado pelo
Diário da Tarde156, Pedro teria avistado sua pretendente, e após ser rejeitado, deu um
ponto final na história que parecia ser de amor. Tratava-se de rejeição, Antonieta já não
demonstrava mais afeto pelo sujeito, e insatisfeito, Pedro alvejou três tiros pelas costas
153
HATSCHBACH, Matheus Machado. NECROLÓGIOS DA SOCIEDADE: CRIMINALIDADE
CURITIBANA NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1894-1908). 2017. P. 62.
154
Diário da tarde. 3/08/1934.
155
Diário da tarde. 14/04/1937.
156
Diário da Tarde. 27/08/1937.
da vítima, que caiu ao chão, emergindo uma possa de sangue sobre o assoalho. A história
de amor, se tornou um pesadelo.
A cena do crime estava armada, o bordel, local onde havia um salão de bebidas
e danças, que minutos antes do crime, encontrava-se na companhia de dois homens
portugueses, acompanhados das meretrizes Tereza Muller e Margarida Rocha, sobre uma
mesa, trocando conversas e drinks. Em um outro cômodo do bordel, Antonieta, enquanto
discutia com Pedro, foi chamada pelos clientes do local, no qual se dirigiu até o salão para
receber o produto da venda. Nesse meio termo, Pedro teria seguido Antonieta, sem que
ninguém percebesse, e com extrema frieza, tirou a vida de sua amante sem que a mesma
ao menos pudesse vê-lo. O autor do crime se apresentou formalmente até a Delegacia de
Vigilância e Investigações, dando suas declarações sobre o caso, alegando não se lembrar
exatamente do ato, pois estava em estado de embriaguez, alegando que não tinha a
intenção de matá-la. O dr. Lucio Correia requereu a prisão preventiva do indiciado, na
medida em que as justificativas se estendiam pela gravidade do delito 157.
A vítima, Antonieta Dina, era mulher analfabeta, sem familiares no país e teve
seu triste fim contado através de narrativas trágicas da imprensa. Assim como muitas
outras mulheres que foram traficadas no período por exploradores e traficantes de
escravas brancas, o paradeiro enigmático dessas meretrizes que de um dia para o outro,
surgem em meio as manifestações e queixas de autoridades e moradores do período.
Assim como Antonieta, outros casos que valem a pena ressaltar, ilustram o triste fim de
inúmeras mulheres prostitutas, que além de marginalizadas, eram perseguidas,
violentadas e exploradas para desejos de outrem.
157
Diário da Tarde. 28/08/1937.
outro, Antonieta, vítima de perseguições amorosas, perdeu a vida por “excesso de amor”,
como mencionavam juristas do período, podendo compreender que uma vez vítimas da
prostituição, estas mulheres sempre estão relegadas ao seu passado e marcadas por
profundos estigmas que tendem a menospreza-las e sujeita-las, como toda mulher, aos
desejos dos instintos selvagens de homens insensatos.
São nessas crônicas jornalísticas que buscam relatar o cotidiano das práticas
polícias, que as narrativas vão sendo impostas através do debate do corpo e da família,
onde a prostituição ocupa um espaço destinado a perseguição e transgressão. Assim como
nas resenhas forenses, documentos judiciais onde são apresentados com maior rigidez as
fronteiras entre o permitido e o interdito, os casos de crimes sexuais são ainda mais
abrangentes, adentrando na esfera da vida privada dominada pela exploração familiar,
como também se ocupando ao estrito arcabouço dominado pela esfera da antinatural
dominação do homem, gozando das prerrogativas de um tribunal onde a justiça vulga as
confutas, efetuando a divisão entre a razão e transgressão.
158
BESSE, Susan. Ibidem.
No século XX, a literatura policial não dava contas dos muitos cultores dignos
desse nome, fosse no exterior quanto no Brasil, onde havia apenas um boletim policial
mantido pelo Gabinete de Identificação e Estatísticas Policial do Distrito Federal, além
da recente Revista de Polícia, inaugurada na década de 1910 e das narrativas policiais de
fait divers na imprensa. Mas, para se entender o que se denominava literatura policial,
rotulada de “sherlokismos”, desde as proezas de Faffies, e outras frioleiras a Conan
Doyle, médico britânico que escrevia as histórias de Sherlock Holmes, alimentando,
através de seus contos, os espíritos devoradores de leitores interessados em romances de
balaio. Com a publicação do livro La police – Ce qu’elle est, ce qu’elle devrait être -, de
Edmond Locard, diretor de um dos mais renomados laboratórios de Polícia Cientifica de
Lyon, onde pregou o vocabulário “Policiologia”. Esse termo constituía um neologismo
introduzido por Fernando Ortiz, professor da Universidade de Havana, em sua tese La
identificación dactiloscópica, publicada em Madrid em 1913, em Cuba.
159
VIDA POLICIAL. 26/09/26.
160
Refere-se a um insulto destinado a pessoas “sujas”, vindas de outras nações.
narrativas sobre seus conterrâneos, repletas de possíveis facetas e definições
estigmatizadas e preconceituosas, vindo a incomodar o público estrangeiro161.
Elysio de Carvalho, em 1925, por meio de uma crônica à revista Vida Policial,
mencionava que, depois das aventuras de “Les Blancs et les Bleus”, de A. Dumas muito
lido e procurado na França, no começo do século XIX, outros personagens celebres de
romances policiais como os de Maurice Leblanc, Murice Level e Conan Doyle, Gaboriau,
Catherine, Green, Arsung dentre outros, passaram a ganhar destaque. Segundo Elysio,
esses autores contribuíam engendrando no gênero literário, os efeitos e recursos de uma
certa “real fantasia” de arquitetar um conjunto de práticas e organizações que incidiam na
vida cotidiana, por meio da criminalidade, polarizando essas aventuras através edições
populares. As narrativas literárias, seguiam uma certa tendencia em imitar os personagens
que os escritores criavam da cabeça aos pés, reconstituindo circunstancias reais e
imaginando cenas forçadas, advindas pelo talento dos autores164.
161
VIDA POLICIAL. 15/04/1926.
162
DIÁRIO DA NOITE. 17/04/1934.
163
Ibidem.
164
VIDA POLICIAL. Os crimes que achoaram. 21/03/1925.
armas de fogo, que na própria ciência, foram sendo encontrados recursos capazes de
compreender os efeitos que persuadiam na sociedade contemporânea daquele período. De
fato, além dos meios de comunicação e de transportes, a sociedade Europeia possuía um
conjunto de invenções representadas pela fotografia, pela microfotografia, pelos raios X,
pelos reativos químicos, além da antropometria e da datiloscopia. Todos esses métodos
se tornaram corrente nos laboratórios de polícia que foram auxiliando na descoberta dos
crimes e na identificação dos criminosos. Esses recursos e processos policiais, em países
onde havia uma certa organização, os instrumentos à disposição do crime, foram,
majoritariamente, um conjunto de “jogos florais e inteligentíssimos”, capazes de despistar
as “grandezas” da investigação policial. As formas como se descobriam os crimes, como
mostrava na criação popular de Sherlock Holmes, era uma das figuras mais “autenticas”
daquele período, para se pensar, ainda que previamente, o acompanhamento e o
amadurecimento da polícia cientificam, segundo Elysio 165.
165
BOLHETIM POLICIAL. 09/06/1914
A policiologia, apresentava indícios e estudos no âmbito do crime e da
criminalidade, dos criminosos e das formas penais de punições contra sujeitos
contraventores, dialogando ainda, com outras disciplinas, como a Física, Química, e a
mecânica, para melhor desempenhar a técnica policial, ou seja, para melhor combater a
criminalidade na sociedade. Nesse sentido, policiologia não seria uma Polícia Técnica,
nem uma Polícia Cientifica, ela buscava formar o profissional técnico para atuar no
campo de ação, tratando de investigações e teve participação nos estudos sobre locais de
crime, algo discutido em todas as esferas policiais, fosse no âmbito regional, entre as
polícias de respectivos Estados, como internacionais, como discutido anteriormente, a
partir da universalidade de métodos e técnicas capazes de identificar e conter a circulação
de criminosos viajantes. Uma das formas de análise sobre os locais do crime, era
justamente os lugares de fronteira, capazes de projetar um aglomerado de diferentes
culturais que coabitavam o Brasil, para fins de práticas criminosas.
166
MEIRELES, Amauri. Teoria introdutória à policiologia. 1989, p. 24.
aqueles que pretendessem entrar no universo da Polícia Civil. Através de conferências
nacionais e internacionais, se discutiam os estudos policiais como via a ciência, pelos
seus expoentes nacionais e estrangeiros, explicando o crime à luz das doutrinas
consagradas sobre o assunto. Na ciência criminalista moderna, uma série de teorias foram
sendo apresentadas no sentido de explicar a gênese dos atos e comportamentos delituosos
em sociedade. Entre elas, convém salientar, por exemplo, as que se agrupam no quadro
da criminologia, como a antropologia criminal, a endocrinologia e a psicanálise.
Para ampliar o quadro dessas teorias cientificas, pode-se pensar também outras
doutrinas não menos aceitáveis, desde que harmonizassem os fundamentos da ciência,
como é o caso da sociologia criminal, que empresta os defeitos de organização das
sociedades, como responsável pelo imenso coeficiente aumento da criminalidade. Na
prática, a despeito de todas essas teorias e definições eruditas, os criminosos continuam
circulando, e não havia repressão capaz de conseguir modificar os sentimentos da
subjetividade do homem. Nas páginas da imprensa, era raro o dia em que as manchetes
não estampassem berrantes histórias de noivados e namoros que se desfizeram em meio
a uma poça de sangue, ou um lar das meretrizes, onde aconteciam crimes com tiros,
facadas ou meia dúzia de navalhadas deformantes. Havia criminosos que a ciência
chamava de loucos, havia também, hábitos adquiridos progressivamente, como os
tarados, que apresentam características de perversidade, classificados como “insanos”, e
havia também, os mais numerosos, os criminosos passionais.
Esse método fazia alusão aos indivíduos “indesejáveis” que se serviam em meio
as insuficiências do policiamento, transplantando para o Brasil, não apenas criminosos e
delinquentes, mas também comportamentos e termos genericamente conhecidos no
exterior para se referir aos sujeitos alternativos, como veremos no tópico adiante. Essa
preocupação se estendia do sudeste ao sul, ao mencionar o fato de que as fronteiras do
sul, eram territórios onde se ingressavam esses criminosos internacionais de “aspectos
alarmantes”. No início do século XX, inúmeros países, em defesa de suas instituições,
levantavam bandeiras no combate aos sujeitos indesejáveis. Na França, por exemplo, o
governo solicitou ao professor Locard, que sugerisse medidas necessárias para impedir o
ingresso de elementos “deletérios”. Daí, surgiu a iniciativa de identificar todos os
estrangeiros, buscando torná-los inconfundíveis sob os olhares das autoridades públicas,
facilitando ainda, recorrer ao histórico de vida disciplinar desses indivíduos 168.
167
GALEANO, Diego. P. 39.
168
DIÁRIO CARIOCA. 25/04/1935.
Historicamente, no Brasil, desde o regime monárquico, leis, decretos, avisos e
circulares assinalavam as mais reiteradas tentativas ainda durante o regime monárquico,
clamando insistentemente pela criação de bases fundamentais aos estudos crime e do
criminoso, através de números estatísticos. Por exemplo, seguindo uma tendencia
cronológica, no século XIX, precisamente, exibiam-se em relatórios, cifras arroladas dos
crimes praticados no Rio de Janeiro, e que provavelmente eram frutos colhidos pelo
Ministério da Justiça daquela época, com o dr. Carneiro Leão, em 1833. Na corte,
sucederam recomendações a respeito da polícia, a respeito do enriquecimento de dados
estatístico mensal onde eram apresentados mapas dos delitos ocorridos naquela
jurisdição, observando as causas físicas ou morais que estivessem atrelados as práticas e
os meios úteis para extinguir esses fenômenos169. Desde 1837, com Aguilar Pantoja, até
1882, com o Ministro do Império, Pedro Leão Vellozo, numeras “lacunas” foram sendo
discutidas e apresentadas sobre as estatísticas policial, judiciária e penitenciaria. Mas, foi
a partir do regime republicano, em 1907, que começaram a ser implantado o Gabinete de
Identificação e Estatística, com atribuição de elaborar sistematicamente a estatística
policial, abrangendo desde acidentes e fatos notáveis, aos crimes e as contravenções, o
movimento das estradas e saída das prisões, e a mais objetiva manifestação no sentindo
de tornar a estática uma realização útil e prática 170.
169
NAVARRO, Joacir.
170
O Dia. Dados policiais. Curitiba, 09/01/1938.
171
Ibidem. P. 324.
172
É um princípio jurídico que se refere ao ato de não punir algo que não é prescrito por lei, adotado em
Estados democráticos modernos.
social hierarquizada. Segundo Theodomiro Dias Neto, durante a primeira República, a
Polícia Civil desempenhou um importante papel no desenvolvimento de sua organização
interna para melhorar o preparo de seus agentes na prática com base em ações
cientificamente orientadas para combater a criminalidade urbana 173.
173
Segurança urbana; o modelo da nova prevenção. São Paulo. 1984.
174
Boletim policial. Rio de Janeiro. 1917.
profícua e inteligente. Embora esses sujeitos pudessem entrar e sair do território nacional,
quando e como lhe convém, era o homem produtivo, “cidadão de bem” que colhia as
maleficências que a presença desses indesejáveis causava. O conceito de “indesejáveis”,
se estendia sobre os anarquistas violentos, sobre os caftens internacionais que
alimentavam o fenômeno do tráfico de mulheres, e de todos os indivíduos sem profissão
licita. Embora a polícia marítima tenha sido responsável por impedir o desembarque
desses sujeitos, a discussão em torno da presença desses estrangeiros foi se expandindo a
medida em que novas discordâncias foram sendo providenciadas 175.
Nesse sentido, a polícia, fosse marítima ou civil, deveria exercer duas funções
distintas, uma de prevenção e outra de repressão. Não se trata apenas de uma discussão
teórica, mas de uma distinção pratica e legal. De acordo com o art. 2 do decreto n. 6.440
de 30 de março de 1907, divide a polícia do Distrito Federal em administrativa e
judiciária, estabelecendo o Art. 3 que incumbia a vigilância em proteger a sociedade,
manter a ordem e tranquilidade públicas, assegurar os direitos individuais e auxiliar na
execução de atos e decisões da municipalidade 176. Segundo (MENEZES, 1996, p. 45) no
discurso cientifico do período, argumentos ideológicos foram sendo apresentados para
justificar a expulsão desses indesejáveis sob formas administrativas, ou seja, toda forma
de ameaça, considerado nocivo e pernicioso a sociedade, deveria ser eliminado do corpo
social.
175
MENEZES, Lena Medeiros. Ibidem, p. 45.
176
Boletim Policial. Rio de Janeiro. 1918.
e criminosos, artistas e proletários, prostitutas e comerciantes, o trânsito nas ruas, o
barulho mortífero no matadouro, os gritos do comício, os bairros elegantes e a multidão
nos metros e bondinhos, se tornando bastidores para o envolvimento de crimes
tenebrosos. Pode-se dizer, que a literatura, quanto nos boletins policiais, constituía um
certo “naturalismo infernal”, a partir da parábola do oficio do policial do experimento
literário177.
177
GAZETA DE NOTÍCIAS. 25/07/1936.
178
O Dia. O jogo dos bichos e o sentimentalismo. 22/01/1932.
dedicavam a contrabandear drogas como a mofina e a cocaína. Nesse sentido, embora
Curitiba apresentado meios capazes de farejar esses espaços.
Como quase tudo que era importado da Europa, no que se refere as práticas
policiais, estudos, métodos e instituições, a imprensa nacional parece ter incorporado, em
meio ao vasto vocabulário que delineava as práticas criminosas nas mais vastas cidades
do país, o termo bas-fonds. Como uma fina flor, os rastros desse imaginário “bas-fonds”
foram sendo utilizados pela imprensa paranaense para designar os “locais de crime”,
como já mencionado antes nos estudos em torno da policiologia. Na imprensa local, o
termo fazia referência as produções fílmicas dos anos 20 e 30, em que as narrativas se
passavam entre a “plebe”, como La Gigolette, de Za-la-Mort179 ou Enquanto a cidade
dorme, filme policial que chegou a estrear em Curitiba, no teatro Avenida, em 1930, em
que a história se desenvolve em meio aos aspectos de luta entre policiais e vagabundos
criminosos confinados nos bas-fonds nova yorkinos, que dava a impressão de uma
"completa realidade". Nas cenas desse filme, em toda sua sucessão, cenas e sequencias
descreviam os mais perfeitos equilíbrios do drama e policiamento, caminhando
paralelamente a uma sincronização e adaptação daquilo que era praticado no mundo
real180.
179
Personagem fictício criado na Italia, no começo do século XX.
180
A República. Enquanto a cidade dorme. 17/01/1930.
181
FREY, Julia. Toulouse-Lautrec; uma vida. 1997, p. 14.
182
O DIA. 02/09/1933.
O imaginário social construído sobre a mitologia da criminalidade e da vida
boemia, como arquétipos estabelecidos e associados aos avessos de uma sociedade
progressista, representava um certo tipo de direcionamento para as práticas delitivas,
como o alcoolismo, meretrício, desordem urbana, dentre outros, muitas vezes associados
à lugares e espaços insalubres, de pouca vigilância ou importância policial. Na
hierarquização e demarcação dos espaços públicos em tempos onde cotidiano era
restritamente delimitado a presença de um coletivo comum, havia toda uma mitologia
criada sobre os espaços destinados a marginalidade que costumava ganhar vida
tradicionalmente durante as noites das cidades. Para o historiador francês Dominique
Kalifa, a construção em torno da noção de bas-fonds, não apresenta uma definição exata
do que se ela parece designar, pois se trata de lugares e espaços que vão se tornando
ameaçados na medida em que os corpos vão se direcionando, na medida em que o crime
vai se desenvolvendo. Os bas-fonds acabou se tornando, nesse sentido, uma representação
do imaginário social de uma determinada época e sociedade, sobre uma realidade
demarcada pelos problemas referentes a imoralidade183. Em seu sentido social, o termo
refere-se à distribuição sazonal do aspecto inscreve temporalmente no âmbito da
marginalidade e do crime. Nesses espaços, como foi possível identificar em Curitiba, são
espaços que proporcionaram registros diários da intervenção policial e das crônicas
jornalísticas, o que nos possibilita a utilizá-las para estabelecer e verificar uma certa
comparação com base em uma série de dados e registros dos problemas que atingiam o
seio da sociedade.
183
KALIFA. 2017, p. 12.
184
Ibidem.
185
Ver GALEANO, OLIVEIRA, Escritos Policiais.
“tranquila e moralizada”, que, em decorrência do fervor dos grandes centros urbanos,
velhas metrópoles onde a imoralidade já não era tão facilmente “freada”, trazendo
possíveis fragmentos dessa marginalidade de outras cidades, para Curitiba. Como
pedaços de uma matilha humana que desapareciam em meio as intervenções policiais, e
por convicção, se instalavam sobre as luzes dos espaços familiarizados aos bas-fonds.
186
Diário da Tarde. 07/02/1935.
187
Princípio de que tudo era característico dos grandes centros urbanos do período.
188
O DIA. 01/09/1939.
lugares onde se reunia a “escória “de uma população marginalizada. Em Curitiba não foi
diferente, em frente a principal Estação da cidade, nos horários onde os trens costumavam
chegar ou sair, era possível perceber a aglomeração de grupos de vadios, de indivíduos
de “más cataduras”, desde o simples e maltrapilho malandro, até o “cavalheiro da
indústria”, como era denominado os gatunos “gentleman”. Eles se reuniam dando forma
a uma certa aglomeração de arruaças e brutais brincadeiras que terminavam com a
presença de autoridades públicas. A observação do constante movimento do bas-fond na
estação da cidade, só veio a público depois do próprio repórter ter vivenciado, durante
uma hora, a desordem enquanto aguardava a chegada de um trem e continuava dizendo
que ao som dos trens, os sujeitos, muitas vezes sujos, de roupas decompostas e moleques
atrapalhavam o vai e vem dos transeuntes. Em meio ao coro de assobios estridentes, cenas
detestáveis tomavam as noites daquele lugar, onde homens brutamontes espancavam
meninos de 10 anos com violência após furtarem frutas e verduras nas proximidades,
desparecendo em meio as ruas da praça Eufrásio Correia. Aquele local, como lembra a
imprensa, era “dominado pela vadiagem” e demarcava um território despoliciado,
habitado por indivíduos de diversas “formas e raças” 189.
189
O Dia. Um lugar pouco moralizado. 08/1928.
190
Diário da Tarde. “Foi o amor uma chama sangrenta ...”. Curitiba, 18/11/1931.
tom irônico, eram a nova forma “inovadora” de introduzir nos bares das cidades, mulheres
para atividades incertas, tomando densa atmosfera que esvoaçava sobre as noites dos
salões barulhentos dos bebedouros da cidade, em meio aos bas-fods da cidade. Esses bares
da vida mundana, refletia sobre a inferioridade em relação a outros estabelecimentos de
“categoria superior”, ou seja, espaços destinados à sociabilidade masculina, mas que
respeitassem certa “civilidade”, como exigido em outras partes do mundo.
Essa pequena crônica descrevia uma em meio as várias noites comuns da vida
noturna da capital nos bas-fonds, que traziam consequências à desordem, através da
ausência de outros “prazeres”, a sedução do álcool assestada em dezenas de bares,
progrediam rumo a uma certa “ceifação” social, “deturpando os costumes, aniquilando
caracteres, provocando tragédias”. Essa narrativa fazia menção a um crime ocorrido na
noite anterior, no bar “Werner”, localizado na rua Barão do Rio Branco, de propriedade
de Werner Evermann, que envolvia a presença das “garnonettes” que trabalhavam a
serviço do bar. A meretriz Eudocia de Oliveira de 32 anos, já era frequentadora assídua
dos numerosos bares da cidade, de pouca moral, segundo a crônica, esteve sempre
procurando, com perspicácia e habilidade de “borboleta”, tirava o proveito de suas falsas
amizades, criando em torno de si, um grupo de admiradores que se levavam pelos
carinhos destilados pela mulher. Sem que pudesse prever uma certa consequência,
Eudocia, vulgarmente apelidada por “Dacia”, agia aplicando o seu sistema de engodo
para realização de seus próprios interesses.
191
O DIA. 23/04/1935.
Há aproximadamente oito meses antes, Dacia teria conhecido um sargento cuja
identificação era Cieiro Augusto de Araújo Silva, que após se conhecerem, mantiveram
uma amizade ambígua. Após a desarmonia entre o namoro de ambos, Dacia desejava que
o sargento respeitasse sua “liberdade”, voltando a trabalhar como garçonete no bar de
Werner Evermann. Aos poucos, Cieiro passou a demonstrar comportamentos violentos,
acusando a amante por diversas vezes, tudo impulsionado, segundo ele, pela “explosão
causada pelos ciúmes”. Com o “espirito perturbador”, após constantes denúncias que a
mesma teria feito após uma série de ameaças, certo dia, ao sair do posto de onde
trabalhava, se dirigiu ao bar onde sua amante trabalhava e encontrou Dacia em atividades
comprometedoras com frequente do bar. A partir de então, o sargento rapidamente
chamou a vítima para um “box reserved”, para conversar com a amante, mas ao notar
certo esnobismo e rejeição, sacou uma arma alvejando três tiros contra Dacia. O crime
teria acontecido no dia 17 de novembro de 1931, sendo publicado pela imprensa local
apenas no dia seguinte. Até a publicação do jornal, a vítima se encontrava em estado
grave, já que um dos disparos teria perfurado a garganta, na região da laringe e outra na
coxa da perna192.
192
Diário da Tarde. Foi amor, uma chama sangrenta. Curitiba, 18/11/1931.
193
O Dia. Entre gravetos e fagulhas. Curitiba, 16/05/1929.
Dessa forma, o que nos interessa é esse aspecto fictício de uma certa sociedade
parisiense, e a forma como essa noção de bas-fonds foi sendo introduzida como
“máscaras” que resguardavam uma vida alternativa de Curitiba, acompanhada sempre de
uma escala moralista. Isso acabou se refletindo na própria juventude da cidade, que
estendiam até altas horas da madrugada, frequentando bares e bordeis, enveredando,
inconscientemente, um caminho pelo crime e pela perdição. Os lugares que ambientavam
os bas-fonds da cidade, eram excitados pelo antecipado despertar de um sensualismo
maquiavélico e no desequilíbrio social causado pela criminalidade. O problema em si,
não era apenas os lugares, mas sim as consequências que apresentavam à sociedade,
levando crianças a se tornarem pedintes de cigarros, bebidas e outras mercadorias que
eram manejadas por sujeitos que praticavam a delinquência como os jogos de azar.
Sendo assim, é quase indiscutível que nestes espaços era possível compreender
uma geografia, tanto do prazer, como lembra (RAGO, 1989), ao se referir aos lugares
onde era possível identificar a prostituição feminina em São Paulo por meio de
intervenções policiais, quanto as práticas marginalizadas que foram sendo registradas
pelas diversas formas de manifestação contra esses sujeitos, desde periódicos, processos
criminais e outros documentos. Com essa possível localização, pode-se ter um panorama
da projeção das diversas provocações e manifestações imorais, que foram sendo
projetadas em meio ao cotidiano urbano. Desde cafés concertos, onde apaches se reuniam
para dialogar sobre suas facetas, dos criminosos que confirmavam seus planos de assalto,
a cidade foi sendo consagrada como uma grande interpretação das “fidalgas da plebe”.
194
Correio do Paraná. Exploravam escravas brancas.
apuraram que o sujeito teria tentado instaurar um novo sistema entre os bas-fonds da
capital, chamado “Ala da Lenha”, que pretendia casar dançarinas com rapazes do mesmo
“naipe”, como se fossem meras mercadorias. Assim como acontecia com a organização
internacional, recém descoberta, Cícero tentava casar os envolvidos através de falsos
documentos, colocando ainda a condição das mulheres esposas, como obrigadas a
sustentar o marido, como se estivessem trabalhando a favor de seus proxenetas.
195
DIÁRIO DA TARDE. 18/11/1931.
Como forma de coibir a prostituição clandestina, que nas ruas centrais dava a
sociedade o espetáculo de uma cidade sem polícia, os métodos de identificação se tornam
instrumentos de importante análise para processar casas de tolerância, rendez-vous e
praças onde eram praticados o trottor. Segundo (AGUIAR, 2016, p. 44), a maioria das
reclamações por parte de periódicos da cidade, provinham de queixas registradas pelas
ruas Saldanha Marinho, a Racticliff e a Visconde de Guarapuava. Analisando
aproximadamente 100 prontuários de identificação das meretrizes, dentre os anos de 1929
e 1931, foi possível identificar um número significativo de mulheres meretrizes que
residiam em certas ruas da cidade. A antiga rua Racticliff, atual Rua Desembargador
Westphalen, apresentava um total de 13 mulheres identificadas, e sabe-se que, dentre uma
delas, uma além de meretriz, era também cafetina. Através de uma inspeção de tavolagem
da polícia da capital, chefiada por João M. de Siqueira, a disposição da Delegacia de
Polícia de Segurança Pública da capital, o mesmo emitiu um comunicado sobre Maria
Mesquita, proprietária do referido bordel, teria negado permissão de policiais noturnos
para entrar no interior do estabelecimento. Tendo em vista que a casa albergava diversos
indivíduos, dois guardas ficaram responsáveis por intimidar a referida para se apresentar
a Repartição, para dar explicações sobre o seu “modo de proceder” mediante a presença
de autoridades policiais.
196
O DIA. Dava tiros para o chão. 14/01/1930.
197
O DIA. Furtos. 16/01/1931.
198
O dia. Sururu em casa de Negra Brasília. 04/02/1930
Menores continuavam a “desaparecer” misteriosamente e eram descobertas em
bordeis da cidade, como na rua Saldanha Marinho, onde Manoel Augusto Rosa, teria
denunciado que duas menores de 5 e 8 vivam acompanhadas de outras 5 mulheres
meretrizes199. Outras ruas e bairros vão compondo toda uma “geografia do prazer”, em
meio a uma série de crimes e comportamentos desviantes, fosse nas rua XV de Novembro,
Desembargador Westphalen, centro da cidade, ou no Portão, esses espaços de conflitos,
emergiam e ganhavam destaques em meio a imensidão das noites curitibanas, colocando
em discussão uma questão que afetava a eficiência das forças policiais no Estado, em
meio aos tantos de denúncias e reinvindicações por parte da imprensa, que de certa forma,
atendiam as “suplicias” da sociedade curitibana, por meio de jornalistas sensacionalistas,
que codificavam e registravam as proporções que a desordem estaria tomando em meio
ao centro urbano da cidade.
199
O dia. Menores Desamparados. 14/02/1930.
200
Diário da Tarde. Regnier Negreiros foi encontrado morto na rua desembargador Westfalen. 07/05/1934.
Figura 3 - Ilustração que remete os bas-fonds em Curitiba, ilustrando uma cena do cotidiano da cidade
em meio a miséria, pobreza e marginalidade. DIÁRIO DA TARDE, 27/04/1935. Autor desconhecido.
201
Diário da Tarde. Abandono lamentável dos que vegetam no lodo. 23/05/1935.
Figura 4 - Ilustração que abrange aspectos da criminalidade, violência e meretrício nas ruas da capital
curitibana, em meio aos territórios denominados por “bas-fonds”. Diário da Tarde. 13/06/1935.Autor
desconhecido.
202
GRUNER, Clóvis. 2016, p. 196.
203
DIÁRIO DO PARANÁ. 02/07/1932.
No final do século XIX, vimos o papel importante da imprensa na constituição
da nação enquanto simulacro, da construção de uma fragilidade feminina, por meio do
discurso que colocava, através de seu posicionamento, instituições ou ideologias acima
de todos os sujeitos que não constituíssem uma hegemonia coletiva. Segundo Marocco, a
imprensa periódica desempenhou um papel importante por sua articulação com uma rede
de discursos sociais, que no seu interior, produzia um conjunto de enunciados que
organizavam as camadas mais podres da mesma forma como eram encarados os
problemas sociais como a delinquência204. Dessa forma, através de manifestações
populares, de uma elite insatisfeita com a presença cada vez mais onipresente de sujeitos
pobres e marginalizados, criou-se uma produção do espaço criminalizado, em meio ao
próprio coração dos grandes e pequenos centros urbanos. Através da noção de uma
“geografia das existências205”, a imprensa que atuava por meio de metanarrativas,
produziu cada vez mais, discursos hegemônicos para definir e enquadrar sujeitos sociais
através do imaginário da violência que a própria mídia do período produzia.
204
MAROCCO, Beatriz. P. 13.
205
CAMPOS, Adrelino. Por uma geografia das existências, 2014.
206
DIÁRIO DA TARDE. 03/01/1934.
casas, de porta em porta, em diversas regiões vizinhas ao centro buscando “apaziguar” as
penumbras que perturbavam a ordem em todos os cantos207.
207
Ibidem.
208
Vida Policial. Rio de Janeiro, 1926.
209
VIDA POLICIAL. 13/03/1926.
competiam os deveres em rondar as ruas da cidade, dentre outros, levando pelos bons
costumes, pela moral, bem como também instaurar a execução e obediência das leis e dos
regulamentos em vigor, protegendo e defendendo senhoras, idosos, crianças e
trabalhadores, buscando garantir ainda, a liberdade individual e coletiva, amparada por
lei210.
Nesse contexto, era preciso uma Delegacia moderada e justa, capaz de fornecer
uma enérgica vigilância sem ser a violência na cidade, cercando os auxiliares de todo o
prestigio, exercendo uma função altamente moralizadora, e finalmente, dar combate aos
vícios e maus costumes que afrontavam a sociedade, escarneciam as leis e perturbavam a
ordem descumprindo o caráter “civilizatório”. A partir da criação da Delegacia de
Costumes em Curitiba, em 1928, criada pela lei. 2531, de março de 1928, e o seu
surgimento teve impactos diretos no cotidiano de centenas de mulheres e homens na
capital paranaense, atuando na vigilância geral e captura, tratando de furtos e roubos,
além de mediar a relação da prostituição no espaço urbano. Essa instituição passou a ficar
á cargo dos problemas de caráter moral e social, como a prostituição, vadiagem,
vagabundagem, jogos, defloramento, estupros dentre outras processos referentes aos
desvios da conduta humana 213. No que tange as mulheres de vida pública, em relatório
210
VIDA POLICIAL. 18/4/1925.
211
AGUIAR, Nayara. Ibidem. P 128.
212
VIDA POLICIAL. Idem.
213
GRUNER, Clóvis. Ibidem. P. 287.
apresentado pelo Chefe de Polícia de 1928, a prostituição era o vício que permeava a ralé
feminina que não familiarizava com tamanha imoralidade, mesmo com enérgicas e
“fatais” medidas buscando desaparecer esse “repugnante vício” que perseguia a juventude
curitibana214.
214
Relatório do Chefe de Polícia de 1928, p. 64.
215
Vida Policial. Como se prepara um policial. Rio de Janeiro, 14/03/1925.
regulamentação da sociedade por meio das forças do Estado, tomando espaço para algo
de caráter mais repressivo, um sentido negativo das formas de controle das sociedades 216.
216
AMARAL; PILAU. 2017, p. 2581.
217
ANTÔNIO, Luís. Ibidem. P. 77.
218
GALEANO, Diego. Ibidem. P. 129.
própria imprensa local passou a questionar veementemente, a capacidade reguladora das
autoridades policiais em fiscalizar e deliberar a lei em diversos cantos da cidade. Não se
trata especificamente de acusar o Estado ou o Município, de não haver um policiamento
contingente no espaço urbano, mas sim, problematizar até certo ponto, uma insuficiência
no número de agentes civis em meio aos obstáculos da delinquência na cidade. Como
lembra o historiador Gruner219, havia uma baixa remuneração no que se refere a
profissionalização da Guarda Civil, o que fazia com que a ocupação fosse encarada como
algo temporário, sem muitas perspectivas de carreira, o que de antemão pode ser
explicado para sinalizar as constantes manifestações da imprensa local contra as
autoridades públicas;
219
GRUNER, Clóvis. 2016, p. 135.
220
Ibidem.
221
Relatório do Chefe de Polícia, 1928.
“a população já dormia tranquila e descuidada, embora sabendo que a cidade não era
policiada222”. Como em todo centro urbano em movimento, não tardo para que os roubos,
assaltos noturnos voltassem a agitar os anais de polícia e a sobressaltar os olhares da
população. O dr. José Merhy, delegado de Vigilância e Investigações, decidiu colocar em
sociedade, alguns dos gatunos que haviam sido presos após consecutivas apreensões. Ao
delegado ou delegados, não competia o exercício de patrulhar a cidade inteira, devido a
suas proporções geográficas, o que muitos faziam, era descobrir e prender elementos
nocivos por um determinado período. Mas, essas medidas não foram o suficiente para
uma cidade como Curitiba, que se estendia a dez ou doze guardas civis e 8 investigadores,
além de conter com um policiamento “sem eficiência alguma” 223.
No centro da cidade, qualquer cidadão poderia ser assaltado em plena luz do dia,
que não encontraria auxilio policial, restando como consolo, a tarefa de se queixar ao
delegado do distrito que, segundo o Correio do Paraná, “sempre promete providencias,
mas raramente consegue apanhar o culpado, por mais boa vontade que tenha e atividade
que desenvolva”224. O argumento que o periódico se debruçava a reafirmar, se dava sobre
a forma como as autoridades policiais se mobilizavam para efetuar a vigilância na cidade,
apresentando métodos “deficientíssimos”, mesmo que o governo, no seu dever, devesse
garantir ao povo garantias em prol da harmonia social. Lembra ainda que:
Uma capital como Curityba não pode ficar despoliciada, mercê dos amigos do
alheio e dos arruaceiros. Somos um povo civilizado, que tem justiça codificada
e garantias estaduais em lei. É preciso que o governo dê ao povo estas garantias
e faça respeitar o texto da lei, custe o que custar. Não podemos, como qualquer
cow-bow do farwest americano, andar de garrucha á cinta225.
Tal discussão, aponta para o fato de que o policiamento da capital não atendia as
ocorrências, seja nos trabalhos normais de vigilância noturna, ou nas investigações
preventivas, normalmente desempenhadas pelos mantenedores da lei. No tempo da
República Velha, segundo o Correio do Paraná, não havia um policiamento urbano que
surgisse efeito nas cidades, e parecia não haver, porque os guardas cívicos eram
escavinados para vingar as casas de figurões da polícia, sendo mais fácil encontrar um
guarda fazendo vigília em um quintal particular, do que na rua da cidade onde o povo
pagava pelas “desgraças” dos delinquentes. Nesse período, a Guarda Civil teria sido
222
O DIA. 27/05/1937.
223
IGNÊS, Maria. Ibidem. P 65.
224
Correio do Paraná. Curitiba, uma cidade despoliciada. 06/01/1934.
225
Correio do Paraná. Curitiba, uma cidade despoliciada. 06/01/1934.
reduzida em seu efetivo, como parte de uma medida “econômica”, ocasionando uma
cidade como Curitiba, despoliciada e as margens das “tentações” vindas de fora. Os
roubos em casas particulares, os vandalismos nas ruas e em propriedades mais afastadas
do centro, continuavam a todo vapor, e isso afetava até mesmo a iluminação pública da
cidade, já que eram surrupiadas as iluminarias públicas que iluminavam a cidade em meio
a escuridão. Segundo o periódico, os dados policiais não apresentavam estatísticas
coerentes com a realidade vivida na prática, já que muitos comerciantes ou sujeitos
comuns não prestavam declarações a polícia, pois além de ser um “incomodo”, a queixa
não trataria de reaver o produto do roubo226.
226
CORREIO DO PARANÁ. 30/01/1931.
227
IGNÊS, Maria. Ibidem. P. 34.
228
O DIA. 29/03/1937.
trata apenas de insinuar a falta de competência das autoridades policiais, mas também
reconhecer a falha desse fenômeno, que pode ser explicado através da deficiência de
auxiliares e de outros elementos indispensáveis que não deveriam ser recorridas por
medidas de “economia”, desculpa usada pelo município para justificar o número de
efetivos em atividade. Não se trata, novamente, de uma cidade sem polícia, mas de uma
certa limitação por parte administração de vigilância pública, que não estaria habilitada o
suficiente com o desenvolvimento da marginalidade nas ruas mais afastadas, onde “não
existiam guardas cívicos nem para fazer remédio” 229.
229
Correio do Paraná. Serviço de Policiamento. 02/08/1933.
muita calma e sem deixar grandes vestígios de suas atividades, tudo que encontraram,
desde roupas, joias e objetos de valor, eles surrupiavam. Já na delegacia Espacial de
Vigilância e Investigações da cidade, as autoridades prometeram as mais “satisfatórias
diligencias” no sentido de deitar mão nos autores da roubalheira 230.
230
Correio do Paraná. Limpeza em rega. 27/05/1938.
231
O DIA. 27/05/1938.
232
CORREIO DO PARANÁ. 01/09/1936.
233
Correio do Paraná. Uma zona que está pedindo vistas da polícia. 06/02/1927
primordialmente, da presença das autoridades públicas. Roncaglio, analisando as
mulheres curitibanas no espaço público e a formação histórica de uma cidadania feminina,
comenta que até o final do século XIX, Curitiba havia adquirido feições que aos poucos
foram dando espaço e lugar á paisagens de uma cidade moderna, deixando no passado, a
aparência provinciana que se arrastada durante décadas. Em meio as polacas, italianas e
alemãs, as ruas eram movimentadas por vendedoras ambulantes que se encontravam com
mulheres citadinas, elegantemente vestidas, trocando olhares, e em certa medida,
evitando certos desvios234.
A partir da tônica desses discursos até aqui analisados, podemos identificar alguns
possíveis rastros, ou passos largos que a Migdal teria executado no cenário curitibano em
meio a essa diversidade de causalidades que registravam o cotidiano subversivo da
capital, dos anos de 1920 ao decorrer da década de 1930. O Correio do Paraná, sob título
“Haverá polícia no Paraná”, publicou uma série de comentários, a propósito de uma
notícia, em forma de denúncia publicada pelo Gazeta do Povo, sobre a criminalidade na
capital. Tratava-se da descoberta de uma sociedade secreta denominada “Isca” com o fim
de “defender” a sociedade curitibana, evitando escândalos nos lares. O processo de
“defesa” e de “não escandalizar” foi baseado no princípio hahnemanniano do “similia
similibus curantur”, ou seja, lançar-se a lança a “Isca” na divulgação das infelicidades
conjugais por meio de jornais de circulação gratuita. A notícia parecia fantasiosa, se não
a divulgasse um jornal da capital paranaense que da sua informação um tom jocoso, ao
invés de profligar a infâmia planejada e que pelo nome de “organização” indica o fim
oculto que tem a empresa, verdadeira novidade no gênero mais perigoso das chantagens.
A capital do paraná estava se transferindo, ainda que gradativamente, em um paraíso
desses “corvos da honra alheia” que preparavam tamanha ameaça contra a população,
nem muito menos, será tão despoliciada a ponto dos seus habitantes terem os lares sujeitos
a avidez dessa mão negra, “sui-generis”236.
234
RONCAGLIO. 1996, p. 69.
235
Ibidem.
236
Correio do Paraná. A mão negra em Curityba?
No final de 1928, O Dia publicava a notícia de em Genebra, através de assembleia
da Liga das Nações, foi apresentado um relatório sobre o Tráfico de Escravas Brancas ao
Lord Cushendum, representante da Grã Bretanha na assembleia, trazendo e defendendo
que os demais membros da Comissão se manifestassem em apoio a repressão ao tráfico
de mulheres, que alimentava um comércio imoral e imortal em diversas nações. Na
Inglaterra havia sido instaurada uma polícia feminina, exclusivamente para obter
melhores resultados no combate ao tráfico de mulheres brancas e proteger a moral de
jovens inexperientes que eram facilmente enganadas. O sr. Cushendun fez questão de
lembrar o fato de ter sido um dos primeiros, na Inglaterra, a propor emprego de mulheres
na organização de uma polícia especial de repressão ao lenocínio, salientando que a
experiencia tem demonstrando o concurso valioso que as mulheres podiam prestar sobre
tais serviços.237
Figura 5 - Em comemoração ao aniversário da República Nova, a ilustração fez uma sátira com o
embelezamento da figura feminina, alegando que, as moças "atraentes", deviam tomar cuidados para
não facilitarem o perigo da "Migdal" na capital. O DIA. 16/09/1931. Autor desconhecido.
237
O Dia. Trafico de Escravas Brancas: uma policia feminina de repressão ao lenocinio. Curitiba,
05/09/1928.
Dentro da agitação da vida moderna, como veremos no capítulo a seguir, o
tráfico de mulheres também desempenhou, ainda que de forma minuciosas, mas não
menos importante por isso, medidas policias para tentar conter uma possível exploração
do lenocínio e da “carne branca” na capital. Nesse mundo, tão vasto e ignorado, que se
ergue no bas-fond da cidade, viviam, além de outros elementos considerados perigosos
como comunistas, traficantes de drogas e de bebidas, criminosos, outros sujeitos que
estiveram à mercê dos círculos mundanos que fazia contraposição a aparente aristocracia
social que parecia dominar as atenções e olhares do policiamento, ignorando o fato de
existir, em meio a lama das sarjetas, mulheres vítimas do tráfico e da exploração, crianças
que nasciam diretamente das lamas, as sombras de vida luxuosa. Se antigamente
exploravam as “escravas pretas”, em tempos “modernos”, a tendência era explorar as
“escravas brancas”, e os avisos chegavam por via da imprensa local com cartazes onde
continham avisos as moças da juventude curitibana, para não se deitarem contra as
falcatruas e seduções de homens criminosos, exploradores de mulheres.
FONTES:
GLOSSÁRIO
Alcouces: O mesmo que bordeis, lupanares, lugares que concentram a prática da
prostituição.
Anômico: Falta de organização, desordem, que foge das “regras”, provocando uma perda
de identidade.
Araneae: O mesmo do reino das aranhas de classe Arachnida.
Bar-saloon: Bares que concentravam concertos de músicas, onde muitas vezes o
meretrício se tornava uma forma de “espetáculo”.
Box reserved: Espécie de cabine reservada para encontros e relações intimas.
Bungalow; Espécie de casa ou sobrado cercado por árvores, flores e plantas, associado
também a casas típicas de colônias estrangeiras.
Boulevards; Termo que desgina um tipo de via urbana, com ruas e pistas largas em dois
sentidos.
Chauffeur: Refere-se ao ofício de Guarda Municipal.
Criminoso escruchulante: Menção ao criminoso popularmente conhecido por pequenos
furtos e roubos, muito comum entre garotos adolescentes, que, na teoria, não
apresentavam ameaças graves a sociedade.
Dancings: Bailes e festas presentes em bares, bordeis e prostíbulos, onde homens e
mulheres se juntavam para dançar.
Dançarinas de can-can: Dança típica da França, popularmente praticado em salões e
bordeis.
Escamoteamento; O mesmo que encobrir, esconder.
Fervet opus: Relacionado a atividade profissional de alguma prática.
Franchucas: Menção as meretrizes de origem francesa.
Garçonnieres: Mulheres francesas que trabalhavam como garçonetes em bares, salões,
bordeis e restaurantes.
Gales de nuit: Espécie de doença viral, como a Sarna.
Gentleman: Refere-se a homens, “cavaleiros”, de bom porte.
Lenocínio; Crime de depender de outrem para fins econômicos através do aliciamento e
exploração da prostituição.
Maillots; Espécie de maiô, utilizado pelas mulheres.
Métier; Ocupação especifica sobre alguma área do trabalho, o mesmo que escritório,
oficina.
Panóptico; Termo utilizado por Michel Foucault, em Vigiar e Punir, que define a noção
de sociedade disciplinada.
Proxeneta; Sujeito que vive e depende do meretrício de mulheres exploradas.
Polacas; Mulheres de origem europeia, oriundas de países pobres. Embora o termo se
referia a Polonia, na prática, o termo “polaca” era usualmente associado as meretrizes
estrangeiras pobres, diferente das francesas, sinônimo de luxo e riqueza.
Rendez-vous; lugares, ruas e praças onde as mulheres meretrizes costumam circular na
ocupação de meretriz.
Similia similibus curantur; Lema dos homeopatas que expressa que teoria de que curar
sintomas no indivíduo doente ela deve causar sintomas semelhantes no indivíduo sadio.
Shymenoptera: É um dos grupos de espécie de abelhas.
Trottoir: Pratica de circular entre as ruas e praças das cidades, em busca de clientela.
Zwi-Migdal; Organização criminosa que surge no começo do século XX, destinada ao
tráfico de mulheres europeias para as Américas.
Certificamos que o trabalho intitulado: ZWIMIGDAL: PROSTITUIÇÃO E
TRÁFICO DE ESCRAVAS BRANCAS PELA IMPRENSA CARIOCA (1920
1930), foi apresentado no Simpósio Temático Gênero e Violência, no evento III
Colóquio de Gênero e Pesquisa Histórica, realizado no período de 1 a 3 de
setembro de 2020, com carga horária total de 16h, na Universidade Estadual do
CentroOeste, UNICENTRO.
Autor: WELLINGTON DO ROSÁRIO DE OLIVEIRA, CPF 10442005962
Coautor(es):
Número: 86951
Irati, 15 de setembro de 2020
Professor(a) Nadia Maria Guariza, Professora Lucélia de Souza,
Coordenador(a) do Projeto PróReitora de Extensão e Cultura
01/9 19:30 as 22:30 Conferência com a socióloga Dra. Wânia Pasinato “Violência de gênero e
pandemia”
02/09 Apresentação dos trabalhos nos Simpósios Temáticos
03/09 19:30 as 22:30 Conferência com a historiadora Dra. Joana Maria Pedro “Mulheres nos
espaços do setor público”
As atividades foram realizadas pela plataforma Google MeetYouTube
Certificamos que WELLINGTON DO ROSÁRIO DE OLIVEIRA (CPF nº 104.420.059-62) apresentou, na
modalidade apresentação oral, o trabalho intitulado "Do social ao imoral: a trajetória de Gabrielle Brune-Sieler narradas
pelas páginas da imprensa (1924-1937), no Simpósio Temático: Mulheres, impressos e imprensas: dimensões e
espaços sociais para além da maternagem - séculos XIX e XX", na Ação de Extensão I SEMANA INTERNACIONAL
DE HISTÓRIA E IX SEMANA DE CIÊNCIAS HUMANAS: CONTEMPORANEIDADES, RESISTÊNCIAS E
DISCURSOS (UFMS/CPCX), realizada pelo/a Câmpus de Coxim da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul, no período de 14/09/2020 a 18/09/2020.
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