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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO TECNOLÓGICO
DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO

JULIA BORBA DE OLIVEIRA RODRIGUES

HERANÇA CULTURAL E CONFORMAÇÃO URBANA SOB O


NEOCOLONIALISMO FRANCÊS: CIDADE DE RABAT

2021
Resumo
O presente artigo manifesta um estudo, sob o contexto histórico-cultural do neocolonialismo
francês no século XX, a respeito do processo por trás do planejamento urbano da cidade de
Rabat. Tal cidade é um exemplo de concretização dos ideais urbanísticos de planejamento
urbano e arquitetura fortemente relacionados à política colonial vigente na região durante o
século XX. O trabalho busca pontuar os aspectos que tornaram possível a concepção da nova
cidade a partir de um território já consolidado, a fim de ocupar o posto de capital do então
Protetorado Francês, aos moldes de um funcionalismo urbano que conciliasse também um
projeto de cidade visando a preservação dos aspectos materiais e imateriais que conformavam
a cultura local preexistente. Pretende-se, ademais, explicitar as subjacentes motivações das
articulações administrativas, trazendo à luz as consequências sociais, culturais e políticas da
aplicação deste modelo para a colônia francesa. A metodologia utilizada é uma avaliação das
principais propostas adotadas na idealização da nova cidade, uma observação da paisagem
urbana baseada nas funções espaciais e composição presentes nos desenhos e plantas
documentados sobre seu processo de planejamento e posterior desenvolvimento, apresentados
ao longo do texto. Observa-se a insurgência de uma crise habitacional, cultural e sociológica
no país durante e após o regime colonial, devido à dicotomia identitária de um povo sob domínio
político de outro, cuja “preservação da cultura” consistiu meramente de um dispositivo de
apaziguação e controle da ordem por parte da França, instituição detentora dos próprios
interesses políticos e econômicos, sendo estes executados em detrimento de um planejamento
urbano sustentável.

Palavras-chave: Neocolonialismo África. Rabat. Conformação urbana. Planejamento urbano.


Arquitetura colonial.

1
O grande fator de interesse para o estudo da cidade de Rabat, assim como ocorre em
diversas cidades importantes de Marrocos, é a sua correlação histórica com as políticas
coloniais francesas – sob o contexto da ascensão dos estudos urbanísticos e de ciências sociais
na Europa do final do século XIX e início do século XX –, que resultaram em uma expressiva
manifestação ideológica na morfologia urbana e arquitetônica da cidade.
Devido a sua localização geográfica de ligação entre a Europa, África Subsaariana e
Oriente Médio, Marrocos, país de identidade plural, serviu como ponto de confluência para
diversos grupos étnicos que ali deixaram suas heranças. Atualmente uma monarquia
constitucional, no passado o país esteve sob domínio dos fenícios, do Império Romano e do
Império Bizantino, até a chegada dos árabes no final do século VII. Foi a partir de então que
invasores árabes do Oriente trouxeram o Islã e a influência da cultura e idioma árabes. Após
um longo período de consolidação cultural, foi no início do século XX, no ano de 1912, que à
França, movida pelo sentimento colonialista emergente na Europa, é cedido o domínio do
território de Marrocos por meio de um tratado, constituindo assim o Protetorado Francês.
“O legado urbano e arquitetônico francês permanece notavelmente proeminente em
Marrocos e resistiu às mudanças rápidas e às tradições locais. No entanto, não é nem enraizado
nem totalmente imerso no tecido urbano e social marroquino” (RADOINE, 2016, p.11). A
intervenção francesa em Marrocos foi aspecto fundamental na conformação urbana e cultural
que carrega até os dias atuais, e essencial para o entendimento do debate entre as correntes de
planejamento urbano, advindas do imaginário modernista europeu, que defendiam tanto
princípios universalistas como de preservacionismo cultural. Da aplicação dessa dualidade
fundamental emergiu a singularidade característica de um regime reformista autoritário sob a
premissa de preservação da cultura autóctone. No presente trabalho, buscando compreender a
conjuntura político-social e urbana de tal governo, serão exploradas as motivações, aplicações
e consequências dessas políticas.
Antes de explorar as particularidades da política colonial francesa em Marrocos no
século XX, no entanto, é necessário compreender o urbanismo sob o contexto do Imperialismo
europeu. Na institucionalização formal do planejamento urbano, a noção de “modernidade” e
“o moderno” foi informada por dois conjuntos de circunstâncias: a primeira, construída
diacronicamente, foi em relação às cidades capitalistas pré-modernas, pré-industriais ou
industriais iniciais da Grã-Bretanha, para substituir a desordem e a miséria das antigas cidades
industriais; a segunda, construída simultaneamente, em relação às sociedades “tradicionais” e
“não modernas” confrontadas no encontro colonial, especialmente a partir da década de 1870,
e conceituada na nova ciência colonial da antropologia (ASAD, 1973; WRIGHT, 1997).

2
O colonialismo como processo cultural, político e econômico, foi o artifício pelo qual o
planejamento urbano foi exportado para muitas sociedades não-ocidentais (KING, 1990). Suas
instituições econômicas foram manifestadas em forma física e espacial. Noções de
planejamento urbano e de legislação foram introduzidas como parte da situação de poder
colonial e, de acordo com Wright (1997), utilizadas como um dispositivo de controle e
manutenção do domínio francês sob a colônia. A seguir, serão abordadas as maneiras por meio
das quais se instituíram essas políticas urbanísticas.
A divisão política, social e racial da sociedade, entre o homem branco e de cor, europeu
e nativo, rico e pobre – intrínseca ao processo colonial e claramente observada em Rabat, como
será aprofundado ao longo do estudo –, foi institucionalizada nas colônias sutil, porém
incisivamente pelos administradores franceses sob a justificativa da implementação de ideais
modernos: concepções de grandes avenidas, água, energia elétrica, praças, jardins, ônibus,
bondes, e previsão para futuras extensões (figura 1). Entretanto, diante das diretrizes –
estabelecidas pelos próprios planejadores – de estrita preservação da cultura autóctone,
premissas da abordagem política chamada de “associação” 1, a alternativa escolhida em
detrimento da intervenção na médina 2 foi o desenvolvimento da ville nouvelle 3, área
circunscrita ou externa ao setor designado à preservação da cidade antiga. Dessa forma,
“congelava-se o desenvolvimento econômico e político de Marrocos em um nível arcaico e
pitoresco, em um contraste com os avanços visíveis e as oportunidades disponíveis para os
europeus na ville nouvelle” (WRIGHT, 1997, p.331).

1
WRIGHT, G. “Tradition in the service of modernity: architecture and urbanism in French colonial policy,
1900-1930”, 1997; ABU-LUGHOD, J. L. Rabat: Urban Apartheid in Morocco: Designação das políticas de
caráter preservacionista implementadas nas colônias francesas, buscando uma contraposição à anterior
“assimilação”, que visava a predominância cultural francesa na linguagem, nas leis e até no estilo arquitetônico e
uma presença militar abundante, demonstrada através da destruição de cidades e vilas autóctones.
2
RADOINE, H. French Territoriality and Urbanism: General Lyautey and Architect Prost in Morocco (1912–
1925): A palavra médina é derivada das versões dialéticas marroquinas m’dina e l’mmdina da palavra árabe
clássica madina. O termo madina refere-se ao processo de formação de assentamentos (tamdin ou tamsir) e
representa toda a cidade em seu território. No entanto, durante décadas no século XX, a palavra “médina” foi
associada apenas a uma entidade urbana murada em marrocos, que descreve a parte velha e decadente de uma
cidade. Este uso do termo, médina, segue inquestionavelmente o uso francês.
3
Do francês “cidade nova”.

3
Figura 1: Modelo da nova cidade de Rabat, por Henri Prost. (1912 – 1925)

Fonte: BERDOUZ; M’HAMMEDI, Cultural Urban Heritage at the Challenge of Urban Planning Policy: Rabat
and Casablanca as Example (1912-2018). 2019

King (1990) e Abu-Lughod (1980) utilizam-se da expressão “apartheid urbano” para


designar os critérios culturais e econômicos que regiram a ocupação de áreas residenciais na
Índia e Marrocos, respectivamente, sendo a segunda autora mais rigorosa em sua crítica às
políticas de zoneamento adotadas. Fundamentado em tais políticas, que serão exemplificadas
ao aprofundar-se o estudo na cidade de Rabat, concretiza-se o pilar do planejamento urbano
colonial francês: a distinção, física e ideológica, entre colonos e colonizados e,
concomitantemente, a construção de uma noção de cultura que enfatizava a variedade e a
simultaneidade. “[...] Na ideologia do planejamento urbano dos primeiros administradores
franceses de Lyautey [há] um racismo do século XIX embutido na noblesse oblige 4” (ABU-
LUGHOD, 1980, prefácio XVI). Na cidade de Rabat, e por este motivo também selecionada
como objeto de estudo, fica claro como o uso da dualidade entre modernização e tradição é

4
Literalmente “nobreza compele”: uma expressão francesa da época em que a nobreza inglesa falava francês;
mantém em inglês o significado de que a nobreza vai além do mero direito e exige que as pessoas que possuem
tal status cumpram responsabilidades sociais.

4
conscientemente utilizado como alicerce de esforços políticos. Em decorrência disso, o desenho
urbano assumiu um papel importante no interesse de tornar o colonialismo mais popular entre
os europeus e mais tolerável para os povos colonizados, uma vez que a política de associação
possuía um intenso apelo social, abrangendo desde questões de preservação histórica e de
estilos arquitetônicos até a distribuição de serviços públicos.
Com isso, o estudo das cidades neocoloniais francesas é capaz de gerar uma excelente
compreensão das variações contemporâneas do modernismo, manifestadas na arquitetura e no
desenho urbano: a abordagem vanguardista ou universalista e a abordagem mais tradicionalista
ou cultural-relativista. Quais percepções podem ser derivadas do estudo das cidades coloniais?
“A forma urbana física e espacial constitui e representa grande parte da existência social e
cultural: a sociedade é, em grande medida, constituída por meio dos edifícios e espaços que
cria.” (KING, 1990, p. 1). Estudar a cidade colonial não é desenvolver um modelo, mas sim
compreender processos em escala global. Considerando seu impacto na vida urbana, política,
econômica, social e cultural contemporânea, a experiência histórica do neocolonialismo e
imperialismo é pouco pesquisada – apesar do fato de que virtualmente todas as regiões
periféricas da economia mundial foram simultaneamente controladas por potências europeias
durante vários períodos entre 1500 e 1950.
Dessa forma, o exemplo de Rabat ilumina uma fase importante do modernismo, um
debate envolvendo tanto o projeto arquitetônico quanto as políticas de planejamento urbano
entre os defensores dos princípios universalistas e aqueles que acreditavam na necessidade de
respeitar as culturas existentes, mesmo quando eles as ocidentalizaram e as atualizaram em
termos econômicos e políticos. Por sua rica complexidade e pelo extremo ambiente de poder
em que foi exercido, esse urbanismo colonial ajuda a nos orientar sobre os possíveis usos e
iniquidades das diversas políticas urbanas. (WRIGHT, 1997, p. 339).
Ribāṭ al-Fatḥ, designação primordial da atual capital de Marrocos, hoje é reconhecida
prevalentemente como Rabat, termo originário da transliteração francesa de sua pronúncia, e é
considerada uma das cidades com expressão máxima das influências neocoloniais francesas.
Foi fundada em 1150 (BURESI, 2017) por ʿAbd al-Muʾmin, primeiro líder Almohad 5, como
um ribāṭ – tradução literal para “monastério fortificado” – de função defensiva, para preparar e
abrigar suas tropas sob o contexto da jihad 6 na Espanha. Nos séculos XII e XIII o islamismo

5
Califado Almoada. Uma confederação berbere – grupo étnico nômade de origem camita que habita o Norte da
África – que criou um império Islâmico no norte da África e Espanha (1130-1269), fundada sobre os
ensinamentos religiosos de Ibn Tumar, falecido em 1130.
6
Guerra santa muçulmana; luta armada contra os infiéis e inimigos do Islã.

5
sunita triunfou sobre diversas outras tendências religiosas debaixo da rigorosa doutrina
dinástica Almoada, assistindo na conformação cultural e religiosa que prevaleceu no território
até o domínio francês.
Não foi até o século XV que a porção oeste da África passou a se envolver nos
constantes conflitos da Europa cristã. Nos conseguintes séculos a luta por poder se sucedeu, e
perdendo território após território, o mundo árabe sucumbiu à dominação da Espanha e de
Portugal, e então da França e Inglaterra. O embate prevaleceu até o século XX, quando
Marrocos foi invadido pela primeira vez. A França ocupou a Argélia desde 1830 e controlou a
Tunísia desde 1881. A autonomia marroquina teve ligações diplomáticas e militares com
potências europeias a partir do século XII. As potências colonizadoras da Europa estavam
interessadas em Marrocos porque geograficamente era uma localização estratégica, e
competiam para obter amparo para explorar este país. França e Espanha receberam o direito de
controle – não "protetorado" – sobre Marrocos na Conferência de Algeciras 7. Embora a ameaça
francesa fosse iminente, o tribunal estava instável após a morte do sultão Mulāy Hasan que
deixou como seu sucessor um filho de 14 anos, Mulāy ‘Abd al- ‘Azīz. Após várias intervenções
militares francesas, as tropas francesas desembarcaram em Anfa (atual Casablanca) no ano de
1907 esperando para tomar conta da mission civilisatrice 8, e em 1912 a França impôs o status
de Protetorado no país africano que, pelo maior período de tempo, escapou das garras do
colonialismo (RADOINE, 2016).
É importante destacar o caráter experimentalista das políticas implementadas em
algumas cidades coloniais, uma vez que planejadores urbanos e arquitetos na França, tanto
modernistas como tradicionalistas, encontravam-se impotentes diante de suas expectativas de
realizar trabalhos significativos. Em termos de teoria urbana, legislação e políticas reais, o país
parecia estar em um impasse. Questões tão variadas como a baixa taxa de natalidade nacional,
o aumento dramático de suicídios e outras manifestações de doença mental, baixa produtividade
industrial, uma inadequada política de habitação, todas aliadas a um declínio no prestígio

7
A conferência de Algeciras começou em 16 de janeiro de 1906 e terminou a 7 de abril desse ano. O objetivo da
conferência consistiu em estabelecer um conjunto de acordos sobre as questões do Império Marroquino, onde as
diversas potências estrangeiras tinham interesses particulares e contraditórios, resolvendo assim a primeira crise
marroquina que marcou aquele país, tanto desde o ponto de vista interno, como dentro da complexa política
internacional.
8
ABU-LUGHOD, J. L. Rabat: Urban Apartheid in Morocco. Princeton, NJ: Princeton University Press, New
Jersey, 1980. “uma variação do Fardo do Homem Branco”: Um dever anteriormente afirmado por pessoas
brancas de gerenciar os assuntos de pessoas não brancas que eles acreditavam ser menos desenvolvidas.
BRUNSCHWIG H., Mythes et réalités de l’Impérialisme colonial français, 1871-1914 (Paris, 1960), p. 174.
“Na Inglaterra prevaleceu a justificativa humanitária, enquanto na França, o nacionalismo de 1870 dominou,
mesmo que esse nacionalismo dificilmente se expressasse sem uma menção a esta “política indígena” que
deveria cumprir os deveres dos civilizados para com uma população mais atrasada.”

6
nacional desde a Guerra Franco-Prussiana – tudo isso teve implicações urbanísticas. Entretanto,
as propostas para corrigir a situação raramente geravam apoio suficiente para serem
implementadas, o que tornou a experiência administrativa das colônias uma oportunidade para
novos profissionais colocarem em práticas suas frustrações. As cidades das colônias francesas
constituíram uma exceção à apatia, um cenário para transformar as preocupações de intelectuais
e arquitetos em políticas, para colocar teorias em prática. Administradores da França Colonial,
negados à possibilidade de introduzir novas práticas de planejamento urbano na França, e
impacientes com a protelação do governo parlamentar, escolheram colocá-las em prática em
Marrocos. (ABU-LUGHOD, 1980; WRIGHT, 1997).
O marechal Louis-Hubert Lyautey, designado como o primeiro Residente Geral da
França em Marrocos – que governou de 1912 até 1925 –, usou métodos de vanguarda para
ganhar confiança e governar o Marrocos de dentro afora, em vez de seguir o caminho da
destruição militar. Toda a política, empreendida no Marrocos por funcionários franceses,
deveria ser moldada à luz de erros e experiências anteriores. Uma notável prática adotada pelos
administradores franceses, iniciando-se em Marrocos, mas adquirindo adesão também em
Madagascar e Indochina, foi a nomeação de um arquiteto urbanista como conselheiro
governamental. Para auxiliar o marechal Lyautey, o arquiteto urbanista francês Henri Prost –
que planejou cidades de 1913 até 1923 – foi recrutado para realizar diversos projetos urbanos
em cidades marroquinas como Fez, Marrakesh, Casablanca e, notavelmente, Rabat. Dessa
forma, como pontua Wright (1997), foi nas colônias que os aspirantes a planejadores urbanos
como Prost e Ernest Hébrard, na Indochina, tiveram as primeiras oportunidades de planejar e
construir em escalas metropolitanas, pois suas predileções articulam as estratégias políticas de
uma nova geração de administradores coloniais. “Em alguns lugares, as colônias eram vistas
como campos virgens nos quais a nova profissão de arquiteto-planejador poderia realizar seus
sonhos imperiais [...]” (KING, 1990, p. 42).
De acordo com Wright (1997), “Casablanca e especialmente Rabat pareciam representar
a convergência de dois caminhos diametralmente opostos para as cidades do século XX: uma
visão moderna de ruas largas e ordenadas coexistia, aparentemente pacificamente, com o
charme pitoresco da médina autóctone do Norte da África.” Tendo aprendido com as derrotas
coloniais da França em outros lugares, Lyautey conjurou recursos desde o momento de sua
chegada em 1912 para construir e impor uma "cidade dupla" dentro de Rabat, um lado
enfocando a preservação da "herança" marroquina, e o outro enfocando a aceleração da
modernidade (figura 1). Os caminhos que Lyautey e seus planejadores escolheram para o
desenvolvimento da cidade tiveram impactos duradouros em Rabat desde os primeiros

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momentos do Protetorado, e resultaram em uma visível divisão social, frequentemente
traduzindo-se em uma segregação racial e religiosa.

Mas quanto mais interessante a vida municipal se revela quando não se tem
que se contentar (como nos países civilizados) em conservar um organismo
aperfeiçoado ao longo de incontáveis gerações, mas sim criar, por assim dizer, de
todas as peças, inovar, em todos os domínios, para presidir ao nascimento da própria
cidade! Essa tem sido a sorte de quem assumiu, nestes últimos doze anos, a pesada
carga de criar este Marrocos, finalmente aberto à nossa influência civilizadora, de
grandes cidades que o estrangeiro tanto admira hoje. (de la Casinière, 1924: ix - x)

Henri de la Casinière, um dos planejadores municipais pessoalmente selecionados por


Lyautey, exemplifica a potência e a empolgação do projeto que Lyautey criou em solo
marroquino por meio da ideia de presidir o nascimento de uma cidade, embora o local já tivesse
sido habitado por várias centenas de anos (WAGNER; MINCA, 2014). Suas instruções foram
firmes: preservar um Marrocos-para-marroquinos concomitantemente à fundação de um
Marrocos moderno para os franceses. Essas questões sociais e estéticas defendidas por
cientistas sociais e urbanistas rapidamente se tornaram aspectos-chave da nova política colonial
francesa chamada associação – a ideia de que aqueles no comando deveriam reconhecer a
diversidade dos povos sob os quais exerciam seus poderes – que, em retrospecto, se traduzia a
uma estagnação forçosa e problemática, como pontuado por Wright (1997) e Abu-Lughod
(1980), ao transformar as colônias em “patrimônios vivos” e as tolher de inovação enquanto
promove-se a tecnologia da modernidade para os colonos, a exemplo das claras disparidades
entre a médina e a ville nouvelle de Rabat, dando início a duas escalas de construção, dois
períodos da história e, muitas vezes, duas raças.
“A construção da nova cidade desenvolve-se então, partindo das muralhas da médina,
estruturando-se em torno de vastas artérias (figura 1), jardins e prédios públicos elegantes”
(BERDOUZ; M’HAMMEDI, 2019). Seguindo a lógica de institucionalizar o controle da cidade
dupla marroquina, a Service d’Architecture et des Plans des Villes de Prost, estabelecida em
1914, tornou-se a primeira agência governamental no mundo francês. Era então encarregada de
supervisionar todas as formas de construção nas villes nouvelles ao lado das cidades
marroquinas existentes. Os dois assentamentos foram sempre separados por uma zona non
aedificandi onde a construção era proibida, apesar de o método e a escala variarem de uma
cidade para outra. Em outras cidades marroquinas como Fez, Meknès e Marrakesh, gigantescos
cinturões verdes circundavam as paredes da médina, e muitas vezes reforçados por barreiras

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geológicas, como ravinas e colinas. Em Rabat, a construção europeia anterior à chegada de
Prost impediu esta estratégia, então “se resignou vias públicas, de duzentos e cinquenta metros
de largura, acrescidas de grandes parques públicos” (WRIGHT, 1997, p. 330).
Por um lado, de acordo com Wagner e Minca (2017), a própria médina murada – toda a
cidade de Rabat tal como existia antes do Protetorado (e, por extensão, as pessoas que nela
viviam) – tornou-se um patrimônio. Para regular esse patrimoine, em 1922 Lyautey mudou o
domínio dos departamentos de Belas Artes, Antiguidades e Monumentos Históricos para incluir
códigos de construção nas médinas porque a tecnologia anacrônica de um fio telegráfico
cruzando uma porta para a médina de Rabat havia escapado à atenção dos planejadores da
cidade, causando perturbações na vista pitoresca da arquitetura “tradicional” do local
(WRIGHT, 1991, p. 133). Em nome do patrimoine, objetos como aquele fio e quaisquer outras
mudanças potenciais em direção à tecnologia moderna foram impedidos de entrar na médina,
criando efeitos tangíveis e duradouros de associação, reforçando as “tradições” da arquitetura
marroquina como fixadas no tempo e apropriadas para a “raça” que vive sob esses telhados.
Por outro lado, Lyautey instruiu os arquitetos contratados para a realização dos novos
edifícios do Protetorado, de escritórios do governo a projetos habitacionais, a projetá-los de
uma maneira que acomodasse infraestrutura moderna, mas fosse reconhecidamente "árabe".
Este foco na estética promoveu a replicação e inovação da arquitetura tradicional do Norte da
África em uma interpretação inteiramente colonial. Novos monumentos foram construídos
neste estilo, incluindo o Banco de Marrocos, a estação ferroviária central e os Correios-
Telefone-Telégrafo, todos localizados no bulevar entre a estação e o portão principal da médina
(hoje Avenida Mohammed V). Para o visitante que chegava, eles atestavam o domínio francês
da modernidade e da tecnologia na paisagem da cidade dupla (WAGNER; MINCA, 2017). “[...]
o esforço para substituir o envolvimento real de certos grupos na vida política por uma
expressão puramente visual de sua autonomia cultural demonstra uma das maneiras pelas quais
o projeto historicista, em diversas configurações, pode ser usado para o poder político”
(WRIGHT, 1997, p. 325).
Adeptos da política de associação idealizavam a preservação da cultura autóctone, e
acreditavam que, aliada ao desenvolvimento de serviços sociais, como escolas e hospitais,
poderia barrar as resistências ao governo de forma bem mais efetiva que a força militar,
reforçando, assim, a premissa da preservação cultural e concessões arquitetônicas como
instrumentos de manutenção do poder governamental. O processo de implementar zonas
separadas para europeus e marroquinos (fig. 2) – as políticas de zoneamento anteriormente
citadas – foi a base para a análise crítica de Abu-Lughod (1980) a respeito de um generalizado

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e imposto “apartheid urbano”: enquanto a manutenção da divisão racial no ambiente construído
foi explicitamente pretendido, por meio das logísticas de associação, sob a justificativa de
proteção da diversidade, seus impactos foram muito mais abrangentes. Ao passo que a
administração ocupava as terras circundando a médina – que é, até a atualidade, delimitada por
muros, evidenciando as barreiras físicas da cidade (figura 2) – para a ocupação de europeus, o
espaço disponível para migração interna marroquina foi diminuído, enquanto o exponencial
crescimento populacional de ambos os grupos ocorria devido ao sucesso econômico advindo
da nova logística.

Figura 2: Zoneamento de Prost para a cidade de Rabat

Fonte: L’oeuvre de Henri Prost. Architecture et urbanisme (2 – Maroc). 2010. Disponível em


<https://bertrandterlindeninarchitecture.wordpress.com/2010/03/09/loeuvre-de-henri-prost-architecture-et-
urbanisme-2-maroc/>

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Com isso, a política de zoneamento resultou em uma crise habitacional na região a partir
da Primeira Guerra Mundial, iniciando-se com a superpopulação da médina de Rabat,
expandindo-se para as favelas ao seu redor, e então atingindo a cidade vizinha de Salé –
processo que até hoje não cessou. Terras de fundações religiosas islâmicas, chamadas Habous,
foram reivindicadas, e Prost empreendeu projetos de ruas, casas e prédios públicos que se
harmonizariam, mas não de modo contínuo, com os das antigas médinas. Esses locais
apresentavam serviços que faltavam ou eram totalmente inadequados nas cidades árabes mais
antigas, incluindo melhor drenagem e abastecimento público de água, ruas comerciais mais
largas para carros (WRIGHT, 1997).
Reconhecendo o valor do turismo em sua ascensão no início do século, a atenção de
Lyautey foi direcionada para incentivar esse setor com esforços que iam além de seus
governadores coloniais contemporâneos. O tecido histórico das cidades foi então
comercializado como uma mercadoria turística, uma expressão de charme singular, por meio
das medidas instituídas pelo governador-geral. Com esses objetivos econômicos específicos
para atrair turismo, ele estabeleceu sindicatos nacionais para turismo, herança autóctone e artes
plásticas como uma parte inicial de sua máquina de planejamento urbano (WAGNER; MINCA,
2017). Enquanto o Departamento de Belas Artes catalogou e publicou o que seria considerado
valioso patrimônio marroquino, o Departamento de Turismo financiou artistas franceses para
produzir materiais sobre o Marrocos, usando seu trabalho para multiplicar a difusão de imagens
exóticas e atrair visitantes cada vez mais intrigados (BLANCHARD; LEMAIRE, 2003).
Lyautey selecionou edifícios e locais históricos, como a Torre Hassan e a ruína pré-islâmica de
Chellah, para restaurar para visitação turística.
“Lyautey articulou o esforço consciente para promover uma indústria turística,
mantendo o charme visual das cidades e campos de Marrocos” (WRIGHT, 1991, p. 134). A
combinação de uma indústria turística propositalmente construída com base no consumo do
“patrimônio vivo”, junto com o crescimento de uma nova capital, alimentada por salários
burocráticos estáveis, mas dividida por "raça", criou a consequência de uma crise habitacional
para a região de Rabat-Salé que tem persistido até o presente (WAGNER; MINCA, 2014).
Como é possível observar na figura 2, a médina apresenta, em termos de dimensão espacial,
uma fração pequena da ville nouvelle que se expandiu ao seu redor, explicitando, assim, outro
instrumento de controle: a estagnação da médina, antes manifestada pelas políticas de
associação, também demonstrada de forma física e espacial, tomando uma forma que persiste
até os dias atuais, e é refletida nas crises habitacionais do presente.

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Assim sendo, o legado arquitetônico e a estagnação de um ambiente construído
concebido como parte de uma grande teoria para a produção da modernidade social francesa
deixaram uma marca profunda no desenvolvimento de Rabat. A capital colonial, reinventada
por Lyautey como um ambicioso laboratório urbano, foi também o local onde foram
experimentadas novas ideias de patrimônio e de regeneração urbana e cultural, buscando
alternativas para desenvolver políticas que pudessem solucionar as mazelas que assolavam a
França, promovendo melhorias modernas sem romper as tradições nacionais. Apesar desse
intuito, as cidades coloniais não forneceram um modelo significativo ou mesmo um incentivo
muito necessário para replanejar as cidades em casa, como pontua Wright (1997).
Em conclusão, diante do estudo da cidade de Rabat em meio ao seu contexto
neocolonial, é possível inferir que a atuação francesa proporciona um entendimento acerca da
articulação política e seu intermédio nas abordagens de desenho urbano, explicitando como as
correntes de pensamento urbanístico, aliadas ao poder governamental, são capazes de
impulsionar estratégias políticas. O estudo, ultimamente, também evidencia a relação intrínseca
entre cultura e política, levantando questões a respeito das intenções, assim como das
consequências, das aplicações de reformas urbanas, sejam em situações coloniais ou não,
servindo seus efeitos de exemplo para o mundo. Ademais, apesar das rígidas críticas
explicitadas por diversos autores ao longo do estudo, é imprescindível destacar um aspecto
positivo oriundo das políticas implementadas pela França em Marrocos: não fosse Lyautey e
seus incontestáveis esforços para a preservação da cultura autóctone e o isolamento das novas
cidades coloniais, apenas fragmentos da antiga cidade teriam sobrevivido, assim como em
outros exemplos coloniais. Em vez disso, “[...] as médinas marroquinas ainda nos permitem
acesso a uma das mais grandiosas e históricas tradições mundiais de construção de cidades”
(ABU-LUGHOD, 1980, prefácio XVI).

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REFERÊNCIAS

ABU-LUGHOD, J. L. Rabat: Urban Apartheid in Morocco. Princeton, NJ: Princeton


University Press, New Jersey, 1980.

ASAD, T. Anthropology and the Colonial Encounter, London: Ithaca Press, 1973

BERDOUZ K., M’HAMMEDI M. Cultural Urban Heritage at the Challenge of Urban


Planning Policy: Rabat and Casablanca as Example (1912-2018). 2019. Journal of Interior
Designing and Regional Planning, MAT Journals, Volume 4 – Issue 1, p. 20-33.

BLANCHARD P., LEMAIRE S. (eds) Culture coloniale: La France conquise par son empire,
1871–1931. Paris: Autrement, 2003

BRUNSCHWIG H., Mythes et réalités de l’Impérialisme colonial français, 1871-1914 (Paris,


1960), p. 174.

BURESI, P. The story of the Almohads in the Kingdom of Fez and of Morocco. Jerónimo Paéz.
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