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Filosofia  

Política  22/23   1     Giovanni  Damele  

Antonio Gramsci (1891-1937). Trechos de Noterelle sul Machiavelli (1932-34,


em Cadernos do Cárcere)

«O carácter fundamental d’ O Príncipe é o de não ser um tratado sistemático, mas sim um


livro “vivente”, em que a ideologia política e a ciência política se fundem na forma dramática
do “mito”. Entre a utopia e o tratado escolástico, as formas em que a ciência política se
configurava até Maquiavel, deu ele à sua conceção a forma fantástica e artística, por meio da
qual o elemento doutrinal e racional se personifica num condottiero1 que representa
plasticamente e “antropomorficamente” o símbolo da “vontade coletiva”. O processo de
formação de uma determinada vontade coletiva, com vista a um determinado fim político, é
representado não por meio de disquisições e classificações pedantes de princípios e critérios
para um método de ação, mas sim como qualidades, traços característicos, deveres,
necessidades de uma pessoa concreta, o que põe em movimento a fantasia artística de quem
se quer persuadir e atribui às paixões políticas uma forma mais concreta».
[...]
«O Príncipe de Maquiavel poderia ser estudado como uma exemplificação histórica do
“mito” de Sorel2, isto é, de uma ideologia política que se apresenta não como fria utopia ou
raciocínio doutrinário, mas sim como uma criação da fantasia concreta que age sobre um
povo disperso e pulverizado para suscitar e organizar a sua vontade coletiva. O carácter
utopístico d’ O Príncipe encontra-se no facto de o Príncipe não ter existido na realidade
histórica, não se ter apresentado ao povo italiano com as características de uma objetividade
imediata: era, pois, uma pura abstração doutrinária, o símbolo do chefe, do condottiero
ideal; contudo, os elementos passionais, míticos, contidos em todo o livrinho, reassumem-
se, com uma jogada dramática de grande efeito, e tornam-se vivos na conclusão, na
invocação de um príncipe “que existe realmente”. [...] Eis por que o epílogo d’ O Príncipe
não é algo extrínseco [...], retórico, mas tem de ser explicado como elemento necessário da
obra, ou antes, como aquele elemento que reflete a sua verdadeira luz sobre a obra inteira e
faz dela como que um “manifesto político”».
[...]
O moderno príncipe, o mito-príncipe, não pode ser uma pessoa real, um indivíduo concreto;
pode ser apenas um organismo; um elemento de sociedade complexo no qual já comece o
concretizar-se de uma vontade coletiva reconhecida e que se afirmou em parte na ação. Este
organismo já é um dado do desenvolvimento histórico e é o partido político: a primeira
célula em que se reassumem os germes de uma vontade coletiva que tendem a tornar-se
universais e totais. No mundo moderno, apenas uma ação histórico-política imediata e
iminente, caracterizada por um processo rápido e fulmíneo, pode encarnar-se miticamente
num indivíduo concreto [...]. Mas uma ação imediata deste tipo, pela sua própria natureza,
não pode ser de grande fôlego e de carácter orgânico: será quase sempre do tipo da
restauração e da reorganização e não do tipo próprio à fundação de novos Estados e de novas
estruturas nacionais e sociais, de tipo “defensivo” e não criativo original, isto é, de um tipo
em que se supõe que uma vontade coletiva, que já existia, seja enervada, dispersa, tenha

                                                                                                               
1 Na Itália da primeira idade moderna, os condottieri eram os chefes das “companhias livres” (Compagnie di
ventura) de mercenários que contratavam os seus serviços com os signori (os reinantes das cidades-estado
italianas) e frequentemente tornavam-se eles próprios signori da cidade ou do estado regional que serviam (é
o caso de Francisco I Sforza, condottiero ao serviço do Duque de Milão, que se tornou ele próprio Duque de
Milão, substituindo a dinastia anterior, os Visconti).
2 Georges Sorel (1847-1922), engenheiro francês e teórico do sindicalismo revolucionário, cujo pensamento

influenciou tanto o movimento anarcossindicalista como o fascismo italiano (pelo menos na sua fase inicial).
Gramsci faz aqui referência ao “mito” da “greve geral” e à sua capacidade de “suscitar e organizar” uma
“vontade coletiva”. Na mesma página, Gramsci sublinha como o pensamento de Sorel tenha como base e ponto
de referência a organização sindical, e não o partido político.
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subido um colapso perigoso e ameaçador mas não decisivo e catastrófico e seja necessário
reconcentrá-la e robustecê-la, e não que uma vontade coletiva tenha de ser criada ex novo,
originalmente, e endereçada em direção a objetivos certamente concretos e racionais, mas
cujo carácter concreto e racional ainda não foi verificado e criticado por uma experiência
histórica efetiva e universalmente conhecida [...].
[O] jacobinismo3 [é] exemplificação de como se tenha formado concretamente e como tenha
operado uma vontade coletiva que pelo menos em alguns sentidos foi criação ex novo,
original.
[...]
A conceção de Croce4, da política-paixão, exclui os partidos, porque não se pode pensar uma
“paixão” organizada e permanente: a paixão permanente é uma condição de excitação e de
espasmo, que determina inaptidão para agir [...].
[Caderno 13 (XXX)]

A ideia de Croce da paixão como momento da política choca na dificuldade de explicar e


justificar as formações políticas permanentes, como os partidos [...], porque não se pode
conceber uma paixão organizada permanente sem que esta se torne racionalidade e reflexão
ponderada, isto é, não mais paixão. [...] A política é ação permanente e faz surgir
organizações permanentes.
[Caderno 8 (XXVIII)]

Maquiavel não é um puro cientista; ele é homem de parte, de paixões poderosas, um político
em ação, que quer criar novas relações de força e portanto não pode não se preocupar com
o “dever ser”, embora não entendido num sentido moralístico [...]. A oposição Savonarola-
Maquiavel não é oposição entre ser e dever ser [...] mas entre dois dever ser, aquele abstrato
e confuso de Savonarola e aquele realístico de Maquiavel, realístico mesmo que se não tenha
tornado numa realidade imediata, pois não se pode esperar de um indivíduo ou de um livro
que mudem a realidade, mas apenas que a interpretem e que indiquem a direção possível
para a ação.
[Caderno 13 (XXX)]
 
 
Edição de referência: Antonio Gramsci, Quaderni del Carcere, Edição crítica do Istituto
Gramsci, (Valentino Gerratana, ed.), Einaudi, Turim, 1975 (segunda edição), Vol. II
(Cadernos 6-11), p. 1022, e Vol. III (Cadernos 12-29), pp. 1555-6, 1558-9, 1567, 1577-8.

                                                                                                               
3 Referência ao Club des Jacobins, grupo politico radical da Revolução Francesa cujo líder era Maximilien de
Robespierre. Do ponto de vista de Gramsci, os jacobinos são citados aqui como exemplo precoce de
organização política com algumas características (embora rudimentais) do partido político de massa moderno
(uma elite partidária com uma capacidade de mobilização das massas).
4 Benedetto Croce, filosofo italiano (1866-1952). Gramsci faz aqui referência à interpretação de Croce da obra

de Maquiavel, que coloca ao centro o tema das “paixões” e da “política como paixão”. Para Gramsci, este é sem
dúvida um aspeto relevante, mas não até ao ponto de reduzir a política à paixão. A ideia de política como
reflexão racional e organização é o fulcro da interpretação de Gramsci do partido político como “príncipe
moderno”.

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