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8.

EU personagem e o pânico da solidão

De resto, a minha vida gira em torno da minha obra


literária – boa ou má, que seja, ou possa ser. Tudo o
mais, na vida, tem para mim um interesse secundário.
Fernando Pessoa

Hoje é mais fácil ficar famoso. Tem mais emissoras,


mais revistas. É mole sair numa foto, mostrar
a cara [...]. É uma delícia ser fotografado. Mas
tenho medo de me sentir descartado, de ficar
deprimido. Deve ser muito triste a sensação de
ser querido numa semana e na seguinte ninguém
mais perguntar por você. Mas faz parte.
Kléber Bambam

Qual é a principal obra que produzem os autores e narradores dos no-


vos gêneros autobiográficos? Um personagem chamado eu. De fato, e
para além da enorme variedade de manifestações desse tipo, o que to-
dos criam e recriam incessantemente, ao performar as suas vidas nessas
vitrines interativas hoje onipresentes, é a própria personalidade. Essa
autoconstrução de si como um personagem visível seria, pelo menos,
uma das metas prioritárias de grande parte desses relatos cotidianos,
compostos por imagens autorreferentes e textos extimistas, numa sorte
de espetáculo pessoal sempre à mostra e em diálogo com os demais
membros das diversas redes. Essas mensagens que, todos os dias, ator-
doam as telas interconectadas permitem que os seus autores se tornem
um tipo de personagem decalcado nos padrões midiáticos e, particular-
mente, inspirado nos moldes audiovisuais do cinema e da televisão.
Por isso, esses canais de comunicação ainda novos, simbolizados
pelas mídias sociais da internet e outros dispositivos digitais, são
também ferramentas para a criação de si. Esses instrumentos de au-
toestilização, que operam ativando a visibilidade e a conexão perma-
nentes, agora se encontram à disposição de qualquer um. Isso signi-
fica um setor crescente da população mundial – você, eu e todos nós

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– mas também, ao mesmo tempo, remete a outro sentido dessa ex-
pressão. “Qualquer um” significa ninguém extraordinário, em prin-
cípio, por ter produzido uma obra valiosa ou alguma outra coisa de
excepcional, e que tampouco se vê impelido a fazê-lo para virar um
personagem mais ou menos público. A insistência nessa ideia de que
“agora qualquer um pode”, no tocante às práticas autorais que se
desenvolvem nesses territórios, encontra-se no cerne das louvações
democratizantes plasmadas em conceitos como os de “inclusão digi-
tal” ou “liberação do polo emissor”, por exemplo, que dão conta da
superação do esquema midiático unidirecional do broadcasting e são
muito recorrentes nas análises mais entusiastas destes fenômenos,
tanto no âmbito acadêmico como no jornalístico.
É essa perspectiva a que levou você a ocupar o trono da persona-
lidade do momento, aliás, de acordo com o veredicto da revista Time
antes mencionado. Pois graças a esse poderoso arsenal que já está à
disposição de praticamente qualquer um, de fato agora não é só pos-
sível, mas tornou-se quase uma obrigação cotidiana criar performan-
ces transmidiáticas de si para mostrar aos outros quem se é. Além
disso, e em que pese a suposta liberdade de escolha de cada usuário,
há códigos implícitos e fórmulas bastante explícitas sobre como deve-
ria ser essa autocriação, em função de quais são os eus mais valoriza-
dos desse show. As diversas versões dessas personalidades que perfor-
mam em múltiplas telas admitem certa variabilidade individual, é
claro, mas costumam partir de uma base comum. Todos os perfis se
fincam num modo peculiar de ser e estar no mundo, historicamente
determinado e bem característico destes inícios do século XXI.
Essa modalidade subjetiva que hoje triunfa está impregnada com
alguns vestígios do estilo singular do artista romântico, por exemplo,
mas não se trata de alguém que procura produzir uma obra separada
e independente do seu criador. Ao invés disso, toda a energia e os re-
cursos estilísticos estão dirigidos a que esse autor de si mesmo seja
capaz de criar um personagem dotado de uma personalidade atraente.
Mas o que seria isso que tanto se busca delinear? Trata-se de uma obra
que deve ser vista e, nessa exposição, precisa conquistar os aplausos
do público. É uma subjetividade que se autocria em contato perma-
nente com o olhar alheio, algo que se cinzela a todo momento para ser

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mostrado, compartilhado, curtido, comentado e admirado. Por isso,
trata-se de um tipo de construção de si alterdirigida ou orientada para
(e pelos) outros, recorrendo novamente aos conceitos propostos pelo
sociólogo David Riesman em seu livro A multidão solitária.
Cabe lembrar que, de acordo com esse autor, tal tipo de “caráter
social” que tem como foco o olhar dos outros foi se desenvolvendo
em meados do século XX, sobretudo entre os jovens dos setores mais
abastados das grandes cidades estadunidenses. Vários fatores contri-
buíram para esse deslocamento do eixo em torno ao qual se consti-
tuem as subjetividades, e que levaram a diminuir gradativamente a
preeminência do antigo caráter introdirigido ou orientado para
“dentro” de si mesmo. Ou seja, um tipo de subjetividade que ainda
era hegemônica naquele momento em que o autor escrevia, mas que
foi perdendo a sua prevalência nas últimas décadas do século XX,
em proveito das novas formas que então começavam a se expandir e
que hoje se tornaram majoritárias.
O próprio Riesman explica que a pesquisa empírica na qual se
apoiava a sua publicação acabou dando à luz “um ensaio impressio-
nista”. Nesse clássico estudo sobre os processos de modernização e
urbanização dos Estados Unidos, ocorridos no final do século XIX e
na primeira metade do XX, o sociólogo assinalou a crescente rele-
vância do consumo e dos meios de comunicação de massa como ve-
tores fundamentais na articulação desse movimento. Dois elementos
que afetaram intensamente a sociabilidade e as formas de autocons-
trução, desembocando numa formidável “transformação do cará-
ter”, isto é, aquilo que constituiu o âmago da sua análise. A partir
dos dados coletados junto à população examinada, o autor procurou
inferir as mudanças que tais processos históricos impulsionaram nes-
sas arenas, e foi assim como observou essa espécie de mutação nas
subjetividades ocidentais, um complexo movimento que se precipi-
tou em meados do século XX.
Do que se trata, afinal? Daquilo que nestas páginas vem sendo te-
matizado como a crise da interioridade moderna, ou o declínio daque-
la figura que protagonizou as sociedades industriais: o homo psycho-
logicus. Trata-se de um deslocamento do eixo em torno do qual se
edifica o que se é: de dentro (intro-dirigidos) para fora (alter-dirigidos).

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Outro termo usado por Riesman para nomear o primeiro tipo de cons-
tituição subjetiva é caráter, denotando uma solidez interna na qual se
hospedam valores ligados à estabilidade, à palavra e à confiança para
além do que se vê. Já a segunda modalidade de autoestilização, que,
em vez de se assentar sobre a densa base da própria interioridade psi-
cológica, aposta nos efeitos que é capaz de provocar nos outros, rece-
beu o expressivo título de personalidade. Por isso, seria seguindo esta
conceituação proposta originalmente pelo sociólogo estadunidense
que o seu colega Richard Sennett aludiu à “corrosão do caráter” nas
novas relações de trabalho derivadas da globalização dos mercados e
da flexibilização da economia, algo que demanda subjetividades alter-
dirigidas para poder funcionar com eficácia.1
O modo de vida e os valores privilegiados pelo capitalismo em
auge foram primordiais nessa transição do caráter para a personali-
dade, ao propiciar o desenvolvimento de “habilidades de autovenda-
gem” e outras práticas de autopromoção nos indivíduos. Com isso,
sempre conforme a análise de Riesman, instaurou-se um verdadeiro
mercado de personalidades, no qual a imagem de cada um passou a
ser o principal valor de troca. O sociólogo explica que “os america-
nos sempre procuraram uma opinião favorável, e sempre tiveram que
procurá-la num mercado instável, onde as cotações do eu poderiam
variar, sem a restrição de preços de um sistema de castas ou de uma
aristocracia”.2 Em cima dessa tradição já cimentada por esse percurso
nacional específico, em meados do século passado ocorreu uma rede-
finição do eu que levou a acentuar e generalizar tais práticas.
O rebento que surgiu dessa metamorfose é, acima de tudo, uma
subjetividade que deseja ser amada e apreciada por seus pares, não
exatamente pelos seus superiores nas antiquadas hierarquias das ins-
tituições disciplinares. Por isso, os sujeitos assim configurados bus-
cam desesperadamente a aprovação alheia. Com esse objetivo, pro-
curam tecer contatos e estabelecer relações íntimas com os outros,
tentando seduzi-los com o brilho de sua vida singular. Essa persona-

1 SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no


novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
2 RIESMAN, David. A multidão solitária. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 34.

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lidade tão voltada para o olhar alheio pertence a um tipo de sujeito
que “vive numa casa de vidro, não por trás de cortinas de renda
ou de veludo”, como constatara Riesman tão benjaminianamente.
As telas enredadas em que hoje nos construímos, nos mostramos e
dialogamos são, de certo modo, as versões mais emblemáticas dessas
casas de vidro imaginadas como metáforas há várias décadas. Pois
foi preciso elaborar as ferramentas adequadas para consumar tais
ambições: sob o império das subjetividades alterdirigidas, o que se é
deve ser visto – e cada um é aquilo que mostra de si.
Mais de meio século mais tarde, portanto, esse “tipo caracteroló-
gico social” que germinou nas peculiares condições da cultura esta-
dunidense da década de 1950 parece estar se tornando hegemônico
em escala planetária. Alguns de seus traços, inclusive, foram acen-
tuados e se desenvolveram em níveis que teriam sido impensáveis
pouco tempo atrás. Um instrumental técnico muito sofisticado foi
gerado para canalizar tais demandas, e a sua jovial adoção por por-
ções crescentes da população global acabou reforçando essas tendên-
cias. Os canais interativos da internet hoje são utilizados, com graus
crescentes de frequência e intensidade, para que cada um possa criar
a manter a sua obra mais preciosa: um eu visível. De frente e perfil,
sem limites de espaço nem de tempo, um barulhento festival de per-
sonalidades alterdirigidas, sempre em exposição e interconectadas.
Apesar da ênfase na interatividade, as novas obras autobiográficas
não parecem exigir a legitimação dos leitores ou dos espectadores
para consumar a sua existência; pelo menos, não no sentido moder-
no, assimilável à crítica literária ou artística. É claro que são funda-
mentais os comentários deixados pelos visitantes dos blogs e das re-
des sociais, por exemplo, bem como as curtidas e os compartilhamentos,
as visualizações e outros indícios do sucesso de cada perfil. Mas isso
acontece porque os autores precisam desse apoio público, compará-
vel ao ibope dos meios de comunicação ou às estratégias empresariais
de marketing e branding. Eles, os sujeitos criadores e curadores de
seus próprios personagens, e não as suas obras entendidas como ob-
jetos criados e plasmadas nas imagens ou textos em exibição.
Isso acontece porque a verdadeira obra colocada em jogo nesses
territórios é subjetiva, portanto são os autores – estilizados como

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personagens – os que precisam dessa legitimação concedida pelo
olhar alheio. Como reza a famosa definição de Guy Debord, em seu
famoso manifesto de 1967: “o espetáculo não é um conjunto de ima-
gens, mas uma relação social entre pessoas mediadas por imagens”.3
A interatividade que atravessa os blogs e os demais gêneros autobio-
gráficos da internet seria, de acordo com esta perspectiva, uma das
mais perfeitas formas do espetáculo. Algo que só podia ser vislum-
brado como metáfora há meio século, quando o ativista francês es-
crevera e filmara as suas ardorosas teses, mas as mídias sociais basea-
das em redes digitais – que se popularizaram várias décadas mais
tarde – acabaram materializando tecnicamente uma tal profecia.
Também neste caso, os números podem ajudar a compreender a
magnitude e certos relevos do fenômeno. Em meados de 2004, a in-
ternet albergava cerca de nove milhões de blogs considerados auto-
biográficos ou confessionais, enquanto a quantidade de leitores não
chegava sequer a dobrá-los: quatorze milhões. Em 2007, calculou-se
que cento e quarenta milhões de usuários já produziam conteúdos
para os diversos canais interativos da rede, enquanto o número de
leitores e espectadores estimados para todo esse material era equiva-
lente. Este quadro complementa uma situação mais geral, marcada
por uma diminuição dos leitores e um aumento dos autores em todo
o mundo, inclusive no caso dos suportes analógicos como o livro
impresso. Entre outros motivos, isso ocorre porque agora qualquer
um pode ser autor, não apenas leitor. Mas convém sublinhá-lo: este
desequilíbrio nas quantidades relativas não implica, necessariamen-
te, uma desaparição das diferenças entre ambas as categorias.
“Durante séculos, houve uma separação rígida entre um pequeno
número de escritores e um grande número de leitores”, apontou Wal-
ter Benjamin em 1935, em seu célebre ensaio sobre a reprodutibilida-
de técnica da obra de arte e a consequente morte da aura.4 Ao longo
do século XX, tanto a alfabetização das massas como o incremento
das facilidades técnicas conseguiram que esse abismo se atenuasse

3 DEBORD, op. cit., tese 4.


4 BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” (pri-
meira versão). In: op. cit., p. 184-185.

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gradativamente, pois o número de autores se expandia cada vez mais.
Agora, no século XXI, não só persiste essa tendência rumo à demo-
cratização da fala com o aumento da quantidade de autores; além
disso, paralelamente, registra-se uma forte queda do público leitor –
pelo menos, naquele sentido moderno da leitura linear, silenciosa e
solitária. Na internet, esse processo é mais evidente ainda: os autores
de blogs, posts e vídeos são também os seus leitores e espectadores.
Somos eu, você e todos nós que escrevemos relatos autobiográficos e
publicamos fotos e filmes, e também somos nós que interagimos com
as criações dos outros e as legitimamos através das leituras e dos olha-
res. Há uma certa reciprocidade nessas práticas, pois ao confirmar
com um aceno a presença do outro na esfera do visível, esse gesto se
torna necessário: concede-lhe realidade e existência.
Esses dados podem estar indicando algo relevante, embora bastan-
te curioso: para além da qualidade da obra, no sentido dos objetos
criados (textos, fotos, sons, vídeos), não é necessário que esta seja de
fato “lida”. Algo que também acontece, paradoxalmente mas cada vez
com maior frequência, no campo da literatura impressa tradicional,
ou no âmbito artístico de um modo geral. Basta apenas que se constate
a sua existência; e se tal constatação for publicada na grande mídia,
com projeção nacional ou internacional, pois então melhor ainda. Isso
também foi vaticinado por Debord, ao postular a justificativa tautoló-
gica do espetáculo sempre reproduzindo a lógica empresarial do ibo-
pe: “o que aparece é bom, e o que é bom aparece”. Sobretudo, é im-
portante que por meio desses recursos de exposição e visibilidade seja
sublinhada a função-autor e, desse modo, que seja construída a figura
do autor. Esse seria um dos papéis primordiais dos comentários, das
curtidas e de todos os outros gestos daqueles que interagem com as
próprias postagens: confirmar a subjetividade de quem fala.
Por ser alterdirigida, esta só pode se construir diante do espelho
legitimador do olhar alheio. E, no caso específico das mídias sociais,
essa legitimação opera através dessa etiqueta das pequenas trocas
afirmativas. Graças ao clique no polegar para cima, por exemplo,
dado pelo outro que observa e julga, o autor-personsagem é reconhe-
cido como portador de algum tipo de singularidade aparentada com
a antiga personalidade artística de estirpe romântica. Para poder

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conquistar esse bem tão prezado, porém, a aprovação alheia, a obra
é sem dúvida um elemento importante – ou seja, as palavras e as
imagens autorreferentes que recheiam os novos gêneros autobiográ-
ficos. Mas esses materiais constituem dados de segunda ordem, pois
o que realmente importa é aquilo que eles contribuem para criar e
performar: a vida, a extimidade e a personalidade do autor-narrador
convertido em personagem.
Toda a potência desse eu que narra, que assina e que atua na visi-
bilidade interconectada concentra-se de fato em seu peculiar modo
de ser e estar no mundo. Todo o seu valor reside na singularidade do
seu estilo como personagem visível; e, graças a isso, na sua decorren-
te capacidade de atrair uma grande quantidade de seguidores e fãs.
Nada mais distante, portanto, daquele artesão tradicional, cuja ago-
nia Walter Benjamim denunciara nas décadas iniciais do século XX.
Ou seja, aquela figura típica do mundo pré-moderno, anterior ao
surto romântico, que tecia relatos orais para o deleite coletivo, con-
figurando uma obra anônima pois as suas narrativas tinham autono-
mia com relação ao sujeito que as narrava e, ainda, eram fruto de um
substrato coletivo e ancestral. Por isso, nesse quadro, o que importa-
va era o que ele fazia, e não o que ele era.
“Tudo tem que ser dito ao mesmo tempo, aqui, agora”, afirmava
em 2007 uma blogueira brasileira, ao tentar definir a movimentada
cena dos escritores on-line. “Olha, aqui estamos, imperfeitos, des-
preparados, e se não pudermos reescrever tudo isso: que seja!”, pros-
seguia então Cecília Gianetti, rematando com a seguinte conclusão:
“é melhor que não dizer”. Outra escritora que naquela mesma época
partilhava o reluzente universo dos blogs, Paloma Vidal, acrescenta-
va as suas próprias reflexões: “o diário é uma representação dessa
experiência estranha de não saber pensar sem falar”.5 De fato, esse
súbito impulso de ter que falar – e se mostrar – agora, já, em tempo
real e do jeito que for, acabou atropelando aquele trabalho silencioso
e solitário que outrora era considerado fundamental, tanto para pen-
sar como para escrever e para se autoconstruir. Mais uma vez, por-
tanto, as novas práticas revelam a sua distância com relação à escrita

5 AZEVEDO, op. cit., p. 52-53.

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íntima moderna, e não apenas com relação ao ainda mais velho nar-
rador benjaminiano. Por conseguinte, também confirmam o seu
afastamento das subjetividades que se arquitetavam em todas aque-
las práticas mais antigas.
No longínquo século XIX, porém, o mundo ocidental também
fervilhava de relatos. Tanto os romances como as cartas e os diários
vivenciavam seu esplendor, bem como os escritores e os leitores. Na-
queles tempos áureos da cultura letrada como um horizonte ideal
para a formação dos cidadãos nacionais, entretanto, irradiava com
todos os brilhos aquela subjetividade moderna delineada sob a hege-
monia burguesa. Um modo de ser esculpido à sombra da racionali-
dade científica mas também da personalidade artística dos românti-
cos, dotado de uma opulenta vida interior e de uma história própria
que alicerçava o seu presente único e singular. Era o império do
homo psychologicus, em suma, das subjetividades introdirigidas e do
homo privatus. Num mundo como esse, tudo parecia existir para ser
contado num livro, conforme a célebre expressão do poeta francês
Stéphane Mallarmé. Ou, como teria dito outro poeta, neste caso, o
inglês Samuel Taylor Coleridge: “não importa que vida, por mais
insignificante que seja... se ela for bem narrada, é digna de interesse”.6
Sob essa perspectiva, o mero fato de narrar bem era a chave mágica
que permitia tornar extraordinária qualquer vida – ou qualquer coi-
sa –, por insignificante que ela fosse na realidade.
Um dos romances mais emblemáticos da modernidade, por exem-
plo, o Ulisses de James Joyce, conta todas as peripécias que ocorrem
aos protagonistas do relato ao longo de um único dia na cidade de
Dublin: no 16 de junho de 1904, uma longa jornada na qual, a rigor,
nada acontece. A obra magna em que Marcel Proust recupera seu
tempo perdido, por sua vez, narra o dia a dia de uma vida que tam-
bém poderia ser facilmente rotulada como banal. Madame Bovary
relata com luxo de detalhes a vida ordinária de uma esposa pequeno-
-burguesa de províncias. Seria possível continuar infinitamente esta

6 Apud CELES, Luiz Augusto. “A psicanálise no contexto das autobiografias românti-


cas”. In: Cadernos de Subjetividade. São Paulo: PUC-SP, v. 1, n. 2, set.-fev. 1993,
p. 177-203.

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enumeração; contudo, o segredo do ímã irresistível que a leitura de
todos esses relatos implicava para seus leitores não residia no que,
mas no como. As belas artes da narração tornavam extraordinário o
narrado, mesmo que fosse algo aparentemente insignificante. Para
operar essa alquimia era preciso recorrer a generosas doses de intros-
pecção, a personagens cuidadosamente bosquejados e ao livre fluir
da consciência, dos pensamentos, das emoções e dos sentimentos.
Além disso, apesar das imensas peculiaridades de cada caso e da
qualidade variável das obras produzidas naquele longo e intenso pe-
ríodo, em todos esses relatos paira um anseio de criar um universo
com vocação de totalidade a partir dos escombros de uma vida, mes-
mo que se trate de uma vida minúscula. Essa pretensão evoca, mais
uma vez, aquela metáfora arqueológica de Roma, em oposição ao
recurso narrativo mais atual – e muito presente nos novos gêneros
autobiográficos, sobretudo na internet – que costuma remeter à me-
táfora instantânea de Pompeia. Por outro lado, o como daquele tipo
de narração oitocentista abrange uma outra ambição desmesurada e
igualmente importante: a capacidade de oferecer pistas sobre o sen-
tido da vida, como diria Walter Benjamin, algo que constitui um dos
ingredientes primordiais do romance moderno.
Naquele universo já definitivamente distante – e que, inclusive,
seguiu um caminho inaugurado bem antes, talvez no século XVI pe-
los pioneiros Ensaios de Montaigne e pelos primeiros romances de
que se tenha conhecimento – os indivíduos não apenas liam aqueles
textos, mas também costumavam escrever profusamente. Nos diá-
rios íntimos e nas trocas epistolares, por exemplo, eles contavam
a sua própria história e construíam um eu no papel para fundar a
sua especificidade. Tais relatos de si eram costurados diariamente
na solidão e no silêncio do quarto próprio, ou em qualquer ou-
tro local que pudesse desempenhar esse papel de refúgio intimista,
onde fosse possível desenvolver um diálogo denso com a própria
interioridade. Assim como ocorre hoje em dia com os dispositivos
digitais usados para performar na visibilidade interconectada das
redes, portanto, os diários e as cartas daquela época – assim como
os romances e os contos – também constituíam úteis ferramentas
para a autocriação.

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Recorrendo a esse arsenal de tecnologias analógicas, os sujeitos
dos séculos XIX e XX entreteciam as complexas redes intersubjetivas
que alicerçavam aquele universo. Mas, além disso, e sobretudo, esse
instrumental lhes permitia edificar a singularidade individual de cada
autor-narrador-personagem. Não se tratava, porém, nessas práticas
cotidianas e muito expandidas naqueles tempos, de registros escritos
sobre aquelas figuras ilustres que protagonizavam as biografias re-
nascentistas. Esses hábitos não se restringiam aos personagens ex-
traordinários, cuja ação no mundo era narrada para preservar a sua
lembrança pública na posteridade. Nestes casos, ao contrário, qual-
quer um procurava se narrar – na intimidade mais sigilosa do diário
e das cartas privadas – para ser alguém extraordinário, mesmo que
essa originalidade individual ficasse pudicamente preservada entre as
quatro paredes do lar.
Já os tempos que correm não são tão românticos assim – e nem
sequer tão burgueses, pelo menos nesse sentido mais clássico –, e as
coisas tornaram a mudar. Agora, em vez de parecer que tudo existe
para ser contado num livro, como na época de Mallarmé, tem se
propagado a impressão de que só ocorre aquilo que é exibido numa
tela. As diferenças não são tão sutis como poderiam parecer, ou refe-
ridas a meras atualizações de suportes tecnológicos ou midiáticos.
Não se trata apenas de uma passagem do livro impresso, que antes
reinava quase absoluto, para as diversas telas eletrônicas que hoje
povoam nossas paisagens cotidianas. Em muitos sentidos, porém, o
meio é a mensagem, pois não há dúvidas que os diversos canais tam-
bém modelam ou pelo menos afetam o conteúdo que por eles circula.
Assim, não é a mesma coisa contar algo num volume encadernado
no século XIX, por exemplo, do que fazê-lo num dos telefones celu-
lares que hoje carregamos conosco para toda parte.
É evidente que o mundo mudou muito entre um desses momentos
históricos e o outro, e ainda continua a mudar, propiciando assim o
desenvolvimento de dispositivos técnicos e socioculturais destinados
a suprir as novas demandas que foram surgindo. No que se refere às
narrativas autobiográficas e às subjetividades de cada época, a muta-
ção pode ser sutil, mas é bastante intensa e significativa. Antes, tudo
existia para ser contado num livro. Ou seja, a realidade do mundo

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devia ser metabolizada pela profusa interioridade dos autores para
vertê-la no papel com a ajuda de recursos literários ou artísticos. De
preferência, dali deveria emergir transformada numa obra de arte.
Mas agora só acontece aquilo que é exibido numa tela: tudo quanto
faz parte do mundo só se torna mais real – ou realmente real – se
aparecer projetado como um relato audiovisual.
Com essa transformação, não só deixou de ser necessário que a
vida em questão seja extraordinária, como era o caso das biografias
renascentistas ou as sagas dos homens públicos do século XVIII,
mas agora tampouco é um requisito imprescindível que ela seja bem
narrada, como exigiam os ímpetos românticos e as tradições bur-
guesas. Porque neste novo contexto cabe à tela, ou à mera visibili-
dade, a capacidade de conceder um brilho extraordinário à vida
comum recriada no rutilante espaço midiático. São as lentes da câ-
mera e os holofotes que criam e dão consistência ao real, por mais
anódino que seja o referente para o qual os flashes apontam. A apa-
relhagem técnica da visibilidade é capaz de conceder uma aura de
glamour a qualquer coisa e, nesse gesto, de algum modo também
acaba realizando isso que mostra.
É por isso que os diversos discursos midiáticos contemporâneos
não se cansam de apregoar que, agora, qualquer um pode ser famo-
so. Não deixa de ser verdade, levando em conta a incessante prolife-
ração de celebridades que nascem e morrem sem nada ter feito de
extraordinário, e sem que nada acerca delas tenha sido bem narrado
a fim de transformar em excepcional algo aparentemente insignifi-
cante; mas, apenas, por ter conquistado alguma visibilidade. Como
uma sequela destes deslocamentos, os termos famoso ou famosa, que
costumavam ser adjetivos qualificativos e, portanto, deviam acom-
panhar um digno substantivo que os justificasse (um artista famoso,
uma atriz famosa, um famoso político, etc.), hoje têm se transforma-
do em substantivos autojustificáveis: um famoso, uma famosa, um
grupo de famosos. Assim, a celebridade se autolegitima: é tão tauto-
lógica como o espetáculo pois ela é o espetáculo. Por que os famosos
são famosos? Eis a única resposta possível para grande parte dos
casos: os famosos são famosos por serem famosos. Ou seja: porque
eles têm acesso à visibilidade.

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Tanto às genuínas figuras ilustres de outrora quanto aos famosos
de hoje em dia – nos casos em que a palavra ainda mantém a sua
condição de adjetivo –, como também a estes outros que são subs-
tantivamente famosos per se e que proliferam cada vez mais, a mídia
costuma resgatá-los em seus papéis de qualquer um. Seja nas revistas
de celebridades ou nos filmes biográficos que estão na moda, famo-
sos e famosas das linhagens mais diversas são ovacionados, nesses
suportes com esplendor midiático, por serem comuns. Para que esse
efeito possa ser conseguido, as suas vidas devem ser ficcionalizadas;
e, convertidas em extimidades, são mostradas em público sob a luz
da mais resplandecente visibilidade. Desse modo, efetua-se uma su-
perexposição daqueles aspectos supostamente privados que, embora
sendo banais – ou, talvez, precisamente por isso? –, se tornam fasci-
nantes para a avidez dos olhares alheios.
Em decorrência de todas essas operações, que estão muito bem
afinadas com o clima contemporâneo, as vidas reais são impelidas a
se estetizarem constantemente e a performar em cena, como se esti-
vessem sempre na mira dos fotógrafos paparazzi ou num reality-
-show. Para ganhar consistência e inclusive existência, conquistando
a legitimação do olhar alheio, é preciso estilizar a própria vida como
se pertencesse ao protagonista de um filme. Assim, cotidianamente,
os sujeitos destes inícios do século XXI, familiarizados com as regras
da sociedade do espetáculo, recorrem a uma infinidade de ferramen-
tas ficcionalizantes disponíveis no mercado para se autoconstruir.
A meta é enfeitar e recriar o próprio eu como se fosse um personagem
audiovisual. De fato, para saciar essa demanda de personalidades al-
terdirigidas, as mídias atuais oferecem um farto catálogo de estilos
que cada um pode escolher e emular: é possível copiá-los, usá-los e
logo descartá-los para substituí-los por outros sempre renovados.
Um complicado jogo de espelhos com os personagens midiatiza-
dos dispara processos de identificação efêmeros e fugazes, que pro-
movem as inúmeras vantagens de reciclar regularmente a própria
identidade. Não é casual que agora existam, inclusive, profissionais
especializados em oferecer assessoria para quem deseja se aperfei-
çoar nessa tarefa cada vez mais capital. Trata-se dos consultores de
imagem, que até pouco tempo atrás destinavam seus serviços exclu-

O show do Eu 313

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sivamente às empresas, depois ampliaram seu escopo para aconse-
lhar políticos e outras figuras públicas, mas nos últimos anos come-
çaram a projetar cardápios orientados para os indivíduos particulares.
Agora, portanto, qualquer um pode ser cliente dessas companhias e
consumir tais serviços, especialmente orientados àqueles que necessi-
tam de ajuda para polir o seu aspecto e exibir uma aparência ade-
quada à sua personalidade. Pois, afinal, todos queremos ser persona-
gens como aqueles que brilham nas telas, mas não é tão fácil assim:
mesmo com a “competência midiática” adquirida nos últimos tem-
pos, ainda assim é preciso trabalhar e se esforçar constantemente,
além de ter sorte e, também, pagar por isso.
Os novos canais inaugurados na internet na virada do século, como
os blogs e as redes sociais, não fazem mais do que reforçar essa dinâ-
mica: a passagem da introdireção para a alterdireção, algo que se per-
cebe tanto nos processos de construção das subjetividades como nos
tipos de sociabilidades que elas propiciam. Há inúmeras vantagens no
abandono de certas limitações inerentes ao tipo de configuração histó-
rica do homo psychologicus; nesse sentido, convém não esquecer que
a transformação histórica que passou a estimular as personalidades
alterdirigidas envolveu um conjunto de lutas políticas, filosóficas, ar-
tísticas e socioculturais que levaram à inúmeras conquistas no plano
das liberdades individuais, por exemplo. Abriram também possibilida-
des inéditas ao privilegiar o contato com os outros em vez de se afincar
no complicado cerne de cada um. Entretanto, novos problemas surgi-
ram, muitos deles decorrentes do papel que o mercado desempenha
atualmente nesses jogos, com infiltrações antes impensáveis tanto no
campo da subjetividade como no corpo e nos afetos.
Ao permitirem que qualquer um seja visto, lido, ouvido, avaliado e
julgado por um público composto potencialmente por milhões de pes-
soas – mesmo que não se tenha nada específico para dizer ou mostrar
–, as mídias sociais também incitam a posicionar a própria personali-
dade no mercado das aparências. Não é raro, portanto, que essa injun-
ção suscite a configuração de subjetividades muito vulneráveis ao ve-
redicto do olhar alheio. Há o risco de uma grande fragilidade nesse
estímulo à autoexposição permanente, assim como a densidade exces-
siva podia ser um problema difícil de lidar para o caráter introdirigido.

314 Paula Sibilia

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Enquanto a culpa se afrouxa como o principal articulador daquelas
subjetividades mais antiquadas – e, também, como mecanismo de con-
trole social num contexto em que a moral e a lei costumavam coincidir
e estavam internalizadas no âmago de cada um –, a vergonha passa a
desempenhar um papel cada vez mais temível numa sociedade assom-
brada pela constante ameaça do bullying generalizado.7
Assim, compassando a libertação de alguns pesos enferrujados
que vinham atrelados àqueles modos de ser oitocentistas, uma certa
falta de sentido pode pairar sobre as existências puramente alterdiri-
gidas da contemporaneidade. O mero fato de se exibir de modo
atraente pode não ser suficiente para sustentar a própria experiência;
além disso, a necessidade de abocanhar um grande número de segui-
dores pode levar a um contato meramente instrumental com os ou-
tros, que são valorados apenas em sua condição de audiência poten-
cial para a própria trivialidade. Por isso, apesar da estridência que
insiste nessa exibição de mundos felizes por toda parte, uma falta de
consistência invisível parece estar gerando fortes doses de sofrimen-
to, insatisfação e solidão. Problemáticas tipicamente contemporâ-
neas, que decorrem dessas novas situações, embora tenhamos nos
livrado de outros dramas antes predominantes.
Apesar da “democratização” recentemente alavancada pelas mí-
dias sociais, as manifestações desses conflitos não se limitam à inter-
net. A atual paisagem midiática e artística está repleta de sintomas,
alguns dos quais se renovam e intensificam em alta velocidade. Um
deles é a enorme demanda por participar nos reality-shows da televi-
são, um gênero que não existia há três décadas e que, agora, tem se
desenvolvido em incontáveis vertentes. Na seleção dos candidatos
para a sétima edição do programa Big Brother Brasil, por exemplo,
a disputa foi cem vezes mais acirrada que no cobiçado vestibular
para estudar medicina nas melhores universidades do país. Esses da-
dos sugerem que também se deslocaram os imaginários de sucesso,
enquanto os roteiros de identificação migram das instituições mo-

7 SIBILIA, Paula. “Vivir en la vidriera: las nuevas tecnologias y el acoso escolar”. In: Le
monde diplomatique. Buenos Aires, 20 fev. 2015, p. 18-19; SIBILIA, Paula. “Bullying:
¿culpa o vergüenza?”. In: La época, APA, n. 6. Buenos Aires, março 2015.

O show do Eu 315

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dernas outrora mais respeitadas, berços do caráter introdirigido,
para as promessas transmidiáticas das celebridades que seduzem as
personalidades alterdirigidas.
Uma ilustração desses sonhos hoje triunfantes é dada pelo jovem
protagonista de Storytelling, um filme de Todd Solondz estreado no
ano 2000. Para esse personagem fictício, filho de uma família de classe
média que morava num subúrbio de Nova York, a única possibilidade
de fugir da abulia e da apatia em que se encontrava imerso, sufocado
numa vida sem nenhuma consistência, era a excitante promessa de
aparecer na televisão e ser famoso. Esse era o único afeto capaz de
mobilizá-lo, mesmo que ele não pudesse sequer imaginar uma razão
para tal visibilidade, e sem que essa falta de sentido parecesse importar
a ninguém. Semelhante, ainda, é um caso pateticamente real ocorrido
em 2007, quando um garoto de dezenove anos de idade matou uma
dezena de pessoas com uma arma de fogo num centro comercial da
região central dos Estados Unidos. No bilhete que deixou antes de
cometer suicídio, o adolescente confessava seus motivos e sua inten-
ção: morrer “com estilo” para poder, enfim, “ser famoso”.8
É justamente isso o que procura explicar Neal Gabler em seu livro
Vida, o filme: essa voraz sede de visibilidade e celebridade que marca
as experiências subjetivas contemporâneas. Com tal objetivo, o en-
saísta estadunidense analisa o que ele considera “a transformação da
realidade em entretenimento”. Como um avanço ainda mais radical
da lógica da sociedade do espetáculo na cultura contemporânea,
uma série de fatores teriam levado à conversão de nossas vidas em
filmes: lifies, como o próprio autor as denomina, num trocadilho que
fusiona as palavras life (vida) e movies (filmes). Através de um pas-
seio histórico bem documentado, Gabler mostra que o entretenimen-
to lateja na medula dos Estados Unidos. Com a sua influência cultu-
ral e econômica desdobrada em nível global a partir da segunda
metade do século XX, as características peculiares dessa sociedade
teriam se generalizado em todo o planeta, preparando o terreno para
os fenômenos aqui analisados.

8 “Ataque em shopping dos EUA mata nove e deixa cinco feridos; agressor queria ser
famoso”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 6 dez. 2007.

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Desde os primórdios dessa nação, sempre de acordo com a análi-
se de Gabler, a cultura popular – logo transmutada em cultura de
massa – teria sido uma espécie de bandeira levantada pelo povo esta-
dunidense em oposição às rançosas pretensões da alta cultura euro-
peizante. Junto com esse brasão, eram defendidos valores como a
informalidade e a diversão, tidos como mais democráticos e antiaris-
tocráticos – e, portanto, também mais estadunidenses. Assim, nesse
contexto, foi ganhando uma potência política ativa aquele “lixo cul-
tural” tão execrado por Theodor Adorno, Max Horkheimer e seus
colegas da muito europeia Escola de Frankfurt, que lamentavam o
declínio da “alta cultura” em mãos dos produtos vulgares da máqui-
na midiática, essa nova forma da barbárie.
Sem ignorar todas as disputas que ocorreram nessas complexas
arenas ao longo das últimas décadas, o desenvolvimento histórico
dessa cultura do entretenimento – que sempre foi tão vital nos Esta-
dos Unidos, segundo Gabler – teria se reforçado aos poucos para se
consagrar fatalmente, sobretudo, com a aparição de uma “arma de-
cisiva”. Esse elemento fundamental foi o cinema. Uma mídia extre-
mamente poderosa que, na passagem do século XIX para o XX, foi
saindo do nicho mais limitado dos circos e das feiras populares para
cair nas mãos da indústria do espetáculo. Em pouco tempo, essa ar-
tilharia iria demonstrar o seu poder de sedução e a sua capacidade de
enfeitiçar as plateias de todo o planeta, incitando um leque de mu-
danças na sociedade em geral e, particularmente, nos processos de
produção de subjetividade. Trata-se de outro componente crucial,
portanto, da transformação caracterológica que David Riesman de-
tectara na década de 1950.
Na primeira metade do século XX, aliás, os filmes se converteram
numa espécie de força expedicionária que foi conquistando os ima-
ginários e “encheu a cabeça do público de modelos a apropriar”, em
palavras de Gabler. Foi assim como se instalou uma cultura da visi-
bilidade e das aparências, que logo se espalharia por toda parte,
como uma intensa mutação sociocultural cujas reverberações mais
avançadas hoje reconhecemos nas mídias sociais da internet. Não se
trata, porém, de algo tão novo assim: tudo teria se deslanchado com
o cinema, pois essa mídia audiovisual foi treinando seu público du-

O show do Eu 317

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rante todo o século passado. Como parte fundamental desse apren-
dizado, foi se propagando “um sentido, bem mais profundo do que
qualquer pessoa do século XIX poderia ter tido, de como as aparên-
cias são importantes para produzir o efeito desejado”.9
Disso se trata, justamente, quando se considera a construção de
uma subjetividade alterdirigida: produzir o efeito desejado. É para isso
que se elabora uma imagem de si: para que ela seja vista, para exibi-la
e que os outros a observem, para provocar efeitos no olhar alheio.
Numa cultura cada vez mais orientada em direção à eficácia, costuma-
-se desdenhar qualquer indagação sobre as causas profundas, a fim de
focalizar todas as energias na produção de determinados efeitos – so-
bretudo, no aparelho perceptivo das outras pessoas. Por isso, tendo
ocorrido uma transformação epistêmica tão notável com relação aos
velhos tempos modernos, não surpreende que os mecanismos e as fer-
ramentas para a autoconstrução também tenham mudado.
Em vez de esculpir um eu introdirigido, um caráter oculto entre as
dobras dos abismos individuais e protegido da intromissão dos olha-
res alheios, o que se tenta elaborar agora é um eu alterdirigido. Uma
personalidade eficaz em sua visibilidade compartilhada, capaz de
mostrar tudo o que é na superfície da pele e das telas. Uma vez des-
feita a confiança nas essências “invisíveis aos olhos” que seriam mais
valiosas que as vãs aparências, se há uma “beleza interior” ela deve
ser exibida e capitalizada. Nesse sentido, o que interessa “editar”
não é apenas o aspecto físico e a imagem pessoal no sentido estrito,
mas também todas as ações e os comportamentos que os outros po-
dem enxergar, a partir dos quais cada um será avaliado e julgado.
A fonte da qual emana a verdade, portanto, também se desloca
nessa importante transformação histórica, abandonando aquele âma-
go interior que se considerava hospedado dentro de cada sujeito, para
irradiar dos olhares alheios. Não surpreende, nesse quadro, que a cul-
pa tenha perdido eficácia como mecanismo psíquico e social organiza-
dor da experiência, enquanto a vergonha vai ganhando prioridade
neste novo quadro. Além disso, tendo abandonado toda ilusão de fixi-

9 GABLER, Neal. Vida, o filme: como o entretenimento conquistou a realidade. São


Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 187.

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dez e estabilidade, o eu atual sabe que deve ser mutante: requere-se um
tipo de subjetividade passível de mudar facilmente, desafiando todos
os impedimentos que tendiam à permanência. O mundo contemporâ-
neo precisa de flexibilidade, em todos os âmbitos da vida e em todos
os mercados; portanto, a capacidade de adaptação às novidades cons-
tantes se tornou fundamental para que cada um possa se compatibili-
zar com as novas dinâmicas socioculturais, políticas e econômicas.
Ao observar esses devires mais recentes, constata-se que hoje es-
tamos muito longe daqueles prelúdios do cinema na cultura estadu-
nidense de inícios do século XX, visitados nas análises de Neal Ga-
bler, bem como dos primórdios da televisão contemplados no livro
de David Riesman. Também temos nos distanciado daqueles fervo-
rosos anos 1960 que inspiraram em Guy Debord uma furiosa exe-
cração da nascente sociedade do espetáculo. Mesmo se esses autores
vislumbraram seus embriões nesses contextos prévios, é neste mundo
globalizado e transmidiático do século XXI que o mercado das apa-
rências, o culto à personalidade e os modos de vida performáticos
atingem dimensões jamais imaginadas. O fenômeno transbordou as
salas de cinema para abarrotar todas as telas, inclusive as dos ubí-
quos telefones celulares que cada um carrega consigo. As câmeras
digitais conectadas à internet engoliram seus ancestrais analógicos
com uma velocidade inaudita, instalando o hábito de se projetar per-
manentemente. Hoje como nunca, portanto, qualquer um realmente
pode – e habitualmente quer, talvez inclusive deva – se mostrar como
um personagem audiovisual.
Ao examinar aquele momento crucial do surgimento do cinema
com um misto de espanto, fascínio, certa apreensão e uma audacio-
sa esperança, Walter Benjamin observou que os atores da nova mí-
dia não costumavam representar um personagem diante do público.
Ao contrário do que ocorrera tradicionalmente no teatro, por exem-
plo, “o ator cinematográfico típico só representa a si mesmo”, sen-
tenciou o filósofo alemão. Os melhores resultados fílmicos, inclu-
sive, seriam alcançados quando os atores “representam o menos
possível”, isto é, quando eles atuam diante da câmera sem encarnar
papel algum. Quando em vez de interpretar seres alheios e fictícios,
encenam na tela as suas próprias personalidades. Isso explicaria a

O show do Eu 319

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atração irradiada pelos astros de cinema: porque eles “parecem abrir
a todos, a partir do seu exemplo, a possibilidade de fazer cinema”.10
Teria sido assim, então, como nasceu o sonho não apenas de fil-
mar mas, sobretudo, de se colocar diante da lente para filmar-se ou
para ser filmado. “A ideia de se fazer reproduzir pela câmera exerce
uma enorme atração sobre o homem moderno”, constatava Benja-
min nos remotos anos 1930. Sem desprezar a ousadia de tamanho
desejo, pois “a ideia de uma difusão em massa da sua própria figu-
ra, de sua própria voz, faz empalidecer a glória do grande artista
teatral”. Eis a semente inicial, portanto, desse ardente desejo que
corre pelas veias da sociedade do espetáculo, e que parece enfim se
consumar entre nós graças à parafernália digital que nos oferece visi-
bilidade e conexão permanentes. Assim é como pode ser alcançada,
hoje, a enorme satisfação de se saber olhado por todos, mesmo sen-
do qualquer um – ou, justamente, por causa disso.
Essa ambição tem chegado ao paroxismo em serviços como os de-
nominados full-time lifecasting, ou transmissão da vida em tempo
completo, que começaram a fascinar os mais dispostos no início do
século XX. Esses sistemas permitiam que “qualquer um possa criar
seu próprio lifecast contínuo, e de forma gratuita”, de acordo com o
material promocional de empresas como JustinTV ou Stickam. Nessa
espécie de reality-show pessoal que depois seria consumado de modo
muito mais prático com os smartphones, os usuários podiam perma-
necer on-line sem interrupções de nenhum tipo, mesmo estando fora
de seus lares e escritórios, enquanto viajavam ou ficavam longe de seus
computadores pessoais, pois levam a parafernália sem fios permanen-
temente aderida a seus corpos. “Não sei ao certo se este novo serviço
será grande, mas é uma dessas ideias que têm potencial para se tornar
um negócio multimilionário”, afirmou em 2007 o diretor de Ustream,
outra firma que oferecia serviços semelhantes.11
Nos alvores das filmagens cinematográficas, porém, várias déca-
das antes desta verdadeira fusão com a câmera que hoje ocorre em

10 BENJAMIN, op. cit., p. 181.


11 ROUSH, Wade. “Broadcast your life online, 24-7”. In: Technology Review MIT. Cam-
bridge, 25 maio 2007.

320 Paula Sibilia

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nossos cotidianos do século XXI, o cinema teria permitido executar
uma espécie de vingança do homem moderno contra a violenta alie-
nação técnica da cidade industrial, segundo a interpretação de Benja-
min. Durante a jornada de trabalho, a grande maioria dos cidadãos
do século XX renunciava a sua humanidade face a um artefato tecno-
lógico, como bem ilustrou Charles Chaplin em seu famoso filme Tem-
pos modernos, de 1936. Entretanto, de acordo com o ensaísta ale-
mão, “à noite, as mesmas massas enchem os cinemas para assistirem
à vingança que o intérprete executa em nome delas”. Vale a pena ex-
plorar aqui essa intuição de Benjamim pois, à luz do fenômeno aqui
analisado, ela ressoa com ecos de uma instigante profecia.
A função daquele ator, que não era um excelso artista da atuação
representando um personagem teatral, mas apenas alguém que ence-
nava o papel de si próprio – como qualquer um poderia fazê-lo –,
consistia não apenas em “afirmar diante do aparelho a sua humani-
dade (ou o que aparece como tal aos olhos dos espectadores) como
colocar esse aparelho a serviço do seu próprio triunfo”. Se de fato
isso ocorria nas antigas salas de cinema, como seria possível que es-
ses espectadores não quisessem se colocar, eles também, nesse lugar
privilegiado de autoafirmação para o qual apontavam os holofotes e
a lente da câmera? “Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o
direito de ser filmado”, concluía Benjamin em meados da década de
1930. Qualquer um podia e todos queriam; por isso, logo mais se-
riam inventadas as ferramentas para que qualquer um possa (e deva)
fazê-lo com cotidiana devoção.
No entanto, mesmo reconhecendo esse germe localizado na pri-
meira metade do século XX, com a irrupção triunfante do cinema
num movimento que insuflaria a espetacularização do mundo, da
vida e do eu, também é inegável que o fenômeno foi se desenvolven-
do ao longo das últimas décadas até atingir seu ápice nos dias atuais.
“Não é fácil ser Cary Grant”, queixava-se o célebre ator na época
dourada de Hollywood. Uma colega igualmente famosa também re-
clamava: “o meu lado público, aquele que se chamava Elizabeth
Taylor, acabou se transformando em muita encenação e fabricação”.12

12 Apud GABLER, op. cit., p. 208-209.

O show do Eu 321

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Em meados do século XX, essas estrelas de cinema ainda vivencia-
vam os seus personagens públicos como algo distinto e, de algum
modo, exterior ao núcleo de suas subjetividades. Ou seja, algo dife-
rente e separado – ou, pelo menos, separável – daquele âmago inte-
rior que constituía o seu caráter profundo e verdadeiro.
Para sustentar a encenação de ser uma celebridade à moda antiga,
como Cary Grant ou Elizabeth Taylor, portanto, era necessário efe-
tuar um trabalho desagradável na arena pública. Era preciso vestir
máscaras que cobrissem seus rostos verdadeiros, a fim de proteger
o eu autêntico da intromissão dos holofotes, no refúgio de uma pri-
vacidade bastante assediada embora ainda vigente. Essa dificulda-
de para conciliar o eu público e o eu privado, que motivou sérias
angústias e até suicídios entre as estrelas midiáticas do século XX,
provavelmente está se extinguindo agora. Apesar de se situarem em
plena decolagem da sociedade espetacular e de constituírem ícones
do cintilante universo da fama, esse constrangimento que inquietava
Elizabeth Taylor e Cary Grant remete a outras épocas. Tempos nos
quais a separação entre a esfera pública e o espaço privado ainda era
bastante sólida; e, apesar das pressões já atuantes, a intimidade não
tinha se tornado extimidade.
Essa consternação evoca os cuidados de uma Eugénie de Guérin ou
uma Jane Austen, por exemplo, aquelas damas típicas do século XIX
que se viam forçadas a esconder de olhos estranhos seus valiosos ma-
nuscritos íntimos. Ou, ainda, lembra os diários secretos do filósofo
Ludwig Wittgenstein, com suas páginas nitidamente divididas em pen-
samentos públicos discutíveis e dramas privados tão patéticos como
inconfessáveis. Rígidas fronteiras, enfim, entre um eu privado – inte-
rior, oculto, autêntico – e um eu público – exterior, visível, mascarado
–, linhas divisórias cujos contornos são cada vez menos claros. Esse
esmaecimento é colocado em evidência pelos episódios de espetacula-
rização da intimidade que todos os dias são reproduzidos pelos diver-
sos canais midiáticos; e que, com uma rapidez inaudita, vão derruban-
do os antigos pudores num avanço aparentemente ilimitado.
Assim, as celebridades de hoje em dia não parecem mais diferen-
ciar entre suas vidas públicas, plasmadas em suas obras, e suas vi-
das privadas que destilam generosas doses de extimidade. Essas

322 Paula Sibilia

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duas vertentes se misturam sem distinção clara, pois ambas as fon-
tes são utilizadas como matéria-prima para a construção desses
personagens admirados e imitados por seus milhões de seguidores.
Assim, somos testemunhas cotidianas das calcinhas visivelmente
ausentes de jovens atrizes em ascensão flagradas por descuido em
noites de gala; bem como do mais novo escândalo erótico ou poli-
cial de umas e outros; ou da nova gravidez inesperada e do novo
filho de nacionalidade exótica adotado pelo casal do momento; ou
do novo corte de cabelo e do novo tom da pele de quem quer que
seja; e um longo etcétera.
Um dia qualquer de 2007, por exemplo, eis as três manchetes que o
jornal O Globo – isto é, o noticiário impresso de frequência diária mais
importante do Rio de Janeiro – escolheu como os mais representativos
da sua seção Cultura. “Paris Hilton veste cachorro de Papai Noel para
cartão de Natal”, “Lily Allen está grávida de líder de Chemical Bro-
thers” e “Ator Michael Douglas abre jornal noturno da rede NBC”.
Outra reportagem da mesma seção desse jornal informava, ainda, que
“Pamela Anderson pede divórcio mas depois se arrepende”. Ilustrada
com uma fotografia da famosa em questão, descrita como “ex-estrela
do seriado Baywatch”, a notícia proveniente da Agência Reuters dis-
corria sobre o tema do título ao longo de sete parágrafos, que descre-
viam as vicissitudes do relacionamento entre essa celebridade e seu ma-
rido, Rick Salomon, “conhecido principalmente por um vídeo de 2003
no qual aparece fazendo sexo com Paris Hilton”.13
Talvez tudo isso se justifique porque, no regime de visibilidade
que vigora na sociedade espetacular, qualquer destino é considerado
mais vazio e desolador que ser famoso sem motivo algum; sobretu-
do, não ser famoso. “É triste que existam tantos privilégios dos quais
se beneficiam as celebridades e que as pessoas comuns jamais irão
conhecer”, disse Woody Allen ao comentar seu filme de 1999, preci-
samente intitulado Celebrity. “Alguém que ensina num bairro pobre,
onde faz um trabalho difícil que além disso é perigoso e no qual se
compromete realmente, é muito mal pago, enquanto uma celebrida-

13 “Pamela Anderson pede divórcio, mas depois muda de ideia”. In: O Globo. Rio de
Janeiro, 18 dez. 2007.

O show do Eu 323

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de que faz um filme idiota com acidentes de carros e efeitos especiais
recebe vinte milhões de dólares”, completava o cineasta.14
Com essa classe de personagens se mostrando sem pausa nas vi-
trines midiáticas, e operando como os modelos mais admiráveis de
estilos de vida que se possam imaginar – e, obviamente, cobiçar –,
não surpreende que as subjetividades introdirigidas tenham perdido
primazia. E que, em compensação, hoje prolifere um tipo de eu que
deve se ocupar de colocar em cena a sua personalidade a todo mo-
mento e em qualquer lugar, sem diferenciar entre os âmbitos públi-
cos e privados da existência. Os modos performáticos de ser e estar
no mundo se tornaram não apenas legítimos, mas até mesmo
necessários para sobreviver neste novo meio ambiente. Por isso, foi
se esfacelando aquela antiga consternação a respeito dos disfarces e
da falsa encenação, que eram avaliados de modo negativo porque
traíam o substrato mais autêntico do próprio caráter, entendido
como uma essência fixa e estável – uma verdade interior – à qual era
moralmente necessário permanecer fiel.
Seguindo os novos modelos e contribuindo para entronizá-los, por-
tanto, os meios de comunicação prometem o acesso à fama para qual-
quer um que assim o desejar, que esteja disposto a batalhar um pouco
por isso e, também, que tenha alguma sorte para poder se destacar na
concorrência com todos os demais. Um exemplo é a blogueira brasileira
Clarah Averbuck, que foi legitimada pela mídia tradicional e virou até
personagem de cinema; em sintonia com essa trajetória, ela declarou
que não se preocupa por delimitar as fronteiras entre sua vida e a “pre-
tensa ficção” de suas obras. Uma de seus clones argentinos, Lola Copa-
cabana, que também já foi mencionada nestas páginas e percorreu um
caminho semelhante, hoje garante ser “honesta” pois afirma que ela é
idêntica à sua personagem e que não existe em sua vida “nada inconfes-
sável”, nada que ocultar. Longe dos tormentos que ainda assombravam
os astros de Hollywood dos anos 1950, portanto, o eu destas novas
celebridades construídas na visibilidade como personagens de si mes-
mas parece coincidir exatamente com tudo o que delas se vê.

14 Apud JULVE, Corinne. “Conversation entre Norman Spinrad et Woody Allen: Célébri-
tés en aparté”. In: Liberation. Paris, 23 jan. 1999.

324 Paula Sibilia

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Num universo onde todos desejam ser famosos, não surpreende
que sejam vários os atalhos disponíveis para chegar lá – e, graças a
essa conquista, mergulhar na promessa de uma felicidade espetacular.
Em tese, pelo menos, bastaria saber aproveitar bem a atual profusão
de novos gêneros de exposição midiática pessoal: dos reality-shows às
redes sociais como Facebook, Twitter ou Instagram, passando pelos
blogs e pelos sites de vídeo que configuram o paraíso dos youtubers.
Em todos esses canais, o que conta é se mostrar e se saber vender. En-
tretanto, para se destacar entre tanto espetáculo igualmente alterdiri-
gido, é preciso ter muita habilidade na hora de exibir um eu autêntico
e real – ou, pelo menos, que assim pareça. A eventual obra que se
possa produzir sempre será acessória: só terá valor se contribuir para
ornamentar a valiosa imagem pessoal. Pois o importante é o que você
é, o personagem que cada um encarna na vida real e mostra na tela, e
somente em função disso terá valor tudo o que você (não) faz.
Em que consiste, entretanto, esse ser alguém? Em que sentido,
como e por que, esse tipo de personalidade precisa tanto capitalizar o
que faz mostrando-o de um modo atraente? Sem chegar aos extremos
de se perguntar o que fazem ou fizeram figuras como Kim Kardashian,
Daniella Cicarelli, Paris Hilton ou Bruna Surfistinha para se tornarem
as celebridades que elas são ou que algum dia foram – em boa parte,
graças à internet –, convém voltar a atenção para YouTube, um des-
ses novos palcos que permitem ser um personagem que se mostra.
Em 2007, esse imenso site era visitado diariamente por cem milhões
de pessoas que assistiam a setenta mil vídeos por minuto; desde então,
porém, os números não param de se multiplicar exponencialmente.
De fato, trata-se de um dos maiores responsáveis pela eleição de você
como a personalidade do momento, configurando-se como a platafor-
ma que tem permitido a vários jovens de todo o mundo se tornarem
ricos e famosos, enquanto muitos outros tentam seguir esses passos.
Não por acaso, o serviço se apresenta com o benjaminiano slo-
gan Broadcast yourself, algo assim como “mostre-se para um pú-
blico de massa”. Entre o gigantesco acervo de vídeos caseiros em
constante crescimento, que são enviados por usuários de todas as
procedências e com os conteúdos mais diversos, um dos filmes mais
vistos de toda a sua história se chama Evolução da dança. O clipe,

O show do Eu 325

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que já foi assistido por dezenas de milhões de pessoas, tem seis mi-
nutos de duração e mostra um homem dançando trechos de músicas
populares das últimas décadas, em ordem cronológica e de forma
um tanto desajeitada. O sujeito que dança diante da câmera é um
exemplo perfeito do você condecorado pela revista Time: alguém
aparentemente comum e tão real como qualquer um de nós – ou,
pelo menos, assim parece.
Alguns anos atrás, antes mesmo do estouro desse site nos merca-
dos, um vídeo caseiro de um minuto e meio de duração, conhecido
como Numa Numa Dance, circulou pela internet até se transformar
no fenômeno da hora. Um estudante tinha publicado na rede esse bre-
ve clipe, no qual ele mesmo dançava nos compassos de uma música
popular romena sem jamais se levantar da cadeira diante do computa-
dor, fazendo caretas e mexendo os braços enquanto seus lábios faziam
a mímica da letra. O filme se propagou a toda a velocidade por e-mail
e, em seguida, foi assistido por milhões de pessoas. Muitos tentaram
imitá-lo, lançando também na internet os famosos memes: vídeos
onde eles próprios faziam exatamente a mesma coisa, entre outras
paródias inspiradas na peça original. A onda foi crescendo tanto que
acabou despertando a curiosidade da mídia, que convocou o autor a
se manifestar no espaço público da imprensa tradicional.
Assim, o inesperado sucesso daquele vídeo despretensioso con-
verteu o seu protagonista num personagem notório. De repente,
Gary Brolsma tornou-se uma celebridade procurada pelos grandes
meios de comunicação. Várias emissoras de televisão transmitiram o
vídeo, como a CNN e VH-1, e o jovem foi entrevistado no popular
programa Good Morning America. Foi assim como Brolsma teve
ocasião de demonstrar que, realmente, não tinha nada a dizer. Pior
ainda: sentiu-se assediado e humilhado, após ter detonado um fenô-
meno que ninguém conseguia explicar. “Por que dois milhões de
pessoas querem ver um gordinho de óculos balançando os braços e
dançando uma música romena?”, perguntava o jornal The New
York Times em pleno auge desses debates, ocorridos em 2005. “Hou-
ve um tempo em que os talentos vergonhosos eram um assunto pu-
ramente privado”, explicava a reportagem. “Com a internet, porém,
a humilhação – como tudo o mais – tornou-se pública.”

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Diante desse tipo de reações, o rapaz se sentiu vítima de uma espé-
cie de bullying de dimensões astronômicas. Em consequência, ele re-
solveu cancelar uma apresentação no programa Today Show, da rede
de televisão NBC, e se refugiou na casa de sua família. O próprio New
York Times recebeu uma resposta negativa quando tentou localizar a
nova celebridade para lhe arrancar mais depoimentos, pois Gary esta-
va envergonhado e não queria mais falar com os jornalistas. O artigo
do periódico concluía com um desafio para os leitores: “Coloque um
vídeo de você mesmo tocando a flauta com seu nariz ou dançando em
roupas íntimas, e as pessoas de Toledo a Turcomenistão poderão vê-
-lo”.15 Sem dúvida, um par de ótimas dicas para aquilo que alguns
meses mais tarde se tornaria a invenção do ano, e para todos aqueles
que nos tornamos as personalidades do momento.
Num esforço por medir o grau de fascínio exercido pela súbita
estrela da internet, o famigerado clipe foi exibido na escola pública
de Nova Jersey onde Gary estudara quando criança. Surpreenden-
temente, talvez, a turma de doze ou treze anos de idade que viu
o filme não pareceu muito impressionada com os talentos de seu
colega mais velho. “É uma bobagem”, rematou um dos alunos.
“O que mais ele faz?”, perguntou outro. Enquanto um terceiro –
talvez o mais antenado a respeito das novas tendências de espeta-
cularização de si via internet – extraiu a seguinte conclusão: “eu
também deveria fazer um vídeo desses e virar famoso”. No entan-
to, apesar do turbilhão que quase o arrasou na vertigem da fama
inesperada, o sufocado Gary Brolsma se recuperou rapidamente e
conseguiu dar a volta por cima.
Ele resolveu aproveitar o conselho de seus amigos: “eu lhe disse,
‘Gary, esta é uma oportunidade única que você tem para ser famo-
so... você deveria abraçá-la’”, conforme relatou um colega. Na épo-
ca, os jornalistas lembraram que este não seria sequer o primeiro
caso de alguém que pula do anonimato para a celebridade devido a
um episódio constrangedor desvendado na internet. Como diria Guy
Debord: na sociedade do espetáculo, até a humilhação pode se con-

15 FEUER, Alan; GEORGE, Jason. “Internet fame is cruel mistress for a dancer of the
Numa Numa”. In: The New York Times, 26 fev. 2005.

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verter em mercadoria. Outro amigo do garoto acrescentou o seguin-
te: “ouvi muita gente dizendo que não tinha nada de extraordinário,
que o clipe não mostrava talento algum, mas quem se importa com
isso?”. E ainda outro comentou que “ele sempre foi muito ambicio-
so”. Talvez tudo isso explique por que o novo clipe do rapaz, chama-
do Nova Numa, o regresso de Gary Brolsma!, com três minutos e
meio de duração, em poucos meses chegou a conquistar oito milhões
de espectadores no já estabelecido YouTube.
Evidentemente, o jovem soube capitalizar a súbita fama, embar-
cando na oportunidade que a internet lhe oferecera. Não apenas com
seu novo clipe, bem produzido e com um tom de autoparódia um
tanto cínica, mas também através do portal que inaugurou na rede,
denominado NewNuma.com. Entre outras coisas, o site exibia ale-
gremente uma logomarca que revelava uma cuidadosa elaboração e
incluía uma caricatura dele próprio, na qual eram explorados habil-
mente todos aqueles atributos que antes tinham sido objeto de debo-
che. Evidentemente, o jovem tinha sido bem assessorado e aceitara a
assessoria dos profissionais desse tipo de serviços de autovendagem.
Foi até anunciado um concurso internacional para estimular a imita-
ção dos talentos de Brolsma, prometendo recompensar o melhor cli-
pe Numa Numa com um generoso prêmio em dólares, e você era
gentilmente convidado a participar.
Se o solo em cima do qual foi edificado este personagem parece
pouco firme, destinado a se derrubar na costumeira fugacidade do
gênero, o fato é que muitos ainda o aplaudem e reverenciam. O ra-
paz conta com um entusiasta clube de fãs, por exemplo, que mantém
um site dedicado a cultuá-lo, chamado Garybrolsma.net e definido
da seguinte forma: “um santuário on-line para Gary Brolsma, cele-
bridade da internet, famoso por seu playback da dança Numa
Numa”. E não é só isso: mesmo mais de uma década após o (in)feliz
episódio inicial que o tornou famoso, basta digitar seu nome num
site de pesquisas da rede para que apareçam centenas de milhares de
documentos a ele referidos – aí incluída, talvez, a presente análise.
Em síntese, este caso é um ótimo exemplo de espetacularização de si
através da internet: uma verdadeira montagem de um show do eu
que já fez – e, sem dúvida, ainda fará – muita escola.

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Tanto o aperfeiçoamento como a popularização dos dispositivos
digitais de comunicação contribuíram para expandir esses sonhos de
autoestilização imagética: agora você realmente pode escolher o per-
sonagem que deseja ser, encarná-lo livremente e mostrá-lo como qui-
ser. Depois, a qualquer momento e sem muito compromisso, caso
tenha se entediado ou se por acaso quiser, será possível mudar e co-
meçar tudo outra vez com uma roupagem identitária renovada e ou-
tras estratégias de difusão. Somente neste contexto é possível com-
preender a jogada do australiano Nicael Holt, um estudante de
filosofia e surfista que tinha vinte e quatro anos de idade, em 2007,
quando publicou um anúncio no site de leilões eBay. Nele, o rapaz
oferecia a sua vida à venda, disponível para quem quisesse comprá-
-la. “Você quer ser eu?”, propunha o jovem, com a intenção de sedu-
zir os eventuais clientes. O pacote incluía nome e sobrenome, histó-
ria pessoal, amigos, trabalho, ex-namoradas e futuras candidatas a
ocupar essa posição, bem como um telefone, seu endereço, todos os
seus pertences, a prancha de surf e o direito de ser Nicael Holt for-
malmente assinado e garantido pelo (ex-)proprietário. Foram vários
os interessados no negócio, que finalmente se encerrou pelo preço de
5.800 dólares, montante que incluía também o imprescindível cursi-
nho básico de quatro semanas para aprender a ser Nicael Holt.
O comprador recebeu ainda garantias com relação às incertezas do
futuro, pois o vendedor declarou que “ele pode ficar com a minha
vida o tempo que quiser, eu vou criar uma nova vida para mim se ele
quiser ficar com aquela”.16
Embora menos espirituosos ou pitorescos, há outros casos extre-
mos dessa tendência de troca, compra e venda de personalidades de
ocasião, que só podem ter florescido num ambiente em que as subje-
tividades não se fundam mais em essências duramente introdirigidas.
Um conjunto bastante eloquente dessas estratégias alterdirigidas é
composto por aqueles que se submetem a violentas cirurgias plásti-
cas para parecer-se com seus ídolos, por exemplo, especialmente os
que se inscrevem nos reality-shows que vendem e exibem tais pro-

16 PAMDARAM, Jamie; ALLELY, Sarah. “Life for sale, with enemies”. In: The Age. Mel-
bourne, 19 jan. 2007.

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messas, como I want a famous face (Eu quero um rosto famoso), da
rede MTV. Também se enquadram nesta tendência os reality-shows
de transformação em geral, tais como Beleza comprada e Extreme
makeover (Maquiagem extrema), mesmo que nestes casos a intenção
dos candidatos não seja se parecer com ninguém em particular, mas
apenas mudar. Ou, mais precisamente, melhorar, tendo sempre como
modelo os parâmetros midiáticos.
Graças a uma atualização tecnológica radical do aspecto físico,
os participantes desses programas de televisão abandonam seus ve-
lhos e desgastados eus, encarnados em estilos corporais pouco valo-
rizados no atual mercado das aparências. Nesse processo, à vista de
todos, eles trocam as suas subjetividades-lixo por reluzentes subjeti-
vidades-luxo, como diria Suely Rolnik. São inúmeros os candidatos
que desejam participar dessas transformações. Aqueles que têm a
sorte de serem escolhidos submetem-se sem nenhuma reserva não só
às cirurgias propostas pela equipe da produção, mas também a uma
infinidade de outros procedimentos tendentes a modificar diversas
características de seu aspecto físico. Nesse conjunto estão contem-
plados tanto a forma e o tamanho de seus corpos, como a cor e o
volume dos cabelos, os dentes e as roupas que vestem, mas também
a decoração de suas casas e seus estilos de vida.
Nas múltiplas edições desse tipo de programas, que vêm sendo pro-
duzidos e transmitidos com bastante sucesso em diversos países do
mundo, parece haver uma constante: a ideia de que alterando a própria
aparência é possível mudar radicalmente e se tornar outra pessoa. Ao
transformar os traços visíveis do que se é, ocorre uma mudança de per-
sonalidade. Ao fazer esse upgrade do lixo para o luxo, o sujeito não só
vira outro, mas torna-se alguém “melhor”. Em mãos dos profissionais
contratados pela televisão, a transformação sempre visa a adequar os
corpos desajustados dos participantes para que obedeçam aos padrões
de beleza hegemônicos irradiados pela mídia. Convém enfatizar, porém,
que todos os candidatos se submetem não apenas voluntariamente, mas
com um entusiasmo digno de quem ganhou o acesso ao paraíso. Tam-
bém em todos os casos, o final da história parece ser feliz, como parodia
o título de um desses programas: The swan, evocando com certa ironia
o clássico conto O patinho feio, de Hans Christian Andersen.

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O furor ativado por esta curiosa moda, que ainda continua a gerar
metamorfoses e audiência, de algum modo preanuncia a possibilidade
de uma aplicação cosmética do polêmico transplante de face, um pro-
cedimento cirúrgico que obteve farta publicidade nos últimos anos.
A sua primeira consumação sofreu certo atraso, apesar de ter sido
anunciada como tecnicamente viável com vários meses de antecedên-
cia. A demora se deveu a “problemas éticos e espirituais” ligados ao
fato de que o rosto (ainda?) está fortemente vinculado à ideia de uma
identidade inalienável de cada sujeito. Mesmo assim, os primeiros tra-
tamentos foram efetuados a partir de 2005, com vários casos bem-su-
cedidos. Até agora, todos foram reparadores, visando a recuperar os
traços faciais de pacientes que sofreram acidentes graves ou terríveis
doenças. Entretanto, vale lembrar que foi exatamente assim como co-
meçou a polêmica história da cirurgia estética: no final do século XIX
e inícios do XX, tais procedimentos só eram considerados éticos na
medida em que visassem a reparar malformações congênitas ou feridas
de guerra, por exemplo. Já aquelas intervenções que procurassem alte-
rar as formas visíveis de corpos considerados normais, perseguindo
apenas os fúteis caprichos da beleza, eram condenadas por serem imo-
rais, indignas de uma profissão séria e nobre como a medicina.
De todo modo, não é necessário recorrer a nenhum desses casos
radicais, mesmo sendo sintomáticos do deslocamento do eixo das
subjetividades aqui em foco. Embora (ainda?) se localizem em seus
extremos, todos esses exemplos fazem parte de um repertório técnico
e cultural cada vez mais familiar, que inclui tatuagens, cirurgias, pier-
cings, aplicações de botox, musculação e muitíssimos outros instru-
mentos para a modelagem corporal. São todas estratégias às quais se
considera lícito recorrer quando se trata de satisfazer um imperativo
cada vez mais insistente e difícil de ser atingido: o desejo quase obri-
gatório de ser singular. E, além disso, que essa originalidade indivi-
dual esteja à mostra.
Com esse fim, o próprio corpo se torna objeto de design, um cam-
po de autocriação capaz de permitir a tão sonhada distinção exibindo
uma personalidade aparentemente autêntica e obediente à moral da
boa forma. A generalização dessas dinâmicas só pode ocorrer no atual
ambiente sociocultural, no qual estão ocorrendo fortes transformações

O show do Eu 331

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históricas. Entre elas, destaca-se que a essência de cada sujeito deixou
de emanar da sua interioridade para se projetar na visibilidade. Nesse
movimento, está se desamarrando a âncora que costumava enlaçar as
origens pessoais a um passado emoldurado nas instituições tradicio-
nais, bem como a um percurso existencial único e imodificável.
Embora todas essas novidades pareçam propiciar maiores liber-
dades e uma abertura para infinitas possibilidades antes reprimi-
das, o ditame de “ser diferente” não costuma se apresentar como
uma opção entre outras, mas como um genuíno mandato que não
pode ser descuidado. Para conseguir sucesso nessa empreitada, é
preciso converter o próprio eu num show, espetacularizar a própria
personalidade com estratégias performáticas e adereços técnicos,
recorrendo a métodos comparáveis aos de uma grife pessoal que
deve ser bem posicionada no mercado. Nesse sentido, a imagem de
cada um é tratada como um capital tão valioso que é necessário cui-
dá-lo e cultivá-lo, a fim de não perder o controle nessa proposta de
encarnar um personagem sempre atraente no competitivo mercado
dos olhares. Para tanto, o catálogo de táticas midiáticas e de marke-
ting pessoal à nossa disposição é, hoje em dia, incrivelmente vasto, e
não deixa de se ampliar e renovar sem pausa.
Essa florescente riqueza de recursos para a própria espetaculari-
zação contribui, também, para desorbitar os contornos da esfera ín-
tima; e, no mesmo movimento, acentua o descrédito com relação à
ação política. Assim é como ganham novo fôlego as tiranias da inti-
midade denunciadas por Richard Sennett em 1974. De modos acen-
tuados e complexos, pois agora não se solicita à celebridade que a
sua singular personalidade produza obra alguma, por exemplo, ou
que se manifeste no espaço público à moda antiga. Basta, apenas,
que ela exiba um estilo mais ou menos rutilante e uma agitada exti-
midade. Enquanto os limites do que se pode dizer e mostrar no espa-
ço público se alargam compulsivamente, a noção de intimidade vai
se desmanchando e se reconfigura.
Em boa medida, ao que parece, a intimidade deixou de ser aquele
território onde imperavam o segredo e o pudor, como úteis grades que
serviam para proteger tudo aquilo que se considerava estritamente pri-
vado. Aquele precioso acervo que, em boa medida, continua a se des-

332 Paula Sibilia

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dobrar no espaço privado de qualquer um ainda é muito valorizado na
hora de definir quem se é. Afinal, nele se aglomeram os afetos, os há-
bitos cotidianos, os gostos e os desejos, os sonhos e as fantasias, os
sentimentos e as emoções, as pequenas e grandes delícias do dia a dia,
bem como os sofrimentos de todo tipo que temperam a vida de você,
eu e todos nós. De fato, tudo isso talvez seja ainda mais prezado agora
que na cultura oitocentista, quando se considerava algo valioso porém
menor, cultivado à sombra dos grandes feitos públicos.
A novidade mais gritante, porém, que ainda nos deixa perplexos
e motiva toda sorte de debates, é que boa parte desse universo agora
deve ser exposto: os outros precisam ter acesso a isso que cada um
realmente é, e que portanto não pode permanecer oculto entre
paredes e pudores. Por isso está se tornando extimidade, ou seja, um
palco onde cada um pode – e deveria – encenar o show de sua pró-
pria personalidade. Com esses complexos deslocamentos, os termos
persistem e continuam sendo usados de modos semelhantes – público,
privado, íntimo –, mas boa parte de seus sentidos tem se redefinido
radicalmente, levando a reforçar a ideia de que está ocorrendo uma
mudança de regime. Isto é, uma verdadeira mutação histórica no
campo das subjetividades, no tipo de relação que podemos ter conos-
co, com os outros e com o mundo.
É preciso considerar que tudo isto está acontecendo numa época
na qual o fetichismo da mercadoria, enunciado por Karl Marx no
século XIX como um componente fundamental do capitalismo,
estendera-se pela superfície do planeta, tudo cobrindo com seu verniz
dourado e com suas coruscantes alegrias do marketing. Absoluta-
mente tudo se vê hoje catapultado por essa lógica comercial e empre-
sarial, inclusive aquilo que se acreditava pertencer ao núcleo mais
íntimo e sagrado de cada sujeito: a personalidade. Apesar de sua
novidade, não é algo que tenha surgido de repente, impulsionado
pela funcionalidade dos aparelhos digitais e pela voracidade do capi-
talismo do século XXI. Ao contrário, há uma densa genealogia por
trás de todos esses processos, que compreende longas mutações his-
tóricas e envolve fatores de diverso tipo – não apenas tecnológicos,
mas também socioculturais, políticos, econômicos e morais –, todos
afetando a configuração das subjetividades.

O show do Eu 333

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Afinal, já nos anos 1930, Walter Benjamin lamentava essa mer-
cantilização dos personagens visíveis, que então eram poucos e mui-
to exclusivos, embora extremamente desejáveis. Ao se referir ao cul-
to das estrelas de cinema que se alastrava naquela época, o autor
detectou que quando “a magia da personalidade” dos astros da
grande tela era explorada pela indústria cinematográfica, ela se via
reduzida “ao clarão putrefato que emana do seu caráter de mercado-
ria”. Agora, quase um século depois dessa reflexão ter sido datilo-
grafada numa máquina toscamente analógica, esse culto à personali-
dade inspirado nos moldes do estrelato cinematográfico extrapolou
largamente o ambiente restrito às stars de Hollywood. A mercadoria
estendeu seu clarão putrefato por toda parte, até tocar com seu raio
mágico os perfis de qualquer um: você, eu e todos nós, que reclama-
mos o nosso direito universal à celebridade.
Tanto nas telas interconectadas pelos celulares, como em toda
parte, as subjetividades atuais se tornam clones empacotados daque-
les astros de cinema. Para estar à altura desse glamour em sua versão
caseira, basta recorrer às “identidades prêt-à-porter” hoje disponí-
veis; ou seja, personalidades prontas para usar que, com bastante
assiduidade, são decalcadas nos charmosos moldes hollywoodianos.
Mas sempre se trata de perfis padronizados e facilmente descartá-
veis, como bem diagnosticara Suely Rolnik no final da década de
1990.17 Assim como está ocorrendo com os corpos humanos e seus
diversos componentes, os modos de ser também se transformam em
mercadorias: pequenos espetáculos mais ou menos efêmeros, lança-
dos aos nervosos vaivéns do mercado global.
Desse modo, as personalidades se tornam fetiches desejados e co-
biçados, que podem ser não apenas admirados e emulados por qual-
quer um, mas também literalmente comprados e vendidos como
mercadorias. Alguns se tornam repentinamente valorizados quando
irrompem no espaço visível como lustrosas novidades, mas logo são
descartados por terem ficado obsoletos, fora de moda, batidos, out.

17 ROLNIK, Suely. “Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempo de globaliza-


ção”. In: LINS, Daniel (org.). Cadernos de Subjetividade. Campinas: Papirus, 1997,
p. 19-24.

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Por isso, às vezes a ansiedade chega aos limites da exasperação: esses
disfarces do eu que se colam à pele devem ser renovados constante-
mente, sempre procurando a tão desejada singularidade ou origina-
lidade. Busca-se algo que pareça autêntico e real, mesmo sendo cla-
ramente performático, e que permita se destacar de todos os demais.
Enfim: o que se busca desesperadamente é algo que evoque a velha
aura definitivamente perdida.
A propósito disso, nos reality-shows que tanto proliferaram no
início do século XXI, chama atenção a repetida alusão à autenticida-
de dos participantes, como um ingrediente dos mais prezados na pró-
pria constituição subjetiva – e, sobretudo, como um requisito para
vencer o jogo em que o programa se baseia. Algo semelhante acontece
nas redes sociais da internet, bem como em outros teatros da sociabi-
lidade contemporânea. Em tais casos, porém, trata-se de uma auten-
ticidade performática, que se joga e se esgota no campo das aparên-
cias. Em vez de se basear numa fidelidade à verdade do eu fincada nas
próprias profundezas, esse ser autêntico das subjetividades alterdirigi-
das é julgado pela sua capacidade de convencer a audiência com o seu
realismo. A performance, portanto, deve ser bem realizada; se for, o
público aprovará o grau de autenticidade apresentado.18
Casualmente, esse é também um dos termos aos que Benjamin
recorre quando procura definir o que seria a aura, aquela singulari-
dade do aqui e agora que tornava única a obra de arte original e a
dotava de qualidades quase sagradas. Essa autenticidade teria agoni-
zado com o desenvolvimento da reprodutibilidade técnica aplicada
aos objetos artísticos. Se a extrapolação for tolerável, seria possível
acrescentar que a autenticidade pessoal também teria expirado com
o desvanecimento da interioridade psicológica, ou seja, aquele âma-
go essencial que tornava cada sujeito moderno intrinsecamente úni-
co. Assim, a aura pessoal também teria se apagado com a prolifera-
ção de cópias, simulacros e falsificações de subjetividades descartáveis
na sociedade do espetáculo, e com o estímulo à produção de perso-
nalidades alterdirigidas. Daí a vontade atual por recompor de algum

18 SIBILIA, Paula. “Autenticidade e performance: a construção de si como personagem vi-


sível”. In: Fronteiras, v. 17, n. 3. UNISINOS, Porto Alegre, set.-dez. 2015, p. 353-364.

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modo a aura perdida, por se apropriar de qualquer coisa que pareça
aparentada com aquela auréola de unicidade tão difícil de se conse-
guir hoje em dia. E daí também o deslocamento da aura, que aban-
dou a obra de arte mas agora é procurada com crescente insistência
na figura estilizada do autor – ou de qualquer um.
Neste novo quadro, tanto o corpo como a personalidade consti-
tuem superfícies lisas nas quais todos os sujeitos devem exercer a sua
arte. Converter a imagem que cada um projeta numa sorte de obra
de arte; essa parece ser, de fato, a principal tarefa dos artistas de si,
visando a se tornar um personagem o mais aurático e atraente possí-
vel. Por isso é necessário ficcionalizar o próprio eu como se estivesse
sendo constantemente filmado, como se vivesse dentro de um reality-
-show ou nas páginas multicoloridas de uma revista; ou, então, algo
que já acontece praticamente com qualquer um: nos incansáveis per-
fis das redes sociais da internet. É assim como aprendemos a encenar,
todos os dias, o show do eu, fazendo da própria personalidade um
espetáculo orientado aos olhares dos outros.
“Estamos enjoados de assistir aos atores interpretando emoções
falsas”, afirmava o sinistro produtor do reality-show montado no
filme O show de Truman. Grande sucesso cinematográfico de 1998,
esse longa-metragem mostrava a vida de um sujeito adotado ao nas-
cer por uma emissora de televisão. Dois atores foram contratados
para interpretar os pais da criança, cuja vida se desenvolvia numa
cidade cenográfica semeada de câmeras de vídeo, que transmitiam
tudo quanto ali ocorria para os lares do mundo inteiro. O único que
ignorava essa encenação e essa transmissão em tempo real era o pro-
tagonista, Truman Burbank, que pensava estar vivendo uma vida
normal. Ele encantava os espectadores justamente por isso: porque
não era um ator que interpretava as emoções falsas de um persona-
gem fictício, mas simplesmente vivia e mostrava suas emoções autên-
ticas de personagem real, como bem explicara seu produtor.
Uma artimanha cuja sedução Walter Benjamin já captara há vá-
rias décadas, aliás: não são os personagens fictícios os que mais fas-
cinam o público da mídia audiovisual, mas as personalidades reais.
“A realidade nua e crua – até mesmo a aparência de realidade nua e
crua, sem dramatização – é um entretenimento melhor”, constatou o

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ensaísta Neal Gabler em seu livro de 1998, após comentar o fenôme-
no da rede Court-TV, uma emissora de televisão especializada em
transmitir um dos espetáculos mais apreciados pelo público estadu-
nidense: julgamentos reais. “Drama excelente, sem roteiro”, prome-
tia então o slogan dessa programação. Levando em conta esse pano
de fundo, portanto, para ilustrar esta tendência tão vigorosa na cul-
tura contemporânea, não é necessário recorrer à tragédia quase mo-
derna – e, afinal de contas, fictícia – do filme Truman Show, cujo
protagonista afunda no desespero ao descobrir que sua vida inteira
tinha sido um (mero?) espetáculo para olhos alheios.
Já na realidade e poucos anos depois daquela estreia cinemato-
gráfica, em 2005, noticiou-se que quase trinta mil candidatos teriam
se inscrito para participar de um reality-show sem previsão de fim,
atendendo à convocação de uma rede de televisão alemã. Ou seja,
uma espécie de Truman Show consentido, eterno e realmente real.
A decisão da emissora teria sido tomada em função do persistente
sucesso da série Big Brother naquele país, cuja edição finalizada na-
quele ano se manteve com altos índices de audiência durante doze
meses. “Daí a ideia de computar o ‘breve prazo’ de 365 dias até a
vertigem: por que não criar um Big Brother que dure décadas, vidas,
gerações inteiras?”.19 Assim, foi anunciado que o resto da vida das
dezesseis pessoas finalmente escolhidas pela produção do programa
iria transcorrer numa cidade cenográfica, com todas suas ações (e
inações) constantemente registradas por dezenas de câmeras que as
transmitiriam ao vivo pela televisão.
As mídias sociais da internet também procuram dar vazão a essa
insistente demanda atual: que qualquer um se torne autor e narrador de
um personagem atraente, alguém que cotidianamente faz de sua extimi-
dade um espetáculo destinado à maior quantidade de gente possível.
Esse personagem se chama eu, e deseja fazer de si mesmo um show.
Mas o que caracteriza mesmo um personagem? Qual seria a diferença
com relação a uma pessoa real? São muitíssimas as respostas possíveis
para essas questões; a maioria delas, porém, orbita em torno à oposição
entre realidade e ficção, que não parece muito proveitosa para analisar

19 CORREA, Sergio. “Gran Hermano de por vida”. In: La Nación. Buenos Aires, 8 fev. 2005.

O show do Eu 337

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as questões aqui apresentadas. Já uma crítica literária de origem portu-
guesa, Ana Bela Almeida, fornece uma resposta instigante: a diferença
residiria na solidão. E, sobretudo, na capacidade de estarmos a sós.
A solidão é uma habilidade cada vez mais rara, inclusive sem mui-
to sentido entre nós, conforme sugere também o romancista Jona-
than Franzen no próprio título de seu livro de ensaios: Como estar
só, publicado em 2002. Além de seus textos bem sintonizados com a
problemática aqui em debate, essa obra proporciona um interessante
sinal dos tempos: apesar de constituir uma espécie de lamentação da
cultura letrada ameaçada pelos irrefreáveis avanços da sociedade do
espetáculo, a editora hispânica que publicou a obra do autor estadu-
nidense catalogou-a apressadamente como sendo um volume de au-
toajuda: “superação pessoal”, resume a ficha bibliográfica, no que
aparenta ser uma leitura demasiadamente literal do título do livro.
Se ao longo dos séculos XIX e XX proliferaram ardorosas reivin-
dicações da solidão – seja para ler, como o fizera Marcel Proust, seja
para que as damas pudessem escrever em seus quartos próprios,
como defendera Virginia Woolf –, os romancistas de hoje em dia
também escrevem ensaios sobre o tema. Alguns, como Franzen, per-
guntam desesperadamente, já desde o título de seus livros, como es-
tar a sós para poder ler e escrever, sim, mas sobretudo para ser lido.
Outros, como Ricardo Piglia, também gritam suas penúrias a partir
da capa e dedicam seus escritos a O último leitor. Ou, como Alberto
Manguel, defendem a leitura como um derradeiro ato de rebeldia e
resistência num ambiente a todas luzes adverso.
Contudo, de regresso às sutis diferenças entre pessoa e per-
sonagem, vale retomar a proposta de Almeida antes comentada.
Ao contrário do que ainda teima em ocorrer com os comuns mor-
tais, os personagens jamais estão sozinhos. Sempre há alguém para
observar o que eles fazem, para acompanhar com avidez todos seus
atos, seus pensamentos, sentimentos e emoções. “Há sempre um lei-
tor, uma câmera, um olhar sobre a personagem que lhe tira o cará-
ter humano”.20 Entretanto, nem sempre há testemunhas do nosso

20 ALMEIDA, Ana Bela. “Entre o homem e a personagem: uma questão de nervos”. In:
Ciberkiosk. Lisboa, 2003.

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heroísmo de cada dia, e menos ainda de nossas misérias cotidianas.
Com demasiada frequência, aliás, ninguém nos olha. Que importa,
então, se em algum momento somos bons e belos, únicos, singulares,
quase imortais? Ou, então, meramente comuns como você e eu?
Se ninguém nos vê, neste contexto cada vez mais dominado pela lógi-
ca da visibilidade, poderíamos pensar que simplesmente não fomos.
Ou pior ainda: que não existimos.
Seria nessa solidão, portanto, nesse isolamento íntimo e privado
que foi tão fundamental para a construção de um modo de ser histó-
rico muito importante na nossa genealogia – o homo psychologicus
dos tempos modernos –, onde reside o grande abismo que ainda nos
separa das personagens. Pois essas figuras quase humanas, as perso-
nagens, que muitas vezes também parecem estar na mais completa e
terrível solidão, de fato sempre estão à vista. Tudo, na vida deles,
acontece sob os holofotes atentos da leitura, por exemplo. Ou, me-
lhor ainda: na existência desses seres que agora qualquer um gostaria
de ser, tudo ocorre sob as lentes das câmeras de Hollywood ou da TV
Globo. Ou, pelo menos, nem que seja de uma modesta webcam ca-
seira, como aquelas que brilharam já faz algum tempo, plugadas aos
computadores de mesa de qualquer um. Ou, então, daquelas câme-
ras mais ou menos ocultas que, num elevador ou numa loja, adver-
tem-nos com um sorriso amarelo que “você está sendo filmado”.
Ou, é claro, daquilo que tem se tornado imprescindível hoje em dia:
o onipresente olho de vidro do telefone celular.
Após certa experiência com os novos gêneros de não-ficção que
invadiram as telas nos últimos anos, em 2005, a rede Globo de tele-
visão editou uma norma segundo a qual os participantes dos reality-
-shows produzidos pela emissora – tais como o popular Big Brother
Brasil – passariam a ser tratados legalmente como personagens. Isso
significa que o seu estatuto legal mudou: daí em diante, eles se equi-
parariam aos heróis ou vilões fictícios das telenovelas, por exemplo.
A nova regra contradiz abertamente um dos princípios básicos do
reality-show como gênero, que supostamente mostra na tela situa-
ções reais vivenciadas por pessoas reais. No entanto, a norma não foi
muito divulgada e nem discutida, passou quase inadvertida porque
seus fins eram estritamente jurídicos e comerciais. O objetivo era

O show do Eu 339

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proibir os anúncios publicitários em que os participantes pudessem
tirar proveito dos “personagens que encarnam na ficção”.21 O que
sem dúvida desperta algumas perplexidades, pois não deveria se tra-
tar de ficção alguma, visto que os personagens que esses “persona-
gens” encarnam e mostram na tela são eles próprios. Ao tratar os
participantes desses programas como seres fictícios, porém, a emis-
sora procurou proteger a imagem que a empresa cria deles e que
considera de sua propriedade. O que não deixa de fazer sentido, pois
se é apenas a visibilidade o que confere realidade a estas construções
subjetivas, então a televisão é a única proprietária de tais imagens.
Sem a visibilidade concedida pelas câmeras e pelas telas, esses perso-
nagens simplesmente não existiriam.
Vale a pena retornar, agora, ao problema da solidão, porque talvez
esse nó resida no coração desta ânsia tão atual pela autoconstrução
como personalidades alterdirigidas tão sedentas de reconhecimento
público. Para isso, porém, vale a pena efetuar outro breve recuo his-
tórico. Quando Walter Benjamin se referia à agonia da experiência na
modernidade, ele aludia às implicações do modo de vida instaurado
pelo capitalismo urbano e industrial, que dinamitou as condições ne-
cessárias para uma experiência coletiva e partilhada. Dilacerou-se
aquela tradição fortemente sedimentada no grupo e, ao mesmo modo,
também se desmoronaram as possibilidades de vivenciar experiências
pautadas pela transcendência. Esse distanciamento das tradições co-
munitárias e do além, que alimentou as fabulosas possibilidades aber-
tas pelo individualismo moderno e contemporâneo, também fechou
outras portas. Nesse saldo negativo seria necessário anotar, entre as
novidades então geradas, o nosso problema: a solidão.
“Se não há um chão comum de vivências, memórias ou tradições,
se nossa vida é permanentemente influenciada pelos imaginários pos-
tos em circulação pelos meios de comunicação”, pergunta-se Beatriz
Jaguaribe em seus ensaios sobre o renovado auge do realismo na atu-
alidade, “como forjar conexões de significados que rompam o casulo
da solidão?”. Uma resposta poderia apontar para a internet: se esse

21 CASTRO, Daniel. “Para Globo, ‘big brother’ é personagem”. In: Folha de S. Paulo.
São Paulo, 21 mar. 2005.

340 Paula Sibilia

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fechamento na própria individualidade se tornou cada vez mais her-
mético, talvez as novas práticas estejam tentando fornecer um alívio
para essa asfixia. Ao tornar público o que cada um é; e, de algum
modo, permitir a exibição compartilhada da própria solidão, as mí-
dias sociais ofereceriam uma via para “expor a experiência que marca
a vida dos anônimos, embora justamente essa experiência não possua
lastros totalizantes e nem coletivos”.22
Numa sociedade aterrorizada com os perigos derivados da falta de
segurança no espaço público, estimula-se um crescente isolamento
individual, inclusive um verdadeiro insulamento por trás dos muros
dos condomínios fechados das megalópoles e nos refúgios virtuais do
ciberespaço. É também por isso que se multiplicam os convites para
acompanhar em detalhe, mesmo que seja a uma prudente distância,
os aspectos mais íntimos e triviais das rotinas domésticas de qualquer
um. Mais do que uma intromissão, nestes casos o olhar alheio pode
se converter numa presença desejada e reconfortante. Longe do tão
falado temor à invasão da privacidade, portanto, trata-se aqui de uma
verdadeira vontade de evasão da própria intimidade, um anseio de
ultrapassar os velhos limites para abrir infiltrações nos antigos muros
divisores e, de algum modo, tecer contatos apesar de tudo.
Nessa imagem ecoam os desejos de transparência total dos autores
de blogs com furor confessional, que em seguida pipocaram e se espa-
lharam nas redes sociais da internet. Mas também vêm à tona as refle-
xões de um dos arquitetos das casas não-privadas antes comentadas,
que foram expostas num museu nova-iorquino no último ano do século
passado. No catálogo da exposição, ele se perguntava o seguinte: “por
que um grupo invisível de pessoas escolheria viver por detrás de pare-
des, em vez de revelar suas vidas?”.23 Uma pergunta absolutamente con-
temporânea, embora tivesse soado bastante impertinente algum tempo
atrás. Hoje em dia, porém, ela repercute com seu eco: por que não?

22 JAGUARIBE, Beatriz. “Realismo sujo e experiência autobiográfica”. In: O choque do


Real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 157.
23 RILEY, Terence. The un-private house. Nova York: The Museum of Modern Art
(MOMA), 1999. Apud FRANCO FERRAZ, Maria Cristina. “Reconfigurações do pú-
blico e do privado: mutações da sociedade tecnológica contemporânea”. In: Famecos.
Porto Alegre: PUC-RS, v. 15, ago. 2001, p. 42.

O show do Eu 341

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Esta repentina busca de visibilidade, portanto, essa ambição de
fazer do próprio eu um espetáculo capaz de atrair a atenção dos ou-
tros, pode ser também uma tentativa mais ou menos desesperada de
satisfazer um velho desejo humano, demasiadamente humano: afu-
gentar os fantasmas da solidão. Uma meta especialmente complicada
quando florescem subjetividades projetadas no visível, que se des-
vencilham da vetusta âncora fornecida pelo caráter interiorizado dos
sujeitos oitocentistas, deslocando seu eixo para jogar toda a ênfase
nos contatos e naquilo que os outros veem. Acontece que aquele es-
paço íntimo e denso, que constituía a sólida base da interioridade,
precisava de solidão e silêncio para se autoconstruir: devia se forta-
lecer à sombra dos olhares alheios. Algo que não acontece com as
subjetividades alterdirigidas, justamente, mas todo o contrário: para
elas, a solidão pode ser apavorante.
“Não o faço por dinheiro, aparecer me deixa feliz”, contava em
2007 uma adolescente que então publicava suas fotos eróticas num
blog. “Ainda nem consigo acreditar que os rapazes falam de mim”,
diz emocionada, aludindo aos comentários que ela recebe de seus
visitantes e espectadores através da internet. “É como ter fãs!”, resu-
mia orgulhosa. “Passo o dia inteiro no computador do meu quarto”,
explicava outra garota de treze anos de idade, entrevistada na mes-
ma reportagem sobre o assunto. “No Messenger tenho 650 contatos
com os quais converso o dia inteiro, além disso, tenho três fotologs
pessoais, onde publico minhas fotos e escrevo sobre a minha vida”,
prosseguia, para finalizar com a seguinte conclusão: “assim conheci
muitos garotos”.24
Esse fascínio suscitado pelo exibicionismo e pelo voyeurismo en-
contra terreno fértil numa sociedade atomizada por um indivi-
dualismo com beiradas narcisistas, que precisa ver sua bela imagem
refletida no olhar alheio para ser. E quanto maior for a quantidade
de admiradores que nos aplaudem e curtem, melhor servirão para
sustentar a tão cultuada autoestima. Mas essas forças são centrífu-
gas: isolam, separam, encapsulam. E, por isso mesmo, tendem a es-

24 GORODISCHER, Julian. “Miralos pero no los toques”. In: Rolling Stones. Buenos
Aires, 24 abril 2007.

342 Paula Sibilia

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facelar aqueles nós sociais que poderiam propiciar uma ultrapassa-
gem das tiranias da intimidade, aquelas grades voluntárias que se
instauraram no início do século XIX e ainda parecem nos asfixiar,
mesmo que a elas tenham se justaposto as novas tiranias da
visibilidade.
No entanto, uma eventual reformulação em chave contemporâ-
nea daqueles laços cortados pela experiência moderna possibilitaria,
talvez, enxergar o outro como outro, em vez de devorá-lo no inchaço
do próprio eu sempre privatizante. Algo que costumava ocorrer no
antigo espaço público pintado por Rchard Sennett, por exemplo,
onde não era necessário transmutar a maior quantidade possível de
anônimos em amigos íntimos (ou éxtimos) para poder engrossar a
própria lista de contatos pessoais; e, desse modo, ganhar mais pres-
tígio em chave de ibope pessoal.
Com o exercício desse saudável distanciamento que hoje nos resul-
ta tão longínquo, os outros – ou seja, todos aqueles que não são eu
nem você e nenhum de nós – não só deixariam de exigir uma conversão
necessária nessas categorias do âmbito privado ou doméstico, como
tampouco se transformariam em mero objeto de desconfiança, ódio
ou indiferença. Esse movimento de ultrapassagem das tiranias do eu
permitiria avistar, talvez, no horizonte algum sonho coletivo: uma
transcendência dos mesquinhos limites individuais, cuja estreiteza po-
deria se diluir num futuro distinto. Algo que, enfim, possa se projetar
para além das avarentas contrições de um eu sempre presente, apavo-
rado pela própria solidão e incitado a se disfarçar de personagem vi-
sualmente atraente para tentar abafar todos esses temores. Até mes-
mo, talvez – e por que não? –, produzir algo tão antiquado como uma
obra, ou inventar outras formas de ser e estar no mundo.

O show do Eu 343

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