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Espaços liminares - natureza e função do limiar

na paisagem contemporânea
Nature and Meaning of the Threshold
in the Contemporary Landscape
Espacios liminales - naturaleza y función del umbral
en el paisaje contemporáneo

Olivier Schefer (Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne, França) *


Tradução: Pedro Hussak (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil) **

https://doi.org/10.22409/poiesis.v21i36.42735

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RESUMO: O tema principal deste artigo é o do limiar nas artes visuais, pintura,
fotografia e vídeo, analisado através de um ponto de vista romântico e especulati-
vo. Pretendemos destacar os significados românticos da pintura paisagística, por
exemplo, sua estrutura reflexiva, especialmente o “limiar duplo” das Rückenfigu-
ren [Figuras vistas pelas costas] de Caspar David Friedrich, conectadas ao espec-
tador e à parte não visível do horizonte. Esse conceito é muito relevante em vá-
rios contemporâneos que tentam tornar visível o limite invisível que conecta o
tempo e o espaço, o próximo e o distante, o presente e o passado. Este texto ex-
plora as obras de Simon Faithfull e Marylène Negro que redescobre o conceito de-
leuziano de “tempo cristal” em seus vídeos gráficos.

PALAVRAS-CHAVE: romantismo; paisagem; arte contemporânea; Simon Faithfull;


Marylène Negro

*
Olivier Schefer é Professor da Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne, França. E-mail: olivierschefer@free.fr.
**
Pedro Hussak é Professor Associado de Estética na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: phussak@gmail.com.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4907-9093

Revista Poiésis, Niterói, v. 21, n. 36, p. 67-82, jul./dez. 2020. (https://doi.org/10.22409/poiesis.v21i36.42735)


ABSTRACT: The main topic of this article is that of the threshold in visual arts,
painting, photography and video, analysed through a romantic and speculative point
of view. We intend to highlight the romantic meanings of the landscape painting,
e.g. their reflexive structure, especially the “double threshold” of Caspar David Frie-
drich’s Rückenfiguren [Figures seen from Behind], both connected to the viewer and
to the non-visible part of the horizon. This concept is very relevant in several con-
temporaries’ attempts to make visible the invisible boundary that connects time and
space, the close and the distant, the present and the past. This text explores the
works of Simon Faithfull and Marylène Negro who rediscovers the deleuzian concept
of “time cristal” within her graphic videos.

KEYWORDS: romantism; landscape; contemporary art; Simon Faithfull; Marylène


Negro

RESUMEN: El tema principal de este artículo es el umbral en artes visuales, pin-


tura, fotografía y video, analizados desde un punto de vista romántico y especula-
tivo. Tenemos la intención de resaltar los significados románticos de la pintura de
paisajes, por ejemplo, su estructura reflectante, especialmente el "doble umbral"
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de Rückenfiguren [Figuras vistas desde atrás] de Caspar David Friedrich, conecta-
das al espectador y a la parte invisible del horizonte. Este concepto es muy rele-
vante en muchos contemporáneos que intentan hacer visible el límite invisible que
conecta el tiempo y el espacio, lo cercano y lo distante, el presente y el pasado.
Este texto explora las obras de Simon Faithfull y Marylène Negro que redescubre
el concepto deleuziano de “tempo cristal” en sus videos gráficos.

PALABRAS CLAVE: romanticismo; paisaje; arte contemporáneo; Simon Faithfull;


Marylène Negro

Citação recomendada:

SCHEFER, Olivier. Espaços liminares - natureza e função do limiar na paisagem contempo-


rânea. Revista Poiésis, Niterói, v. 21, n. 36, p. 67-82, jul./dez. 2020.
[https://doi.org/10.22409/poiesis.v21i36.42735]

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Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional (CC-BY-NC) © 2020 Olivier Schefer

Olivier Schefer, Espaços liminares - natureza e função do limiar na paisagem contemporânea.


Espaços liminares - natureza e função do limiar
na paisagem contemporânea

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Limiar: fronteira do espaço e do tempo

Essas palavras de Yves Bonnefoy na aber-


tura de sua mediação sobre o “Outro país”
designam a promessa de um outro lugar
no fundo da paisagem (como as paisagens
em miniatura na pintura italiana da Re-
nascença), de uma utopia escondida no
visível: o que ele descreve de forma mag-
nífica, como uma inquietação que o arran-
ca da felicidade imediata e joga-o em uma
errância sem fim, guarda justamente a
ambiguidade da noção de limiar. O limiar
da paisagem, que vai interessar-me aqui,

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é ao mesmo tempo constitutivo do que sement onde vivia à época; ela fechava
chamamos paisagem, conquanto a consi- tanto o ateliê quanto o banheiro, ou podia
deremos em termos de representação, de permanecer aberta entre os dois cômodos.
quadro, de perspectiva, de ponto de vista De tal maneira que, marcando o limiar in-
e, por outro lado, o espaço limítrofe que definidamente, ela ficava aberta quando
escapa ao controle, pois põe em relevo estava fechada e fechada quando estava
uma impossível atribuição. O limiar é uma aberta.
fronteira no interior do visível e uma uto-
pia. Podemos ver, pensar, construir uma Para caminhar em algumas manifestações
paisagem (uma imagem, uma representa- do limiar contemporâneo, e interrogar o
ção) sem passar pelo limiar, mas inver- que ele permite perceber e segundo quais
samente o limiar não é uma condição au- modalidades, proponho concentrar-me em
sente do visível? alguns exemplos sintomáticos. Gostaria de
abrir essas reflexões pelo espaço limítrofe

70 Então, o que é um limiar? Onde começa e da pintura de paisagem romântica que,


onde termina o limiar, se ele está conde- sem dúvida, possui um valor emblemático.
nado a desaparecer em e diante ao que
ele dá a ver? Bonnefoy coloca-nos no en-
calço dessas dificuldades, quando escreve
que o limiar marca a fronteira, que de ou- Caspar David Friedrich e o “duplo limiar”
tra forma seria invisível, entre o aqui e o
lá: dois valores do espaço (o próximo, o A noção de limiar, ou seja, de um ponto
longínquo) que também são duas dimen- de vista e de um ponto de passagem, é
sões do tempo. “Desejamos outro lugar”, certamente constitutiva da ideia mesma
ele escreve, “apenas onde o aqui se afir- de paisagem, ao menos no Ocidente. Ou-
ma”. O que Marcel Duchamp dizia-nos em tras tradições, por exemplo, orientais, ig-
sua maneira cheia de humor compondo noram essa divisão que supõe uma distin-
essa porta dupla, essa junção: 11 rue ção e uma relação entre um sujeito e um
l’Arrey. Ele realizou e instalou em 1927 objeto. O Changchui chinês, montanhas
esta porta no apartamento do Ve arrondis- e águas, é, imediatamente, uma paisagem

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Fig. 1 - Caspar David Friedrich, Le Voyageur contemplant une mer de nuages, 1818.
94, 4 x 74, 8 cm, Kunsthalle de Hambourg.
(Fonte: https://fr.wikipedia.org/wiki/Le_Voyageur_contemplant_une_mer_de_nuages)

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cosmogônica, sagrada em que jogam os to da pintura de paisagem de Friedrich e
elementos vitais (as figuras humanas apa- também desse romantismo pictural: a pin-
recem ali neste todo natural, elas não o tura de paisagem tem uma dimensão au-
constroem). Por que tomar o momento torreflexiva e especular. Um dos teóricos
romântico que não inventou o gênero pic- do primeiro romantismo, August Wilhelm
tural (seria antes Joachim Patinir) como Schlegel, escreve significativamente na
ponto de partida? Caspar David Friedrich, sua Doutrina da arte: “a paisagem en-
em um conjunto de telas célebres, pinta quanto tal não existe senão no olho da-
justamente a paisagem e o contemplador quele que a contempla”. (apud RECHT,
que lhe está associado. A cada vez, aquele 1989, p. 20) Representar uma paisagem
ou aquela ou aqueles estão em uma posi- nessa perspectiva romântica não é apenas
ção liminar. É possível ver em alguns pintar uma extensão natural, mas também
exemplos: O viajante contemplando um e antes de mais nada pintar o olhar que a
mar de nuvens (Fig. 1), Mulher diante do vê, que constrói uma extensão visível co-

72 pôr do sol, Dois homens contemplando a mo paisagem. A autorreflexividade, a di-


lua. Diremos que Friedrich inverte de iní- mensão metavisual da paisagem românti-
cio o preceito de Aristóteles, aplicado na ca emerge com a emergência desse dispo-
Renascença à pintura, de acordo com o sitivo recorrente em Friedrich, que consis-
qual “aqueles que imitam, imitam homens te em pintar personagens de costas (Rüc-
de ação”. Na verdade, de ação, não há kenfiguren) fazendo o que nós fazemos:
nada, nada se passa: simplesmente indi- olhar, contemplar diante de nós. Vemos
víduos de costas que miram, ao que pare- uma paisagem através dos indivíduos que
ce, uma paisagem. Essa falta de ação, de a olham. Notamos na paisagem que a
mise-en-scène narrativa em conformidade maior parte das formas artísticas do pri-
com o gênero da pintura histórica, confere meiro romantismo tem uma dimensão in-
a essas telas uma dimensão evidentemen- trinsecamente reflexiva: a arte interroga-
te meditativa: em vez de agir, os perso- se, ao questionar o mundo e vice-versa.
nagens olham, contemplam; eles se en- Fato que a eleva à altura de um símbolo
contram abismados tanto em si mesmos de totalidade com cada fragmento da obra
quanto no que eles veem. Esse é o precei- consciente de si. Toda poesia é poesia da

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poesia, diz Fr. Schlegel em 1798 (FR. mediadora autoriza justamente uma dupla
SCHLEGEL, 2014, frag. 238) da mesma leitura da paisagem romântica.
forma que a palavra “monológica”, aquela
que se ocupa apenas consigo mesma (e Apoiando-se em exemplos emprestados
que renuncia a comunicar uma mensa- da literatura (Hypérion de Hölderlin) ou na
gem), para Novalis, é um símbolo da alma Naturphilosophie de Schelling (síntese do
do mundo e da relação de seus objetos; subjetivo e do objetivo), seríamos inclina-
ou ainda, um autor que quisesse escrever dos a ver nessa maneira de reiterar as fi-
apenas um romance, diz o fragmento nº guras pintadas, dispondo-as diante de
116 da revista Athenaeum, “apresentou- uma paisagem, a expressão típica da em-
se por acaso a si mesmo” (FR. SCHLEGEL, patia romântica, da fusão entre o eu e a
2014, frag. 116). Schiller já notava que a natureza. Como conhecer alguma coisa
diferença principal entre a poesia “ingê- que me é exterior e estranha, nota, por
nua” dos Gregos antigos e a “sentimental” exemplo, Novalis em um de seus frag-
dos modernos reside no fato de que os mentos teóricos, se eu não tenho já o seu
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segundos colocam-se igualmente em cena germe em mim? Conhecimento por empa-
em suas obras, ao passo que os primeiros tia, co-naissence, co-nascer, diria Paul
apagam-se diante dela: Homero não está Claudel (1907), conhecer não é mais jul-
presente no que ele escreve, Cervantes, gar à distância, mas fazer um, nascer com
ao contrário, comenta as desventuras de o objeto; da mesma forma que o olho só
seu herói, Don Quixote, e Jean Paul pode ver o sol, estima Goethe depois de
Richter torna-se mesmo um personagem Plotino, se ele tornar-se solar (Sonnehaft).
das suas ficções. (SCHILLER, 2002)
Graças a esses poucos exemplos, pode-
Nesse dispositivo romântico reflexivo, no- mos dizer que o romantismo se liberta do
ta-se facilmente que as figuras de costas sistema de distanciamento que regulava a
ocupam o limiar: o limiar da tela, como tese neoclássica. Essa é a tese do histori-
objeto recortado e organizado, e o limiar ador francês Jean-Claude Lebensztejn,
da representação: eles têm um pé fora e que escreve muito justamente:
um pé dentro. Essa posição liminar, dupla,

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como se olhassem uma simples imagem.
“O homem não pode penetrar como ator na
cena da História, ele é apenas, como a pai-
sagem, o espectador resignado”. (RECHT,
1989, p. 56)

Depois de Friedrich: paisagem de costas

Mas, de outra maneira, o espaço do limiar Dentre os herdeiros conscientes ou não


e dos personagens de costas em Friedrich desse dispositivo liminar da paisagem de
não assinalariam a impossível fusão, a dis- Friedrich, encontramos artistas que afir-
tância, a diferença entre o eu e o todo na- mam o retorno a uma grande natureza e,
tural? Tudo se desdobra nessa pintura no ao mesmo tempo, a distância, a nostalgia
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face-a-face angustiante, a confrontação do país perdido. A fotógrafa Elina Brothe-
melancólica entre o contemplador e o obje- rus fotografa-se de costas em um jogo de
to longínquo ou reduzido a uma superfície reflexividade romântica à segunda potên-
artificial. Referindo-se às telas de Friedrich, cia, diante das paisagens do Norte: preci-
Roland Recht nota justamente na Carta de sa-se ver ali uma homenagem (muito?)
Humboldt que os personagens pintados pe- apoiada no pintor, um desejo de fusão
lo pintor são citadinos (eles pertencem à com elementos ou a imagem quase turís-
História por seus trajes), deslocados diante tica, um clichê da paisagem romântica;
de uma natureza que eles não podem mais talvez tudo isso ao mesmo tempo? Em
capturar, senão pelo olhar. O que introduz Simon Faithfull, a referência romântica é
uma curiosa tensão entre a referência con- evidente, mas em parte inconsciente (se
temporânea e um ambiente natural torna- escutamos o artista): ele deixa-se fotogra-
do mítico ou puro artifício. Esse intervalo far de costas diante de um conjunto de
diz, a seu modo, a distância dos sujeitos paisagem com uma tee-shirt sobre a qual
diante de uma natureza que eles contem- está escrito 0°. Isso designa a posição do
plam à semelhança de um mito perdido ou Meridiano de Greenwich, essa linha de di-

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visão invisível, a referência internacional Marylène Negro: o limiar do visível e a
para o cálculo da longitude terrestre: ele geologia do tempo
segue essa longitude a partir do Norte
(Groelândia) até a África, em Gana, depois Gostaria agora de invocar mais longamen-
do que, ela prossegue seu trajeto no oce- te outra obra que concede um papel muito
ano Antártico até o polo sul. Essa estranha importante aos limiares e aos espaços de
deambulação paisagística é semirreal, se- passagem na paisagem, aqui também
mifictícia (a longitude é um marco invisí- através da imagem em movimento. Trata-
vel), em parte burlesca (vemos o artista se da obra de uma artista contemporânea,
em certos vídeos que documentam essa Marylène Negro, que constrói sequências
série, filmada de costas, seguindo, imper- visuais a partir de imagens fotográficas.
turbavelmente, seu GPS, transpondo tanto Ela não é diretora de filme no sentido
quanto possível todos os obstáculos: ele clássico do termo (não há filmagem); o
escala cercas, entra nas casas, atravessa material de partida é a fotografia ou foto-
um lago para seguir essa linha). gramas de filmes recuperados e colocados 75
em movimento. Essa colocação em movi-
O artista não ocupa apenas um limiar na mento aparenta-se quase a uma sucessão
imagem, de costas, como também encar- de diapositivos.
na literalmente a passagem e a linha fron-
teiriça, longitudinal. O limiar não é mais Seu trabalho no computador permite a ca-
um ponto imaginário que permite entrar libragem da luz e da sombra (jogos sobre
em uma paisagem. Ele se torna uma ma- a opacidade da imagem): seus filmes são,
neira de escrever a paisagem em movi- assim, acumulações de imagens, superpo-
mento, de traçar nele seu eixo invisível, sições de camadas cujo desenrolar desen-
como fazia de outra maneira Dennis Op- volve a densidade, a espessura.
penheim, materializando fusos horários
com a ajuda de uma moto de neve que Há duas intuições fortes nesse trabalho:
traça fronteiras do tempo no espaço. (1) A primeira é o emprego de uma genea-
logia do visível: não se trata apenas de
mostrar paisagens, objetos, corpos, rostos,

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Fig. 2 - Marylène Negro, Pass, 2018.


23 min 13 s (vídeo-fotos)
(Fonte: Imagens cedidas pela artista)

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Fig. 3 - Marylène Negro, Pass, 2018.


23 min 13 s (vídeo-fotos)
(Fonte: Imagens cedidas pela artista)

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mas de mostrar como eles aparecem pro- em grande parte, aleatórios: eles não de-
gressivamente, ou inversamente, como pendem de uma decisão do artista). Po-
eles desaparecem. Temos ali todo um pro- demos, em suma, falar de um tempo na-
cesso foto-fílmico que instrui a chegada, a tural, geológico, de uma geologia dos
comparência das figuras, também sua elementos. Esse tempo lento, geológico,
qualidade de desintegração. Daí esse sen- manifesta-se através da montagem de es-
timento de estar na presença de uma re- tratos, de superposições de imagens fixas.
velação quase original, por momentos,
cósmica, de manter-se diante de uma na- Olhemos um extrato de Pass (Fig. 2 e Fig.
tureza que emerge. Essa genealogia do vi- 3). O filme dura vinte minutos: trata-se de
sível é uma genealogia das figuras: há um filme composto por fotografias tomadas
sempre um dado inicial, imagem fixa, pla- na Índia, em Benares, restituídas por suas
no geral que é progressivamente modifi- arquiteturas tortuosas, incertas, insolven-
cado ou revelado. (2) A segunda intuição tes, labirínticas: acreditaríamos estar em

78 reside nesse advérbio “progressivamen- uma gravura de Piranese sobre prisões


te”: essa obra é assombrada pela lenti- subterrâneas. Uma paisagem subterrânea
dão. O tempo de elaboração, genealógico, que nos faz avançar enquanto permanece-
é um tempo lento, inabitual, quase inu- mos no mesmo lugar, um tipo de viagem
mano e não o tempo subjetivo: é o que imóvel ao país do limiar. Limenland era,
torna seus foto-filmes às vezes difíceis de além disso, o título de um de seus filmes,
olhar, pois seu tempo não nos diz respeito uma sequência de Inland Empire de David
imediatamente. Ele escapa a nossos mo- Linch em um corredor, montado imagem
dos de percepção das imagens (um tempo por imagem, esvaziado de seus diálogos:
vivido, experimentado, refletido e ligado a não restava mais na sua versão senão um
uma cinética, aos movimentos de nosso lento escoamento de cores.
corpo). Aqui o tempo do filme escapa ao
sujeito, ao sentido em que ele é fruto de Poderíamos olhar o trabalho desta artista
uma superposição realizada de forma ma- com a ajuda de alguns elementos teóricos
quinal (o resultado, o encadeamento, as provenientes da tese deleuziana sobre a ima-
transformações das paisagens são assim, gem-tempo. Eu lembro, em grandes linhas,

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Fig. 4 e 5 - Marylène Negro, Limenland, 2015.


20 min 15 s (vídeo-fotos)
(Fonte: imagens cedidas pela artista)

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que Deleuze identifica no cerne do cine- Essa crise da narração que possibilita a
ma, incialmente, um momento clássico: emergência de um cinema do tempo puro,
orgânico, aristotélico, marcado pela priori- como condição transcendental das ima-
dade do mýthos, da fábula narrativa e pe- gens, desarruma o modelo narrativo da
la coerência do todo (DELEUZE, 1985). O imagem-movimento. As histórias se de-
tempo da sucessão e aquele da narração compõem, perdem sua importância, os
estão ao serviço de uma narração, de uma heróis são tomados em suas errâncias
ação. Ele identifica, como um pivô, uma sem metas, o cinema reflete o que ele é.
“crise da imagem ação”, que corresponde, O esquema sensório-motor (a serviço da
grosso modo, ao nascimento de um se- história) é contrariado, o cinema moderno
gundo momento do cinema, aquele da sua inventa o tempo puro, a intuição do tempo
modernidade que aparece no pós-Segunda como experiência metafísica ou política (o
Guerra Mundial: com Hitchcock, o sinto- cinema que se toma por objeto questiona
mático, Janela indiscreta [Rear Window], sempre a economia e o dinheiro).

80 cujo protagonista está reduzido a situa-


ções visuais e sonoras puras, enquanto o O que me interessa situa-se no capítulo 4
esquema da narração se decompõe. O he- da Imagem-tempo (“os cristais de tem-
rói (James Stewart) não age mais, mas po”). Gilles Deleuze retoma a tese de
ele contempla e monta através de sua te- Bergson sobre a duração pura, o tempo
leobjetiva as cenas que vê, como voyeur; vivido. Esse tempo vivido é um tempo
o real torna-se um painel de imagens e de qualitativo e, sobretudo, homogêneo, li-
representações. gado, sem corte, contrariamente às repre-
sentações quantitativas e especializadas
Ele se mantém, como um personagem de do tempo heterogêneo dos horloĝos e da
Friedrich, constantemente sobre o limiar numeração (DELEUZE, 1985, p. 92). O
do visível: aqui e lá, sobre uma junção. A próprio desse tempo é que ele encadeia
crise narrativa e o nascimento de um ci- indistintamente presente-passado-futuro.
nema perceptivo e memorial advêm tam- Para Deleuze, depois de Bergson, o tempo
bém mais francamente com o Neorrealis- não é sucessivo e diacrônico, como se um
mo italiano e a Nouvelle Vague. momento interviesse após um outro e que

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cada um expulsasse o anterior. O tempo é Maylène Negro mostra esse regime mútuo
sincrônico e simultâneo: as hipóstases do e duplo da imagem, a indistinção dos
tempo não ocorrem uma após a outra, tempos e das figuras. O que vemos efeti-
mas conjuntamente, simultaneamente. O vamente? (1) A lenta trama, a sucessão
presente não se torna passado para em das imagens e, portanto, o escoamento
seguida transformar-se em futuro: o pas- mesmo dos tempos, ela agarra o momen-
sado coexiste com o presente que ele foi. to em que o presente se cinde em passado
O tempo é uma fiação extremamente su- e em que este superpõe-se – como a per-
til, delicada, infrafina, entre suas dimen- sistência retiniana, a imagem-fantasma –
sões diferentes. Elas ocorrem a cada mo- à imagem atual. (2) Compreende-se en-
mento juntamente e não separadamente. tão a predileção da artista por espaços de
passagem e de limiar que dão justamente
Assim, Deleuze pensa o cinema moderno a ver, a agarrar esses tempos infrafinos,
como a produção de imagens mútuas, no essas modificações do tempo: através das
cerne das quais coexistem o atual (pre- passagens, corredores, escadas, labirin-
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sente) e o virtual (passado-futuro), o real tos. Essas transformações, esses colapsos,
e o imaginário, a percepção e a lembran- declínios, desaparições, aparições são a
ça. O tempo divide-se em cada um dos trama do tempo solidário e coalescente
seus momentos, sem perder suas dimen- (tempo-cristal, sincrônico de dimensões
sões múltiplas. Há uma “coalescência” dos diferentes) e não o recorte arbitrário em
tempos no tempo. O presente torna-se partes distintas.
passado ao mesmo tempo em que está
presente (ele não se torna passado de- Deleuze escreve ainda: “O cristal na ver-
pois). Isso é uma imagem-cristal, uma dade não cessa de mudar as duas ima-
imagem em espelho que mostra o original gens distintas que o constituem, a ima-
e seu duplo, seu reflexo, o presente e seu gem atual do presente que passa e a ima-
tornar-se passado. “O passado não sucede gem virtual do passado que se conserva:
ao presente que ele não é mais, ele coe- distintas e, entretanto, indiscerníveis, e
xiste com o presente que ele foi”. tanto mais indiscerníveis que distintas

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uma vez que não se sabe qual é uma e Referências
qual é a outra”.
BONNEFOY, Yves. L’arrière-pays. Paris:
Em suma, poderíamos ver nos quadros Gallimard, 2003.

móveis dos filmes lentos de Marylène Ne-


CLAUDEL, Paul. Art poétique (Connais-
gro, o emprego de genealogias visíveis e sance du temps - Traité de la connais-
de geologias de imagens: as paisagens sance au monde et de soi-même - Dé-
veloppement de l'Eglise). Paris: Mercure
atravessadas que desmoronam umas so- de France, 1907.
bre as outras são todas paisagens tempo-
DELEUZE, Gilles. Image-Temps: cinéma 2.
rais. Passagens que, modificando sem
Paris: Minuit, 1985.
cessar, dão a ver a dimensão da dupla fa-
ce do tempo, o cristal tempo e não seu LEBENSZTEJN, Jean-Claude. De l’imitation
dans les beaux arts. Paris: Hoebeke, coll.
fluxo irreal.
Arts & Esthétique, 1996.

Marylène Negro constrói a paisagem em SCHLEGEL, Friedrich. Fragmente. Athe-


82
naeum. Eine Zeitschrift von August Wil-
país longínquo e eu retorno, para terminar helm Schlegel und Friedrich Schlegel.
essas incursões nos limiares do visível do Ersten Bandes Zweytes Stück, Berlin,
1798. Digitale Edition von Jochen A. Bär.
“interior do país”, a esta interrogação pri-
München: Vechta, 2014.
meira de Yves Bonnefoy: “É aqui que aca-
ba o que eu deixo, é aqui que o outro SCHILLER, Friedrich. De la poésie naïve et
sentimentale. Paris: Arche Éditions, 2002.
mundo começa?”
RECHT, Roland. La Lettre de Humboldt. Du
jardin paysager au daguerréotype, Chris-
tian Bourgois, Paris: 1989.

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