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Parece-me possivel, porventura desejável, que eu seja a

única pessoa nesta sala a ter cometido a loucura de escrever,


tentar escrever ou nào ter conseguido escrever um romance.
E quando me perguntei, já que o vosso convite para falar
acerca da cçào me colocou a dúvida, que demónio me sus-
surrava ao ouvido e me levava à perdiçao, surgiu diante de
mim uma pequena gura a gura de um homem ou de uma
mulher que disse: "O meu nome é Brown.
Vê se me apanhas!"
A maioria dos romancistas vive esta mesma experiéncia.
Um qualquer Brown, Smith ou Jones aparece e diz, da forma
mais sedutora e insinuante. "Anda, vê se me apanhas!" E
assim, levados por um tal fogo-fátuo, os romancistas
afadigam-se de volume em volume, esgotando na persegui-
çào os melhores anos das suas vidas e recebendo na maior
parte dos casos muito pouco dinheiro em troca. Poucos sào
os que apanham o fantasma; a maioria tem de contentar-se
com um pedaço do seu vestido ou com uma madeixa dos
seus cabelos.
Esta minha crença que tanto homens como mulheres
escrevem romances porque sào seduzidos por um determi-
nado caracter (.) que se lhes impôs é sancionada pelo sr.

(.) No original inglês, character. carácter, temperamento mas também


personagem, gura de um romance ou drama. Todo o texto está construido
sobre esta ambiguidade do termo ingles. IN. T.)
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Arnold Bennett. Num artigo que passarei a citar diz: "O fun-
damento de toda a boa cçào reside na criaçào de carácter e
em nada mais. .0 estilo conta, o enredo conta, a originali-
dade da perspectiva conta. Mas nenhum destes factores
conta tanto quanto a capacidade dos caracteres erii nos con-
vencer. Se os caracteres sao reais o romance terá uma
possibilidade; caso contrário cará condenado ao es-
quecimento... E passa a concluir que nào temos, hoje em
dia, jovens romancistas de primeira ordem porque sao inca-
pazes de criar caracteres que sejam reais, verdadeiros e
convincentes.
Eis as questoes que pretendo discutir esta noite com
maior atrevimento do que prudência. Pretendo estabelecer
qual o signi cado que, em cçào, atribuimos a "carácter";
enunciar algumas a rmaçoes acerca da questào da realidade
colocada pelo sr. Bennett e sugerir alguns dos motivos pelos
quais os romancistas mais jovens fracassam ao criar caracte-
res, se é que um tal fracasso se veri ca, como a rma o sr.
Bennett. Estou ciente que tudo isto me levará a proferir algu-
mas declaraçoes muito gerais e outras muito vagas, pois
trata-se de uma questao extremamente di cil. Pensai no
pouco que sabemos acerca do carácter, pensai no pouco que
sabemos acerca da arte. Para nos facilitar a tarefa sugiro que
comecemos por arrumar os romancistas contemporâneos em
dois grupos: os Eduardianos e os Georgianos. Designarei por
Eduardianos o sr. Wells, o sr. Bennett e o sr. Galsworthy e por
Georgianos o sr. Forster, o sr. Lawrence, o sr. Strachey, o sr.
Joyce e o sr. Eliot. E peço-lhes que me perdoem se falo, com
intolerável egoismo, na primeira pessoa nào desejo atribuir
a toda a gente as opinioes de um individuo solitário, mal
informado e iludido.
Espero que admitam a minha primeira a rmaçao cada
um dos presentes nesta sala é Juiz do carácter humano. Na
verdade, seria impossivel viver durante um ano sem grandes
contratempos nào pondo em prática, com algum talento, a
di cil arte de saber ler um carácter. Disso dependem os nos-
sos casamentos e as nossas amizades e, em larga medida.
também o nosso trabalho; todos os dias surgem questoes que
apenas o recurso a esta arte permite solucionar. E arrisco

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agora uma segunda a rmaçao, porventura mais discutivel
em Dezembro de 1910, ou por essa altura, o carácter humano
mudou.
Nào quero com isto dizer que um dia se saiu, por exem-
plo até ao jardim, e se deparou com uma rosa que tinha o-
rido ou com uma galinha que tinha posto um ovo. A mudança
nao foi assim tào súbita nem tao nitida. Contudo, houve uma
mudança e, já que nestas questoes é inevitável ser~se arbitrá-
rio, situemo-la por volta de 1910. Os seus primeiros sinais
encontram-se nos livros de Samuel Butler. em particular em
The Way of all Flesh; as peças teatrais de Bernard Shaw
manifestam-na também. E, na vida, ela apresenta-se no
carácter da nossa própria cozinheira, se me é permitido
recorrer a um exemplo doméstico. A cozinheira vitoriana vivia
como um leviata nas profundezas, colossal, silenciosa, obs-
cura e impenetrável. a cozinheira georgiana é uma criatura de
sol e ar livre, entra e sai da sala de estar, agora quer o Daily
Herald, logo mais pede conselho acerca de um chapéu. Pre-
tendem talvez exemplos mais solenes da capacidade da raça
humana para mudar? Leiam o Agamemnon e vejam se, com o
tempo, as vossas simpatias nao vào quase inteiramente para
Clitemenestra. Ou entào considerem a vida conjugal dos
Carlyles e lamentem o desperdicio, a futilidade, para ele
como para ela, da terrivel tradiçào doméstica que julgava
conveniente gastar o tempo de uma mulher genial a dar caça
às baratas e a arear panelas. em vez de o aproveitar a escrever
livros. Houve uma mudança em todas as relaçoes humanas
entre patroes e criados, maridos e mulheres, pais e lhos. E
quando se modi cam as relaçoes humanas ocorre uma
mudança na religiào, na conduta, na politica e na literatura.
Situemos pois uma destas mudanças por volta de 1910.
Afirmei que as pessoas devem adquirir um certo talento
na arte de ler um carácter para viverem um SÓ ano sem gran-
des contratempos. Mas esta é uma arte para os jovens. Na
meia-idade e na velhice ela é exercida com ns eminente-
mente úteis e novas amizades ou outras ocasioes para a pór
em prática tornam-se raras. Contudo, os romancistas diferem
das outras pessoas porque nào deixam de se interessar pelo
carácter humano quando já aprenderam o suficiente para o

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seu dia-a-dia. Vao mais longe. sentem que há algo de perene
interesse no carácter em si mesmo. Uma vez satisfeitas todas
as necessidades práticas da vida, há nas pessoas algo que
lhes continua a parecer de esmagadora importáncia, apesar
de ser totalmente irrelevante para a sua felicidade, conforto
ou rendimentos. O estudo do carácter humano torna-se uma
procura absorvente, comunicá-lo torna-se uma obsessao. É
muito di cil explicar-vos isto: o que pretendem dizer os
romancistas quando referem o carácter, que impulso os
impele tao violentamente para, de vez em quando, transmiti-
rem por escrito a sua visào.
Assim. se me permitem, em lugar de proceder a análises
e a abstracçOes, contar-vos-ei uma simples história que, ape-
sar de vaga, tem o mérito de ser verdadeira. É a história de
uma viagem entre Richmond e Waterloo e espero saber
mostrar-vos a que me re ro quando falo do carácter em si
mesmo, espero que compreendam os aspectos diferentes de
que se pode revestir e os perigos medonhos que nos assaltam
ao tentarmos descrevê-lo por palavras.
Uma noite, há algumas semanas, ia atrasada para o com-
boio e entrei na primeira carruagem que vi. Ao sentar-me, tive
aquela sensaçao estranha e desagradável de ter interrompido
uma conversa entre duas pessoas que já lá estavam. Nao que
fossem jovens ou felizes. Longe disso. Eram ambos de uma
certa idade, a mulher passava dos sessenta, o homem tinha
muito mais de quarenta. lam sentados um de frente para o
outro e o homem, que. a julgar pela sua atitude e pelo rubor
no seu rosto, tinha estado inclinado para ela e a falar energi-
camente, sentou-se para trás e calou-se. Eu tinha-o interrom-
pido e isso aborrecera-o. Porém, a senhora de idade, à qual
chamarei sra. Brown, parecia bastante aliviada. Era uma des-
sas velhas senhoras muito limpas, de roupas coçadas, cujo
extremo arranjo tudo bem abotoado, apertado, no lugar.
escovado e remendado evoca maior pobreza do que os
farrapos e a sujidade. Tinha um ar de amargura um olhar
de sofrimento, de apreensao, e além disso. era extremamente
pequena. Os pés, nas suas botinas muito limpas, mal tocavam
o chao. Senti que nao tinha ninguém que a apoiasse, que
tudo decidia sozinha, que, tendo sido abandonada ou dei-

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xada viúva há muitos anos atrás, vivera uma vida ansiosa,
atormentada, talvez criando um lho único, o qual, muito
provavelmente, estava agora a dar para o torto. Tudo isto me
passou pela cabeça quando me sentei. pois, como a maioria
das pessoas, nào me sinto à vontade ao viajar com outros
passageiros a menos que de algum modo os tenha situado.
Olhei entào para o homem. Tive a certeza de que nào se
tratava de um parente da sra. Brown; era maior e tinha um ar
mais rude, menos polido. Imaginei-o um homem de negócios,
possivelmente um respeitavel vendedor de cereais do Norte;
trazia um bom fato azul, um canivete e um lenço de seda, e
uma mala de robusto cabedal. Contudo, era evidente que
tinha um assunto desagradável a tratar com a sra. Brown, um
assunto secreto, porventura sinistro, que nào tencionavam
discutir na minha presença.
"Sim, os Crofts têm tido muito pouca sorte com os cria-
dos" disse o sr. Smith (como passarei a chamá-lo) com um ar
grave, retomando, para salvar as aparências, um tema já ante-
riormente falado.
Ah, coitados! disse a sra. Brown com alguma condes-
cendéncia. "A minha avó teve uma criada que foi lá para casa
aos quinze anos e cou até aos oitenta (isto foi dito com um
ar de orgulho magoado e agressivo, talvez para nos impres-
sionar a ambos).
"Hoje em dia nào é comum uma situaçào dessas", disse o
sr. Smith num tom conciliador.
Calaram-se.
"É estranho que nao comecem um clube de golfe aqui

Estou em crer que algum dos jovens o fará disse o sr. Smith,
a quem o silêncio obviamente perturbava.
A sra. Brown nem se deu ao trabalho de responder.
"Que transformaçoes têm feito por aqui" disse o sr.
Smith olhando pela janela, enquanto me lançava um olhar
furtivo.
Era evidente, pelo silêncio da sra. Brown, pela afabili-
dade embaraçada com que falava o sr. Smith. que ele tinha
sobre ela algum poder e que o exercia de forma desagradá-
vel. Podia ter sido a desgraça do seu lho. algum episódio
doloroso na sua vida passada. ou na da filha. Talvez ela fosse

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a Londres para assinar algum documento transferindo uma
propriedade. Era Óbvio que estava nas màos do 6r. Smith
contra sua vontade. Eu começava a sentir por ela uma
enorme compaixao, quando, de súbito e a despropósito.
disse:
"Pode informar-me se um carvalho morre quando as
folhas foram comidas por lagartas durante dois anos
seguidos?"
Falou de um modo muito vivo e com clareza, usando uma
voz educada e cheia de curiosidade.
O sr. Smith surpreendeu-se mas cou aliviado por lhe ter
sido oferecido para conversar um assunto isento de quais-
quer perigos. Contou-lhe logo muito rapidamente uma série
de coisas sobre pragas de insectos. Contou-lhe que tinha um
irmào que cultivava árvores de fruto em Kent. Contou-lhe o
que os cultivadores de árvores de fruto fazem todos os anos
em Kent, e assim por diante, e assim por diante. Enquanto ele
falava, aconteceu uma coisa muito estranha. A sra. Brown
tirou um lencinho branco e começou a limpar os olhos.
Estava a chorar. Mas continuou a ouvir com muita serenidade
o que ele ia dizendo e ele continuou a falar, um pouco mais
alto, num tom um pouco mais irritado, como se já muitas
vezes a tivesse visto chorar, como se isso fosse um hábito
penoso. Até que perdeu a paciência. Parou abruptamente,
olhou pela janela e, inclinando-se para ela como o zera
quando eu tinha entrado, disse num tom insolente e ameaça-
dor, como quem já nao estivesse para suportar mais dis-
parates:
"Bem, sobre aquilo que estávamos a discutir... Sempre
pode ser?
O George vai lá na terça-feira?"
"Nao chegaremos atrasados" disse a sra. Brown, recu-
perando todo o seu dominio com tremenda dignidade.
sr. Smith nao disse nada. Levantou-se, abotoou o
casaco, tirou a mala para baixo e saltou do comboio antes
dele parar em Clapham Junction. Tinha conseguido aquilo
que pretendia mas sentia vergonha. cava contente por fugir
ao olhar da velha senhora.
A sra. Brown cou a sós comigo. Sentada lá no canto.

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muito limpa, muito pequena, um pouco estranha e a sofrer
muito, ela provocava uma impressào esmagadora, como uma
corrente de ar, como um cheiro a queimado. Mas em que
consistia essa impressao esmagadora e peculiar? Miriades de
ideias irrelevantes e incongruentes se atropelam nas nossas
cabeças em tais ocasioes; vê-se a pessoa, a sra. Brown, no
centro das mais diversas cenas. Imaginei-a numa casa de
praia entre estranhos ornamentos: ouriços-do-mar, modelos
de barcos em garrafas. As condecoraçoes do marido estavam
sobre a cornija da lareira. Ela entrava e saia da sala, pou-
sando na beirinha das cadeiras, debicando comida de peque-
nos pratos, abandonando-se em longos olhares silenciosos.
As lagartas e os carvalhos pareciam implicar tudo isso. Eis
que. nesta vida fantástica e solitária, irrompe o sr. Smith. Vi-o
entrar como uma rajada, por assim dizer, num dia de vento.
Bateu à porta, bateu com a porta. O seu guarda-chuva escor-
ria, fez um charco na entrada. Fecharam-se na sala.
Foi entào que a sra. Brown enfrentou a terrivel noticia.
Tnmou a sua decisào heróica. Cedo, antes do amanhecer, fez
a mdla e levou-a ela mesma até à estaçào. Nào permitiu que
Smith lhe tocasse. Estava ferida no seu orgulho, largara o seu
porto de abrigo; ela vinha de gente de bem que mantinha
criados. os pormenores podem esperar. O importante era
imaginar o seu carácter, mergulhar na sua atmosfera. Nao
tive tempo para explicar porque senti esta sua atmosfera
como algo de trágico.. de heróico e, no entanto, com um
toque de leviandade e de fantasia. O comboio parou e vi~a
desaparecer no imenso fulgor da estaçao, levando a sua
mala. Parecia muito pequena, muito rme, ao mesmo tempo
muito frágil e muito heróica. E nunca mais tornei a vê-la,
jamais saberei o que foi feito dela.
A história acaba sem qualquer conclusào. Porém nào vos
contei esta anedota para ilustrar o meu engenho ou o prazer
de uma viagem entre Ric.hmond e Waterloo. Eis o que vos
pretendo mostrar aqui está um carácter que se impoe a
outra pessoa. Aqui está a sra. Brown obrigando a que
alguém, quase automaticamente, comece a escrever um
romance sobre ela. Creio que todos os romances começam
com uma velha senhora sentada no canto em frente. Ou seja,

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creio que todos os romances tratam do carácter e que é para
exprimir o carácter e nâo para pregar doutrinas, cantar
hinos ou celebrar as glórias do Império Britanico, que a forma
do romance, assim tosca, palavrosa e nào dramática, assim
rica, elástica e viva, foi desenvolvida. Para exprimir o carác-
ter, disse, mas logo irao pensar que tais palavras se prestam
às mais amplas interpretaçoes. Por exemplo, o carácter da
velha sra. Brown causar-vos-á uma impressao muito dife-
rente conforme a época e o pais em que nascestes. Seria
bastante fácil escrever três versoes diferentes do tal incidente
no comboio, uma inglesa, uma francesa e uma russa. O escri-
tor inglês faria da vplha senhora um "tipo" (.); ia realçar as
suas singularidades e os seus tiques, os seus botôes e as suas
gelhas, as suas tas e as suas verrugas. A personalidade dela
dominaria o livro. Um escritor francês apagaria tudo isso; ia
sacri car o individuo a sra. Brown - para apresentar uma
visào mais geral da natureza humana. para edi car um todo
mais abstracto, proporcionado e harmonioso. O russo ia
penetrar a carne, revelar a alma a alma vagueando só por
Waterloo Road, interrogando a vida com alguma questao tre-
menda que continuaria a ressoar nos nossos ouvidos, uma
vez ndo o livro. E, além da época e do pais, há ainda a ser
considerado o temperamento do escritor. Vocês vêem uma
coisa no carácter, eu vejo outra. Vocês dizem que significa
isto, eu aquilo. E quando se chega à escrita. cada um procede
a uma nova selecçào de acordo com principios próprios.
Assim, a sra. Brown pode ser tratada de uma variedade in -
nita de modos, segundo a época, o pais e o temperamento do
escritor.
Devo agora recordar as palavras do sr. Arnold Bennett.
Diz ele que o romance somente terá uma possibilidade de
sobreviver se os caracteres forem reais. Caso contrário, está
condenado à morte. Mas. pergunto-me eu, o que é a reali-
dade? E quem sào os juizes da realidade? Um carácter pode
ser real para o sr. Bennett e perfeitamente irreal para mim. Por
exemplo, neste mesmo artigo, ele a rma que o Dr. Watson em

(.) No original inglés, "characlerf,. gura, personagem original e idios-


8lncrática. (N. T.)

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Sherlock Holmes é real: para mim, o Dr. Watson é um saco
cheio de palha, um boneco. um fantoche. E isto veri ca-se de
carácter para carácter, de livro para livro. Nào há nada que
provoque Maior discordância do que a realidade dos caracte-
res, em especial perante livros contemporàneos. Contudo, de
uma perspectiva mais ampla estou plenamente de acordo
com o sr. Bennett. Isto é, se pensarmos nos romances que
consideramos grandes romances War and Peace, Vanily
Fair, Tristram Shandy, Madame Bovary. Prlde and Preludice,
The Mayor ol Casterbridge, Villette se pensarmos nestes
livros, ocorre-nos imediatamente um qualquer carácter que
nos pareceu tao real (e com isto nào quero dizer tào seme-
Ihante à vida) que detém o poder nào apenas de nos fazer
pensar nele, mas de nos fazer olhar através dos seus olhos as
mais diversas coisas a religiào. o amor, a guerra, a paz, a
vida em familia, os bailes em cidades de provincia, o pôr-do-
sol, o nascer da lua, a imortalidade da alma. Julgo que
nenhuma experiência humana foi omitida em War and Peace.
Em todos estes romances todos estes grandes romancistas
nos dao a ver tudo aquilo que nos pretendem fazer ver através
de um carácter. Caso contrário, nào seriam romancistas
seriam poetas, historiadores, pan etarios.
Examinemos agora o que o sr. Bennett continuou a dizer
a rmou que nào existia nenhum grande romancista entre
os Georgianos porque eles nào conseguem criar caracteres
reais, verdadeiros e convincentes. Aqui nào posso concordar.
Há motivos, justi caçoes, possibilidades que, julgo eu. dào
ao caso um aspecto diferente. Pelo menos, assim me parece,
mas estou ciente de que, neste assunto, é provavel que eu
seja preconceituada, optimista e miope. Vou apresentar-vos a
minha opiniâo esperando que a torneis imparcial, justa e
ampla. Por que razào é tào dificil aos romancist,, de agora
criar caracleres que pareçam reais, nao SÓ ao r. Bennett,
mas às pessoas em geral? Porque é que, chegado o més de
Outubro, os editores nunca conseguem oferecer-nos uma
obra-prima?
Decerto um dos motivos reside no facto de os homens e
mulheres que começaram a escrever romances em 1910, ou
por essa altura, terem esta tremenda di culdade a enfrentar
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nao havia um único romancista inglés vivo com o qual
pudessem aprender. O sr. Conrad é polaco; isto coloca-o à
parte e, por mais que o admiremos, nao o torna muito prestá-
vel. O sr. Hardy nào escreve um único romance desde 1895.
Os romancistas mais em evidéncia e de maior sucesso no ano
de 1910 eram, segundo creio, o sr. Wells, o sr. Bennett e o sr.
Galsworthy. Ora a mim parece-me que chegar junto destes
homens e pedir-lhes para nos ensinar como se escreve um
romance como criar caracteres que sejam reais
precisamente como ir ao sapateiro e pedir-lhe que nos ensine
a fazer um relógio. Nao quero dar-vos a impressao de que
nao admiro nem aprecio os seus livros. Parecem-me ter um
grande valor e corresponder até a uma grande necessidade.
Em determinadas estaçoes é mais importante ter umas botas
do que um relógio. Pondo de lado a metáfora, considero que,
após a actividade criativa da época vitoriana, era absoluta-
mente necessário, para a literatura como para a vida, que
alguém escrevesse os livros que o sr. Wells, o sr. Bennett e o
sr. Galsworthy têm escrito. Mas como sao estranhos estes
livros! Chego a perguntar-me se é correcto designá-los como
tal, pois deixam-nos uma sensaçao curiosa de incompletude
e insatisfaçao. Para os completar parece obrigatório fazer
alguma coisa aderir a uma sociedade ou, em casos mais
desesperados, passar um cheque. Feito isto, acalmou-se a
inquietude. acabou-se o livro; pode ser arrumado na prate-
leira, nào é necessário voltar a lê-lo. Porém, com a obra de
outros romancistas. o caso é diferente. Trlstram Shandy ou
Pride and Prejudlce sào livros completos em si mesmos,
auto-su cientes. neste caso. a única coisa que nos apetece
fazer é tornar a lê-los e compreendê-los melhor. A diferença
reside porventura no facto de tanto Sterne como Jane Austen
estarem interessados nas coisas em si mesmas no carácter
em si mesmo, no livro em si mesmo. Por esta razào tudo é
interior ao próprio livro, nada se encontra no exterior. Mas os
Eduardianos nunca estiveram interessados no carácter em
sim mesmo, nem no livro em si mesmo. Era algo exterior que
lhes interessava. Logo, os seus livros eram incompletos
enquanto livros, exigiam que o leitor os completasse ele
próprio, de um modo activo e prático.
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Talvez possamos esclarecer melhor este aspecto se
tomarmos a liberdade de imaginar um pequeno grupo na car-
ruagem de comboio - o sr. Wells, o sr. Galsworthy e o sr.
Bennett viajam para Waterloo com a sra. Brown. Como já
sabemos, a sra. Brown era muito pequena e ia pobremente
vestida. Tinha um ar ansioso e acossado. Duvido que se tra-
tasse de uma mulher considerada culta. Com uma rapidez à
qual nao posso fazer justiça, o sr. Wells iria reunir todos estes
sintomas da condiçao insatisfatória das nossas escolas pri-
márias e passaria de imediato a projectar no vidro da janela
uma visào de um mundo melhor, mais alegre, jovial e feliz,
mais temerário e nobre, no qual nâo existem estas carrua-
gens ba entas nem estas velhas senhoras cheirando a mofo;
no qual barcas milagrosas trazem frutos tropicais até Cambe-
rwell às oito horas da manha: no qual ha jardins de infância,
fontes e bibliotecas públicas. salas de estar e de jantar, e
casamentos: neste mundo. cada cidadào é generoso e cân-
dido, valoroso e magni co, e muito semelhante ao próprio sr.
Wells. Contudo nao há lá ninguém minimamente parecido
com a sra. Brown. Nao há sras. Brown em Utopia. Na verdade
nao creio que o sr. Wells, na sua paixao de fazer dela o que
ela deveria ser, a olhasse um só momento tal como é. E que
iria o sr. Galsworthy ver? Temos algums dúvida de que iria
engraçar com as paredes da fábrica Doulton? Nessa fábrica
há mulheres que fazem todos os dias vinte e cinco dúzias de
potes de barro. Há màes em Mile End Road que dependem
dos cobres ganhos por estas mulheres. E, todavia, há patroes
em Surrey que neste preciso momento fumam esplêndidos
charutos enquanto o rouxinol canta. Veementemente indig-
nado, a abarrotar de informaçoes, acusando a civilizaçao, o
sr. Galsworthy iria ver na sra. Brown um pote quebrado na
roda e atirado para um cantJ.
Dos Eduardianos, apenas o sr. Bennett manteria o seu
olhar dentro da carruagem. Sem dúvida iria observar cada
pormenor com imenso cuidado. Iria reparar nos anúncios,
nas gravuras de Swanage e Portsmouth, no modo como a
almofada enfolava entre os botôes, e que a sra. Brown trazia
um broche que custara três xelins dez dinheiros e três pata-
cos no bazar de Whitworth e tinha remendado as duas luvas

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coin efeito, o polegar da luva esquerda fora mesmo substi-
tuido. Observaria ainda, calmamente. que este era o comboio
directo de Windsor com paragem em Richmond para bene -
cio dos residentes da classe média que se podem dar ao luxo
de ir ao teatro mas nào alcançaram o nivel su ciente para
comprar um carro embora seja verdade que há ocasioes (ele
dir-nos-ia quais) em que o alugam a uma companhia (e dir-
-nos-ia qual). Assim, a pouco e pouco, aproximar-s&ia tranqui-
lamente da sra. Brown, fazendo notar que lhe tinha sido
deixada uma propriedade em Datchet, em regime de afora-
mento (.), nào alodial (""), a qual, no entanto, estava hipote-
cada ao sr. Bungay, o solicitador- mas, para que me atrevo
eu a inventar o sr. Bennett? Ou será que o sr. Bennett nao
escreve os seus próprios romances? Vou abrir o primeiro
livro que calhar Hilda Lessways. Vejamos como é que ele
nos faz sentir, como deve todo o romancista, que Hilda é real,
verdadeira e convincente. Ela fechou a porta de um modo
suave e reservado que mostrava o seu constrangimento nas
relaçoes com a mae. Gostava de ler Maud; era dotada do
poder de sentir intensamente. Até aqui, tudo bem. No seu
modo vagaroso e seguro, o sr. Bennett vai tentando ao longo
destas primeiras páginas, nas quais cada toque é importante,
mostrar-nos de que tipo de rapariga se tratava.
Porém, ei-lo que começa a descrever, nào Hilda Les-
sways, mas a vista da janela do seu quarto, com a desculpa de
que o sr. Skellorn, o homem que vem cobrar as rendas, se
aproxima por esse caminho. Prossegue o sr. Bennett:
'O bailido de Turnhill cava por detrás dela e todo o
sombrio de Five Towns, do qual Turnhill é o extremo
distrito
Aos pés de Chatterley Wood o canal
norte, ficava para o sul.
serpenteava em curvas largas no seu caminho para as plani-
cies impolutas de Cheshire le para o mar. Do lado do canal,
exactamente defronte da janela de Hilda, havia uma fábrica
de moagem que, por vezes, fazia quase tanto fumo quanto os

(.) No original inglés. copyhold (N. T.)

(") No original inglés. Ireehold (N. T.)

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fornos e as chaminés que limitavam a paisagem de ambos os
lados. Da fábrica, um caminho murado a tijolos, separando
uma longa travessa de vilas (") recentes dos jardins que lhes
eram anexos, dava directamente para Lessways Street, em
frente da casa da sra. Lessways. O sr. Skellorn devia ter che-
gado por este caminho, já que habitava a última dessas vilas.,
Uma única linha de sagaz penetraçao teria valido mais do
que todas estas descriçoes; contudo, deixemo-las passar
como sendo o dever enfadonho do romancista. Bom, mas
onde está Hilda? Ai, Hilda continua a olhar pela janela. Apai-
xonada e insatisfeita como era, tinha um fraquinho por casas.
Comparava frequentemente o velho sr. Skellorn com as vilas
que via da janela do seu quarto. Logo, as vilas devem ser
descritas. O sr. Bennett continua:
"A travessa tinha por nome Freehold Villas (.): um nome
conscientemente orgulhoso num distrito em que muitas das
propriedades eram em regime de aforamento e só podiam
mudar de dono mediante o pagamento de "multas e o
acordo feudal de uma corte" presidida pelo agente do pro-
prietário. A maioria das habitaçoes pertencia aos seus ocu-
pantes, e, cada um, rei e senhor do seu terreno, se entretinha
à noite no jardim negro de fuligem por entre as camisas e
toalhas que enxugavam. Freehold Villas simbolizava o triunfo
nal da economia Vitoriana, a apoteose do artesào prudente
e laborioso. Correspondia ao sonho paradisiaco do secretá-
rio de uma sociedade construtora. E era, de facto, um
empreendimento muito feliz. Contudo, o desprezo irracional
de Hilda nào o admitiria.
Louvado seja Deus! exclamamos. Até que en m chega-
mos a Hilda. Mais devagar. Hilda pode ter sido isto, aquilo e
aqueloutro mas nao se limitava a olhar as casas, a pensar em
casas, Hilda vivia numa casa. E em que tipo de casa vivia
Hilda? Prossegue o sr. Bennett:

(.) No original inglés, cottages (N. T.)


(. ) Um bem Ireehold pertence ao seu proprietário sem quaisquer restri-
çoes. (N. T.)

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"Era uma dessas duas casas do meio de um conjunto de
quatro casas construidas pelo seu avô Lessways, o fabricante
de bules para chá; era a casa principal das quatro, obvia-
mente a residência do proprietário. Uma das casas de
esquina estava ocupada por uma mercearia e fora-lhe reti-
rada a área de jardim que lhe cabia para que o jardim do
proprietário fosse lígeiramente alargado. Estas casas nào
eram vilas, pagavam taxas entre vinte seis e trinta e seis libras
por ano, o que estava muito além das posses de artesaos.
pequenos agentes de seguros e cobradores de rendas. Para
mais, estavam bem construidas, generosamente bem cons-
truidas; a sua arquitectura, apesar de degradada, manifestava
vagos traços de elegância Georgiana. Era reconhecida como
a melhor la de casas no quarteirao novo da cidade. Saindo
ao seu encontro, vindo das Freehold Villas, o sr. Skellorn
chegava obviamente a algo de superior, mais amplo, mais
liberal. De repente, Hilda ouviu a voz de sua màe...
Mas nós nao conseguimos ouvir a voz da mae nem a voz
de Hilda; só escutamos a voz do sr. Bennett falando de rendas
e de alódios e de aforamentos e de multas. O que será que ele
pretende? Tenho uma opiniào formada acerca disso está a
tentar fazer-nos imaginar por ele, está a tentar hipnotizar-nos
para que acreditemos que, uma vez feita a casa, alguém lá
deve viver. Com todos os seus maravilhosos poderes de
observaçào, com toda a sua enorme simpatia e humanidade,
o sr. Bennett nem uma SÓ vez olhou para a sra. Brown lá no
seu canto. Vai sentada num canto da carruagem, viajando
nao entre Richmond e Waterloo, mas entre uma e outra épo-
cas da literatura inglesa. pois a sra. Brown é eterna, a sra.
Brown é a natureza humana, a sra. Brown apenas muda à
super cie, sào os romancistas quem entra e quem sai lá vai
ela sentada e nem um dos escritores Eduardianos se dignou
olhá-la. Com força. perspicácia e simpatia, olharam pela
janela; viram fábricas, Utopias, viram até a decoraçào e os
estofos da carruagem; mas nunca olharam para ela, nunca
olharam para a vida, nunca olharam a natureza humana.
Assim, desenvolveram uma técnica de escrever romances
adequada aos seus propósitos; fabricaram instrumentos e
estabeleceram convençoes que servem os seus objectivos.
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Mas os seus instrumentos nào sào os nossos instrumentos,
os seus objectivos nào sao os nossos objectivos. Para nós,
essas convençoes sao a ruina, esses instrumentos sào a
morte.
Bem podeis lamentar o carácter vago da minha lingua-
gem. Perguntais-me o que é uma convençao, um instru-
mento, o que pretendo dizer quando afirmo que as
convençoes do sr. Bennett, do sr. Wells e do sr. Galsworthy
sào as convençoes erradas para os Georgianos. É um pro-
blema di cil, tentarei abreviar. Uma convençao na escrita nao
difere muito de uma convençao na conduta social. Tanto na
vida como na literatura, é necessário um meio para estabele-
cer o contacto entre a dona de casa e o seu convidado desco-
nhecido, por um lado, entre o escritor e o seu leitor
desconhecido, por outro. A dona de casa reflecte sobre o
tempo, pois geraçoes de donas de casa provaram que este é
um assunto de interesse universal em que todos acreditamos.
Começa por dizer que está um péssimo Maio e, tendo deste
modo estabelecido o contacto com o seu convidado desco-
nhecido, passa a temas de maior interesse. Assim também na
literatura. O escritor tem de estabelecer o contacto com o seu
leitor apresentando-lhe algo que este identi ca, que lhe esti-
mula a imaginaçào, tornando-o disponivel a cooperar nesse
terreno bem mais di cil da intimidade. E é da maior importan-
cia que este ponto de encontro seja facilmente alcançado, de
uma forma quase instintiva. no escuro, de olhos fechados. Eis
o sr. Bennett a usar este terreno comum na passagem que
O problema que se lhe colocava era fazer-nos acreditar
citei.
na realidade de Hilda Lessways. Por isso, como Eduardiano.
começou por uma descriçào exacta e pormenorizada do tipo
de casa em que Hilda vivia e do tipo de casa que ela observava
da janela. A propriedade fundiária era o terreno comum a
partir do qual os Eduardianos passavam facilmente à intimi-
dade. Por muito indirecta que nos pareçluma tal convençao
cumpria admiravelmente o seu papel e milhares de Hilda Les-
sways foram lançadas ao mundo por este meio. Para aquela
época e geraçao era uma convençào que servia bem.
Agora, se me autorizam a destruir a minha própria ane-
dota, vao ver como senti intensamente a falta de uma conven-

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çao e como nos deparamos com um assunto muito sério
quando os instrumentos de uma geraçào se revelam inúteis à
geraçào seguinte. O incidente na carruagem tinha-me
impressionado profundamente. Mas como iria eu transmiti-
lo? Somente podia relatar, com o rigor que me era possivel,
aquilo que fora dito, descrever com pormenor as roupas, afir-
mar, em desespero de causa, que todo o tipo de cenas me
vinha à ideia e prosseguir baralhando-as a todas, expor essa
impressao viva e esmagadora comparando-a a uma corrente
de ar ou a um cheiro a queimado. Para vos dizer a verdade,
também me senti tentada a fabricar um romance em três volu-
mes acerca do lho da velha senhora e das suas aventuras ao
atravessar o Atlântico. acerca da sua filha, que tinha uma loja
de chapéus em Westminster. acerca do passado do próprio
Smith, da sua casa em Shef eld. nào obstante encarar tais
histórias como as mais enfadonhas, irrelevantes e fraudulen-
tas do mundo.
Porém, se o tivesse feito, teria evitado a di culdade tre-
menda de dizer aquilo que pretendia expressar. E, para atin-
gir o que pretendia expressar, eu deveria ter ido muito mais
atrás, ter experimentado ora uma coisa ora outra, ter
ensaiado esta e aquela frase, referindo cada palavra à minha
visao, combinando-as com o rigor possivel. sabendo que, de
algum modo, tinha de encontrar um terreno que nos fosse
comum, uma convençào que vos nào parecesse demasiado
estranha, irreal e rebuscada. Reconheço que me esquivei a
tào árdua tarefa. Deixei escapar entre os dedos a minha sra.
Brown. Nada vos disse acerca dela. Mas a culpa é, em parte,
dos grandes Eduardianos. Perguntei-lhes pois sao mais
velhos do que eu e meus superiores-. Como hei-de começar
a descrever o carácter desta mulher? E eles responderam:
"Comece por dizer que o pai dela tinha uma loja em Harro-
gate. Veri que de quanto era a renda. Veri que qual o salário
dos vendedores de balcào em 1878. Descubra de que morreu
a màe. Descreva o cancro. Descreva o tecido de algodao.
Descreva... E eu gritei: "Basta! Basta!" E lamento dizer-vos
que atirei pela janela esse instrumento de trabalho hediondo,
tosco, inadequado, porque sabiaque se começasse a descre-
ver o cancro e o tecido de algodào, a minha sra. Brown, a

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visao a que continuo fiel ainda que desconheça como
partilhá-la convosco, caria para sempre baça, sem brilho,
acabaria por se dissipar.
Era neste sentido que eu a rmava que os instrumentos
de trabalho dos Eduardianos nos sào prejudiciais. Concede-
ram uma tremenda importància à textura das coisas. Deram-
nos uma casa esperando que consigamos concluir que seres
humanos lá vivem. Sejamos justos a casa está muito digna
de lá se viver. Mas para quem defende que os romances sao,
em primeiro lugar, sobre as pessoas e somente depois sobre
as casas em que vivem, é o modo errado de começar. Com-
preendem agora qual a razào que levou o escritor Georgiano
a por de parte o método que se usava. Ficou só perante a sra.
Brown, sem qualquer método de a cornunicar ao leitor. Nào,
isso nao é verdade. Um escritor nunca está só. Com ele está
sempre o público senào no mesmo assento, pelo menos no
compartimento ao lado. Mas o público é um estranho compa-
nheiro de viagem. Em Inglaterra, é uma criatura muito dócil e
sugestionável, e, uma vez que vos preste atençào, continuará
a acreditar implicitamente em tudo o que lhe for dito por um
determinado número de anos. Se dissermos ao público com
bastante convicçao: "Todas as mulheres têm uma cauda e
. todos os homens têm uma bossa" aprenderá realmente a ver
as mulheres com uma cauda e os homens com uma bossa e
vai considerar muito revolucionário, porventura impróprio, se
lhe dissermos: "Que disparate! Os macacos tém uma cauda.
os camelos uma bossa. Os homens e as mulheres têm um
cérebro, e têm um coraçao; pensam e sentem" isto
parecer-lhe-á uma piada de mau gosto e, além do mais,
inconveniente.
Voltemos ao nosso assunto. Eis o público britânico sen-
tado ao lado do escritor e a rmando, vasto e unánime: As
velhas senhoras têm casas. Têm pais. Tém rendimentos. Têm
criados. Tém botijas de água quente. É assim que sabemos
que sào velhas senhoras. O sr. Wells e o sr. Bennett e o sr.
Galsworthy sempre nos ensinaram a reconhecé-las por isso.
Mas no caso da sua sra. Brown como vamos acreditar
nela? Nem sequer sabemos se a sua vila dá pelo nome de
Albert ou de Balmoral; nem quanto ela pagou pelas luvas,
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nem se a mae morreu de cancro ou de tuberculose. Como é
que ela pode estar viva? Nào. ela é um mero produto da sua
imaginaçào."
E como é evidente as velhas senhoras devem ser feitas de
vilas em regime de propriedade livre e de terrenos em regime
de aforamento. nao de imaginaçào.
Por tudo isto o romancista Georgiano encontrava-se
numa situaçào embaraçosa. Havia a sra. Brown a protestar
que era diferente, muito diferente daquilo que as pessoas
julgavam e a invocar o auxilio do romancista, seduzindo-o
pela fugaz apariçào dos seus mais fascinantes encantos;
havia os Eduardianos a oferecer os instrumentos próprios
para construir e demolir casas. e havia ainda o público britâ-
nico declarando a botija de água quente como prioridade
absoluta. Entretanto, o comboio aproximava-se rapidamente
da estaçào onde todos nos devemos apear.
Quanto a mim. era esta a situaçào que se deparava aos
jovens Geor(Jianos por volta de 1910. Muitos penso em
particular no sr. Forster e no sr. Lawrence estragaram as
suas primeiras obras porque tentaram usar esses instrumen-
tos em vez de se livrarem deles. Tentaram o compromisso.
Tentaram conciliar o seu sentimento imediato da singulari-
dade e da Importància de um carácter com os conhecimentos
do sr. Galsworthy acerca das Leis sobre a segurança dos
operários e do sr. Bennett acerca de Five Towns. Tentaram,
mas tinham uma percepçao demasiado na, demasiado
intensa da sra. Brown e das suas particularidades para conti-
nuarem a tentar por muito tempo. Era necessário fazer qual-
quer coisa. Custasse o que custasse a vida, um membro,
graves prejuizos em bens de valor- a sra. Brown tinha de ser
salva, havia que transmiti-la, mostrá-la nas suas incompará-
veis relaçoes com o mundo. antes que o comboio parasse e
ela desaparecesse para sempre. E assim começou a devasta-
çào. Por isso, à nossa volta, em poemas, romances e biogra-
as, até em artigos e ensaios de jornal, escutamos o som da
demoliçao e da queda, da derrocada e da destruiçào. É o som
predominante da época Georgiana e um som bastante
melancólico se pensarmos nos dias melodiosos do passado,
se pensarmos em Shakespeare, em Milton e em Keats, ou

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mesmo em Jane Austen, em Thackeray e em Dickens; se
pensarmos na nossa lingua e nas alturas a que se eleva
quando livre e olharmos essa mesma águia cativa, calva e
crocitante.
Perante estes factos com tais sons nos meus ouvidos e
tais ideias na minha cabeça nào vou negar ao sr. Bennett
alguma razào quando se lamenta dos nossos escritores Geor-
gianos serem incapazes de nos fazer acreditar que os carac-
teres sao reais. Sou forçada a reconhecer que eles nào
lançam em cada outono, com vitoriana regularidade, trés
obras-primas imortais. Contudo, nào me sinto acabrunhada
mas con ante. Um tal estado de coisas parece-me inevitável
sempre que a convençao, gasta por um uso já antigo ou ainda
imatura por demasiado recente, deixa de ser um modo de
comunicaçao entre o escritor e o leitor e se torna um obstá-
culo e um estorvo. No momento actual. estamos a sofrer -
nào de declinio mas da inexisténcia de um código de
regras de conduta que tanto os escritores como os leitores
aceitem como prelúdio a uma relaçào mais estimulante
da amizade. A convençào literária dos nossos dias é de tal
modo arti cial durante toda a visita tem de se falar do
tempo e apenas do tempo- que, naturalmente, os fracos sao
tentados a ultrajar e os fortes a destruir as próprias fundaçoes
e regras da sociedade literária. Por toda a parte encontramos
sinais do que acabo de dizer. A gramática é violada, a sintaxe
desintegrada, como acontece a um garoto que, a passar o m
de semana em casa de uma tia, se rebola no canteiro de
gerânios de puro desespero à medida que vào terminando as
cerimónias do sabat. Os escritores mais adultos nào cedem
obviamente a tais travessuras de maus humor. A sua sinceri-
dade é desesperada, a sua coragem tremenda; o problema é
que nào sabem se hào-de usar o garfo ou os dedos. Assim, se
lerem o sr. Joyce e o sr. Eliot, chamar-vos-á a atençào
indecéncia de um e a obscuridade do outro. A indecência do
sr. Joyce em Ulysses parece-me a indecéncia consciente e

deliberada de um homem desesperado que sente que, para


respirar, tem de quebrar os vidros. Por momentos, quebrado
o vidro. é magni co. Mas que desperdicio de energia! E, ao
m e ao cabo, como a indecência é enfadonha quando nào

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corresponde ao irromper de um excesso de energia ou de
fogosidade, sendo, pelo contrário, o acto deliberado e patrió-
tico de um homem que necessita de ar puro! E o mesmo se
passa com a obscuridade do sr. Eliot. Julgo que o sr. Eliot
escreveu alguns dos mais belos versos da poesia moderna.
Porém, como é intolerante para com os velhos costumes e
deferências o respeito pelos individuos mais fracos, a consi-
deraçao pelos menos interessantes! Quando me submeto à
luz intensa, à beleza impetuosa de um dos seus versos e
penso que, para alcançar o seguinte, me obrigo a um salto
temerário e vertiginoso, quando tal situaçào se repete a cada
novo verso como a de um acrobata que se arrisca a voar de
barra em barra, tenho de confessar nostalgia pelo antigo
decoro e inveja pela indolência dos meus antepassados que
com um livro sonhavam tranquilos à sombra de uma árvore,
em lugar de rodopiarem loucamente pelos ares. Também nos
livros do sr. Strachey, Eminent Victorians e Queen Vlctorla,
sào visiveis a tensào e o esforço para escrever a contracor-
rente. Menos visiveis é certo, pois nào só ele está a lidar com
factos (coisas muito resistentes) como forjou, sobretudo a
partir de material do século XVIII, o seu próprio e muito dis-
creto código de comportamento. Este código permite-lhe
sentar-se à mesa com as pessoas mais ilustres e dizer, a
coberto de tào nas roupagens, um grande número de coisas
que, despidas de todo esse aparato, teriam sido corridas da
sala pelos criados. No entanto, se compararmos Eminenl Vlc-
torians com alguns dos ensaios de Lord Macaulay e apesar
de sentirmos que este nunca tem razào, enquanto o sr. Stra-
chey a tem sempre, sentiremos também nos ensaios de Lord
Macaulay uma consistência, uma amplitude e uma riqueza
que o mostram em unissono com a sua época: toda a sua
energia foi encaminhada para a sua obra. nenhuma foi usada
para dissimular ou converter. Mas o sr. Strachey teve de nos
abrir os olhos antes de nos fazer ver; teve de procurar e forjar
uma linguagem muito habilidosa; todo este esforço, apesar
de magni camente dissimulado, privou a sua obra de uma
parte da força que deveria ter tido e limitou o seu àmbito.
Assim, pelas razôes aqui expostas, temos de nos confor-
mar com uma época de falhanços e de fragmentos. Há que

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re ectir que, onde se dispende tanta energia em busca de um
processo de contar a verdade, a própria verdade nos vai che-
gar exausta e numa situaçào caótica. Ulysses, a rainha Vitó-
ria, o sr. Prufrock para atribuir à sra. Brown alguns dos
nomes que ultimamente tornou famosos sào uma sra.
Brown um pouco pálida e desgrenhada quando os seus sal-
vadores a acabam por alcançar. E aquilo que ouvimos é o
som dos seus machados - para mim um som estimulante e
forte a menos que se pre ra dormir, quando, na sua gran-
deza, a providência nos dotou de uma multidào de escritores
ansiosos e capazes de satisfazer as nossas necessidades.
Tentei deste modo, e receio bem ter-me alongado em
excesso, responder a algumas das questôes que começara
por colocar. Apresentei algumas das di culdades que. em
minha opiniao, cercam o escritor Georgiano, qualquer que
seja a forma literária que pratica. Procurei desculpá-lo. Ser-
me-á permitido concluir arriscando-me a lembrar os deveres
e responsabilidades que vos cabem como cúmplices neste
caso de escrever livros, como viajantes na mesma carruagem
do comboio, como companheiros de viagem da sra. Brown?
Pois ela é tào visivel para vós que mantendes o silêncio como
para nós que a seu respeito contamos histórias. No decorrer
da vossa vida diária nesta última semana tivestes experiên-
cias bem. mais estranhas e mais interessantes do que aquela
que tentei descrever. Ouvistes por acaso pedaços de conver-
sas que vos deixaram estupefactos. Ao ir para a cama à noite,
perturbou-vos a complexidade dos vossos sentimentos. Num
único dia milhares de ideias atravessaram o vosso espirito.
milhares de emoçoes se cruzaram, colidiram e desaparece-
ram em assombrosa desordem. E, no entanto, permitis que os
escritores vos enganem apresentando uma versào de tudo
isto, uma imagem da sra. Brown, que nao tem qualquer seme-
Ihança com essa surpreendente apariçào. Na vossa modéstia
parece que considerais os escritores como seres diferentes,
com outro sangue, outro esqueleto; como se soubessem mais
do que vós acerca da sra. Brown. Nunca houve erro mais
fatal. É esta divisào entre leitor e escritor, esta humildade da
vossa parte, estes ares de afectaçao pro ssional da nossa,
que corrompem e enfraquecem os livros que deveriam ser o
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saudável fruto de uma aliança estreita e equitativa entre nós.
Assim aparecem esses romances lustrosos e macios, essas
biogra as imponentes e ridiculas, essa critica literária adoci-
cada e insipida, esses poemas que celebram de forma melo-
diosa a inocência das rosas e dos carneiros, e todos passam
plausivelmente por literatura nos nossos dias.
O vosso papel é insistir com os escritores para que des-
çam dos seus plintos e pedestais e descrevam se possivel
com beleza, em qualquer caso com verdade, a nossa sra.
Brown. Compete-vos teimar em como ela é uma velha
senhora de capacidades imensas e variedade in nita; capaz
de aparecer em todo o lado. de envergar toda e qualquer
roupa, de tudo dizer e de fazer sabe Deus o quê. Mas tudo
aquilo que diz e tudo aquilo que faz. os seus olhos, o seu
nariz, as suas palavras e o seu silêncio exercem um irresisti-
vel fascinio, pois. como é evidente, ela é o espirito pelo qual
vivemos, é a própria vida.
Todavia, nào esperai por enquanto uma sua apresenta-
çao completa e satisfatória. Tolerai o espasmódico, o obs-
curo, o fragmentário, o fracasso. O vosso auxilio é invocado
em boa causa. Porque vou arriscar uma profecia nal e tre-
mendamente audaciosa vacilamos à beira de uma das
grandes eras da literatura inglesa. Porém, só a alcançaremos
se estivermos rmes no propósito de nunca, nunca abando-
nar a sra. Brown.

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