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Indiferentismo religioso

Conferência feita em 24 de Outubro de 1901 no Círculo Católico da Mocidade em


presença do Exmo. e Revmo. Sr. D. Joaquim Arcoverde Arcebispo do Rio de Janeiro pelo
Dr. Carlos de Laet.

Com aprovação da autoridade diocesana.

ADVERTÊNCIAS NECESSÁRIAS

1ª Havendo, nesta conferência, exposição de matéria que entende com o dogma e a


moral, o autor muito voluntariamente a submete às decisões da autoridade eclesiástica.

2ª Aqui se publicam por extenso algumas leituras que, por não se fatigar o auditório,
apenas foram resumidas ou indicadas pelo orador.

E, 3ª: foram suprimidas as notas de aprovação ou aplauso; e somente se registra a


benção com que ao terminar o seu discurso, foi o orador premiado pelo Exmo. E Revmo.
sr. Arcebispo.

SUMÁRIO

I. — Caráter do indiferentismo nos tempos atuais e na sociedade brasileira. — Matizes do


indiferentismo. — Algumas palavras sobre o materialismo e o positivismo. — A
pseudo-religião de Comte.

II. — Deístas, latitudinários. — O deus de Epicuro. — A religião natural. — Como do


protestantismo nasceu o deísmo. — perigo de certas concessões... — A solidariedade no
erro. — Bayle contra os latitudinários.

III. — A razão como arquiteto de religiões. — Pretensa intolerância e estreiteza do


dogma católico. — Quanto, ao invés disto, se evidencia a sua caridosa lição. — O
indiferentismo albergue de ruins paixões.

IV. — O indiferentismo religioso na família, — No exército e na armada. — O Estado


separado da Igreja. — Vãos receios de uma religião de Estado opressora. — A tolerância
dos indiferentes. — Um pouco de estatística. — Entre a moral e o dogma. — Harmonia
no divórcio.

V. — (Conclusão) — O caminho da verdade, do belo e do bem. — CHRISTUS regnat!

INDIFERENTISMO RELIGIOSO

Exmo. e Revmo. Sr. Arcebispo, — Revmos.

Srs. Membros do Clero. — Exmas.

Senhoras. — Meus senhores.

Tendo realizado em junho do ano passado uma conferência sobre a Instrução religiosa,
acreditei que cumprido se achava meu dever, porque me não eximira do encargo de
suprir, nesta tribuna, a falta de oradores mais competentes, ocasionalmente impedidos;
e pensei que portanto, estava dispensado de novamente ocupar a vossa benévola
atenção. Sucede, porém, que hoje, como então, há quem entenda que de todo
descabida não será a minha palavra, e eis porque, pela segunda vez, aqui estou
solicitando a vossa benignidade para o que da minha parte seria infundada presunção, se
apenas não fora prova de submissão e obediência.

Senhores, o assunto de que vou tratar tem o magno interesse da atualidade, porque, se
o indiferentismo em religião é moléstia antiga, irrefragavelmente assume caráter agudo
nos tristes tempos que atravessamos. Verberá-lo, mostrando a sua sem-razão e as suas
perigosas conseqüências, é tocar com o dedo em uma das mais dolorosas chagas da
sociedade moderna, e muito principalmente da comunhão brasileira em nossos dias.

Principiemos, senhores, metodicamente definindo esta enfermidade moral. “A indiferença


em religião (leio em seguro expositor) consiste em sustentar que todas as religiões são
igualmente boas; que nenhuma delas é, mais do que as outras, verdadeira e vantajosa
aos homens; que a cada povo e a cada particular se deve deixar a liberdade de prestar a
Deus o culto que lhe aprouver, ou mesmo de não prestar culto algum, se o tiver por
conveniente”1.
Cumpre notar que, de ordinário, em o número dos indiferentes se confundem vários
matizes da incredulidade. Suponhamos, para melhor explanação deste assunto, que nos
achamos em um desses lugares, em que, todos os dias, nos acotovelamos com
indivíduos das mais diversas maneiras de pensar, na sala de redação de um jornal, por
exemplo, e que aos nossos ouvidos ali chegam sons do bronze sagrado, convidando os
fiéis à assistência da Missa. Alguns, os católicos, preparam-se para o cumprimento desse
dever; e aos outros interpelamos por que não o fazem.

— Sou materialista, responde-me um. Para mim todo o universo se resume naquilo que
me dão testemunho os meus sentidos: a matéria eterna e infinita. Todo culto para mim é
uma superstição odiosa.

Estaríamos então a dialogar com um indiferente? Certo que não. Este tal não é um
homem a quem sejam indiferentes quaisquer religiões, porque ele as proscreve todas.
Não é com ele que hoje haveríamos de tratar. Poderíamos, com vantagem, notar-lhe que
as suas teorias, estabelecendo a eternidade da matéria para dispensar a criação,
constituem, por singular falta de lógica, um dogmatismo sem demonstração científica.
Poderíamos amiudar as objeções que esmagam esse vão sistema, para o qual tudo é
matéria... Poderíamos exprobar-lhe a abjeção da sua doutrina, que rebaixa o homem à
condição dos irracionais, prona atque ventri obedientia, como diz o Sallustio. Mas o
materialista não é um indiferente, e agora escapa ao objeto desta conferência.

Outro dos circunstantes que figuraríamos, seria um positivista. Notai, porém, que fora
preciso desdobrá-lo, porque há positivistas e positivistas. Há o grupo dos Littreístas que
francamente vão descambando no materialismo; e o grupo dos Comtistas, que
acompanham o mestre na sua segunda fase e que têm sacerdotes e culto externo.

Uns e outros (vede-o bem) distinguem-se do materialismo, porque, mediante uma


evasiva, que seria hábil se desde muito não fosse tão conhecida, preceituam a abstenção
de juízo sobre as primeiras origens e últimos fins. Ora, desde que absolutamente nada
aceitam sobre a existência de Deus criador e sobre o destino do homem, claro está que
da religião nada querem, e nada têm que ver com as crenças religiosas dos demais
homens.

Ordinariamente, senhores, se costuma dizer que o positivismo é a filosofia do relativo, a


condenação do absoluto, mas cumpre entendê-lo em termos, e tendo sempre em vista
que no incognoscível de Spencer ou na imensidade de Littré entreluzem os clarões da
nebulosa em que se envolve o nosso Deus. Ouçamos a um príncipe do positivismo:
“O que se acha além do saber positivo (diz-nos ele) ou, materialmente, o fundo do
espaço ilimitado, ou, intelectualmente, a concatenação das causas sem termo, é
inacessível ao espírito humano. Mas inacessível não quer dizer nulo ou inexistente. A
imensidade tanto material como a imaterial, por um apertado liame se prende aos
nossos conhecimentos, e por esta aliança se torna uma idéia positiva e da mesma
ordem; quero dizer que, tocando-os e orlando-os, esta imensidade aparece sob o seu
duplo caráter, a realidade e a inacessibilidade. É um oceano que incessante vem bater às
nossas plagas e para o qual não temos barcos nem velas, mas cuja visão é tão clara
quão formidável”2.

Aí tendes, senhores: o positivista discerne o infinito na matéria e no pensamento.


Chegado à praia que orlam e açoitam as vagas temerosas desse mar intérmino, ele não
pode contestar a existência e, muito mais do que admitir-lhe a possibilidade, ele o
reconhece como noção positiva. O que lhe falta (para continuar a servir-me da bela
imagem de Littré) são as velas, é a barca com que se arrisque ao duvidoso pélago...Que
fazer em tão ansiosa conjuntura? O que aconselharia o espírito da seita fora a indefinida
contemplação dessas vagas misteriosas: mas tal indecisão vai de encontro à natureza
intelectual do homem, e tão verdade é isto que logo entraram a fragmentar-se os grupos
positivistas; uns, indóceis aos segundos ensinamentos de Comte, insensivelmente têm
descambado para as hostes do materialismo, que com eles não pouco se têm
aumentado; ao passo que outros, obedientes às místicas abusões do velho adorador de
Clotilde de Vaux, arquitetaram um “catolicismo sem Deus” e criaram uma
pseudo-religião sobre cujos termos convém que nos não equivoquemos.

Esta distinção, senhores, é essencial, porquanto não se cansam os comtistas de


apregoar que o seu sistema é essencialmente religioso. O próprio Comte, aliás, bem
claramente disse que – se no seu Curso de Filosofia Positiva tinha mudado a ciência em
filosofia, no seu Sistema de Política Positiva mudara a filosofia em religião3. Legítima é,
portanto, a curiosidade no inquirirmos que coisa seja essa esquisita religião, que fecha
os olhos a Deus, e que proscreve as agitações da causa primeira do universo e dos
últimos fins do homem.

Senhores, a religião do comtismo nada tem de comum com as outras senão a


sonoridade do vocábulo, pois que não é uma religião. O positivista não é um indiferente
em religião, não é um homem a quem sirvam todas as religiões, pois ele só admite uma,
e essa não é religião. Este vocábulo para ele não tem a significação que o resto do
mundo lhe dá. Para nós, como para todos, exceto para os discípulos de Comte, religião é
o conhecimento da Divindade e do culto que lhe devemos render, noção a que se junta a
vontade de bem cumprir esse dever. Segundo a força do vocábulo (re ligo), ela é o laço
que prende o homem a Deus e à observância das suas leis pelos sentimentos de
respeito, de temor, de submissão, de gratidão, de confiança e de amor, que nos inspiram
as perfeições divinas e os benefícios que do ALTÍSSIMO temos recebido. Eis o sentido
que ligamos à palavra. Mas não assim os positivistas que se inculcam ortodoxos. Para
estes, segundo a definição do seu mestre, a religião não passa do — “estado de plena
harmonia própria à existência humana, ou coletiva ou individual, quando todas as suas
partes se acham dignamente coordenadas”4.

Na religião de Augusto Comte não há Deus, nem tampouco alma imortal. O ser supremo,
o Grande Ser (como ele lhe chama), é a Humanidade. Este grande ser tem por origem a
terra, mãe de todos os seres, e à qual deu ele o nome de Grande Feitiço, Grand Fétiche.
E a terra está no espaço, cujas leis são as condições primeiras de todas as existências, e
que por isto ele chamou o Grande Meio. O Grande Meio, o Grande Feitiço e o Grande Ser,
eis a trindade que é objeto do culto positivista. Mas como a humanidade, afinal, não é
propriamente um ser, mas uma sucessão de indivíduos mortos, transitórios, e em cujo
desfilar Augusto Comte não duvida introduzir os animais domésticos que nos prestam
serviços, o culto positivista não passa de uma comemoração dos mortos. A imortalidade
para eles é a lembrança que dos mortos permanece na memória dos sobreviventes. E aí
está, senhores, o que significam essas peregrinações positivistas aos cemitérios, as
quais entre nós se amiúdam, não para ali, como nós os cristãos, saudarem em uma
ossada os restos de um corpo que esperamos ressurja com vida eterna, mas
simplesmente para reacendermos nas podridões do sepulcro os fogos fátuos das suas
paixões rancorosas e da sua daninha política...

Já se vê que, sendo a chamada religião dos comtistas coisa bem diversa do que é para o
resto do gênero humano, tanto vale dizer que essa fração de filosofantes considera todas
as religiões do mundo como errôneas ou supersticiosas criações de espíritos inferiores e
não emancipados.

Tem aqui todo cabimento, senhores, algumas palavras de Pascal: “Grande mal (diz ele)
já é de certo estar na dúvida; mas para quem nela se acha, o indagar é pelo menos um
dever indispensável. Assim, aquele que duvida e que não indaga, é ao mesmo tempo
não só bem injusto como igualmente bem infeliz. E se em tais condições estiver tranqüilo
e venturoso, se o apregoar e disto se envaidecer, se desse mesmo estado tirar motivo
para alegria e para vaidade, — faltam-me termos para qualificar tão extravagante
criatura”5.
Posta, pois, também de parte essa extravagante grei de transviados, ei-nos em frente do
indiferentismo propriamente dito, isto é, do grupo que, em nome do bom senso,
reconhece um Deus, mas que absolutamente não cura dos meios de adorá-lo e servi-lo.

II

Nessa corte ainda cumpre distinguir duas classes bem diversas: uma, a dos deístas, que
são os sectários da chamada religião natural; e outra a dos latitudinários, que professam
esta ou aquela religião, mas sustentando que todos os sistemas religiosos podem servir
para encaminhar o homem, neste mundo, à consecução da glória eterna no outro.

Entendamo-nos, primeiro, com o deísmo e indaguemos em que consiste a sua religião


natural. Ela se cifra (respondem-nos seus autorizados sequazes) em adorar a Deus e
praticar o bem.

Otimamente: mas que Deus será este a quem adorares? Se é o nosso, isto é, um Ser
infinitamente poderoso e bom, Criador e Conservador do universo, não lhe podeis negar
o zelo das suas criaturas; se Ele é providente, há de atender ao destino final do homem;
e absurdo se torna imaginar que lhe tenha negado o conhecimento de certas verdades
tendentes a guiar a sua conduta neste mundo e esclarecê-lo sobre o que o aguarda no
outro.

Um deus que diante do homem, fraco, perplexo, angustiado sobre o que mais precisa
saber, se mantivesse eterna, serenamente inacessível e cruelmente silencioso, esse deus
seria a negação da Providência, esse deus baixaria do supremo ideal à plana inferior em
que se agitam os fantasmas de Epicuro. Seria um deus que nada faz, como nos explica o
Cícero no seu De Natura Deorum; um deus vadio, que com coisa alguma se importa e
que viveria feliz, certo das eternas voluptuosidades e dedignando-se de olhar para o
verme humano.

Mas, senhores, se assim fosse, que significação razoável teria qualquer adoração que lhe
tributássemos? Já Cícero com a sua habitual sagacidade aprendera este argumento
naquele passo do seu citado livro em que a Epicuro, que nega a Providência, exproba
haver escrito uma obra sobre a santidade.

“Epicuro, diz ele, é um homem que zomba de nós, e que tem menos graça do que
atrevimento para escrever quanto lhe apraza. Que santidade pode ser essa, se os deuses
não curam os homens?".
E mais adiante:

“Se é verdade ser Deus de tal natureza que nem ama aos homens nem lhes faz bem
algum — então que passe por lá muito bem (valeat!); porquanto, que razão pode haver
para que eu lhe peça que me proteja a ele que a ninguém pode proteger?”.

Aqui estão, portanto, as duas pontas do dilema em que infalivelmente se têm de ferir os
deístas. Se o vosso Deus é a Providência, deve ter tratado do que mais interessa, isto é,
deve ter-lhe revelado as verdades necessárias à sua salvação, ensinando-lhe qual o
liame de amor e adoração que prende a criatura ao Criador — e, neste caso, cais em
erro, volvendo costas à Revelação e pagando o amor com a indiferença. Mas se o vosso
deus é o vão fantasma de Epicuro — um agregado de átomos que em nossa alma
produza impressões análogas às que sentimos durante os sonhos — então não sois
sinceros quando afirmas que qualquer culto vos serve, porque das vossas premissas o
que decorre, é, ad instar dos materialistas e ateus, a proscrição absoluta de toda prática
religiosa.

A famosa religião natural não resiste, com efeito, ao mais leve embate da boa razão.
Adorar a Deus é uma expressão vaga, e cumpriria dizer de que modo. Será, por
exemplo, indiferente a um deísta que se adore a Deus venerando as forças produtoras
da natureza, e representando-as em vergonhosos símbolos? Que se ponham em prática
os sanguinosos holocaustos dos antigos Mexicanos ou dos povoados centrais da África?
Neste caso todas as abominações, todas as torpezas, todos os desvarios, todos os
crimes perpetrados por motivo de religião poderiam incluir-se na religião natural. E se
apenas com tal denominação se procura afetar uma indefinida e insignificante deferência
para com Deus, então para condená-la vou pedir a autoridade, não de um padre da
Igreja, mas do próprio Augusto Comte, que na sua Filosofia Positiva acertadamente
verbera esse – “cristianismo cada vez mais amesquinhado ou simplificado, e reduzido
enfim ao teísmo vago e impotente que, por monstruosa aproximação de termos, os
metafísicos qualificaram de religião natural, como se toda religião não fosse
necessariamente sobrenatural”6.

Não se pode negar senhores, que o deísmo em suas últimas manifestações seja um
produto logicamente derivado dos princípios do protestantismo.

“Lutero (diz La Mennais no seu Essai sur l’indifférence) escandalizado por alguns abusos
reais, em lugar de neles reconhecer o inevitável efeito das paixões humanas, arremeteu
contra a própria doutrina. Atacou um ponto em aparência pouco importante da fé
católica; fraco espírito que não percebia a vigorosa concatenação das verdades do
cristianismo! Mas desprendera ele um anel dessa cadeia, e já toda a cadeia se lhe
escapava. Um erro chama outro erro. Já não são somente alguns dogmas isolados que
ele contesta, mas de uma feita abala os alicerces de todos os dogmas. A tradição
embaraça, ele rejeita a tradição; a Igreja proscreve as suas máximas e ele nega a
autoridade da Igreja e declara que como regra de fé só admite a Escritura; condenado
enfim pela própria Escritura, ele audaciosamente suprime dos livros santos uma Epístola
Apostólica toda inteira (a Epístola de S. Tiago); e quando lhe perguntam com que direito,
arrogante responde: Eu, Martinho Lutero, assim o quero e assim o ordeno, valha como
razão a minha vontade — Ego, Martinus Lutherus, sic volo, sic jubeo; sit pro ratione
voluntas”.

Deste modo, senhores, é que onde começa a dúvida e a negação do catolicismo, entra o
fermento que há de levedar a massa com a lógica inevitável de todas as decomposições.
Multiplicam-se, subdividem-se, esboroam-se, pulverizam-se as seitas protestantes,
porque como único critério têm o seu princípio da livre interpretação, a razão erigida
como supremo arbítrio em frente da autoridade católica, cuja supremacia contestam.
Mas desse progressivo e indefinido parcelamento nasceram inúmeros grupos cada vez
mais emancipados do dogma. Após o luteranismo, que ainda admite a presença real na
Hóstia Consagrada, veio o calvinismo que a contesta; e depois do calvinismo o
socinianismo, cujos teólogos, ou antes cujos filósofos, raciocinando sobre os dogmas
cristãos, chegaram à perfeição de repudia-los todos; e que (cumpre não esquecê-lo)
contra todos os mistérios, em geral, nada mais fizeram do que repetir os argumentos
dos protestantes contra o dogma eucarísticos e outros da antiga fé cristã, que é a
católica.

Que poderá, com efeito, resistir aos impetuosos desvarios da razão humana transviada?
O batismo, por exemplo, cuja necessidade nos é claramente ensinada pelo Evangelho,
aos olhos de alguns sectários protestantes não passa de vã cerimônia; e, renovando os
erros de Pelágio no 5° século da nossa era, Calvino não trepidou em doutrinar que os
filhos dos fiéis são santificados desde o seio materno – opinião cujo legítimo corolário
seria a abolição desse primeiro sacramento. Assim é que pouco a pouco, como as pérolas
de um colar que se desfia, caem as mais augustas verdades, e da razão erigida em
critério infalível nada mais pode resultar do que o puro racionalismo.

É por isto, Exmo. Sr., que eu tremo de pavor quando na tribuna, como no jornalismo,
vejo eminentes correligionários que, induzidos pelo desejo, aliás bem intencionado, de
conciliar a fé e a pseudo-ciência, ou o catolicismo e uma constituição indiferentista,
entram a fazer indébitas concessões; e, receando escandalizar o mundo com a sublime
loucura da Cruz7, vão até excogitar demonstrações científicas da divindade de Cristo ou
aceitar o ímpio divórcio da Igreja e do Estado.

Lembra-me, senhores, que em certa localidade de Minas um pobre vigário se viu


obrigado, em virtude de reiteradas ordens de seu Bispo, a explicar o Evangelho nas
missas paroquiais. O seu ensinamento ele o dava todos os dias, a todas as horas, na
palestra com os seus paroquianos, que o idolatravam e com quem vivia na mais íntima
comunhão de vida espiritual... Mas o Bispo ordenava, e era preciso falar em público. Ora,
a lição do dia envolvia o mistério da Santíssima Trindade. O velho padre volveu-se
trêmulo para os seus fregueses: — “O que nisto é mistério (disse) nem vós o
compreendeis, nem eu o compreendo; mas não fiqueis tristes, porque também não há
sábio que o compreenda. Em torno deste mistério, que está fechado, têm andado muitos
e depois caem de joelhos para adorar; adoremos nós, sem tanto trabalho nem
indagação”. Ora, aí está, senhores, um servo de Deus que sem dúvida falou pouco, mas
bem, e cujas singelas palavras infinitamente eu prefiro às perigosas divagações de certas
conferências e de certos artigos de jornais...

Deixemos, porém, de parte este melindroso assunto, e, reconhecido que o


protestantismo é o ponto de partida de uma vertiginosa carreira que vai dar no abismo
racionalista, assinalado fique também que um dos seus consectários naturais devia ser o
latitudinarismo.

Veio este nome do termo latino latitudo, que, como não ignorais, quer dizer largura; e
sob a denominação de latitudinários se designam, em teologia, certos tolerantes que
sustentam a indiferença dos sentimentos em matéria de religião, e concedem a salvação
eterna até mesmo às seitas mais discordes do cristianismo.

Os argumentos, meus senhores, que deixo produzidos para combater o indiferentismo


dos deístas, têm ainda maior aplicação com referência aos latitudinários.

Com maioria de razão podemos, com efeito, perguntar-lhes como é que, reconhecendo
não somente um Deus, mas um Deus providente e benfazejo, pai amoroso e solícito pela
salvação dos homens, não nos tenha Ele indicado os meios, e ensinado o caminho da
eterna bem-aventurança.

O absurdo do latitudinarismo era, porém, exigido pela disparidade, pela discordância dos
erros protestantes. O protestantismo não é, como às vezes irrefletidamente se pensa,
um corpo doutrinal que se oponha ao catolicismo: é um acervo de negações da verdade
católica, mas negações que umas às outras se repelem e contradizem. “A quem não crê,
diz um escritor católico, pouco repugna fingir que se une a outro descrente”. E,
senhores, assim foi que, por exemplo, latitudinariamente se constituiu a chamada Igreja
Evangélica, na qual o mesmo ministro distribui o pão eucarístico de duas maneiras
diferentes e contraditórias, de sorte que o luterano crê receber o corpo de Jesus Cristo, e
o calvinista apenas o símbolo deste corpo. O latitudinarismo fecha os olhos a tal
absurdo, admitindo que uma coisa passa a ser e não ser ao mesmo tempo, segundo a
opinião de quem a recebe. Assim o exigiam as conveniências para que se aparentasse
uma união que não existe. O latitudinarismo, senhores, é a solidariedade no erro, como
a nossa unidade católica o é na verdade.

Não se podem, contudo, impunemente quebrantas as leis da lógica; e certo é que


mesmo entre os protestantes essa falsa doutrina padece restrições. Os Anglicanos, na
sua Profissão de fé, art. 18, consideram excomungados todos os que ousam afirmar que
pode alguém salvar-se dentro da lei ou seita que tiver abraçado, contanto que viva de
acordo com essa lei e com as luzes naturais, porquanto nas Santas Escrituras se ensina
que só nos podemos salvar pelo nome de Jesus Cristo; e, segundo o Catecismo de
Genebra, os Calvinistas, depois de estabelecerem o latitudinarismo em princípio, logo
abrem uma exceção, determinando que ao fiel cumpre separar-se de uma igreja,
quando, como a Igreja Romana, ordene coisas contrárias ao Evangelho.

Eis o que eles acharam de melhor, os nossos adversários protestantes, para opor à
doutrina católica; triste subterfúgio, aliás, e devidamente verberado pelos espíritos que
das falsas premissas tiram todas as conseqüências.

Por isso, respondendo a um protestante (o ministro Julien) outro incrédulo, o célebre


Bayle, apóstata e precursor de Voltaire — vede bem que me não valho de autoridades
suspeitas aos inimigos do catolicismo — escreveu uma obra intitulada Janua cœlorum
omnibus reserata, ou a Porta dos Céus aberta a todos. Este livro abrange três tratados.
No primeiro Bayle faz ver que, de acordo com as doutrinas protestantes, podem todos os
cristãos salvar-se dentro da igreja Católica, o que, pelos menos torna inútil a reforma
protestante, e demonstra o vanilóquio dos Luteranos e Calvinistas, que à Igreja de Roma
acoimam de idolatria e de erros fundamentais. E no 2° e no 3° livros prova Bayle que,
segundo os mesmos princípios, não somente é admissível a salvação em todos as
comunidades cristãs, por maiores que sejam os erros que professem, mas que ainda não
se podem excluir da salvação nem os judeus, nem os maometanos, nem os pagãos.
Deste modo (conclui um expositor) ao pregarem a independência em tão delicada
matéria, os latitudinários, em vez de facilitarem a entrada no Céu, nada mais fizeram do
que alargar o caminho do inferno.
Já vedes portanto, senhores, com que sabedoria o Sumo Pontífice Pio IX, mestre
inerrável em pontos de dogma e de costumes, incluiu o latitudinarismo entre os erros
contemporâneos, compendiando no Syllabus as condenáveis proposições em que se
consubstancia tal doutrina. Permiti que vo-las recorde:

Proposição condenada n° 15: — É livre a qualquer homem abraçar e professar a religião


que tiver considerado verdadeira, guiado pelas luzes da razão.

Nesta condenação se resumem os conceitos da carta Apostólica Multiplices inter de 10 de


junho de 1851, e da alocução Maxima quidem, de 9 de junho de 1862.

Mais ainda: também está condenado que – podem os homens achar o caminho da
salvação no culto de qualquer religião. É a proposição 16ª, já verberada pela encíclica
Qui pluribus, de 9 de novembro de 1846, pela alocução Ubi primum, de 17 de dezembro
de 1847, e pela encíclica Singulari quidem de 17 de março de 1856.

E, mais ainda, mereceu a condenação do sucessor de S. Pedro a opinião que — pelo


menos se deve bem esperar da eterna salvação de todos aqueles que não vivem no
grêmio da verdadeira Igreja de Cristo. De acordo com a doutrina desta condenação já se
pronunciara o Pontífice na alocução Singulari quadam, de 9 de dezembro de 1854, e na
encíclica Quanta conficiamur, de 10 de agosto de 1863.

Contra a rocha destes ensinamentos vemos embater-se as falaciosas objeções dos


filosofantes; e, como acaso possam impressionar desprevenidos espíritos, não será
talvez tempo perdido o que consumirmos tomando em consideração algumas delas, pois
não vale disfarçar os atrativos e seduções com que para captar os incautos se exorna e
disfarça o pai da mentira.

III

O indiferentismo fala em primeiro lugar, ao orgulho humano, enaltecendo o lume


racional, que é o mais belo apanágio da humanidade. Dispensando a lição das Escrituras,
a tradição e o ensino da Igreja, todos os auxílios enfim com que a eterna Misericórdia
nos socorreu na religião revelada, o indiferentismo faz do homem o supremo árbitro na
opção dos meios conducentes à conquista da mansão celestial. Reproduz a mítica
alegoria de Ícaro, e ei-lo de novo, ensoberbecido, nas suas asas de cera a demandar o
Empíreo sem outro guia senão a sua protérvia.
Ele fala depois ao sentimentalismo, que se diz magoado pelo exclusivismo, pela
intolerância católica. Como! Exclama-se – pois de tantos heróis, de tantos benfeitores da
humanidade, de tantas almas ingênuas e boas a quem nunca foi pregado o Evangelho,
ou que não lograram abraça-lo, nenhuma terá conseguido, perante o Supremo Juiz, a
plenitude da recompensa prometida à virtude? Ninguém se terá salvado, ninguém mais
se salvará senão o católico? E este pensamento contristador reclama para seu consolo as
frouxidões do latitudinarismo.

Finalmente, senhores, o indiferentismo favorece as paixões, subtraindo-as à inspeção e


às severidades da Igreja. Favorece o orgulho, eliminando qualquer intermediário entre o
fiel e Deus. Agrada ao avarento, porque o dispensa do óbolo para manutenção do culto e
das obras pias. Fulano quer repudiar a esposa e suspira por casar-se com a de Sicrano:
pois bem! Fulano faz-se protestante, vai perpetrar bigamia nos Estados Unidos, e à sua
consciência sobressaltada responde que por todos os caminhos se vai ao céu. O iracundo
assassino, maculado de sangue inocente, não terá necessidade de penitência, porque
pela porta escancarada dos céus ninguém se aperta, nem se incomoda. Para o glutão
cessam as importunas admoestações do preceito abstinencial. Nem há porque lhe
fiquem atrás a inveja e a preguiça... Senhores, uma doutrina que ao mesmo tempo
lisonjeia o orgulho, ataca em sensibilíssimas fibras o coração humano e termina
provocando a conflagração das paixões, não pode deixar de ser uma temerosa doutrina:
e só me admira a infinita bondade com que Deus, Senhor Nosso, compassivamente nos
ampara de tão bem tecidas armadilhas.

Mas em primeiro lugar ponderemos que é cúmulo de insensatez admitir-se na razão


humana capacidade e forças para a solução da suprema questão religiosa.

Esta louca pretensão que se arroga o homem para entestar com a Divindade é, aliás,
antiga qual o mundo. Nós a vemos no alvorecer das idades, entre edênicas paisagens,
ostentando na soberba do primeiro homem a estultícia de equiparar-se ao Criador. Et
eritis sicut dii8. “Há tal ambição de subir? — inquire em um de seus belos sermões o
inimitável Vieira — Há tal desatino de crescer? Anteontem nada, ontem barro, hoje
homem, amanhã Deus!”9 Nós a vemos, nos delírios da revolução francesa, colocando no
altar-mor de Notre Dame uma prostituta deusa da Razão. E aqui mesmo, nesta cidade
cristã e católica, no único templo que o Comtismo tem conseguido erigir em todo o orbe,
podemos vê-la personificando a humanidade e recebendo o culto que a criatura racional
deve ao seu onipotente Criador.

Senhores, a razão do homem, a qual legitimamente se exerce naquilo que, segundo a


Escritura, Deus entregou à disputa dos homens10, nisso mesmo extravaga e se perde a
cada momento. Na matemática, que é o peristilo da ciência positiva, não são poucos os
capítulos lacunosos, e para não ir mais longe o da teoria geral das equações. Na Física e
na Química surgem de vez em quando inopinadas descobertas (como por exemplo esta
mais recente dos raios X) as quais nos deixam assombrados das nossas ignorâncias
anteriores. Tateia a medicina, procurando, com as pompas da tecnologia, encobrir as
lacunas da não-ciência, ao passo que em cada obituário canta a morte o seu triunfo
sobre a arte de curar. Em Atenas, no centro da mais brilhante civilização que o mundo
tem contemplado, 429 anos antes de Cristo, sucumbia Péricles, vitimado pela peste; e
agora, 2.330 anos depois, ainda não se acertou com o remédio para o tremendo flagelo,
ainda se discute se a extirpação do gânglio é meio de cura ou incremento de infecção!
Disputam estadistas, forjam-se reformas, preconizam-se admiráveis progressos no
tocante à governação dos povos: e todavia nesta fronteira de dois séculos ainda a força
domina o direito, como no tempo da pedra lascada, os congressos de paz são desastres
vergonhosos, nem há constituição política (inclusivamente a nossa) que não seja o
consectário de uma revolução.

Eis, senhores, a bancarrota científica; bancarrota que só podem negar os superficiais e


os nulos — e diante da qual fica reduzida a dimensões liliputianas essa audácia de
arquitetar, por meios puramente racionais, um sistema completo de relações entre a
Divindade e o homem. Nessa ligação do céu e da terra, em vez da miraculosa escada por
onde via o patriarca que subiam e desciam anjos11, teríamos o fantástico arrojo dos
Titãs, acumulando Pelion sobre Ossa para invadir o Olimpo...

Vamos, porém, senhores, à segunda ordem dos argumentos, que destarte se podem
resumir: a intolerância da Igreja, que se reserva o monopólio da verdade, e assim gera
sentimentos de ódio ou desprezo entre os homens, ainda mesmo que sejam cristãos; e
2°, a estreiteza do dogma que da eterna salvação exclui grande número de almas
virtuosas.

Senhores, a maior parte das dissensões provém da má compreensão de alguns termos,


e, pois, vamos entender-nos sobre este vocábulo — intolerância. Se por ele tendes em
mente aquela paixão feroz que nos induz a odiar e a perseguir os que se acham em erro,
então desde já vos digo que ela é incompatível com a religião católica, que é a do amor
e do perdão. Distingamos, portanto, as diversas espécies de intolerância, ou, o que vem
a dar no mesmo, quais sejam, teológica e filosoficamente consideradas, as diversas
espécies de tolerância.

Há a chamada tolerância eclesiástica, religiosa ou teológica, que outra coisa não é senão
o próprio latitudinarismo, isto é, a profissão que faz uma seita de acreditar que os
membros de outra seita se podem salvar sem renunciarem a seus erros. Existe a
tolerância civil ou política, que é, no direito público dos países que têm religião de
estado, a permissão facultada aos dissidentes de professarem outras religiões. E
finalmente, em geral se entende por tolerância (ou mais restritamente tolerância de
pessoas, para distingui-la da tolerância de princípios) a caridade fraterna e a
humanidade, que cristãmente deve reinar entre todos os homens, qualquer que seja o
seu modo de pensar.

Senhores, a intolerância dogmática contra os erros é um dos caracteres lógicos da posse


da verdade. Eu sei que os três ângulos de um triângulo retilíneo valem em soma dois
ângulos retos, 180 graus, e sobre isto não posso fazer a menor concessão a quem quer
que seja. Ao melhor dos meus amigos, ou sob ameaça de morte, não posso tolerar que à
dita soma se tire ou se acrescente um segundo de arco. Argüir, portanto, de intolerância
a Igreja Católica neste ponto é reconhecer-lhe um dos caracteres da sua verdade. E para
que não o diga eu desajudado de qualquer autoridade, permitireis que a propósito disto
eu me socorra, não a um doutor da Igreja, porém ao insuspeito campeão da liberdade
de consciência, Júlio Simon:

“A intolerância religiosa assim entendida (diz ele) é a condição indispensável da unidade


e da estabilidade da fé e a conseqüência natural do dogma da revelação. Não se pode
exprobrar a uma Igreja o crer na verdade de seus próprios dogmas e excluir do seu seio
os dissidentes. Excluindo-os, ela nada mais faz do que registrar o estado em que se
acham aqueles espíritos, porque ninguém pode pertencer a uma Igreja cujas crenças
repudia. Se o estado liga à excomunhão penas temporais, ou se obriga os incrédulos e
mesmo os crentes à ortodoxia e à prática dos deveres religiosos, essa intervenção da
força em negócios da consciência não mais pertence à intolerância religiosa”.

“Uma Igreja (conclui Júlio Simon) está, pois, no seu direito, quando aos seus fiéis impõe
a obrigação de crer em tudo que ela ensina, isto é, quando em si mesma pratica a
intolerância religiosa; então não mais faz do que obedecer ao seu princípio, que é o
princípio da autoridade. É para ela uma questão de vida ou de morte: nem pode em si
mesma introduzir o princípio de livre exame sem que cesse de ser uma religião”12.

A tolerância política ou civil não é o que entre nós existe, nem se deve confundir com o
indiferentismo. O Estado que reconhece uma religião (como outrora sucedia entre nós)
pode, por motivos de ordem pública, tolerar os cultos dissidentes, comprometendo-se a
não incomodar os que os professam; mas disto vai grande distância a não reconhecer
religião alguma e a proibir no pacto fundamental qualquer aliança entre a religião e o
Estado13.
Quanto à tolerância para com os que erram, escusado é dizer que ela decorre da mesma
natureza do cristianismo. Jesus Cristo, o divino modelo, orava na Cruz pelos seus
perseguidores. S. Agostinho preceituava a morte dos erros e o amor dos que erram:
Diligite homines, interficite errores. S. Bernardo queria que se conquistassem os hereges
com argumentos e não com a espada: Hæretici capiantur non armis, sed argumentis14.
Nem para invalidar este constante testemunho e esta doutrina incessantemente pregada
pode valer a alegação de alguns abusos, cuja responsabilidade cabe à Igreja.

Passemos, pois, senhores, à increpada estreiteza do dogma que nega a salvação aos que
não são católicos.

É certo, dogmática, infalivelmente certo que fora da Igreja Católica não pode haver
salvação. Falando perante católicos ilustrados eu não preciso citar os repetidos passos da
Escritura que estabelecem este dogma. “A Igreja, nos Evangelhos (diz o célebre padre
Ravignam em uma das suas conferências), é o reino, é a cidade, é a casa, é o aprisco, é
o corpo. Fora do reino, da cidade, da casa não há direito aos bens interiores: fora do
corpo, o membro separado não tem mais vida”.

Mas agora a objeção: E os homens bons que antigamente viveram, cuja memória é, por
assim dizer, a honra da história, estarão todos condenados porque não conheceram a
doutrina cristã? Estará condenado um Regulo, que abnegadamente se sacrificou pela
pátria? Um Sócrates, que laçou as bases da moral tão perfeita quanto pudera ser
desajudada da Revelação? Um Fabrício, de quem se disse que menos dificilmente se
apartara da virtude do que o sol da sua carreira? E, para mais ainda impressionar-nos, aí
vem concomitantemente o argumento do número, fazendo ver que a grande maioria do
gênero humano há de ser ou tem sido condenada e que o divino sangue do Nosso
Salvador se terá derramado por um pequeno número de eleitos.

Sobre este ponto vale a pena ouvir o que a tal respeito nos pondera um dos melhores
escritores modernos, o excelente padre Faber:

“Tenho ainda a fazer (diz-nos ele) outra queixa impopular. A abominação da heresia está
foram de moda e vai-se tornando rara. Deus não é habitualmente considerado como a
verdade única; e assim a existência das heresias não mais nos assombra a mente. Está
assentado que Deus nada deve fazer que nos seja penoso, e que ao seu domínio não se
deve conceder que assuma o feitio de uma inconveniência ou de um estorvo à liberdade
das suas criaturas. Se o mundo perdeu a idéia do exclusivismo, Deus tem de
acompanhar-nos nesse progresso, e há de abrir mão desse princípio em suas relações
conosco. O que a maioria quer, finalmente lhe tem de ser dado. Tal é a regra e
experiência de um país constitucional. Assim a dissidência e a falsidade em religião
chegaram a ser menos odiosas e menos assustadoras aos homens, simplesmente porque
a elas estão habituados. É necessário ter coragem, tanto moral como intelectual, para
acreditar que em erro se acha a totalidade de uma grande nação, ou para pensar que vai
transviado um século inteiro. Porém a teologia, com valorosa simplicidade, conclui que
um mundo inteiro está sujeito ao pecado, e não vê dificuldade em que a verdadeira
Igreja tão somente reclame uma diminuta parte da população da terra”15.

Não se pode com mais finura sublinhar o erro dos que à doutrina da eterna salvação
pretendem aplicar o princípio democrático das maiorias. Mas ainda aí o argumento dos
inimigos do dogma extraordinariamente se avoluma pela exageração.

Não é verdade que o dogma católico tenha o caráter de injustiça que lhe atribuem os
latitudinários. Interrogado em 1820 sobre esta melindrosa questão — qual seja
positivamente a doutrina católica com referência à salvação dos protestantes —
Frayssinous respondeu com máxima clareza: “Aos olhos da Igreja Católica todas as
outras comunhões mais ou menos estão no erro: porém as crianças batizadas em tais
seitas são membros da Igreja Católica, pelo batismo que propriamente lhe pertence; e
dúvida não haja que tais crianças se salvem, se morrerem antes da idade da razão. E
mesmo entre os adultos de qualquer idade todos os que se achassem na ignorância
invencível da verdadeira fé, não seriam culpados de seus erros, porque na sua boa fé
achariam escusa perante Deus”.

Nem é somente ao protestantismo (abrangidas nesta denominação as diversas seitas


cristãs e católicas) que o catolicismo estende a sua compassiva doutrina.

Segundo os melhores tratadistas, a infidelidade, isto é, a falta de fé, pode ser de três
modos — negativa, privativa e positiva ou contrária. Esta é a dos que, tendo abraçado a
religião verdadeira, depois a rejeitam total ou parcialmente, o que constitui gravíssimo
pecado. Infidelidade privativa é a dos que, tendo ouvido falar da verdadeira religião ao
menos in confuso, não procuram instruir-se a respeito dela, e por isto já é pecaminosa.
Quanto à primeira, a negativa é a dos que nunca ouviram falar da fé; e, como é
involuntária, não se constitui pecado, sendo aliás pena do pecado original.

“A infidelidade dessas almas transviadas (ensina um douto escritor) não é pecado,


conforme a doutrina católica, e não põe fora do caminho da salvação. E, notai-o bem, a
verdade católica é aqui mais tolerante do que a heresia dos Baius, dos Luteros e dos
Calvinos, segundos os quais a infidelidade, qualquer que seja, é crime merecedor de
condenação, punindo Deus ao infiel, entenda-se aos que não têm a mesma fé que tais
hereges, não somente pelo mal que ele faz sem querer fazê-lo, mas ainda pelo bem que
se esforça por fazer”16.

Fora da Igreja não há salvação — nada mais certo, nada mais repetidamente asseverado
nas Escrituras: mas vejamos bem que três são os modos de pertencer à Igreja.

Uns pertencem igualmente ao corpo e à alma da Igreja — e tais são os que no seio dela
receberam o batismo e observam o que ela declara necessário à salvação. São os
verdadeiros cristãos, os filhos abençoados de Deus, os católicos em estado de graça.

Outros pertencem ao corpo da Igreja, mas não à sua alma: — e são os católicos em
pecado, a cuja salvação não bastará o sacramento do batismo, se para delirem o efeito
de suas más obras não recorrerem à penitência.

E outros, finalmente, não pertencendo ao corpo da Igreja, porque não foram batizados,
contudo pertencem á sua alma, pela caridade que os une a Deus. A ignorância invencível
ampara-os dos raios que fulminam a infidelidade voluntária; e, se a esta ignorância eles
reúnem a fé sobrenatural, nas verdades absolutamente necessárias, a observância da lei
natural, o amor de Deus segundo o conhecimento que d’Ele têm, e disposição para lhe
obedecer e servi-lo — não parece duvidoso que sejam objeto de especial comiseração.

Neste assunto delicadíssimo, senhores, tremo de adiantar-me inconsideradamente mas


creio que irei bem com S. Justino:

“Jesus Cristo (ensina ele) é o Filho Único, o Primogênito de Deus e a soberana razão de
que todo o mundo participa. Todos os que viveram conforme esta razão divina são
cristãos, posto que acusados de ateus. Tais eram entre os gregos Sócrates, Heráclito e
os que se lhes assemelharam; e entre os bárbaros Abraão, Ananias, Azarias, Mizael,
Elias e muitos outros de quem longo fora referir os nomes e as ações. Ao contrário,
aqueles dentre os antigos que não regraram a sua vida pelos ensinamentos do Verbo e
da razão eterna, eram inimigos de Jesus Cristo e dos que viviam segundo a razão. Mas
todos os homens que viveram segundo essa razão, são verdadeiramente cristãos e
devem estar isentos de qualquer temor”17.

E, depois do santo medieval, o grande Pontífice moderno:

“Sabeis (disse Pio IX) que aqueles a quem aflige invencível ignorância relativamente à
nossa santa religião, mas que fielmente observam a lei natural e os princípios gravados
em todos os corações e que, habituados a obedecer a Deus, levam uma vida honesta e
proba, podem, pela luz da graça divina, alcançar também a vida eterna; porque Deus,
que vê plenamente os corações, os espíritos, os pensamentos, os hábitos, perscruta e
julga segundo a sua extrema bondade e clemência, e não pune com eternos suplícios os
que não foram verdadeiramente culpados”18.

E ainda não é tudo, senhores. As dificuldades do julgamento e da condenação de um


herético, de um excomungado ou de um infiel acrescentam-se as formidáveis sombras
das suas disposições no momento tremendo da morte. O destino de cada homem só é
determinado no seu último instante, e só Deus o conhece.

Está condenado Lutero? — perguntou alguém a S. Francisco de Sales; e o virtuoso bispo


de Genebra respondeu que o não sabia.

Deus, que à sua Igreja, pelo órgão do Sumo Pontífice, atribuiu o direito de proferir
infalíveis sentenças sobre a canonização dos Santos, não lhe concedeu a permissão de
pronunciar-se no tocante à condenação dos que mal viveram.

O padre Gratry19, na sua Filosofia do Credo, refere a este respeito um fato característico.
Certo réu de morte sobe ao cadafalso entre exortações de piedoso confessor, mas
obstinado lhe resiste aos conselhos e às súplicas. O condenado repele o santo homem e
redobra de blasfêmias. “Cristãos, — exclama então o padre – vinde ver como acaba um
réprobo!” Quarenta anos depois, trata-se de canonizar o sacerdote; heróicas eram as
suas virtudes, e incontestáveis alguns milagres que operara: mas a essas provas
opõem-se as imprudentes palavras que ele tinha proferido sobre o patíbulo do
impenitente, e tanto bastou para que a canonização se não efetuasse. A Igreja, severa
neste ponto, como em todos os que entendem com matéria dogmática, recusou o culto
de dulia ao servidor de Deus, porque indiscreto se antecipara nos mistérios da Suprema
Misericórdia.

Ora aí está, senhores, em toda a sua caridade, mansidão e doçura o ensinamento


católico, tão acoimado de intolerância e dureza; e não vos escapará, em contraposição,
quanto é cruel, na sua inconseqüência, a doutrina protestante, cujo latitudinarismo não
se estende à infidelidade negativa.

Quanto ao proveito que do indiferentismo em religião colhem as más paixões, acossadas


pela severidade católica, facilmente comigo eis de convir que não pode existir argumento
mais contraproducente e que mais deponha contra a pureza de uma opinião. O
indiferentismo é o albergue em que se encontram a bigamia, a flacidez do caráter, o
desfibramento moral. Não é aí que devemos buscar pouso, neste jornadear pelo mundo,
porque realmente ficáramos em muito má companhia.
IV

Até aqui, senhores, me tem ocupado o indiferentismo em geral; mas eu ainda ousaria
chamar as vossas atenções para os seus perniciosos efeitos na família e na agremiação
de família que constitui a nação.

Senhores, eu não sou um pregador rabugento; e simplesmente vos pedirei que, pondo a
mão na consciência, cotejeis os hábitos da família moderna com os de nossos pais. Não
ignoro que há em nossa terra inúmeros chefes de família bons católicos, mas o que
afirmo é o afrouxamento dos laços que à Divindade prendiam os habitantes de cada lar
doméstico. A oração em comum, freqüentíssima entre os protestantes no dia do Senhor,
raras vezes se pratica entre os católicos. É preciso que isto se diga para
envergonhar-nos e para que nos corrijamos. Nossos maiores rezavam o terço em família.
O chefe orava e os demais, parentes ou servos, respondiam... Quantas as casas onde
ainda isto se faz? Qual mesa em que antes e depois da comida se rendam graças ao
Deus que nos disparte o pão de cada dia?

Se da família propriamente dita passarmos a outros maiores grupos sociais, o mesmo


notareis, e de modo ainda mais deplorável. Há, em todas as sociedades, duas famílias
especiais, não constituídas pela consangüinidade, mas por certos vínculos menores, que
às vezes ainda mais prendem que os do sangue. Uma delas é o exército, grupo de
irmãos cuja solidariedade se afirma em trabalhos e perigos comuns; e a outra é a
marinha, dividida em pugilos de homens, que quotidianamente se atiram entre os
abismos do céu e das águas. Pois bem, ao nosso exército e à nossa armada se proíbe
que em público adorem a Deus. Ao diabo deixa-se a porta franca; e ainda mal para os
governos, porque não pode haver melhor conspirador do que o chefe da primeira
conspiração.

Lembra-me ter lido numa bela página do Visconde de Vogue, que antes de ser abalizado
membro da Academia das Letras, em França, soube ser um valente oficial no campo de
batalha. Refere ele que, uma noite em 1870, por ocasião daquele terrível duelo entre a
França e a Alemanha, passeava nas linhas avançadas do seu exército donde podia
avistar os fogos do inimigo. Do lado dos franceses soavam músicas improvisadas, a
cujos acordes festivos dançava a oficialidade com as mulheres de vida airada que
acompanhavam as tropas. Do lado dos alemães silêncio profundo; mas eis que de súbito
o interrompe um clamor solene e majestoso: eram os cânticos religiosos dos soldados
germânicos, que se encomendavam ao Deus das batalhas na véspera talvez de mortífero
encontro. Desde então (conclui o escritor francês), desde então compreendi para que
parte penderia a vitória...
Senhores, evocando as minhas recordações pessoais posso dar testemunho da
profundíssima impressão que muitas vezes me causou o Bemdicto rezado nos quartéis
brasileiros. Era um coro misticamente patriótico, e onde, congraçadas as vozes do
caboclo da Amazônia, do guasca do rio-grandense ou do mestiço baiano, eloqüente se
proclamava que sobre a diversidade regional e étnica, sobre a diferença de habitáculo e
de raça, havia um quid comum e que a todos prendia com os mesmos laços da crença e
do amor. Estes soldados, senhores, de vitória em vitória caminharam desde o Passo da
Pátria até Aquidaban. Pode ser que haja outros mais filósofos, mas eu afirmo que nunca
os houve mais intrépidos no combate nem mais sofredores nas agruras da sua nobre
profissão.

Relativamente ao grande todo social, a nação na separação da Igreja do Estado se


resume a suprema aspiração do indiferentismo religioso.

Admira, senhores, que a tamanho número de bons espíritos haja reduzido essa fórmula
de impiedade, porque mesmo entre católicos, e ousarei dizer que mesmo entre os
membros do clero, tenho encontrado vítimas de tal erro.

Em duas classes podem agrupar-se os que objetam contra a união da Igreja e do


Estado: havendo de uma parte a oposição declarada dos inimigos da Igreja, que
almejam vê-la desajudada de todo socorro; e de outro lado o paralogismo dos católicos
que gostosamente aceitam tal separação como um penhor de independência e
prosperidade.

Senhores, a verdade neste ponto, como nos outros, está nos ensinamentos da Santa Sé,
que explicitamente condenou a doutrina da separação. A proposição condenada que no
Syllabus tem o n° 55, não nos pode deixar dúvidas a tal respeito, máxime tratando-se
de país que o nosso foi e tem sido católico. A Igreja deve separar-se do Estado, e o
Estado da Igreja, Ecclesia a Statu, statusque ab Ecclesia sejungendus est — eis a
doutrina errônea já anteriormente verberada pela alocução Acerbissimum, de 27 de
setembro de 1852.

Outras proposições condenadas e referentes ao mesmo erro são as leis n° 77, 78 e 79,
isto é:

1° Que em nossos dias não mais convém que a religião católica seja considerada como a
única religião do Estado, com exclusão dos demais cultos. E de acordo com esta
condenação já se enunciara a alocução, Nemo vestrum, de 26 de julho de 1855.
2° Que, assim, com razão é que, em alguns países denominados católicos, acautelou a
lei aos imigrantes a liberdade de publicamente exercerem o culto público de cada um.
Doutrina esta já fulminada pela alocução Acerbissimum, de 27 de setembro de 1852.

E, 3° — ser com efeito falso que a liberdade civil de todos os cultos, e o pleno poder, a
todos concedido, de explícita e publicamente manifestarem todas as suas idéias e todas
as suas opiniões, contribuam para a corrupção dos costumes e do espírito dos povos,
bem como para propagar a peste do indiferentismo.

Condenação esta já pronunciada na alocução Nunquam fore, de 15 de dezembro de


1856.

São estes os fundamentos da doutrina católica, e com quanta razão estatuídos


facilmente se descortina, pela improcedência das objeções.

Uma delas é que aspiram os católicos a intolerante e despótico predomínio pelo


estabelecimento legal de uma religião de Estado. Mas em verdade assim não é, nem
poderia ser, observados os conselhos da Igreja.

Percorram-se com ânimo imparcial as páginas da história, e nelas se encontrará a


demonstração do meu asserto.

A Igreja Católica, senhores, nunca pretendeu ganhar prosélitos pelo emprego da força
material; e muito são de notar as lições de tolerância e humanidade de que deram
provas os seus representantes em épocas que o pedantismo atual não duvida acoimar de
bárbaras e atrasadas.

Assim, por exemplo, no alvorecer da Idade Média o Papa S. Hormisdas, que foi Sumo
Pontífice de 514 a 523, dando instruções aos legados que mandara a Constantinopla
para a reconciliação dos hereges, ponderava acertadamente: “O que nos importa e
aquilo em que zelosamente deveis trabalhar, é que ninguém se converta sem
conhecimento de causa, nem venha a queixar-se de que o príncipe o obriga a fazer uma
profissão sem o medicamento da doutrina”.

O Papa Nicolau I, cognominado o Grande, e que reinou de 858 a 867, respondeu aos
búlgaros que o consultavam a respeito de conversões: “Quanto aos que refusam aceitar
o bem do cristianismo, nada vos podemos escrever senão que os convençais à
verdadeira fé mediante advertências, exortações e argumentos, antes do que pela força,
porquanto tudo o que não procede da boa vontade, não pode ser bom. Deus somente
quer homenagens livres prestadas por seres livres”.
Suarez, o grande filósofo e teólogo jesuíta, cujos 23 volumes são um dos mais
assombrosos repositórios do saber humano, e parte de cujas obras tiveram a honra de
ser queimadas em Londres pela mão do carrasco protestante, — Suarez, falando do
poder civil, nega-lhe o direito da coação para fazer abraçar a fé: “Neque coactio ad
suscipiendam fidem licite usurpari potest ex vitalis potestatis...”20.

Finalmente, senhores, é princípio coerente do direito canônico que — ninguém obrigue


ao batismo dos judeus que o recusam e que não o querem: “Ut nullos invitos aut
nolentes Judœs ad baptismum venire compellat”21.

Já se vê, pois, quão infundada é esta balela da invasão das consciências pelo catolicismo
erigido em religião do Estado; e, como retorsão do argumento, eu poderia perguntar aos
sectários do indiferentismo a que excessos de satânico zelo os tem arrastado a sua falta
de religião.

Sim, eu tenho aqui o direito, senhores, de evocar, no estilo sóbrio e com o insuspeito
critério de um historiador protestante, do eminente Guizot, uma página da revolução
francesa...

Era setembro de 1792.

“...Nada mais temos que fazer aqui, exclamam os Marselheses, vamos aos Carmelitas!”.
Os padres ali estavam juntos em grande número, e uma chamada nominal acabava de
reuni-los todos no jardim. Os gritos dos sicários reclamavam o arcebispo de Arles,
acusado de haver no meio-dia tramado uma conspiração reacionária. Adianta-se o
ancião, saindo de um pequeno oratório. Quiseram retê-lo: acabava ele de pedir a
absolvição a um de seus companheiros. “Deixai-me passar, disse, talvez que o meu
sangue lhe chegue”. Depois, voltando-se para os assassinos: “Aqui me tendes, sou quem
procurais, poupai a estes, eles rezarão por vós na terra e eu no céu”. Cobriam-no de
insultos. “Nunca fiz mal a ninguém”, respondeu o arcebispo — “pois vou eu fazer-to”,
exclamou um marselhês dando-lhe com a espada no rosto. E o velho caiu debaixo de
pancadas.

“Os padres, perseguidos pelos algozes, que riam e cantavam, fugiam pelo jardim, de
árvore em árvore, de muralha em muralha; as vítimas sucumbiam umas após as outras
orando a Deus. Os feridos foram reunidos na Igreja: saíram dois a dois e foram
trucidados na escadaria. O bispo de Saintes estava com a perna quebrada. ‘Senhores,
disse, não me recuso a morrer com meus irmãos, porém não posso andar’.
Agarraram-no por baixo dos braços para leva-lo ao suplicio. Seu irmão, o bispo de
Beauvais, já fora morto. De antemão se tinham feito as covas perto da Barreira de
Saint-Jacques; e havia carroças que esperavam para transportar os cadáveres...”22.

Dulaure que foi membro da Convenção Francesa, o que bem o define em assuntos
religiosos, em concisa página dá testemunho dos processos empregados pelos
racionalistas e deístas em relação ao clero católico: “A 9 de novembro (de 1793), de
noite, Hébert, Luillier, Chaumette e Momoro dirigiram-se à casa do arcebispo de Paris,
Gobel, e com ameaças o intimaram a que no dia seguinte comparecesse perante a
Convenção, para abjurar a religião católica e declarar que tudo o que até então ensinara
era um tecido de absurdos. ‘Hás de fazê-lo, disseram-lhe, ou estás morto...’ O velho
solta gritos lamentosos, deita-se-lhes aos pés, pede-lhes, conjura-os, com o pranto nos
olhos, a que lhe poupem tal ignomínia: foram inexoráveis! Nem a todos os padres é
dado terem a força dos mártires. Gobel salvou a vida por algum tempo: mas
prometendo apenas que renunciaria ás suas funções”23.

Para acabar este quadro da tolerância do indiferentismo e se ainda lícito me fosse


demorar o vosso espírito nestas penosas reminiscências, eu ainda vos lembraria aquele
padre Salignac — Fénelon, sobrinho do preclaro autor do Telemaco, e fundador da obra
pia dos Petits Savoyards, santo velho de 80 anos, condenado à morte em 1794, a quem
muitos dos seus pequenos protegidos acompanharam até o patíbulo, e que só pedia lhe
desatassem as mãos para abençoa-los24; aquelas quatorze carmelitas de Compiègne,
que foram para o suplicio todas vestidas de branco, cantando o Te-Deum, e que no sopé
da guilhotina renovaram os seus votos, pedindo a Deus que mediante aquele sacrifício
aplacasse a sua cólera25; eu vos recordaria, senhores, que na obra de Guilon,
estampada em 1821, o martirológio dos prelados, padres, religiosos e leigos que
morreram na fé católica, vítimas do racionalismo e da tolerância da revolução francesa,
não foram menos de quatro volumes de 700 páginas26.

Depois disto creio que tendes idéia formada sobre a sinceridade da objeção que estou
rebatendo... Passemos a outras.

Figura, entre elas, o singularíssimo argumento — que o indiferentismo, proscrevendo a


obrigatoriedade de qualquer culto, tem pelo menos um préstimo, o de não ofender o
melindre religioso da população dissidente. Mas esse adquire ridículo aspecto em um
país onde a estatística somente acusa 154.300, digamos 155.000 acatólicos em mais de
14 milhões de católicos27.

Um desgraçado apóstata, que já compareceu diante perante Deus, certo dia enraivou-se
contra a imagem do Crucificado, que lá estava no recinto do júri para aos juízes de fato
intimar que a misericórdia pode ser companheira da equidade; e por satisfazer ao
renegado, os demais jurados católicos deixam de contemplar a divina efígie, nem pode o
réu alçar os olhos mais altos do que para a justiça dos homens.

Na Sexta-Feira da Paixão um professor lembrou-se de dar aula; e para não magoar os


escrúpulos do incrédulo, todos os seus alunos católicos, foram obrigados, sob pena de
ponto, a violar o santificado repouso desse dia.

Por dentro de um regimento passa Nosso Senhor Sacramentado: e, para não se obrigar
algum herege a reverenciá-lo, coage-se toda a fileira católica a lhe não prestar adoração.

Basta... Eis o que se chama o respeito das maiorias sob uma forma de governo em que
teoricamente elas fazem a lei!

Prossigamos, senhores... O Estado, diz-se, havendo por objeto a prosperidade temporal


dos homens, nada tem que ver com a religião, cuja missão é encaminha-lo à felicidade
eterna; e logo aí vêm, forçosamente, as palavras de Nosso Senhor: — Dai a César o que
é de César, e a Deus o que é de Deus... Ou então: O meu reino não é deste mundo.

Senhores, não pode haver sofisma mais capcioso. É verdade que distintos sãos os
objetos da sociedade temporal e da Igreja; Mas lícito não é disto inferir que em tudo
possam e devam funcionar separadamente, desde que muitas e importantíssimas são as
relações entre seus fins. O Estado dá leis ao cidadão, não ao fiel, ninguém o contesta;
mas a verdade é que o correto desempenho dos deveres cívicos essencialmente depende
das crenças religiosas de cada qual.

Uma das mais grandiosas personificações do poder humano, o grande capitão do


transacto século, Napoleão I, com o seu olhar de águia tinha apanhado esta grande
verdade e, dirigindo-se ao clero de Milão, em 5 de junho de 1800, nobremente
expressou com a sua habitual clareza:

“Persuadido (exclamou) de que esta religião é a única que possa granjear verdadeira
felicidade a uma sociedade bem constituída e firmar as bases de um governo,
aplicar-me-ei a protegê-la e a defendê-la por todos os meios. Também eu sou filósofo e
sei que em uma sociedade, seja ela qual for, nenhum homem pode ser tido como
virtuoso e justo, se não sabe de onde vem para onde vai. Não pode a simples razão
orientar-nos sobre tal matéria. Sem a religião caminhamos de contínuo nas trevas, e a
religião católica é a única que ao homem dá luzes certas e infalíveis sobre o seu princípio
e último fim. Não pode existir sociedade sem moral, não há moral sem religião; e,
portanto, só esta pode dar ao Estado um apoio firme e durável. Sociedade sem religião é
navio sem bússola: e em tais condições nem há certeza no rumo nem esperança de
aportar em salvamento”28.

De acordo com o gênio prático de Napoleão está a fria doutrina de um racionalista:

“Uma verdadeira religião (escreveu Jouffroy) não é outra coisa senão uma solução
completa das grandes questões que interessam a humanidade, isto é, o destino do
homem, a sua origem, o seu futuro, suas relações com os seus semelhantes. Ora, é em
virtude das opiniões professadas pelos povos sobre tais questões, que eles se dão culto,
leis, governo; que adotam certos pensamentos, certos hábitos, certos costumes; que
aspiram a certa ordem de coisas, a qual para eles é o ideal do belo, do bom, da verdade
neste mundo. Toda verdadeira religião arrasta, pois, necessariamente consigo, não só
um certo culto, mas uma certa organização política e certos costumes”.

Isto, senhores, é do racionalista Jouffroy29, e, se depois da política e da filosofia quereis


ouvir a autoridade religiosa, recebamos como celestial ensinamento o do Egrégio
Pontífice que, correspondente às três coroas da sua tiara, tem a tríplice auréola das suas
veneráveis cans, da sua sabedoria e das suas virtudes. Diz Sua Santidade Leão XIII:

“Observação mais importante é que o poder civil e o sagrado, conquanto nem tenham os
mesmos fins nem andem pelos mesmos caminhos, todavia no desempenho de suas
funções algumas vezes se devem encontrar. Ambos, com efeito, exercem a sua
autoridade sobre os mesmos súditos e mais de uma vez sobre os mesmos objetos, posto
que sob aspectos diferentes. O conflito nesta ocorrência fora absurdo e abertamente
repugnaria à Infinita Sapiência dos conselhos divinos. Urge, pois, necessariamente, que
haja um meio, um processo para fazer desaparecer as causas de contestações e de
lutas, e estabelecer o acordo prático. E este acordo, sem razão não foi que o
compararam à união existente entre a alma e o corpo; e isso com grande vantagem de
ambos os conjuntos, porque a separação é particularmente funesta ao corpo, pois que o
priva da vida”30.

Mais explícita e autorizadamente não se poderia explanar a doutrina.

Quanto às palavras de Jesus Cristo citadas pelos apologistas da separação da Igreja e do


Estado, não podem ter a significação que se lhes atribui.

Mandando pagar ao príncipe o tributo legal, nosso Divino Salvador preceituava o respeito
às leis civis, o que de nenhuma forma inculca que entre o Estado e a Igreja se
despedacem os vínculos que naturalmente os conjugam.
O segundo texto também costuma ser falseado. Citemo-lo integralmente: “Meu reino
não é deste mundo, porque, se o meu reino fosse deste mundo, os meus combateriam
para que eu não fosse entregue aos Judeus; porém agora o meu reino não é deste
mundo”. Tal é o texto do Evangelho de S. João, cap. 18, vs. 36. E agora atendei ao
comentário de S. Agostinho:

“Cristo não diz o meu reino não é aqui e sim que ele não é daqui. Não disse: o meu reino
não é neste mundo, e sim deste mundo. Em verdade o seu reino é aqui, até a
consumação dos séculos”.

Extraordinário seria, com efeito, que tendo baixado Jesus Cristo para salvar o gênero
humano, houvesse ensinado a indiferença das coisas temporais naquilo em que elas
interessam à eterna salvação dos príncipes e dos povos.

E tão fora do natural, senhores, é essa separação dos dois poderes que — notai-o bem
— um deles só continua a ter vida, porque se atribui a força moral que logicamente
decorre do outro poder, que único domina as consciências.

Que são, realmente, senhores, os códigos penais das nações modernas, senão o
transmuto, adulterado, é certo, mas em todo o caso o transmuto dos eternos preceitos
do Decálogo? Suprimi o Decálogo e todos os códigos só terão a força irrisória das
baionetas. Suprimi a religião e com ela não tardarão a vir abaixo as construções sociais
que pretendam dispensá-lo.

“É admirável — disse uma vez Proudhon — que no fundo da nossa política achemos
sempre a teologia”31. “O que é admirável, — respondeu-lhe Donoso Cortez — é a
admiração expressa em tais palavras. Pois não é a teologia a ciência de Deus, o oceano
que contém e abraça todas as ciências, como Deus é o oceano que contém o abraço
todas as coisas?32.

Ouvi, senhores, sobre este ponto de magna importância as conceituosas palavras do


eminente D. Antônio de Macedo Costa:

“... A moral dimana do dogma — ensina-nos ele. Tal religião, tal moral. Livres
pensadores, evolucionistas, como sois, não podeis logicamente admitir senão uma moral
toda relativa.

“Partidários da absoluta liberdade de consciência quanto às crenças, deveis sê-lo


igualmente quanto à moral que delas dimana... Ora, onde irá parar a pobre moral e a
sanção dela no meio desse turbilhão de sistemas fantásticos, de hipóteses arbitrárias,
que se cruzam e recruzam no mundo das inteligências contemporâneas sob o aparatoso
nome de ciência? Rota e desfeita em pedaços a unidade religiosa, entronizado nas
instituições o indiferentismo para com todos os cultos, o direito de professar todos eles
ou de se não professar nenhum, ficará sendo evidentemente a moral um nome vão:
cada um a entenderá e a praticará a seu modo, como a religião”33.

Realmente, senhores, com que direito o poder público, aqui no Brasil, onde ele nenhuma
aliança quer com qualquer culto religioso, irá proibir certos crimes contra o pudor? É
falso que a moral universal os condene, porque eu vos citaria, como prova contrário,
inúmeras torpezas de várias seitas antigas e modernas, desde as abominações da
Astarte fenícia, passando pelos delírios dos Adamitas, até às perversões quase
contemporâneas do satanismo...

Com que direito os poderes públicos vedam a poligamia simultânea, ou mesmo a


poliandria, se para o Estado o matrimonio, destituído do seu caráter sacramental, não
passa de um contrato meramente civil? Se assim é, quem pode impedir que com
diversas mulheres contrate um homem o fabrico familiar? Acaso não o permite a lei de
Maomé, ainda tão em voga em muitos países? Nem é tudo: atendendo aos rápidos
triunfos do feminismo, as mulheres emancipadas do jugo do Evangelho reclamarão para
si o mesmo direito, e aí as teremos, as mães de família livres-pensadores, campeando
nos seus serralhos, ou antes nos seus androceus, no meio de muitos esposos
simultâneos...

Partindo dos princípios de Darwin, tão ardentemente admitidos, encomiados, ampliados


e vulgarizados em nossas escolas, uma mulher ilustrada, Mme. Clemencia Royer,
condena como viciosa a caridade cristã e aconselha pela renovação dos costumes
espartanos o morticínio das crianças34.

Proudhon, por outro lado, como não ignorais, considera inadmissível perante a razão o
direito de propriedade e faz a apoteose da anarquia — “forma de governo (diz ele) da
qual todos os dia nos aproximamos”35.

Aí tendes, senhores, os últimos paradeiros da moral livre. De cada um desses insensatos


pode acercar-se o padre católico e falar-lhe em nome de Jesus Cristo, que é o caminho,
a verdade e a vida. Mas em nome de que lhe falará um poder civil que se declara
dissociado de Deus? Com que força há de sufocar tais corolários, ele que protege a
sementeira dos maus princípios? Arastis impietatem (diz um profeta) iniquitatem
messuistis, comedistis frugem mendacii36. O que estamos comendo é o pão da mentira,
arado e segado por maus governos.
Lembra-me, senhores, que sobre este assunto por vezes discorri com um dos pais desta
república, ele sustentando a possibilidade de uma moral exclusivamente científica, e eu,
forte na minha fé, a mostrar o absurdo dessa vã construção sem os fundamentos
religiosos. E o último argumento de meu ilustre contendor, que era positivista, foi todo
pessoal. “Veja bem, disse-me, aqui estou eu, aí está meu genro, ambos discípulos de
Comte; e acaso não somos dois bons chefes de família?” — Sim, respondi-lhe, não
contesto as vossas virtudes domésticas, mas tanto ele como vós sois vasos que se
encheram de oloroso bálsamo, e que conservam o perfume mesmo depois de evaporado
o líquido. Evolou-se-vos o dogma, mas ficastes impregnados da moral cristã. Não me
servis para exemplo. Para aquilatar os frutos da moral positivista, faz-se preciso ver o
que farão vossos discípulos completamente descristianizados... E senhores, não foi
preciso aguardar muito tempo. Dois lustros não eram decorridos – e já todos sabiam
quanto descera, sob o influxo do comtismo, no extremo norte, no Amazonas, o nível da
moralidade pública e particular, e quanto no extremo sul, no Rio Grande, se embravecera
a crueldade, a fereza, o canibalismo partidário...

Os governos que professam o indiferentismo são aliás bastantes perspicazes para


perceberem que tudo têm a perder praticando-o; e isso se verifica, Exmo. E Revmo. sr.,
nas infrações constitucionais que repetida e forçosamente cometem.

Que significa a manutenção de uma embaixada do nosso governo em Roma, junto à


Santa Sé, senão o reconhecimento da autoridade que o Santo Padre exerce sobre as
consciências católicas, e que teria de ver com isto o governo, se ele também não
reconhecesse que na consciência religiosa está o modo de entender os deveres cívicos?

Que quer dizer aquela visita do atual Sr. Presidente da República ao Santo Padre, se não
foi a expressão do desejo da colaboração das duas potestades para realizarem o que têm
de fazer em comum? Porque não visitou o Sr. Ex. qualquer dos chefes das confissões
protestantes? Porque não visita, aqui no Rio, o pontífice da grei positivista?

E que significação, por outro lado, podem ter as provas de deferência dispensadas pelos
nossos Bispos a um poder que constitucionalmente os desconhece como prelados? E
como isto explicaríamos, se em tal não enxergáramos a piedosa aspiração de renovar o
consórcio que infelizmente se destruiu?

Harmonia e não união, — alegam alguns... Mas isto é abusar das distinções. Por minha
parte não compreendo a situação do casal divorciado, e no qual marido e mulher
repetidamente se visitassem, trocando demonstrações de afeto…
V

Basta, porém, senhores, pois sinto a necessidade de pôr termo a esta exposição, que já
vai longa, e com que há tanto tempo abuso da vossa atenção... Tenho combatido, não
com minhas débeis forças, porém mediante valiosos subsídios e robustos auxiliares, as
especiosas razões com que se abona o indiferentismo religioso; mas estulta vaidade
seria a minha, se acaso me vangloriasse de o haver debelado.

Possam das minhas palavras germinar tão somente algumas convicções, e por feliz me
darei, eu que sou o mais obscuro e o mais inábil dos semeadores de verdades!

O indiferentismo religioso, senhores, é uma das feições da apatia, da astenia moral que
infirma a quadra contemporânea. Houve um filosofo (Romilly Junior) que definiu a
tolerância como a virtude dos fracos. Não era da tolerância, era do indiferentismo que
ele queria falar. Nas sociedades decadentes o homem que crê e que espera, é uma
espécie de fóssil, digno talvez de admiração, mas fatalmente condenado à celebridade
dos museus. A dúvida, a transigência, a indiferença não exigem a força da afirmação e
por isto mesmo são muito cômodas. Em literatura aceitam-se todas as enormidades,
todas as imundícies e só se faz questão de forma; perdeu-se na arte o sentimento do
grandioso; em filosofia guerreiam-se os ideais, apenas se admite o que nos entra pelos
olhos ou pelos ouvidos; na política endosam-se todas as opiniões vencedoras,
bajulam-se todos os fatos consumados; em religião todas as seitas são boas, e tanto
vale o erro como a verdade... Nesta baixura alagadiça, onde amolecem os caracteres, é
que uma falsa democracia estabeleceu a sua cátedra de pestilência...

Mas ataquemos, senhores, o indiferentismo em religião — e tudo estará feito.


Temperadas no catolicismo, as almas saberão achar o caminho do belo nas letras e nas
artes, o da verdade na filosofia, o da justiça no governo dos povos.

E nesse dia, senhores, (endereçando-se ao Exmo. Sr. Arcebispo) nesse dia, não só em
nossos templos como também na praça pública, o Brasil, o católico, proclamará o nosso
Deus, o nosso rei, Jesus Cristo, e caminhará, precedido da Cruz, à realização dos mais
brilhantes destinos.

(Publicado em 1905, pelo Circulo Católico. Escola Tipográfica Salesiana, Niterói)

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