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Saúde

Droga faz bem?


Maconha, cocaína, ecstasy, LSD. Devemos
liberar o uso de drogas ilegais como essas
no tratamento de doentes? Para o
psiquiatra Paul Gahlinger, a resposta é sim.
Entenda o porquê.
Por Da Redação Atualizado em 31 out 2016, 18h32 -
Publicado em 31 ago 2006, 22h00

Ad

Rodrigo Rezende

No momento em que você lê esta


frase, uma em cada 10 mil pessoas no
mundo sente uma dor de cabeça
superior em intensidade à de um
cálculo renal descendo pela uretra ou à
de um parto sem anestesia. A
substância capaz de aliviar o
sofrimento dessas pessoas está
disponível há muito tempo em
qualquer laboratório, mas nenhum
médico pode receitá-la. E, mesmo que
pudesse, não faria diferença, pois ela
não pode ser comprada pelos
pacientes. Afinal, de que adianta ir à
farmácia e pedir 50 microgramas de
LSD?

Leia também: A maconha salvou


a minha vida

Para o médico americano Paul


Gahlinger, autor de Illegal Drugs,
considerado o mais importante livro já
escrito sobre o tema, esse tipo de
contradição não faz sentido. Para ele, a
idéia de que os efeitos maléficos das
drogas são superiores ao bem que
podem causar a doentes (como o alívio
que o LSD traz a quem sofre de
enxaqueca severa, por exemplo) não se
sustenta à luz de pesquisas atuais.
Proibi-las, portanto, é uma decisão
baseada mais em argumentos políticos
e culturais do que na ciência.

Como é possível usar drogas


ilegais como maconha, cocaína,
ecstasy e LSD para fins
medicinais?

Para todas elas há algum uso. A


maconha é uma droga segura do ponto
de vista medicinal. Ninguém nunca
morreu por consumi-la. Ela pode ser
usada, por exemplo, para tratar
náuseas e dores de pacientes de câncer
em tratamento com quimioterapia. Já
a cocaína é um anestésico poderoso,
com mais de 150 anos de uso. Até hoje,
quase toda equipe de pronto
atendimento médico nos EUA conta
com um tipo de cocaína líquida para
ser usada com esse propósito – o
hidroclorito de cocaína está disponível
em qualquer sala de emergência. Ela
também é usada para estancar
hemorragia nos vasos sanguíneos do
nariz em hospitais e consultórios
médicos. O MDMA [princípio ativo da
droga ecstasy], segundo pesquisas
atuais, é muito valioso para tratar
problemas psiquiátricos, como o
estresse pós-traumático e a ansiedade.
Quanto ao uso medicinal do LSD, já há
mais de 5 mil artigos publicados a
respeito. Ele é bem útil para o alívio de
dores extremas, como as causadas por
enxaquecas crônicas ou parto normal.

Cisco CCNA/CCNP
Gustavo Kalau

Quantas doenças podem ser


tratadas com drogas ilegais?

Algumas centenas. E tenho certeza de


que serão descobertas ainda mais se as
pesquisas forem liberadas. Mas já se
sabe que elas são muito benéficas no
tratamento de doentes. Tanto que
algumas delas constituem o princípio
ativo de medicamentos. Pegue, por
exemplo, o Ritalin [remédio prescrito
contra hiperatividade, sobretudo para
crianças]. Praticamente não há
diferenças químicas entre esse
medicamento e a metanfetamina, que
é uma droga ilegal. O que se faz
atualmente é dar outro nome à
metanfetamina e depois receitá-la a
crianças.

Os EUA são responsáveis por


65% do consumo mundial de
drogas pesadas. Tendo isso em
vista, você não considera muito
arriscado para a sociedade
liberar totalmente a venda de
drogas?

Evidentemente o abuso de drogas é


um problema que traz sérios danos
sociais. E eu acredito que é necessário,
sim, haver restrições de venda. Mas
proibir completamente o comércio não
é a melhor solução, porque elas
acabam virando uma espécie de fruto
proibido. Ficam mais cobiçadas ainda.
O melhor meio de lidar com as drogas
é fazer o que já fazemos com as armas
de fogo: você pode comprar um
revólver se conseguir provar que vai
usá-lo para um bom intuito e tem
capacidade de manuseá-lo sem riscos.
Afinal de contas, não existe nenhuma
droga que represente perigo maior que
uma arma.

Se, como você diz, já existe


evidência científica da eficácia
do tratamento, por que ainda há
tantas restrições legais ao uso
medicinal de drogas?

Quando você libera o uso medicinal,


surgem vários problemas. Um deles é
que nenhum médico pode dizer ao
final de uma consulta: “Aqui está a sua
receita. Vá à farmácia, compre 10
gramas de cocaína e use em sua casa”.
O risco de abuso é enorme. Outro
problema é que você não tem como
evitar que um usuário de maconha vá
ao médico e alegue náusea somente
para obter a droga. Como provar que
ele está mentindo? É impossível. Do
ponto de vista do governo, a liberação
também é complicada. Se ele afirma
que as drogas são como veneno e, por
isso, devem ser proibidas, fica difícil
voltar atrás e permitir o uso delas
como remédio. O DEA [agência
americana de combate às drogas] não
libera a maconha para uso médico por
medo de que as pessoas pensem: “Se
ela é usada como remédio, não pode
ser assim tão ruim”.

Os EUA gastaram mais de 45


bilhões de dólares nos últimos 25
anos em campanhas contra
drogas. Com tanto dinheiro
investido nas campanhas, fica
difícil obter financiamento para
pesquisa com drogas ilegais?

Nos EUA, é praticamente impossível.


Do ponto de vista do governo, não há
nada a ganhar com o financiamento de
pesquisas sobre drogas ilegais. Se
conseguirmos provar que as drogas
realmente não têm valor medicinal,
isso não significará muito, pois a
droga já é ilegal. Se provarmos que
elas têm algum valor, estabeleceremos
um conflito com a legislação. Para os
governantes, portanto, o melhor é ter
o mínimo de pesquisa possível. Assim,
fica difícil obter até permissão para
realizar estudos com drogas.

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Você prevê alguma mudanças
para essa situação?

Com certeza. No futuro, não será


possível enxergar claramente a linha
que separa as drogas legais das ilegais.
A tecnologia evolui tão rápido que
novas drogas surgem constantemente
e fica difícil para a legislação evoluir
no mesmo passo. Um bom exemplo é
o caso do ópio, substância extraída da
papoula que dá origem à heroína. Ele é
proibido, mas sua versão sintética foi
liberada como medicamento. A única
razão para essa versão de laboratório
não cair na ilegalidade é o fato de não
partilhar da mesma história que o ópio
tradicional. Quanto mais casos como
esses são estudados, mais se percebe o
vínculo que eles têm com a história, a
sociologia, a cultura e a economia. A
legislação atual tem muito mais a ver
com esses fatores que com a química.

Então a classificação de uma


droga como legal ou ilegal pode
ser arbitrária do ponto de vista
científico?

Algumas vezes, sim. Um exemplo é o


GHB, um anestésico. Nos anos 80, o
GHB começou a ser tomado
ilegalmente por freqüentadores de
academias para aumentar a massa
muscular. Depois, descobriu-se que o
GHB estava sendo usado em golpes do
tipo “boa noite, Cinderela”. O governo
americano decidiu torná-lo ilegal. Mas
logo descobriram que o GHB era útil
contra a narcolepsia. Resolveu-se,
então, legalizar a substância, mas com
um novo nome. Agora há dois nomes
para a mesma droga, um legal e outro
não.

Como as drogas agem no


cérebro?

Enquanto o funcionamento do sistema


neurológico é complexo, o das drogas
é bem simples. Elas apenas imitam
elementos químicos cerebrais. Ao
serem consumidas, inundam o cérebro
com esses elementos e alteram seu
equilíbrio químico. Elas não causam
tanto impacto lá dentro. Tanto que o
efeito da maioria acaba rápido. Elas só
são capazes de alterar a estrutura
cerebral quando usadas em excesso.
Na verdade, as drogas funcionam
como um treinador de futebol:
estimulam, mas não resolvem
sozinhas. Pesquisas atuais mostram
que é possível obter, sem a
interferência de substâncias externas,
todos os efeitos que as drogas causam
no cérebro. Basta ter acesso a um
estado de consciência que altere a
química do órgão. A meditação, por
exemplo. Creio que isso mostra que os
efeitos estão todos no cérebro, e não
na droga em si.

Você foi consultor sobre drogas


para os programas da Nasa. Qual
o uso médico que as drogas têm
no espaço?

Uma coisa que as pessoas não sabem é


que qualquer um que vá para o espaço
fica sob efeito de drogas o tempo todo.
Cerca de 50% das pessoas se sentem
tão mal em viagens espaciais que
ficam completamente inválidas
durante as primeiras 18 horas. E as
drogas são usadas para evitar o mal-
estar. Muitas personalidades famosas
que embarcaram em foguetes não
fizeram nada além de passar mal a
viagem inteira. Astronautas são
obrigados a dormir dentro de sacos e a
enfrentar um barulho absurdo na
nave. Como é impossível dormir bem e
eles não podem perder um minuto de
trabalho (cada hora no espaço custa,
aproximadamente, 100 mil dólares),
tomam anfetaminas durante o dia e
sedativos para dormir. Pilotos de
aviões a jato também partem para
missões de guerra sob o efeito de
drogas. Quase ninguém fala disso, pois
não é uma boa publicidade. Mas
funciona.

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Paul Gahlinger
• Seu livro Illegal Drugs (“Drogas Ilegais”, sem
tradução para o português) é texto obrigatório
nos cursos sobre o tema, como o da
Universidade Harvard (EUA).

• Estudou antropologia, epidemiologia e


bioestatística antes de cursar medicina.

• Conhece mais de 100 países. Já foi da


Califórnia até a África pilotando um avião. Voa
freqüentemente de sua casa em Salt Lake City
(EUA) até o Canadá para visitar a mãe.

• Destruiu um de seus 4 aviões em uma batida


aérea, mas já comprou outro. “Se eu morasse no
Brasil, teria um aeroplano para pousar no leito
de rios. Ia ser fantástico!”

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Droga de remédio
A cena é bem conhecida: milhares de viciados
nos EUA voltam para casa, montam carreiras de
pó e as aspiram pelas narinas. Mas, apesar de o
tráfico de drogas ilegais continuar cada vez mais
forte, muitos desses viciados não estão
enchendo os bolsos de nenhum bandido. Pois
agora são clientes de outro ponto: a farmácia. O
mais novo pó no mercado psicotrópico é feito a
partir do Ritalin, remédio receitado contra
hiperatividade para mais de 4 milhões de
pessoas nos EUA. O Ritalin é apenas um dos
medicamentos psicoativos cuja prescrição está
exagerada no país, o que facilita bastante o
acesso para os que pretendem utilizá-lo como
droga. Nos EUA, o uso de medicamentos como
entorpecentes já tomou uma dimensão tão
grande que o número total de usuários de
analgésicos, tranqüilizantes, estimulantes e
sedativos para esse fim já ultrapassa 6,3 milhões
– mais que o dobro dos consumidores de
cocaína do país. O impacto do abuso desses
remédios é sentido nos prontos-socorros. Em
1999, 2 milhões de pessoas foram hospitalizadas
e 140 mil morreram devido a efeitos de
remédios prescritos por médicos, enquanto o
número de mortes causadas por todas as drogas
ilegais foi de 5 mil a 8 mil. É um paradoxo:
ainda há muita dificuldade para usar drogas
ilegais como remédios,mas quase nenhuma para
usar remédios como drogas.

DROGAS ESTUDOS E PESQUISAS

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